LIBRARY OF MEDICINE NLM 00141044 NLM001410440 sf'*. / 42 fa o o DA FEBRE AMARELLA TRABALHO I.IDO PERANTE A W •' ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA E APRESENTADO AO Congresso Medico Pau-Americano de Washington PELO fhr. iL i. i *. i v 1 \}\_^-\i\ r!L RI I l,i 190 0 i rio de tomo Companhia Typographica do ANTIGA TVPOGRAPHIA LAEMMERT 93 —Rua dos Inválidos—93 1893 / MblL. VJCk L\3im 293 P-/^ &érp -Z+*~~ Felix qui potest remiu cognoscere causas. Brilhante previsão do futuro teve o professor Grie- singer quando no seu notável Tratado das doenças inje- duosas, ha mais de vinte annos publicado, escreveu as seguintes palavras no capitulo consagrado á febre ama- rella: « Si moléstia existe com a qual se conforma a hypo- these de um miasma animado, é a febre amarella; e a pro- babilidade dessa hypothese ainda mais avulta pelo facto de circumscrever-se aquella moléstia a certos paizes do hemispherio occidental.» Quanto a mim, a admirável previsão do douto pro- fessor allemão não tardará muito a ter a consagração of- ficial da sciencia hodierna. Actualmente já ninguém duvida que a febre amarella seja causada por um mi- cróbio. Que fôrmas, porém, elle reveste, que hábitos tem, como se reproduz, quaes são, em summa, os seus cara- cteres physicos, biológicos e o modo de exercer-se a sua funeção pathogenica—eis a questão sujeita a debate. Doença peculiar aos climas calidos, com focos per- manentes em varias circumscripções do littoral da Ame- rica, ébem de vêr que aos médicos americanos devem de ter-se oíferecido numerosas opportunidades de estudal-a no ponto de vista clinico e bacteriológico. E é preciso dizer, em louvor delles, que nenhuma moléstia lhes ha — 6 — attrahido mais a attenção e suscitado entre elles maiores controvérsias do que a febre amarella. De ha muito bus- cam elles penetrar o segredo da sua causalidade e não conseguiram até hojedesvendal-o. Para nós brazileiros o que é essa moléstia sinão um pavoroso espectro? A considerável somma de vidas que ella extorque annualmente ás nossas mais ricas colmeias humanas, o terror que ella infunde no seio das populações urbanas, os transtornos que causa ao commercio nas suas relações com os paizes estrangeiros, os enormes dispen- dios dos dinheiros públicos a que ella obriga para satis- fazer as exigências do saneamento das cidades e prevenir futuras invasões epidêmicas, a má fama de paizpestilento, emfim, que ella ha trazido ao Brazil, tudo está mostrando que a febre amarella entre nós não assume a importância de questão de primeira ordem, sinão porque ella tem ao mesmo tempo uma face scientifica, econômica e social. Não é portanto somente por virtude, de um louvável senti- mento humanitário ou para satisfação de mera curiosi- dade scientifica que nos corre o dever de resolvel-a; os mais sagrados interesses da nossa pátria, vergada ainda sob o jugo desse flagello, impoem-nos também esse dever- Si os governos de todos os paizes sofredores ou amea- çados quizessem um dia compenetrar-se da missão prote- ctora que lhes cabe em casos taes, deviam vêr, que não é mediante esforço individual, mas collectivo, que se chega a levar de vencida as difficuldades inherentes a questões dessa esphera; eque uma commissão internacional de ho- mens provectos e competentes subsidiada pelos paizes in- teressados, a qual se incumbisse de distrinçar e esclarecer a meada obscura da pathogenia da febre amarella, seria no consenso universal serviço de inestimável valor. Com elle ganharia a sciencia pela segurança e fir- meza das deducções eficariam definitivamente assentadas — 7 — as bases para um accôrdo de vistas sobre os meios de obstar a propagação da febre amarella no continente ame- ricano . Temos um presentimento que a iniciativa na reali- zação dessa idéa partirá um dia dos Estados Unidos da America do Norte, e que assim se realçará ainda mais o meritorio esforço que faz aquella nação forte e emprehen- dedora em prol dos vitaes interesses de toda a America. Não são de dacta mui recente os primeiros impulsos para attingir a causa da febre amarella. Não tinham ainda as immortaes conquistas de Pasteur desvendado ao mundo os mysterios da infecção nas moléstias humanas e zooticas, ejá um nosso compatriota, de saudosa memória, aventava a idéa de ser a febre amarella produzida por um vegetalzi- nho microscópico que elle denominou Opuncia mexicana. Infelizmente Gama Lobo não assentou sobre base scien- tifica a sua hypothese, pelo que não lhe prestaram muita attenção os homens competentes. Decorreram alguns annos sem que a sciencia hou- vesse de registrar novo tentamen para ferir esse escopo. Os experimentadores europeus tinham a attenção voltada para outros assumptos e procuravam solver outros pro- blemas ; e na America mui poucos adeptos contava a sciencia bacteriológica capazes de tomarem nos hombros tão árduo emprehendimento. Dentre esses poucos sobresahia o Sr. Sternberg, o qual, já em 1873, defendia com argumentos á priori a opinião de ser a febre amarella produzida por um germen, opinião que mais se firmou após os trabalhos da Commissão Americana enviada a Ha- vana, em 1879, da qual fez parte aquelle distincto bacte- riologista. Salvo, porém, previsões mais ou menos bem fundadas acolytadas por argumentos que fallavam á razão, nenhuma — 8 — conclusão positiva se tinha podido tirar das observações até então realizadas. Em torno da questão continuava a pairar a mesma escuridão. Era na própria America, pátria da febre amarella, que deviam ferir-se os mais rudes combates para decifrar-se o segredo da sua origem. No Brazil e no México, dous gran- des centros de acçào daquelle flagello, a constante laborio- sidade dos investigadores podia colher elementos sufficien- tes para a solução do problema. Tão favoráveis condi- ções de successo comprehende-se que não podiam dei- xar de ser aproveitadas uma vez que fora d'alli não seria fácil encontral-as. Comoellas foram aproveitadas vamos agora expender. A gloria da iniciação desses trabalhos no Brazil cabe incontestavelmente ao Dr. Domingos Freire, como no México ao professor Carmona y Valle. Trilharam elles por caminhos differentes, applicando methodos diversos, para chegarem no fim a conclusões na apparencia contradicto- rias, na realidade concordantes. Divergiram principal- mente em pontos de doutrina e de interpretação dos factos, sujeitos a variar conforme a s omma de conheci- mentos scientificos de que dispõe no momento cada obser- vador . A critica e o tempo, porém, exercendo as suas func- ções demolidoras, solaparam o edifício engenhosamente architectado por aquelles dous scientistas, de tal sorte que com grande espanto nosso vimos um dar de mão ás suas primeiras affirmações, e o outro com as suas convicções abaladas fazer publica retractação da sua theoria. Na critica que vamos perfunctoriamente fazer dos tra- balhos scientificos do Dr. Domingos Freire bem longe está de nós a intenção de amesquinhar-lhes o valor e a gran- deza. Antes de tudo cumpre ter bem presente á memória que elle começou quando ainda, para assim dizer, se ajustavam — 9 — as primeiras pedras dos alicerces da sciencia bacterioló- gica ; as linhas directrizes não estavam definitivamente traçadas, e os processos technicos não haviam attingido aquelle gráo de perfeição e de segurança, que só posterior- mente alcançaram. Por isso penso que não se lhe poderá com justiça arguir pela má orientação que de principio deu aos seus trabalhos; quando muito se lhe poderá censurar a sofíregui- dãocom que trouxe á publicidade resultados que não tinham sido suficientemente contrastados pela pedra de toque da experiência e da observação. O ponto de partida das conclusões do Dr. Domin- gos Freire foi o exame microscópico da matéria do vomito negro. Tão constante e tão peculiar é este symptoma á fe- bre amarella, que por bem fundada devia ser tida a pre- sumpção de encontrar-se naquella matéria algum agente extranho representando a causa. Este simples raciocínio abrio a porta á investigação, sendo praticados os pro- cessos mais singelos da technica microscópica para desco- brir no liquido vomitado a presença de germens. Al li na matéria vomitada descobrio Freire fôrmas que suppoz caracteristicas do germen productor da febre amarella, e que são assim descriptas por elle : « Apresentam-se como pontinhos quasi imperceptiveis, e augmentando gradativamente em diâmetro attingem por fim consideráveis dimensões. Chegados ao período adulto rompem-se estas cellulas em pontos differentes e despejam o conteúdo constituído por esporos já forma- dos, misturados com uma substancia viscosa de côr ama- rella, composta de matéria pigmentaria e protoplasmica, e de líquidos elaborados pelas cellulas. » Germen com taes característicos morphologicos, e com reproducção endogenica, qual esse se mostrara, sem duvida não podia pertencer ao grupo das bactérias — 10 — donde tinham até então sabido quasi todos os micróbios pathogenicos. O Dr. Freire vio bem isso, e não querendo deixal-o desclassificado, achou que elle tinha affinidade com as algas e appellidou-o de cryptococcus xantho- genicus. O que se seguio a estas primeiras observações foi uma successão de factos tão harmônicos e concordantes . que a acceital-os, poder-se-hia ter a certeza de haver en- contrado a chave do enigma. O cryptococcus xanthogeni- cus transportado no sangue dos doentes, ou dos cadáveres para os caldos esterilisados ou para a gelatina, alli repro- duzia-se em culturas puras. Foi attestada a sua presença no fígado, nos músculos, na massa encephalica, e poste- riormente na própria terra que cobria a sepultura de indi- víduos mortos de febre amarella. A coloração caracterís- tica do vomito explicava-se pela diffusão dopigmento que elle fabricava, tendo igual explicação o colorido amarello da pelle. Elle secretava uma substancia nitrogenica da classe das ptomainas, que chegou a ser isolada do liquido vomitado, do sangue e da urina. Finalmente para fechar a série de factos concordantes e demonstrativos, dizia o Dr. Freire que transmittia a febre amarella aos por" quinhos da índia, inoculando-lhes no tecido cellular subcu . taneo sangue extraindo dos doentes. Si todas essas attestações fossem exactas e escoima- das de qualquer erro dos sentidos e da razão,o quadro assim emmoldurado da febre amarella ficaria sendo um dos mais bem acabados da galeria das moléstiasinfectuosas. A cri- tica, porém, começou logo a afiar o escalpello para desfibrar esse corpo de doutrina. Em abono da verdade devemos confessar que ella foi por vezes injusta e acrimoniosa, occupando-se principalmente dos detalhes com apreciações a rationesemprocurar destruir experiinsntalmente oscoa- trafortes da questão,que para nós, permaneceram incólume s. — 11 — Assim os mais acirrados antagonistas de Freire não se contentavam com arguil-o pela inexactidão dos factos; iam mesmo além, pondo em duvida a sua boa fé scienti- fica ; e com grande desprazer dos que imparcialmente se- guiam o pleito, vio-se então a controvérsia scientifica d egenerar em disputa pessoal. O primeiro e o mais importante facto a verificar era si realmente um germen com os caracteres descriptos por Freire se encontrava constantemente nos líquidos excre- tados pelos doentes e nos órgãos e vísceras do cadáver. A maioria dos investigadores negou o facto quanto á pre- sença, do germen supra referido nos órgãos e vísceras do cadáver; e quando o viram e conheceram nos líquidos excretados, contestaram-lhe o valor especifico, porque as condições de uma existência accidental alli, não auto- risavam, diziam elles, outra conclusão. Para alguns não passavam de cellulas de gordura os germens encon- trados por Freire no liquido vomitado, no sangue e no fí- gado, invocando-se erro tão grosseiro como prova da im- pericia do observador. Por outro lado, aquelles mesmos que não pareciam de todo dispostos a repudiar a vera- cidade do facto, sentiam-se coactos pela obediência ás re- gras doutrinaes, as quaes tinham até então estatuído que os germens pathogenicos revestem sempre uma das for- mas características do grupo das bactérias. A replica de Freire ás objecções que o assaltavam de todos os lados accentuou-se muitas vezes com um tom al- teroso e irritado, enxergando através os maroiços da po- lemica, os arremessos da inveja mordida e despeitada. E dominado por essa prevenção elle não sabia responder cer- teiro aos golpes dos seus adversários. Entretanto os echos da contenda aqui travada repercutiram lá da outra banda do Atlântico, e a opinião contraria avolumou-se com o reforço de homens eminentes . — 12 — Apertado por tão critica conjunctura sentio Freire desfallecer-lhe a coragem para manter de pé as suas affir- mações. Associando-se então a dois experimentalistas francezes, os Srs. Gibier e Rebourgeon, elle transpoz o adito da Academia das Sciencias, levando-lhe os resultados das suas mais recentes perquisições Amparado com o testemunho desses dois collaboradores elle natural- mente esperava vêr renascer a confiança na realidade das suas conclusões e convencer aquelles que se obstinavam em não querer acceitar como verídicas as suas affirmações. Mallograda, porém, foi essa esperança pela ulterior dis- juncção do Sr. Gibier, quando transportado este a Ame- rica para investigar a causa da febre amarella, firmou em documento publico e corrente a sua completa discordância de vistas com o Dr. Freire. Entretanto regressando este de sua viagem á Pariz trouxe comsigo frasquinhos de cultura de um micrococco, o qual foi aqui, no Rio de Janeiro, apresentado ao Sr. Sternberg como germen pathogenico da febre amarella! Essa apresentação feita a um estrangeiro encarregado officialmente de apreciar o valor scientifico dos trabalhos do Dr. Freire, importava completa renuncia das suas antigas opiniões; porquanto os micrococcos transportados de Pariz nenhuma semelhança offereciam com o germen descripto por Freire sob a denominação de cryptococcus xanthogenicus. Quer-me parecer que tão flagrante inco- herencia não influio pouco no animo do emissário ameri- cano em desfavor das doutrinas doDr. Freire. Antes de definir a minha posição em frente ás primeiras affirmações desse distincto scientista brazi- leiro, cumpre, para maior segurança das minhas apre- ciações, lançar olhar retrospectivo sobre o que tem publicado outros observadores com referencia a este as- sumpto. — 13 — Exceptuados os observadores americanos, que fre- qüentaram o theatro das epidemias, e conseguiram para seus estudos material abundante recentemente colhido, os outros limitaram-se geralmente a pesquizas pouco de- moradas, exercidas muitas vezes sobre material exíguo conservado em álcool desde muito tempo. Babes, professor de anatomia pathologica em Buka- rest, que, durante alguns mezes trabalhou no laboratório de Cornil, em Pariz, procedendo a pesquizas microscó- picas em pedaços de rim e de fígado, que d'aqui enviei áquelle laboratório, encontrou dentro dos vasos renaes e hepaticos, em zonas mui circumscriptas, uma bactéria formada de granulos unidos em cadeia, que se tingia bem pelas cores da anilina. Além disso vio dentro dos canaliculos do rim massas coT\g\6bsiáa,s-framboisées, que elle não soube definir, apezar do emprego de alguns reagentes chimicos; massas e gotas hyalinas; grande quantidade de cellulas redondas nos canaliculos, nas paredes dos vasos, nos glomerulos e no tecido con- junctivo. Examinando posteriormente no laboratório de Koch peças anatômicas procedentes de cinco indivíduos victi- mados pela febre amarella, apezar do mais apurado exame, não conseguio o mesmo observador, desta vez, descobrir no fígado e no rim uma só bactéria. Na superfície, porém, do fino intestino appareceram certos bacillos, que recordavam os da febre typhoide; e sob o estrato glandular grande quantidade de cellulas redondas. No conteúdo do intestino densas agglomerações de grandes micróbios redondos de l,mm desiguaes, junto dos quaes havia sempre pigmento amarello ou preto. Na urina Babes vio idênticas agglomeraçõos de grandes micróbios redondos, sem pigmento; e nas paredes da — 14 — bexiga uma infiltração de elementos extranhos, piri- formes, com vacuolos, que elle entendeu dever classificar de mónadas. E' evidente lendo-se a descripção de Babes que, quer na intimidade das vísceras, quer no conteúdo dellas , o microscópio denunciou a presença de fôrmas microbianas , que não são bactérias. Essas fôrmas eram de grandes cellulas redondas, com pigmento ou sem elle, soltas ou conglomeradas, ás vezes com um aspecto piriforme e va - cuoladas. Range, medico da marinha franceza, encontrou no liquido do vomito preto elementos que elle assim descre- veu : agglomerações de cellulas, algumas redondas com um núcleo central, outras, em maior numero, ellipticas, com as dimensões de um glóbulo vermelho do sangue, tendo um núcleo junto á extremidade de maior diâmetro. Elias apresentam-se unidas, formando grupos de duas e de três. Ao lado desses elementos estavam bacillos curtos e largos, granulados. E' evidente lendo-se a descripção de Range que este observador encontrou no liquido do vomito preto fôrmas microbianas que não são bactérias, e que essas fôrma s muito se approximam daquellas que Babes vio na intimi- dade das vísceras e no conteúdo dellas. Gama Lobo, em interessante opusculo, publicado ao mesmo tempo em francez e inglez, sob o titulo — Es - tudos sobre a febre amar ella de 1873—1874, discorrendo acerca do vomito preto, assim se exprime a pag. 21 : « O microscópio offerece quadro esplendido quando se observa a porção grummosa do vomito. Para isto basta collocar porção da massa solida sobre lamina de vidro e comprimil-a com outra lamina, á guisa do processo empregado para o exame do cérebro. Enchem o campo do microscópio milhares de fungus de fôrma ellipsoide, tendo - 15 — ora um nucle©, ora dous ; alguns em estado de segmen- tação. Comparados com o fermento da cerveja, só ha esta differença : no fermento o núcleo é mais escuro no centro, e a aureola que o cerca mais brilhante. Temos observado a matéria do vomito, logo em se- guida á rejeição, depois de 24, 48 horas ;2, 5 e 8 dias—a única differença consiste no augmento do fungus». Adiante, á pag. 29, relatando um caso mui grave, em que fez o exame microscópico da matéria grummosa do vo- mito, exprime-se desta sorte o mesmo observador: « O microscópio mostrou-me na matéria grummosa milhares de fungus ellipsoides, alguns com um ou dous núcleos ou vacuolos, da grandeza de 0,m0 1 a 0,m02, uns formando um como mosaico (pavé), outros semelhantes a dobrões empilhados, e em outros pontos reunidos de modo a recordarem a fôrma do cactus». Não resalta,á simples leitura destes excerptos, a per- feita identidade do achado deGamaLobo com a observação su pramencionada de Range? Examinando a estampa, ap- pensa ao opusculo,e referente a esse trecho,ficamos também convencidos da identidade das fôrmas toruladas, encon- tradas por Gama Lobo, com aquellasque temos cultivado. Silva Araújo, distincto professor na Policlinica do Rio de Janeiro em artigo publicado na União Medica, em 1883, assim descreve o que elle vio no liquido do vomito preto :« a matéria vomitada compunha-se de massas ama- relladas ou amarello-esverdeadas, de fôrmas irregulares e variadas. Cada uma dellas era constituída por extraor- dinário numero de cellulas esphericas, entre si ligadas por substancia amorpha. As dimensões destas celullas vari- avam muito, sendo algumas gigantescas, comparadas as outras. Tanto mais carregado era o colorido quanto maior a dimensão da cellula. Entre as massas de cellulas colori- das appareciam micrococcos e alguns bacillos.» — 16 — Não se vê também claramente nesta descripção que os elementos microbianos que predominavam não eram bactérias, e que, salvas diferenças secundarias, as fôr- mas são as mesmas que Babes, Range e Gama Lobo des- creveram ? Sternberg no seu Relatório sobre a prevenção da febre amarella mediante inoculação, á pags. 175 e 176 diz haver encontrado no muco e no epithelio descarnado do estômago—agglomerações de cellulas ovaes, isoladas, em pares, ou formando curtas cadeias, como torulas ; e na superfície do intestino numerosas massas coloridas, irre- gulares, de dimensões mui variadas, e grandes organis. mos esphericos em cadeias. Ao lado destas fôrmas micro- bianas que não são bactérias encontravam-se micrococcos e bacillos. Haverá algures quem seja capaz de negar a perfeita similitude das fôrmas encontradas por Sternberg no epi- thelio gástrico e no intestino com as que foram descri- ptas pelos observadores precedentes ?. Si formos agora inquirir das relações de affinidade existentes entre as fôrmas microbianas descriptas pelos observadores supracitados e o cryptococcus xanthogenicus do Dr. Domingos Freire, não nos faltarão valiosas razões para admittir que são todas ellas fôrmas representativas do mesmo ser, em differentes phases de sua desenvolução autogenica. Sim, não temos hoje a menor duvida em admittir a identidade especifica do cryptococcus de Domingos Freire, com as fôrmas observadas por Babes, Range, Gama Lobo, Silva Araújo e Sternberg. Por observações repe- tidas e assaz demoradas, Freire foi notando ponto por ponto as transformações evolutivas do germen; o que poderia fazer acreditar que elle fora assim levado a in- cluir sob a mesma rubrica cousas mui diversas. Outro — 17 — tanto não fizeram os observadores subsequentes, os quaes apprehenderam as fôrmas taes e quaes ellas se lhes mos- traram em um momento dado e assim como as viram as des- creveram. Deixando para depois julgar do valor dos argumentos que possam oppôr-se á idéa de que essas fôrmas micro- bianas são o verdadeiro germen pathogenico da febre amarella,passamos já a expender os resultados das nossas pesquizas e observações. Durante o nosso longo trabalho de três annos em que estivemos oecupados só com o estudo da causa da febre amarella, conseguimos accumular somma grande de documentos demonstrativos, que põem evidentes as fôrmas varias do germen nos órgãos predilectos da mo- léstia. Na matéria do vomito, na urina recentemente excretada, no sangue da epistaxis, no figado, no rim, no estômago e no intestino encontramol-o com as mesmas fôrmas características. Podemos isolal-o e cultival-o fora desses meios, reconhecer o seu polymorphismo, e obter a fôrma typica que elle reveste no meio exterior, como germen saprophyto. EXAME DA MATÉRIA DO VOMITO São bem conhecidos de todos os médicos clinicos que tem tratado doentes de febre amarella os caracteres phy- sicos do vomito. Geralmente a expulsão da matéria con- tida no estômago opera-se sem grande esforço da parte do doente. A rejeição é prompta e fácil, ficando, porém, o paciente, após ella, em estado de abatimento profundo. A contractilidade gástrica é tão sobreexcitada que muitos vezes basta a ingestão da menor quantidade de liquido para provocal-a. De tal sorte exagerada é egualmente 2 — 18 — nesses casos a erectibilidade do apparelho nervoso que preside aos actos mecânicos do estômago que a menor im- pressão externa capaz de agir sobre elle disperta ten- dência ao vomito. Casos ha, entretanto, em que se produz depressão funccional desse apparelho; então a cavidade gástrica deixa-se encher até á plenitude; e o liquido e matérias alli contidas são rejeitadas mediante regurgitação. O liquido rejeitado offerece á vista as apparencias mais diversas, desde o liquido pardo-escuro com grummos pretos em suspensão até á cor negra de tinta de escrever. Em regra o liquido d'esta ultima fôrma caracterisado apparece na phase mais adiantada da moléstia, tendo sido precedido de vômitos com coloração menos in- tensa . Recebido o liquido assim tingido em frasco de vidro transparente, observa-se no fim de algumas horas de re- pouso que elle se acha dividido em duas camadas por effeito da precipitação da matéria negra que elle contém. Em cima é quasi transparente, em baixo anegrado, turvo e mais denso; sua acidez é considerável. Blair, citado por Watson in Lectures on the princi- pies andpractise ofPhysic, diz que a matéria sedimenta- ria do vomito preto é dotada de poder fermentativo, quando posta em contacto comliquidos assucarados. (The sediment of black vomit acts as a ferment on fluids con- taining sugar). Para o exame microscópico fizemos recolher a maté- ria vomitada em frascos bem limpos com occlusão im- mediata; e o exame operava-se com a maior promptidão possível Sacudido o frasco, retiravam-se d'elle algumas gotas do liquido com um bastão de vidro esterilisado, e faziam-se as preparações em lâminas de crystal cobertas por uma laminula. — 19 — O primeiro facto a assignalar é que collocado no foco da lente do microscópio, o liquido não tinha mais a côr preta. No campo visual o tom dominante era amarello es. verdeado, não se divisando em ponto algum uma mancha negra. Esse phenomeno de chromatismo attrahio-nos deve- ras a attenção; e fomos, após numerosas inquirições, le- vados a suppôr que o colorido preto do vomito era sim. plesmente devido a uma tal ou qual degradação de cores, produzida por effeito da luz transmittida. E tanto mais bem fundada nos pareceu essa s upposição quanto a expe- riência feita com outros liquidos coloridos nos deu resul- tados semelhantes. Ninguém ignora que o amarello de ouro (jaune d'or ) em massa tem a côr quasi preta ; em soluções mui diluídas, porém, é amarello côr de ouro. Na verdade parece ser por um effeito óptico que a matéria pigmentaria amarella do vomito assume a côr preta quando se apresenta em massa. Em todo o campo do microscópio viam-se massas irregulares amarellas de pigmento, e numerosas cellulas esphericas, medindo algumas até 4.mm de diâmetro, com colorido differente, desde o amarello desmaiado até o ama- rello escuro esverdeado. Evidentemente a matéria pig- mentaria amarella, tão abundante no liquido da prepa. ração, provinha da destruição destas cellulas. Acom- panhámos algumas d'ellas, em processo de destruição e ficámos disso convencidos. Até attingir esta phase, em que o elemento se destróe, derramando o protoplasma colorido de amarello, elle tem atravessado outras phases durante o seu desenvolvimento, as quaes todas podemos apreciar. No começo são cellulazinhas brilhantes, hyali- nas, de contorno escuro e aspecto homogêneo. A medida que se vão tornando mais volumosas, a refringencia dimi- nue, o contorno escuro tende a desapparecer, e pouco e pouco vê-se a coloração amarella accentuar-se com tons — 20 — de mais em mais carregados até approximar-se da côr amarella esverdeada. Em vários pontos da preparação notavam-se pedaços irregulares do tênue invólucro das cellulas, trazendo na superfície granulações coloridas de amarello. De parceria com as grandes cellulas que acabámos de descrever,appareciam outras fôrmas que se poderia suppôr sem connexão com as primeiras. Estas eram constituídas por cadeias de duas, de três, ou de quatro cellulas, algumas redondas, outras approximando-se mais da fôrma elliptica, perfeitamente similares ás torulas. As cellulas que concor- riam a formar estas cadeias tinham também côr amarella. Além d'estas fôrmas, só appareciam, isso mesmo em numero mui limitado, granulações redondas, algumas um pouco irregulares, as quaes podiam ser consideradas micro- coccos. Estas granulações eram incolores. Eis o que a observação microscópica mais detida e cautelosa nos poude mostrar no liquido recentemente colhido de vomito preto. As fôrmas bacterianas (micrococ- cos) , por serem pouco numerosas, não nos pareceram ter alli grande importância. Os elementos dominantes, cara- cterísticos, digamos assim, específicos, eram as grandes cellulas redondas, coloridas de amarello, cuja matéria pigmentaria dava a côr própria do liquido; e as cellulas ellipticas de conformação similar ás torulas. Não tenho a menor duvida hoje em affirmar a iden- tidade destes elementos com aquelles que Silva Araújo observou no liquido do vomito preto da febre amarella • da mesma maneira que estou convencido serem elles idên- ticos, como espécie, ás cellulas que Domingos Freire des- creveu sob a denominação do cryptococcus xanthogenicus nos seus primeiros trabalhos. As formas de cadeias similares ás torulas devem ser também idênticas áquellas que Range e Gama Lobo — 21 — viram e descreveram na matéria do vomito e Sternberg encontrou agglomeradas na mucosa do estômago e no in- testino. Na verdade aquelles que desconhecem inteiramente as relações organogenesicas que prendem as grandes cellulas amarellas ás cadeias de torulas coexistentes na matéria do vomito, podiam ser induzidos a vêr nellas espécies differentes, alli reunidas accidental- mente. Não repugna, porém, á razão, e á sciencia admittir que espécies differentes de micróbio exercitem simulta- neamente a funcção causai de uma doença que se extrema por caracteres tão frisantes e definidos, qual é a febre amarella ? Bem sabemos que para os sectários de certa escola clássica, patrocinada pela auctoridade de Cohn e de Flügge, a variabilidade das fôrmas não se coaduna absolutamente com a unidade da espécie ; e porque no espirito desses bacteriologistas esteja assim radicado, como um principio, essa idéa preconcebida, não teríamos que extranhar si agora elles se recusassem a acceitar as fôrmas acima descriptas como modalidades do mesmo germen. A doutrina unitária applicada á morphologia dos seres infinitamente pequenos, está porém, dia a dia, perdendo terreno e adeptos ; ella hade necessariamente ceder do seu absolutismo ante a evidencia dos factos que a sciencia vai paulatinamente adduzindo. No grupo das bactérias, as observações de Wasser- zug, de Charrin, de Bouchard e outros já provaram a va- riabilidade das fôrmas por influxo das condições do meio nutritivo. Para os hyphomycetes as observações de Bre- feld, Laurent, Zopf, Duclaux, Cornu, etc, são inteira- mente concludentes. — 22 — Espero demonstrar no decurso deste trabalho que as grandes cellulas amarellas e as cadeias toruladas outra cousa não são mais do que modos diversos de reproducção de um sómicro-organismo. SANGUE Não é o sangue um meio para o qual tenha predi- lecção o germen da febre amarella. Elle parece apenas servir-lhe como vehiculo ou meio de transporte para as grandes estações de parada—o fígado eo rim. E tanto isso parece certo que as culturas do sangue em meios que devem ser os mais apropriados ficam quasi sempre estéreis, e o exame directo no microscópio não re- vela alli, na maioria dos casos, elemento algum extranho. O Sr. Sternberg tirou em Havana bellissimas micro- photographias do sangue ; e ellas não denunciaram a pre- sença de um só germen. Não quer isso dizer, porém, que não se chegue ás vezes a encontrai-os alli ; o que ha suc- cedido a vários experimentadores, inclusive ao próprio Sr. Sternberg, quando o sangue extraindo com as cautelas necessárias era conservado entre duas lâminas de vidro. No seu já citado relatório, á pag. 162, diz aquelle illustre bacteriologista americano o seguinte : « Em certos specimens do sangue que foram conser- vados em lâminas de cultura ( culture cells) desenvol- veram-se,ao cabo de um a sete ài&s, fungus hyphomycetes e bactérias esphericas. Comtuào só de modo excepcional appa- reciam estes organismos; e em varias preparações feitas com o sangue de um mesmo individuo, e na mesma occa- sião, em uma ou duas o fungus apparecia, em outras não. » A inconstância do facto tirou para o Sr. Sternberg toda a importância que elle podesse ter; e como os casos — 23 — positivos precisassem de explicação, nada mais fácil do que ir buscal-a em uma infecção accidental produzida por germens do ar. Mas onde está a impossibilidade em admittir que os germens do fungus assim desenvolvido preexistiam no sangue ? Será porque em uns casos elle se desenvolveu, em outros não ? Semelhante razão não nos parece lógica nem procedente. Realmente seria necessário admittir abundância de germens no sangue para que cada gota deste liquido pudesse ser portadora de alguns delles. Ora o exame directo e as placas photographicas do mesmo Sr. Sternberg haviam já mostrado quão difficilmente são elles alli encontrados. Por nossa parte podemos asseverar o seguinte: de numerosos exames do sangue, recolhido em balõezinhos esterilisados e proveniente de picadas feitas nos dedos dos doentes, só uma vez chegámos a descobrir grandes cellulas redondas em numero de quatro ou cinco, entre si ligadas e susceptíveis ao primeiro aspecto de serem con- fundidas com os glóbulos vermelhos do sangue. Desvane- cia-se, porém a confusão depois que um exame mais attento e demorado mostrava a esphericidade de taes cellulas contrastando com a fôrma biconcava dos gló- bulos . Entretanto caso houve em que o sangue da epis- taxis examinado duas horas depois de recolhido, deixou- nos vêr abundância de cellulas redondas e ellipticas,umas isoladas, outras unidas aos pares ou em cadeias, com todas as feições características das torulas. A semeação desse sangue em caldo esterilisado, de reacção ácida, deu, ao fim de poucos dias, uma cultura pura e abundante da torula. Não é licito, pois, de modo absoluto dizer que no sangue dos doentes de febre amarella não se encontram — 24 — germens; o mais que é permittido affirmar é que elles são alli relativamente raros. Si na febre amarella o sangue soffre no fim altera- ções que diminuem a sua plasticidade e favorecem as hemorrhagias, não deve ser attribuido esse facto á acção directados germens mas a outras causas supervenientes das quaes mais adiante com vagar trataremos. Por agora, o que nos cumpre assignalar é que na febre amarella ou não se encontram germens no sangue, ou quando elles alli app arecem revestem fôrmas similares áquellas que foram observadas no liquido do vomito preto. URINA Tem sido incriminados de pouco concludentes os exames da urina por ser um liquido de excreção em que facilmente pullulam germens provenientes do ar ou dos próprios órgãos excretores. Realmente assim é. Dado o caso, porém, de não haver lesão desses órgãos só se veri- fica a pullulação de germens quando a reacção da urina começa a ser alcalina. Então são as fôrmas bacterianas communs que tomam conta do liquido e nelle activam a decomposição Quanto ao micrococcus urece de Cohn, esse tem fôrmas suas próprias, mui conhecidas, que não per- mittem confusão com outras, e a sua presença na urina só se revela depois de iniciada a fermentação alcalina. Portanto quando a urina fôr recentemente colhida, com reacção ácida pronunciada, sem indicio algum de fer- mentação, e nella se venha a reconhecer a presença de abundantes germens com caracteres definidos que os diffe- renciem daquelles outros, esse facto deve merecer at- tenção. — 25 — Foi em taes condições que fizemos o exame da urina em vários casos de febre amarella; e em todos elles, mais ou menos, encontrámos cellulas redondas iso- ladas, de tamanhos differentes, reproduzindo-se por gem- mação; cellulas unidas aos pares, ou em cadeias de três e de quatro, similares ás torulas. Ao lado dessas fôrmas viam-se granulações refringentes, com movimento oscilla- torio e pequenas cellulas hyalinas, brilhantes, de con- torno escuro, crescendo no liquido. Tão semelhantes eram estas fôrmas áquellas que observámos no liquido do vomito preto e no sangue da epistaxis, quão diversas daquellas outras que habitual- mente são encontradas na urina normal. Esse accôrdo de factos não podia deixar de calar fundamente no nosso espirito, obrigando-o a vêr nelle uma prova mais em favor da nossa concepção etiologica. Releva muito agora notar que fôrmas similares áquellas que vimos na urina foram egualmente alli encon- tradas pelo Sr. Sternberg. Na pag. 216 do seu já citado relatório assim se exprime elle com referencia a este ponto: «A urina immediatamente depois de ser emittida mostrava-se isenta de bactérias; conservada, porém, no laboratório não era preciso muito tempo para que nella pullulassem micro-organismos de fôrmas variadas. Graças ás minhas photographias pude então vêr alli bacillos aos pares com as extremidades arredondadas, bacillos de extremidade quadrada, formando longas ca- deias — torulas gemmuladas (budding torula cells) orga- nismos espJiericos, etc. E' muito possivel (it is quite possible) diz elle adiante,que algum desses micro-organismos pomos vistos na urina seja o verdadeiro germen da febre amarella; mas si assim é, não ousaríamos affirmar por indigen- cia de provas.» — 26 — Também acha aqui o seu logar um facto digno de ser relembrado, e cuja importância não é somenos. E' que numerosos observadores attestam haver encontrado na urina do s doentes de febre amarella, guardada algumas horas, um fungus em estado de completo desenvolvimento. No Brazil Silva Araújo, no México, PoncedeLeon, Paliza e Valladas, e em Havana, Sternberg consignaram o facto. Possuímos uma photographia desse fungus, que com outras me foi offertada pelo Sr. Sternberg, e na qual claramente se vêem as ramificações myceliaes do fungus, em adiantado gráo de desenvolvimento. FÍGADO No organismo do doente de febre amarella representa esta víscera um dos mais activos centros da vida reprodu- ctora do germen ; e isso explica as extensas lesões das suas cellulas assim como a profunda perturbação das suas funcções glandulares. Não estamos longe de pensar que a funcção glycogenica desta glândula seja condição favo- rável á sua invasão pelo germen da febre amarella ; e quem me suggerio essa hypothese foi o facto por mim reconhecido de que os meios que contêm assucar são os que melhor se prestam a cultivar aquelle germen. A coloração amarella do fígado, côr de camurça, de gomma guta, de mostarda, é um caracter organo-patho- logico tão saliente e frisante que até hoje um só patholo- gista não deixou de mencional-o. Também na febre ama- rella o fígado é um órgão quasi exangue, nem atrophico nem hypertrophiado. A sua mudança de aspecto e de côr, eis tudo quanto fere a vista do observador. Penetrando, porém, com o microscópio até a intimi- dade cellular da viscera, vieram concordes os histo-patho- logistas attestar que tal aspecto e coloração explicavam-se -- 27 — pela degeneração gordurosa das cellulas hepaticas. Cré- vaux, Costa Alvarenga, May Figueira, La Roche, Pel- larin e por ultimo Babes foram todos dessa opinião. Começou a discordar desse parecer o Dr. Jones, dos Estados Unidos, naquelle paiz reputado um dos homens mais bem preparados para investigações dessa ordem. Como é que se vai tomar por gordura aquillo a que faltam todas as reações características desta substan- cia; que resiste á acção dissolvente do álcool, do ether e do chloroformio, eis a interrogação que a si próprio fazia aquelle analysta, depois de sujeitar o fígado áquelles reagentes. Deste contraste negativo veio-lhe suggerir o espirito a hypothese insustentável de que podiam bem ser compostos albuminosos ou Jibrinosos os suppostos gló- bulos de gordura. Carmona y Valle, de cujas investigações me hei de occupar ao diante, fundado nas mesmas razões, e tam- bém em outras, adhere á contrariedade de Jones. Estão enganados áquelles que admittem a degeneração gordu- rosa do fígado na febre amarella; elles são victimas de uma illusão, eis como convencidamente se pronuncia o eminente professor mexicano. E o motivo da illusão,dil-o elle ainda, é a extraordinária semelhança que existe entre o glóbulo de gordura e o germen da febre amarella no fígado. As affirmações dos primeiros observadores e as ne- gações destes últimos levantavam sério conflicto entre opiniões, umas consagradas pelo tempo, e pelas habili- tações scientificas dos seus sustentadores, outras esco- radas em factos que não podiam soffrer contestação. Por minha parte tendo o juizo suspenso, quiz veri- ficar por mim mesmo de que lado pendia a razão—si para os que admittem, ou si para os que negam a degeneração gordurosa do fígado na febre amarella. — 28 — Pedaços de glândula, com a côr e aspecto caracte- rísticos, retirados do cadáver poucas horas depois da morte, foram após endurecimento no álcool, cortados no microtomo de Ranvier e preparados para a observação microscópica. Como matéria corante empregámos o azul methyl, a violete genciana, a vesuvina, e a rosalinina. De cada série tivemos grande numero de preparações, tiradas de pedaços differentes do órgão. Armado o mi- croscópio com as penetrantes lentes apochromaticas de Zeiss, passámos a observar, uma por uma, todas as séries. Logo ao primeiro exame era fácil notar ausência de perfeita normalidade na estructura cellular do fígado. Aqui, alli, zonas de cellulas atrophiadas ou destruídas, muitas anucleadas; a fôrma hexagonal perdida ou pro- fundamente modificada. Sobre as cellulas atrophiadas ou entre ellas finos granulos de pigmento amarello, ora es- parsos, ora conglomerados. Fazendo variar a intensidade da luz e aproveitando toda a força de penetração da lente chegámos a vêr na superfície de quasi todas as cellulas, dispostos em torno do núcleo, ou acompanhando o contorno da cellula, pe- quenos elementos cellulares, inteiramente extranhos á es- tructura normal da cellula hepatica, uns redondos, ou- tros approximando-se da fôrma elliptica, de contornos bem limitados, de aspecto argenteo, opaco. A matéria corante que tingia a cellula, não adherira a esses ele- mentos cellulares. O aspecto argenteo, opaco não era commum a todos elles ; muitos tinham a côr levemente amarella e apresentavam interiormente granulações. Não se podia descobrir em ponto algum fôrmas de bactérias. Si, com effeito, áquellas únicas fôrmas extranhasque invadiam as cellulas hepaticas, figuravam glóbulos de gordura, a conclusão que o nosso exame autorisava era que o fígado tinha soffrido degeneração gordurosa, com — 29 — completa ausência de germens. Mas como seria difficil á razão accommodar-se com esse facto da ausência de germens em órgão tão intensamente lesado, qual é o fígado na febre amarella, e como, por outro lado, certos caracteres de fôrma e de aspecto dos elementos cellulares extranhos á estructura do fígado não representavam bem os cara- cteres physicos dos glóbulos de gordura, era licito per- guntar si não estávamos porventura sendo ludibrios de um erro de interpretação. O meio de tirar a limpo essa difficuldade seria invocar o auxilio dos reagentes chimicos que provam a presença da gordura. Novas preparações foram montadas depois de lavado o tecido no ether, no chloroformio, na terebinthina; e nem por isso deixaram de ser observados os elementos cellu- lares que tinham apparencia de gordura. O ácido osmico empregado em outras preparações não desmentio menos aquella supposição. Algumas partes verdadeiramente gor- durosas se coloriram, mas os elementos cellulares sobre- postos á cellula hepatica ficaram intactos. Podíamos ainda appellar para um processo technico muito simples e que consistia em isolar das cellulas hepa- ticas pela fricção do tecido na lamina de vidro os elementos cellulares a respeito de cuja natureza tínhamos duvida. Empregado esse processo chegámos a convicção de que áquelles elementos cellulares eram germens. Cortando com faca esterilisada um pedaço de fígado, attritando sobre uma lamina de vidro a superfície cor- tada e ajuntando-lhe depois uma gota d'agua distillada conseguimos sempre preparações assaz demonstrativas. O exame microscópico mostrava em suspensão no liquido grupos de cellulas hepaticas mais ou menos deformadas e grande quantidade de granulações amarellas, com mo- vimento oscillatorio, algumas já cercadas de um invólucro protoplasmico, formando pequenas cellulas redondas, — 30 — hyalinas, de contorno escuro, refringentes. Essas cellulas cresciam, augmentavam de diâmetro, perdiam pouco a pouco a refringencia, adquiriam aspecto mais homogêneo e passavam a ter côr amarella. Nas observações mais de- moradas chegámos á vêr dentro daquellas que haviam já attingido completo desenvolvimento granulações redondas, animadas de movimento. Algumas rompiam-se e deitavam pigmento. Outras intumesciam n'um ponto limitada da peripheria e pareciam querer reproduzir-se por gemmação. Mais de uma vez, tendo ajuntado á preparação algumas gotas de uma solução fraca de glycose e aquecido a platina do microscópio, notámos que varias cellulas adultas emittiam um tênue prolongamento parecendo ser o começo de formação mycelial. Essas cellulas redondas, em principio hyalinas, de- pois amarellas, contendo pigmento, tinham a maior seme- lhança com os elementos que já descrevemos e foram observados no liquido do vomito preto. A apparencia d'estas cellulas em uma das phases do seu desenvolvimento poderia, na verdade, induzir quem as observasse então menos attentamente a tomal-as como glóbulos de gordura. Bastara, porém, considerar que ellas resistem á acção dissolvente do ether e do chloroformio; que são susceptíveis de crescimento sob as vistas do obser- vador; que passam lentamente, por gradações insensíveis, ácôr amarella; que intumescem e de si expellem pigmento granuloso amarello; que são animadas de movimento oscillatorio no liquido, para, de uma feita, desvanecer-se aquella illusão. E' d'ellas que procedem as massas de pigmento amarello granulado aqui, alli, accumulado na superfície dos cortes do fígado, aos quaes se tem reportado todos os observadores. Quer-nos parecer que áquelles que attestam ser o- fígado na febre amarella isento de germens, porque o — 31 — microscópio não lhes ha mostrado alli nem bacillos nem micrococcos, hesitariam antes de affirmar isso si attentas- sem bem para as fôrmas e caracteres desses elementos cel- lulares. ESTÔMAGO Órgão no qual se fabrica a matéria do vomito preto, e cuja extrema irritabilidade coincide logo com os primei- ros signaes da moléstia, o estômago apresenta na mór parte dos casos lesões evidentes. Consistem estas em ero- sões na mucosa e manchas echymoticas de fôrmas mui variadas, com sede principalmente nas circumvisinhanças da cardia e no grande fundo de sacco. Em muitos casos também o revestimento mucoso apresenta coloração leve- mente amarellada. Examinando no microscópio grande numero de prep a- rações feitas com esse órgão e coloridas com azul methyl, vimos em muitos dellas, dentro dos vasos, e nos espaços interglandulares, a fôrma de torula, constituída pela juncção em cadeia de duas, de três e até de quatro cel- lulas, umas redondas, outras ellipticas. No meio d'estas appareciam cellulas piriformes, com um breve prolon- gamento, recordando áquellas cellulas que Babes vio nas paredes da bexiga, e ás quaes denominou mona- das. Estas cellulas conglobadas mostravam-se, ás vezes, no meio do tecido, com o aspecto de massas irregulares intensamente coloridas. A maneira pela qual se achavam distribuídas as to- rulas no tecido sub-epithelial do estômago não era a de uma invasão diffusa, mas circumscripta em zonas sepa- radas, como se formassem focos ou centros diversos de multiplicação. — 32 — Já fizemos notar em outra secção deste trabalho que foram as mesmas fôrmas encontradas por Sternberg na camada epithelial do estômago e no muco obtido pela ras- pagem. Em nenhum ponto das preparações do estômago, minuciosamente examinadas, deparámos com bacillos, micrococcos, ou outras fôrmas pertencentes ao grupo dos schizomycetes. INTESTINO Em algumas preparações microscópicas do fino intes- tino, coloridas pelo azul methyl, não podemos descobrir fôrmas similares áquellas que o exame do estômago nos havia mostrado. Apenas se nos deparou á vista, como cousa extranha á constituição histologica do órgão, pigmento amarello conglomerado e granulações mui pequenas que não pareciam ser micrococcos. No mais dir- se-hia o intestino normal. Conforme, porém, já fizemos vêr, Sternberg encon- trou na superfície do intestino, de parceria com algumas fôrmas microbianas (micrococcus e bacillos) numerosas massas coloridas, irregulares, de fôrmas variadas; e grandes organismos esphericos em cadeia. Babes também encontrou uma vez bacillos similares aos da febre typhoide, e densas agglomerações de grandes micróbios redondos, desiguaes, tendo junto a si pigmento amarello ou preto. Em vários pontos da mucosa intes- tinal divisavam-se signaes de mortificação. Ao que nos parece não constitue o intestino um dos campos mais férteis na procreação do germen. E o que nos eva a assim pensar é a carência alli de lesões patentes, bem accentuadas, correlativas daquellas que já foram notadas no estômago. — 33 — Os germens oriundos deste órgão podem naturalmente -chegar ao intestino ; mas principalmente por virtude da alcalinidade do meio intestinal elles não acharão aqui con- dições favoráveis á sua multiplicação. Si a acção perturbadora do germen ou do veneno que elle produz se exercesse por igual no estômago e no intestino, não deveríamos então observar como symp- tomas constantes na febre amarella phenomenos indica- tivos da irritação do intestino com hypercrinia intesti- nal? Não succede assim na febre typhoide e no cholera, moléstias em que o intestino é o campo predilecto da evo- lução do germen pathogenico? E porque não havia o mesmo succeder na febre amarella si, nesta moléstia, representasse o intestino idêntico papel? Penso que estas interrogações quadram bem aqui; e nellas nos havemos estribar quando tivermos mais ao diante de discutir como se produz e onde começa a in- fecção amarillica. RIM. A importância que a funcção deste órgão par assume no perfeito equilíbrio dos actos physiologicos e a cons- tância com que essa funcção é perturbada na febre ama- rella explica porque para elle tem convergido a attenção os observadores. No rim está a chave de uma seqüência de desordens gravíssimas, sob cuja perniciosa influencia, na maior parte dos casos, succumbe o enfermo; de tal sorte que quasi podia ser dito em tom dogmático—na febre amarella morre-se pelo rim. De que ordem, porém, são as lesões rapidamente pro- duzidas nesse órgão por influencia do processo mórbido in- fectuoso que vão até o ponto desupprimir a funcção renal? 3 — 34 — São lesões inflammatorias de egual categoria das nephrites;é uma degeneração dos elementos secretores da glândula; ou, ao invez disso, são desordens puramente dynamicas, que não traduzem lesão apreciável da textura do rim? Julgamos com os dados oriundos da nossa própria observação e de outros, poder responder desde já a essas diversas interrogações. Deixando, porém, para mais tarde discutir o mecanismo da anuria, só nos occupa- remos agora cora o exame das lesões renaes e das fôrmas microbianas que no rim tem sido encontradas. Na febre amarella o aspecto exterior do rim em nada recorda a apparencia do grande rim branco, nem do rim contrahido, que exprimem duas feições anatômicas cara- cteriscas da doença de Bright. O volume normal da glân- dula, na generalidade dos casos, não parece augmentado, nem diminuído. Nota-se, entretanto, uma certa turges- cencia do órgão, devida á congestão, a qual se revela não só exteriormente, como nas partes internas, depois que se corta o tecido. Babes examinando pedaços do rim, que remetti daqui ao laboratório de anatomia pathologica do Dr. Cornil, de- parou com lesões no tecido conjunctivo, no epithelio e nos glomerulos. No tecido conjunctivo, principalmente na peripheria do órgão, appareciam numerosas cellulas em- bryonarias. Também as cellulas epitheliaes que formam o revestimento interno dos canaliculos estavam intumes- cidas e granulosas, com o núcleo invisível. Enchendo os tubuli contorti viam-se massas granulosas e gotas hya- linas. Os glomerulos estavam homogêneos ou inflammados. Nas alças de Henle notavam-se muitas vezes cylindros hyalinos; e nos tubos rectos das pyramides de Ferrein proliferação epithelial; apparecendo no protoplasma das cellulas que enchiam os tubos, grãosinhos alongados de 1mm' — 35 — de diâmetro, os quaes divergiam tanto na fôrma, que difficilmente podiam ser considerados bactérias. Também sobre essas cellulas viam-se grãos de pigmento amarello. Desta sorte descreve Babes os cylindros, existentes nos canaliculos renaes; e porque julgamos importante este trecho, vamos transcrevel-o aqui litteralmente, gry- phando as palavras que merecem particular attenção : « Les cylindres, qui occupent souvent Ia lumière des tubes, sont composés de grandes goutteletes hyalines à double contour confluentes et comme framboisées, três fortement colorées ; on peut suivre le developpement de CES SINGÜLIÈRES FORMATIONS. On voit dans certains tubes à cellules bien colorées, des gouttes ou des corpuscules allongés, assez grands et colores. Les mêmes productions, en partie confluentes se trouvent dans 1'interieur même de ces tubes. Cette substance ne consiste pas dans une concrétion calcaire, parce qu'elle ne se modifie pas par 1'addition des acides. D'autres cylindres sont formes de gouttes três petites, egales, pales, isolées ; on en voit dont Ia surface est tout à fait lisse; et enfin il existe des cylindres qui réunissent tous ces caracteres. » Conformemente ás opiniões de Babes, as quaes as minhas próprias confirmaram, as lesões dos rins na febre amarella accentuam-se muito mais na região cortical do que na porção medullar. Já vimos que a presença de bactérias no rim, segundo as affirmações de Babes, foi um facto inconstante ; tendo elle, em um caso, notado cadeias de granulos ellipticos, dentro do vaso afferente dos glome- rulos, e em outros casos nada encontrado apezar da mais minuciosa pesquiza. O nosso exame versou sobre rins de cinco indivíduos, victimas da febre amarella genuína, com symptomas de anuria bem confírmados. O endurecimento foi feito em — 36 — álcool absoluto, e as matérias corantes empregadas, o vio- lete genciana, a íuchsina, a vesuvina, o azul methyl. Em algumas preparações usámos do processo de dupla colo- ração pela violete e a fuchsina; em outros empregamos o methodo de Gram. Em todos vimos lesões na região cortical, análogas ás que foram descriptas por Babes, com excepção do es- tado edematoso e embryonario do tecido conjunctivo. Os glomeiulos mostravam-se mais ou menos contrahidos dentro da cápsula de Bowmann ; ás vezes divididos, com aspecto liso, homogêneo, assemelhando-se a tecido fibroide. O epithelio dos tubuli contorti existia adherente ás paredes do tubo ; mas com aspecto turvado e granuloso. Em um ou outro tubo notava-se despegaraento parcial do epithe- lio. Os vasos, ora contendo sangue e dilatados, ora vasios, não apresentavam uma só fôrma bacteriana. O facto, porém, constante e saliente no exame dos cinco spécimens foi a obstrucção quasi generalisada dos tubuli contorti, e das alças de Henle por massas de fôrma e aspecto singulares. Essas massas não eram nem cy- lindros colloides, nem cylindros hyalinos, menos ainda apresentavam caracteres de substancia calcarea. Elias não offereciam aspecto liso, compacto, nem eram refrin- gentes. A sua superfície era desigual, protüberante, qual se foram constituídas pela reunião de pequenas massas irregulares conglobadas. Umas coloriam-se bem ; outras não recebiam a coloração. Em muitos pontos o seu volume sendo superior ao calibre normal do tubo, este dilatara-se para comportal-a. De que eram formadas essas massas de aspecto tão singular ? Examinando pausadamente todos os pontos da pre- paração com o auxilio das lentes apochromaticas de Zeiss chegámos a differenciar no meio de uma ganga amorpha — 37 — que parecia feita de albumina concreta, fôrmas regulares de cellulas redondas ou ligeiramente ellipticas, solitárias, ou congregadas em massa, com diâmetros variáveis de 4 a 6mm, ás vezes colligadas, formando agrupamentos de duas e de três. Essas cellulas quando não se coloriam, tinham côr amarella, com um tom esverdeado mais ou menos carregado. No meio da massa amorpha que servia de ganga, notavam-se pequenas granulações refringentes, de contornos mal delimitados,e,ás vezes,pequenas cellulas hyalinas, com duplo contorno. Essas mesmas fôrmas appareciam dentro dos canali- culos, isoladas da ganga amorpha, e quando eram bem coloridas, podiam ser observadas com a maior nitidez. Então chegava-se a reconhecer perfeitamente & fôrma torulada de um fungus, em tudo semelhantes áquellas que foram observadas no liquido do vomito preto, no estô- mago, no intestino, no sangue da epistaxis, na urina. As preparações mais demonstrativas obtivemos mediante coloração pela íuchsina e o azul methyl. Com a primeira coloração conseguimos vêr mesmo pedaços de mycelio fino e fragmentado ao lado das torulas. Em certos tubuli, cujo conteúdo não fixara as cores tinctoriaes, via-se perfeitamente agglomerações de cellulas redondas, de grandeza differente, carregadas de pigmento amarello, muitas já destruídas, outras em via de des- truição, tendo junto de si pigmento amarello proveniente dos destroços das mesmas cellulas. Nas preparações coloridas com o azul methyl encon- trámos as mesmas cellulas, ora solitárias, ora agrupadas dentro das lacunas lymphaticas do rim. Alli como se tives- sem ellas colorido do azul, a sua fôrma e contornos presta- ram-se a ser perfeitamente examinados. Entre estas nota- vam-se algumas acuminadas, recordando áquellas fôrmas descriptas por Babes, e que elle denominou monadas. — 38 — A extensão do rim assim obstruído por massas de albumina (?) concreta, envolvendo agglomerações de cellulas toruladas de um fungus, é, as vezes, conside- rável. Debaixo dos olhos tivemos algumas preparações que mostravam a quasi totalidade dos tubuli contorti ob- struídos, a obstrucção ampliando-se muitas vezes ás alças de Henle e aos tubos rectos. Tudo induz, portanto, a admittir que na febre ama- rella o ataque do rim tem a sua principal sede nos tubuli e nos glomerulos. E' porém, evidente que não se trata aqui de simples glomerulite; e que a lesão tubular é o factor dominante das perturbações funccionaes da glândula. Ora taes perturbações, segundo vimos, coincidem com a presença nos tubuli de elementos, microbianos que não pertencem ao grupo das bactérias, mas que se asse- melham muito áquellas fôrmas que vários observadores descobriram no sangue, na urina, no liquido do vomito preto, no fígado, no estômago e no intestino, e que incon- testavelmente são formas derivadas de um fungus. Si factos concordantes relativos á presença de um mesmo germen especifico nas vísceras, especialmente naquellas, cujas funcções são mais perturbadas, aucto- risam a concluir que tal germen é o agente causador da moléstia; parece-nos que não precisamos mais para con- cluir com relação á febre amarella. Abi estão concatenados documentos demonstrativos, em face dos quaes impõe-se a conclusão de que o micró- bio pathogenico da febre amarella não é uma bactéria, mas sim um fungus polymorpho. As cadeiazinhas que Babes, Sternberg e eu próprio vimos nos vasos do fígado edo rim deixaram demostrar-se em tão numerosos casos, em que o exame dessas vísceras foi praticado pelos mesmos observadores supra-referidos e outros, que o seu achado perde todo o valor causai. São — 39 — provavelmente fôrmas intrusas ou secundarias que ne- nhuma connexão immediata tem coma evolução da mo- léstia . Entretanto poderão ainda objectar-nos os mais exi- gentes em matéria de prova e demonstração que para ser verdadeira falta á nossa conclusão, quanto á efficiência pathogenica do fungus, o unanime consenso dos investiga- dores que nos precederam. Respondemos a isso dizendo que, conforme ficou já exarado em outra parte deste trabalho, as fôrmas do fungus foram encontradas no sangue, no liquido do vomito preto, na urina, no estômago e no intestino por Sternberg, Babes, Range, Gama Lobo, Domingos Freire, Silva Araújo, Carmona y Valle e pelo auctor deste trabalho. E' certo que com relação ao fígado e ao rim são negativas as observações de Babes e Sternberg. A razão disso, porém, é obvia. Elles partiram da presumpção de que o germen pathogenico da febre amarella devera ser uma bactéria ( bacillo ou micrococco ) e porque nenhuma semelhança tinham com fôrmas bacterianas áquellas que se lhes apresentavam no fígado e no rim, não attentaram nellas ou lhes deram interpretação muito differente daquella que deviam ter. No fígado ellas foram muitas vezes confundidas com glóbulos de gordura; e no rim consideradas formações sin- gulares em que entravam por muito grandes gotas hyalinas de duplo contorno, confluentes. (Babes). PARIDADE DO ACHADO DE FREIRE COM ODE CARMONA Y VALLE Carmona y Valle, professor de clinica na Faculdade de Medicina do México publicou em 1885 um livro intitu- lado— Leçons sur Vetiologie et Ia pophylaxie dela fiévre — 40 — jaune, o qual attrahio a attenção de todos os investiga- dores, quer europeus, quer americanos, que se tinham dedicado ao estudo da gênese dessa moléstia. Não é nosso intento fazer aqui uma analyse circum- stanciada do livro publicado pelo distincto professor mexi- cano, porque isso nos levaria muito longe. Apenas que- remos confrontar as suas opiniões com as de Freire, afim de que se veja em relevo a perfeita concordância, dellas. Quem lê attentamente o livro de Carmona y Valle fica admirado de ver como os factos adduzidos pelo obser- vador mexicano vieram convergir em um ponto de vista idêntico ao de outros observadores. As fôrmas colligidas são as mesmas com iguaes attributos physicos e biológicos, somente a nomenclatura é differente por virtude da com- prehensão mais ou menos lata que cada um teve ou deixou de ter, da correlação e successão das fôrmas intermedias, conducentes a fechar o cyclo de uma evolução completa do germen. Os zoosporos de Carmona y Valle, ponto inicial de toda a desenvolução organogenesica que vai até a pro- ducção de uma mucedinea, apresenta toda a feição cara- cterística do cryptococus xanthogenicus de Domingos Freire. São a principio granulações diminutissimas, de lmmde diâmetro, movediças, as quaes crescendo e desen- volvendo-se no liquido,tornam-se em vesiculas volumosas, esphericas, cuja transparência persiste, que não se soli- dificam e que offerecem a maior similitude com uma gota de gordura ( op. cit. p. 187). Chegadas ao máximo desenvolvimento ellas perdem a mobilidade, amarellecem, e esvasiam-se do conteúdo, constituído por liquido amarellado. Carmonay Valle affirma que as massas amorphas de pigmento amarello, encontra- das em preparações feitas com os zoosporos provenientes — 41 — da urina de doentes de febre amarella, são constituídas á custa do conteúdo dessas cellulas. Tem ainda esse observador como certo que da con- juncção de duas cellulas das que foram acima descriptas com a denominação de zoosporos é que procede o verda- deiro esporo, o qual depois de chegar á maturidade germina eproduz a mucedinea, que é,na opinião do auctor,a fôrma culminante do germen pathogenico da febre amarella. As inducções de Freire são mais restrictas e não pas- saram além da fôrma cellular do cryptococcus, ao qual elle não buscou alliar nenhuma outra fôrma ulterior mais complexa. O cryptococcus é, a seu vêr, um micro-orga- nismo especifico autônomo, e não uma fôrma inicial ou intermedia de um micro-organismo de fôrmas múltiplas mais complexas, qual é o zoosporo, de Carmona y Valle. Eis aqui o ponto de doutrina em que os dois observadores divergem. Fora d'ahi é fácil de vêr que o zoosporo de Carmona y Valle tem attributos idênticos ao cryptococcus xanthogenicus de Domingos Freire, e que os dois obser- vadores descreveram com designações nominativas diver- sas a mesma entidade morphologica. As cellulas hyalinas de Babes por elle encontradas nos canaliculos renaes, as cellulas assim também por nós appellidadas, e que foram observadas na matéria do vomito, na urina, no fígado e no rim; as cellulas encon- tradas por Silva Araújo na matéria do vomito preto, que são ellas sinão os zoosporos de Carmona y Valle ou o cryp- tococcus de Domingos Freire? O accordo aqui estabelece-se por modo tal quanto á identificação das fôrmas notadas por todos esses observa- dores, em condições diversas de tempo e de logar, que seria preciso ter os olhos cerrados á luz da verdade para não reconhecer desde logo a connexidade d'ellas com o germen pathogenico da febre amarella. — 42 — Conforme minha maneira de vêr, Carmona y Valle teve um golpe de vista mais amplo, do que foi o de Domingos Freire, o que lhe valeu adquirir uma noção mais completa e quiçá mais nitida da questão etiologica. Os seus transviamentos foram talvez conseqüência da singe- leza dos seus processos technicos; mas em nada desvirtuam elles a essência das suas conclusões. Entretanto Carmona parece ter voltado atraz, n'estes últimos tempos, despresando factos da sua própria observação, que mostravam ser uma mucedinea a fôrma typica completa do germen da febre amarella. Talvez a extranheza mesma do facto em si, a difficuldade e insuf- ficiencia das provas militantes em favor d'elle obrigas- sem-no a apertar o cyclo dessa complicada evolução mor- phologica, que começando no zoosporo ia terminar na mucedinea. O zoosporo, tal qual foi observado na urina, assumio para Carmona toda a funcção causai; e sendo assim, bem se vê que mais completa se tornou agora a conformidade de vistas entre elle e Domingos Freire. PESQUIZA DO GERMEN PELO METHODO DAS CULTURAS Culturas realizadas pelos methodos de Pasteur não se têm mostrado até aqui as melhores nem as mais conve- nientes para isolar-se o micróbio da febre amarella. Nos meios líquidos nutritivos, mormente quando elles têm reacção alcalina, difficilmente se consegue cultival-o. In- oculae o sangue do doente em balôezinhos contendo caldo alcalino e vereis ou que elles ficam estéreis, ou quando alli se desenvolvem germens, estes são banaes. Conservado, porém, o sangue entre duas lâminas de vidro,temos visto algumas vezes desenvolver-se alli dentro — 43 — um fungus, facto que Sternberg também observou. E' ainda um fungus que se desenvolve quando é cultivado o sangue do doente em gelatina solida sobre placa de vidro, segundo os preceitos de Koch. A gelatina então lique- faz-se e toma, no fim de alguns dias, coloração amarella de ouro. Acompanha a dissolução da gelatina o despren- dimento de certos productos voláteis que impressionam mui desagradável mente o olfacto, e recordam assaz a ex- halação proveniente do peixe podre (1). Aos Drs. C. Ferraz eGuarany tornei uma vez patente esse facto. A matéria do vomito semeado em caldo ou em gela- tina solida contida em provetes deu-nos muitas vezes ba- ctérias diversas, sendo a fôrma predominante um micro- cocco. Feita, porém, a cultura em batata esterilisada ou no pericarpo de fructos ácidos, desenvolvia-se constante- mente um fungus, cujos caracteres foram idênticos, quer se tratasse de cultura da matéria do vomito, quer do sangue. A' objecção de que em culturas assim realizadas fácil era dar-se uma infecção accidental por via do ar, tínhamos a contrapor que o desenvolvimento do fungus produzia-se em pontos isolados, correspondendo estes pre- cisamente áquelles em que tinham sido depositadas as gotinhas extrahidas da matéria do vomito. Conformando-nos com a indicação do Sr. Sternberg, ensaiámos a cultura de tecidos, processo esse da pesquiza que nos parece ter sido então, pela primeira vez, aqui posto em pratica. Infelizmente os seus resultados foram ambíguos, por vezes até contradictorios. O processo tech- nico empregado era o seguinte: talhava-se o tecido com faca esterilisada e das partes mais intimas separavam-se pequeninos fragmentos, os quaes eram immediatamente (1) Não deixemos passar aqui despercebido que cheiro similar a esse exhalam os doentes da febre amarella. Este confronto merece particular attenção. — 44 — semeados no meio nutritivo. Quando a temperatura do ambiente excedia a 30° C, os provetes assim inoculados eram deixados fora da estufa. De uma série de tubos contendo gelatina peptona semi-fluida, inoculados com o tecido do rim, alguns fica- ram estéreis, dois deram uma cultura pura de um tetrage- nus, ás vezes com esta particularidade que um dos pares do tetragenus apresentava-se constituído por três coccos em logar de dois. Fazendo uma vez preparações com o sangue extrahido do dedo de indivíduo são e juntando-lhe uma gotinha da cultura do tetragenus, notámos em seguida no microscó- pio que o sangue se havia alterado bastante após a junc- ção da cultura: as hematias perderam as fôrmas e se con- gregaram em massa. Germens existentes na preparação só havia nessa occasião o tetragenus. Conservada a preparação durante três dias em para- fina, com a temperatura máxima de 30° C, passámos então a observal-a novamente no microscópio. A destruição dos glóbulos vermelhos era quasi total. Aqui, alli, porém, appareciam agglomerações de cellulas, redondas, quasj esphericas, outras ellipticas, de grandeza diversa, reuni- das em série, ou conglobadas em massa. Algumas eram hyalinas, refringentes e augmentavam gradualmente de volume. Entre ellas havia também algumas com coloração amarella e com o invólucro mais espesso e consistente. Esparsos ou conglomerados viam-se alli perfeitamente os tetragenus, em parte desagregados, dando fôrmas isoladas de diplococco, ou de micrococco. Nada induzia a acredi- tar que a multiplicação do tetragenus tinha proseguído entre as duas lâminas da preparação, apenas se havia ope- rado alli um trabalho lento de desagregação de partes por virtude do qual os tetragenus foram passando a diplococcos e a micrococcos. Ao lado das cellulas esphericas estavam — 45 — pequenos filamentos myceliaes, já bastante longos para não se poder duvidar da natureza d'elles. Esta experiência deixou patente : Io que o tetrageno do rim misturado ao sangue humano em lâminas de vidro fechadas, não proliferou alli; 2o que no sangue assim preparado desenvolveu-se um fungus, sob a fôrma de grandes cellulas redondas, hyalinas ou amarelladas, e de filamentos myceliaes. Uma aceitável explicação d'este ultimo facto não nos pareceu a principio fácil de dar.Na verdade aügurou-se-me de todo improvável que o sangue extrahido de individuo hygido contivesse germens de um fungus. Não era portanto no próprio sangue que devêramos ir buscar a origem do fun- gus. Se elle não tinha sido trazido no sangue, é claro que só a cultura podia tel-o alli introduzido, attentos os cuidados com que foi executada a operação da colheita do sangue e da transplantação da cultura. E visto que n'esta só tínhamos observado fôrmas de tetragenus e de coccos, a conclusão mais racional atirar é que os germens do fungus existiam latentes na cultura e só principiaram a desenvolver-se depois de transportados ao sangue. Se esta deducção não é verdadeira pelo menos parece lógica e bem fundada. Proseguindo na experimentação com a mesma cultura, tomámos duas cápsulas ambas contendo assucar esterili- sado e humidecido ; em uma dellas depositámos na super- fície do assucar algumas gotas da cultura do tetragenus ; a outra ficou intacta para termo de comparação. Guarda- das as duas cápsulas sob uma campanula de vidro per- feitamente fechada, só ao cabo de doze dias, com tempe- ratura média de 28° C, começámos a notar na cápsula semeada com o tetragenus o desenvolvimento, por núcleos isolados, de um fungus, de côr amarella esverdeada, emquanto na outra cápsula nada se desenvolvia. Submet- tida ao microscópio uma parcella do fungus vimos que elle — 46 - era constituído por mycelio já bastante entrelaçado e conidias amarelladas, esphericas ou ovaes, muitas das quaes soltas começavam a reproduzir-se como torulas. Portanto cultivado o tetragenus no assucar, elle desappareceu para dar logar a um fungus, d'esta vez assaz desenvolvido, e com tendência a assumir a fôrma torulada. Ficou d'esta sorte comprovada a deducção tirada da primeira experiência que tinhamos feito ; e tornou-se mais bem assentada ainda a supposição final de que existia latente na cultura do rim a semente de um fungus. Tam. bem, por outro lado, evidenciou-se que a torula é apenas um modo especial de reproducção do fungus, dependente de condições do meio nutritivo. Facto que pôde ser importante, e por isso julga- mos dever assignalal-o aqui, é que na atmosphera do Rio de Janeiro apparece como germen commum, em todas as estações do anno, um tetragenus amarello. E' principal- mente de Agosto a Dezembro que o ar tem-n'o em maior profusão. No decurso d'esses mezes, quasi todos os tubos abertos no laboratório ficavam delle infectados. As suas colônias surdem como gotinhas amarellas na superfície do agar ou da gelatina; pouco a pouco se vão ellas tornando mais numerosas e confluentes até formarem uma camada homogênea amarella na superfície do agar. Essa camada, que pôde offerecer configuração mui variada, de aspecto luzidio e cremoso, é toda ella recortada na peripheria por finos entalhes, fazendo-a parecer como denteada. O Sr. Sternberg também encontrou em Havana pro- fusamente espalhado no ar um tetragenus a que o Dr. Finlay conferio os foros de germen especifico da febre amarella. A própria diffusibilidade do germen foi o principal argumento a que se soccorreu Sternberg para contradictar aquella opinião de Finlay. — 47 — Na verdade, julgando pelo que temos observado aqui, no Rio de Janeiro, não sabemos como se poderia attri- buir ao tetragenus a qualidade de agente causai da febre amarella, quando é certo que o desenvolvimento d'esta moléstia deixa de coincidir com as estações do anno em que se ha verificado a maior profusão d'elle no ar. Si por- ventura o tetragenus tem ligações com o germen productor da febre amarella, o que não nos parece exacto, assiste- nos, por força da consideração acima adduzida, o direito de negar-lhe qualidades infectantes. As correlações da torula com as fôrmas completas do fungus foram ainda demonstradas, quando transpor- tada a torula da cultura inicial feita com o tetragenus, para um meio liquido assucarado, vimos simultaneamente desenvolver-se nas camadas mais superficiaes o fungus, e nas camadas inferiores a torula. D'ahi a conclusão que o contacto do ar favorece a producção do fungus, assim como a carência d'elle favo- rece a producção da torula. E' para notar que a presença d'esta no assucar provoca alli um trabalho de fermentação já bem apreciável no fim de 48 horas, denunciando-se este pela irrupção de bolhinhas gazosas á superfície do liquido, o qual imprime então ao papel de turnesol, os caracteres de reacção ácida bem pronunciada. Não temos agora duvida em admittir que as cellulas hyalinas, as grandes cellulas amarellas e a torula são modos diversos de reproducção de um só micro-organismo; sob áquellas fôrmas é que este se reproduz e se multiplica nos órgãos e humores dos doentes de febre amarella. FUNGUS FEBRIS FLAV/E Porque não nos julgamos com os requisitos scienti- ficos necessários para tentar a classificação botânica do — 48 — fungus da febre amarella, marcando o logar que lhe com- pete no quadro geral dos hyphomycetes, preferimos des- ignal-o simplesmente pela denominação latina aqui sobre- posta como epigraphe. Apezar de sujeito, como tantos outros micro-orga- nismos de sua classe a extraordinário polymorphismo por influxo das condições do meio nutritivo, o micro-organismo da febre amarella offerece no estado de completo desen- volvimento aspecto typico. Isso se obtém quando elle é cultivado em meio solido, rico de matérias azotadas e hy- dro-carbonadas, em atmosphera humida e temperatura superior a 29° C. N'essas condições elle chega a salien- tar-se por uma vegetação luxuriante, em tufos cerrados e compactos acima do substratum. Emquanto novos os órgãos de reproducção que enci- mam os filamentos aéreos do mycelio, o fungus é ama- rello côr de ouro; depois, á medida que envelhecem áquelles órgãos, a côr primitiva vai cambiando, tornan- do-se de mais em mais carregada até approximar-se da côr do chocolate ou da mostarda. Quando novos, os filamentos aéreos são tenros, hy- alinos, ás vezes levemente amarellados ; crescendo e en- redando-se, elles tecem na superfície do substratum uma intrincada urdidura. E'd'esse tecido rente com o sub- stratum que erguem-se os filamentos aéreos, trazendo no topo os órgãos reproductores. Estes nascem de um en- grossamento ou expansão terminal dos filamentos, for- mando extensos rosários de conidias, umas ovoides, ou- tras esphericas, algumas mesmo rectangulares, todas amarellas côr de ouro. Os filamentos myceliaes são dividi- dos por septuns transversaes de espaço a espaço, de sorte a parecerem constituidos por longa fila de cellulas qua- drangulares, em cujo interior divisam-se granulos ama- rellos suspensos em matéria liquida hyalina. — 49 — Quando, porém, faz-se a cultura em meio liquido ou semi-liquido, quasi desprovido de matéria azotada e em atmosphera confinada, as formas transmudam inteira- mente. O mycelio torna-se de mais emmaiscurto e ramoso; e as conidias reproduzindo-se por gemmação, vão até impri- mir ao fungus aspecto que o approximadas torulas. Veem-se então no liquido cellulas ellipticas soltas, outras redondas, isoladas, conglobadas, ou formando cadeias, todas ama- rellas, quando observadas á luz reflectida. Attendendo para as condições que favorecem esta fôrma vegetativa, nós a denominariamos aquática em contraposição á pri- meira, a qual seria então com maior razão appellidada fôrma aérea do fungus. Onde, porém, se accentúa bem o polymorphismo do fungus da febre amarella é nos órgãos reproductores, cada um delles podendo assumir a feição de organismos inde- pendentes, autônomos, quando precárias se tornam as condições da vida aérea. Então as conidias separadas en- gurgitam-se por uma elaboração intima da matéria pro- toplasmica, e rompendo-se ejectam matéria granulosa amarella, no meio da qual apparecem fôrmas granulares semelhantes a micrococcos. Em certos casos a ruptura não se dá de modo a permittir sahida franca de todo o conteúdo; mas de um ou mais pontos da peripheria da cellula brotam dois ou mais granulos, os quaes se despren- dem, por fim, da cellula matriz, ficando livres no meio da cultura. A reversão á fôrma primitiva dá-se, quando em meio liquido os granulos cercam-se de um invólucro gelatinoso, assumindo gradativamente o aspecto de cellulas hyalinas, de duplo contorno, as quaes crescendo attingem ás vezes a grandeza de um leucocyto. Foi a esta fôrma reversível e intermédia que Freire denominou cryptococcus xan- thogenicus e Carmona y Valle zoosporo. Estas mesmas 4 — 50 — cellulas hyalinas encontrando substratum solido, rico de matéria azotada, tendo ao mesmo tempo calor e ar suffici- entes reassumem a funcção de verdadeiro esporo e dão origem a um mycelio, o qual evoluindo restabelece o fungus no estado de desenvolvimento completo e per- feito. Conforme já fizemos ver, esse cyclo evolutivo, em que apparecem múltiplas fôrmas, só se dá por influencia dos meios de cultura ou do substratum. E' possível que no meio exterior, e em condições naturaes, se verifiquem esses diversos modos de reproducção alternada com vari- abilidade das fôrmas que as culturas no laboratório tem mostrado. Parece, porém, provável que a fôrma exis- tente no meio exterior do micro-orgranismo da febre ama- rella, seja justamente aquella que representa o fungus completo e perfeito; emquanto as fôrmas pathogenicas, parasitárias do organismo humano, são representadas pelas cellulas hyalinas e pelas torulas. Não vem fora de propósito recordar aqui, que em seu cyclo de desenvolução, por influxo de condições variáveis do meio nutritivo, vários fungus hyphomycetes apresentam a fôrma torulada. De Bary e Lew observaram-na no- Dematium pullulans; Cuboni no Cladosporium ; Brefeld nas Ustilagineas; Duclaux no Oidium lactis; Laurent na Tubercularia vulgaris ; Massart no Lycoperdon Coelatum. (Ann. Inst. Pasteur. An. 2o. p. 589.) O fungus da febre amarella desenvolve-se bem no- pericarpo dos fructos ácidos e assucarados; no pão, na batata, no assucar. No pão regado com água do mar, o desenvolvimento é pujante. Na madeira apodrecida custa a desenvolver-se. Na terra humida esterilisada conser- va-se; mas não se multiplica. Ocalorhumido a 105u C. durante uma hora não destróeo poder germinativo dos esporos. — 51 — EXPERIÊNCIAS EM ANIMAES Tão grande ha sido a difficuldade de reproduzir em animaes a febre amarella, inoculando-lhes a matéria do vomito preto, os resíduos da urina, o sangue do próprio doente, que quasi se tem perdido a esperança de, mediante áquelles processos experimentaes, chegar-se a conclusões positivas. Certo numero de factos de reproducção assim da mo- léstia, que alguns auctores têm allegado como prova da especificidade de um germen supposto productor da febre amarella, offerecem tantos lados vulneráveis á cri- tica, que inquestionavelmente não podem elles servir a uma demonstração. Porque influencia ou condição têm sido burladas tantas tentativas? Será porque os germens inoculados, não eram realmente áquelles que produzem a febre ama- rella no homem? Será porque os processos de cultura por impróprios, lhes coarctavam a virulência ? Será porque a via hypodermica, geralmente preferida, não é a porta natural de introducção do germen ? Ou será porque condições ana- tômicas e physiologicas inherentes á organisação dos ani- maes empregados nas experiências, oppõem-se a uma regular desenvolução do germen? Tudo induz a pensar que realmente a febre amarella não é moléstia de fácil transmissão aos animaes; e as ex- periências realizadas com certo apparato pela Commissão de Havana em 1879, gravam no espirito essa convicção, (Vid. Bactéria. Magnin, Sternberg.) Si na própria espécie humana ha extraordinárias dif- f erenças de receptividade para o germen da febre amarella, conforme as raças; que muito é que essas differenças se ac- centuem ainda mais, quando se desce na escala zoológica? — 52 — Entretanto, n'uma série grande de resultados nega- tivos ou duvidosos, é possível observar-se, uma vez ou outra, algum resultado positivo, comprovado pela natu- reza especial e característica das lesões encontradas post mortem, e por symptomas inequívocos observados durante ávida. No nosso ponto de vista, mandava a lógica que pre- side ás deducções scientifícas, que ensaiássemos, por ex- periências em animaes, as qualidades infectantes das varias fôrmas representativas do micro-organismo da febre amarella. Cumpria-nos experimentar com a fôrma tone- lada, e com os esporos do fungus completo e perfeito. Em uma série de casos em que foram feitas inocu- lações subeutaneas em cobaias com as fôrmas supra-refe- ridas, o êxito foi negativo. Nem alterações locaes, nem phenomenos geraes apreciáveis se produziram. O tetragenus proveniente da cultura do rim, inocu- lado do tecido cellular subeutaneo, e na cavidade abdo- minal, não deu provas também da sua nocuidade. N'este particular as minhas experiências foram confirmativas das que fez em Havana o Sr. Sternberg com o mesmo germen. Depois de tantas negações repetidas veio-me a feliz idéa de praticar inoculações pela via gástrica. Essa idéa nascia da presumpção, que se me afigurava bem assentada, de que na febre amarella a infecção tem a sua principal sede no estômago. E visto que são os meios dotados de reacção ácida áquelles que mais convém á des- envolução do fungus, pareceu-nos de bom alvitre não introduzir os esporos do fungus na cavidade gástrica sinão depois de havel-a bem acidificado com o acido lactico ou o acido tartarico. Esta condição prévia da experiência eqüivalia aquella outra de que se utilizou Koch para provar aacção pathogenica do bacillo virgula no cholera ; com a differença, porém, que este alcalinisava o estômago — 53 — porque a natural acidez d'este órgão era, a seu vêr, in- fensa e até lethal para o germen cholerigeno. De sete experiências em cobaias, duas d'ellas reali- zadas com a condição prévia acima indicada, somente estas duas foram bem succedidas. A morte de um dos animaes teve logar no fim de cinco dias,de outro no fim de seis,após a ingestão dos esporos. N'estes animaes atempe- ratura elevou-se no segundo dia da experiência a 39° 5C, e assim manteve-se com pequenas oscillações até o quarto dia. As vísceras extrahidas poucas horas depois da morte não offereciam a feição anatomo-pathologica característica da febre amarella no homem. Hyperemia pouco intensa do fígado e dos rins eis tudo quanto pudemos observar. A bexiga continha urina e esta não dava as reacções pró- prias da albumina. Entretanto adherente á superfície da mucosa gástrica existia pequena porção de matéria gru- mosa escura, como mucilaginosa, no meio]da qual fomos encontrar as fôrmas características da torula. Em outra experiência, porém, feita também em co- baia, com acidificação prévia do estômago pelo acido lactico, as lesões encontradas foram mais claras e deter- minativas. N'este caso a temperatura subio a 40° C, e houve suppressão da urina. O fígado apresentou-se com a côr amarella de camurça generalisada; os rins excessiva- mente congestos; a bexiga vasia; o estômago hyperemiado, contendo pequena quantidade de uma substancia ama- rella esverdeada, viscosa, a qual reconhecemos não ser totalmente constituída pelos resíduos da alimentação vegetal. No fígado o microscópio denunciou a presença de glóbulos de gordura, e de cellulas hyalinas de duplo con- torno, algumas já começando a tomar coloração amarella. No rim havia lesões no epitheliodos canaliculos,abundante proliferação de núcleos no tecido conjunctivo, e atrophia — 54 — parcial de certo numero de glomerulos. Dentro dos cana- liculos existiam, aqui, acolá, massas de pigmento ama- rello. Não encontrámos neste órgão nenhuma fôrma de bactéria ; apenas raras cellulas redondas amarellas, ás quaes não adheriam as cores da anilina. No muco extrahido do estômago pela raspagem appa- reciam torulas, umas redondas, outras ellipticas, de en- volta com detritos da alimentação vegetal. Em duas outras experiências, feitas ainda em cobaias, com acidificação prévia do estômago pelo acido lactico e ingestão de esporos do fungus, foram notadas as seguintes modificações da temperatura : cobaia A Dias Temp. 14 abril (inoculação) 37°,5 15 — 38° 17 — 37o, 5 18 — 38° 19 — 37°, 5 20 — 38°, 5 20 37",8 No decurso de sete dias, a contar do dia da inocu- lação, esses dois animaes não pareceram ter perdido a sua natural vivacidade ; elles continuaram a alimentar-se e a locomover-se como antes da experiência. Entretanto, examinada a urina no microscópio, no dia 20, logo depois de emittida, vimos alli quantidade considerável de cellulazinhas amarellas, côr de ouro, va- riando de grandeza, desde o tamanho de um micrococco até o de um glóbulo vermelho do sangue, animadas de mo- vimento oscillatorio no liquido, algumas em via de cresci - mento, sendo que estas eram menos amarellas, quasi hyalinas. Tratadas pela solução corante de Ziehl, ellas não mudaram de côr, conservaram-se amarellas. Após esse exame ficámos certos de que tínhamos realmente sob os COBAIA B Dias Temf ). 14 abril inoculação) 37* ,8 lõ — 37* 17 — 37* ,5 18 — 37° ,5 19 — 37° ,5 — 55 — olhos fôrmas do micro-organismo da febre amarella, taes quaes ellas costumam apresentar-se na urina. Quer este facto dizer, assim como os precedentemente relatados—primeiro que os esporos do fungus introduzidos pela via gástrica, previamente acidificada, são capazes de produzir na cobaia uma infecção mortal comparável sob muitos pontos de vista á da febre amarella; segundo, que n'esses animaes o germen infectante pôde atravessar o or- ganismo e delle ser eliminado pela urina, sem entretanto causar perturbações notáveis nas funcções orgânicas. Variando de espécie, fizemos uma experiência, em condições idênticas ás primeiras, n'um cão novinho. Dois dias após á ingestão dos esporos,a temperatura d'este animal elevou-se a 39°,C ; elle deu signaes de abatimento e rejeitou o alimento. No quarto dia foi sorprehendido a fazer esforços para vomitar; a matéria expellida era um liquido viscoso, de côr verde carregada. Recolhida em uma cápsula a matéria vomitada, e juntando-se-lhe aguadistil- lada, vimos no fundo da cápsula depositar-se um sedimento escuro granulado ficando a parte superior do liquido tur- vada e amarella. Examinando o sedimento alli encon- trámos grande quantidade de cellulas hyalinas de duplo contorno e algumas fôrmas isoladas das torulas. Este animal, ao fim de oito dias, parecia restituido ás suas con- dições normaes. A difficuldade de operar em macacos, e o excessivo custo d'ellesnão nospermittio realizar experiências nestes animaes, que tão próximos estão do homem por sua na- tural conformação orgânica. Julgámos não ultrapassar os limites, dentro dos quaes é licita uma conclusão em sciencia,dizendo ao rematar este capitulo—que uma vez adoptadas as precauções de que me servi nestas experiências pode-se chegar a determinar a correlação causai do fungus com a febre amarella. 56 — THEORIA DA INFECÇÃO NA FEBRE AMARELLA Só mediante apreciação comparativa das lesões ana- tômicas peculiares á esta moléstia e dos symptomas mórbidos que a caracterisam, se chegará a comprehender claramente o começo e a seqüência do processo geral infectuoso da febre amarella. Comquanto não tenham sido realizadas, até hoje, ex- periências destinadas a reconhecer no ar a presença do germen da febre amarella, todavia é razoável admittir que durante as épocas epidêmicas o ar deve contel-o em grande quantidade, ao menos nos focos, onde os casos são repetidos e numerosos. A infecção vem pelo ar, directa ou indirectamente. Directamente, quando com as poei- ras do ar o germen chega a introduzir-se na cavidade buc- cal; indirectamente, quando depositado na superfície dos alimentos, é depois transportado com elles até a ca- vidade gástrica. Fora dessas condições mais communs, outras muitas se podem dar, em virtude das quaes os germens do ar acharão caminho para penetrarem até aquella cavidade. A primeira estação do germen infectuoso è, portanto, o estômago. Ninguém tentou ainda provar que a infecção na febre amarella tem logar pelas vias respiratórias, e quem se propuzesse a erigir essa opinião, não acharia razões para escoral-a. Entre o momento da chegada do germen á cavidade gástrica e a irrupção dos primeiros symptomas mórbidos permea um intervallo de tempo variável, que constitue o período chamado de incubação. Esse intervallo pôde ser de dous, de três, ou de cinco dias. Durante esse período estabelece-se verdadeira cultura intra-gastrica do germen. Elle pullula nos líquidos ácidos do estômago; penetra nos — 57 — espaços interglandulares, e aproveitando as relações circulatórias tão intimas que existem entre o estômago e o fígado encaminha-se para esta víscera. Por muito bem fundada deve ser tida hoje a pre- sumpção de que o germen da febre amarella age mediante uma toxina que elle fabrica. Já por analogia é licito assim julgar, porquanto é sabido que a chimica biológica conse- guio demonstrar que no cholera, na diphtheria, no tétano e em algumas outras enfermidades de natureza infectuosa os respectivos germens pathogenicos são productores de venenos. Por outro lado não se vê logo que as alterações visceraes não podem, ellas sós, explicar toda a sympto- matologia da febre amarella ? Mais ainda, a fôrma torulada do micro-organismo da febre amarella approxima-se morphologicamente de certos fermentos conhecidos; e não vimos já que ella promove a fermentação do assucar, propriedade essa que Blair reco- nheceu também possuir o sedimento do vomito preto, onde ha sido comprovada a presença da torula ? Estas interrogações bastam, penso eu, para orientar o espirito na comprehensão dos factos e inducções que se vão seguir. Antes que se annuncie inopinadamente o período de irrupção da moléstia, succede freqüentemente queixa- rem-se os indivíduos que já trazem dentro de si o germen, de perturbações gástricas, de mal-estar geral, significati- vos do inicio da infecção. Quando a febre irrompe quer isso dizer que a pullulação intra-gastrica do germen está adiantada; e que a toxina por elle alli fabricada já pene- trou na circulação geral e foi perturbar os centros regula- dores do calor. A toxina amarillica reúne á sua acção pyretogenica uma acção intensamente paralysante da innervação vaso-motora peripherica. Assim se explica a notável injecção capillar do tegumento externo, tão — 58 — característica da febre amarella, e que de nenhum modo poderia ser considerada simplesmente effeito da reacção febril. Continuando a elaborar-se o veneno no estômago, este entra em um período de irritabilidade crescente. Os vômitos succedem-se a intervallos, e a matéria expellida pelas contracções do ventriculo, já traz comsigo as fôrmas características do germen, de envolta com productos vários de sua própria elaboração. A mucosa do estômago começa dentro em breve a ser atacada e corroída em pon- tos differentes; e os seus vasos capillares turgidos e dila- tados, participando também da acção corrosiva do veneno, vão deixando transudar o sangue, o qual se mistura pouco e pouco aos líquidos contidos na cavidade gástrica. Ao mesmo tempo o veneno já absorvido age por acção de con- tacto sobre o plasna do sangue e este desplastisado surde da rede capillar e dá logar a essas hemorrhagias das mucosas, por vezes tão renitentes e profusas, que fre- qüentemente apparecem na transição do primeiro para o segundo período da moléstia. A acção do veneno amarillico vai mesmo até tocar o coração, cuja energia contractil deprime-se, ecujas pausas tornando-se de mais em mais alongadas, dão ao pulso a extraordinária lentidão de 40 e 50 batimentos por minuto no fim do 2o ou do 3o dia da moléstia. Tão constante e caracte- rístico é este phenomeno da depressão elentêza do pulso na febre amarella, que delle fazem menção todos os clínicos, chegando mesmo o Dr.Faget,de Nova Orleans, a dizerque nesse caracter do pulso achou um meio seguro para apurar o diagnostico nos casosambiguos ou duvidosos. Emquanto se passam taes phenomenos do lado do estô- mago, do sangue e do coração,o figado directamente atacado nos seus elementos cellulares, suspende as suas funcções; elle deixa de fabricar uréa e de segregar bilis como nas — 59 — condições normaes, e provavelmente perde também a sua funcção de órgão reductor de venenos. Pelo mesmo tempo outro districto importante do organismo é invadido. Certa quantidade de germens que chegaram até á circulação geral, vehiculados pelo sangue, procuram a porta de sa- hida dos rins. Elles insinuam-se até dentro dos canaliculos renaes; alli retidos continuam a multiplicar-se, dilatando o calibre dos tubuli, atacando mecanicamente o epithelio, formando trombos aqui, alli, acolá, de modo que chegado um momento a funcção especial da glândula supprime-se e conseguintemente suspende-se a secrecção da urina. Agora já não é só a presença do germen pathogenico e do seu veneno que crêa a malignidade da moléstia e torna grave a situação do enfermo. O perigo immediato para a vida está na auto-infecção proveniente da falta do emunctorio renal. Si o rim não abre-se, por um esforço benéfico da natureza, as horas de vida do enfermo estão contadas. O coma uremico ou as convulsões não tardarão muito a sellar com a morte, essa ainda ha pouco, não des- esperadora situação. Não raro succede, que na febre amarella a gravidade do caso venha unicamente do ataque do rim. Taes são áquelles casos clinicos pelos médicos americanos denomi- nados walking cases, nos quaes, salvo a suppressão da urina nenhuma outra perturbação notável existe que possa fazer acreditar em um fim próximo. O enfermo ergue-se do leito, anda, passeia, conversa, applica-se á leitura, de nada se queixa que possa despertar o receio de uma catastrophe imminente, e poucas horas depois elle é um cadáver. A tão rara occurrencia da morte por syncope na febre amarella diz bem que a acção cardíaca paralysante do ve- neno amarillico não é o que mais se deve temer no decurso d'aquella moléstia. O coração desfallece mas resiste. — 60 — Ao espirito menos atilado não pôde escapar tal ou qual similitude de effeitos entre a peçonha de certos ophidios e a toxina da febre amarella. Ambas agem como alte- rantes do sangue e produzem hemorrhagias profusas, ambas são paralysantes da innervação vaso-motora, e do coração. Com a peçonha dosophidios, porém, não se creiam estorvos nos rins, nem ha receio que a morte venha por anuria. Essa similitude symptomatologica sob tantos pontos de vista, menos na acção renal, poderia ser invocada como ar- gumento para comprovar que a suppressão das funcções do rim na febre amarella, não se dá tanto por effeito local da toxina quanto pela acção mecânica obstructiva do germen. A coloração preta da matéria do vomito jà dissemos que se pôde dar sem a presença do sangue, maximè no começo da moléstia. Em período adiantado, porém, o sangue transudado no estômago, mistura-se aos líquidos alli contidos e imprime côr mais carregada á matéria do vomito. D'esta sorte se explicam as affirmações contra - dictorias de vários observadores, uns negando, outros attestando a presença do sangue no vomito preto. Outro phenomeno da febre amarella, cuja patho- genese ainda se discute é a ictericia. De accôrdo com o modo de vêr de alguns auctores, que especial attenção consagraram ao estudo desse symptoma, julgo que se deve admittir na febre amarella duas sortes de ictericia, diffe- rentes quanto á sua origem e também quanto ao período da moléstia em que ellas se produzem. Aquella ictericia que se pôde reputar peculiar á febre amarella, não falta em caso algum, o que fez com razão Dutroulau dizer que não tinha jamais por confirmado o diagnostico de febre amarella, quando não se revelava ao exame cadaverico, o colorido amarello do tecido cellular subcutaneo. A amarellidão da pelle e das conjunctivas só se ma- nifesta na transição do Io ao 2o período ; algumas vezes, — 61 — quando mui rápida vem a terminação fatal, só depois da morte. Começa a coloração a pintar as conjunctivas, o perímetro das orbitas, a zona circum-labial, a fronte, e depois generalisa-se ao tronco e aos membros. Os tons do colorido ora são mui leves e esbatidos, ora um poucochinho mais carregados, cambiando para a côr do limão maduro ou do açafrão. Essa coloração não é restricta ao tegu- mento externo ; ella invade também as vísceras, espe- cialmente o figado e os rins. Nestes não é tão fácil apre- ciar a impregnação do pigmento em razão do estado de hyperemia do órgão. Em cortes finos, porém, reconhece-se facilmente no microscópio o colorido amarello do tecido. Donde procede essa espécie de ictericia peculiar á febre amarella ? Eis um ponto obscuro de pathogenia, que não foi elucidado ainda, apezar de umas tantas hypo- theses com pretenções a isso. Como era natural pensou-se a principio na bilis, mas tão fortes objecções vieram contrariar essa supposição, que pouco e pouco se a foi deixando de mão. Não podia ser ictericia biliar, porque nos casos em que esta se dá o colorido é outro, mais egual, mais carregado, de tom invariável pelas mutações da luz incidente ou reflectida. Demais si o colorido fosse devido á bilis, esta devera re- velar-se na urina e na serosidade dos vesicatorios pelas reacções características dos saes biliares. Cunisset poz em prova esse facto, e á vista dos resultados das suas experiências concluio negativamente. Porque, com tantos argumentos contrários, era irra- cional explicar a ictericia peculiar á febre amarella por effeito da absorpção da bilis, quizeram então explicai-a por effeito das alterações do sangue, substituindo assim a hypothese de uma origem biliar, pela hypothese de uma origem hematica. Contra esta hypothese ultima porém, insurgem-se varias considerações de peso. — 62 — Si na realidade é a dissolução do sangue, com des- agregação da hematina a origem da ictericia na febre amarella, como se conformaria essa supposição com tantos factos adversos de outras moléstias em que ha dissolução do sangue sem ictericia? Se fosse assim, não era natural vermos a ictericia figurando entre os symptomas do escor- buto, da purpura hemorrhagica, e de outras doenças infe- ctuosas,nas quaes se opera também muitas vezes a dissolu- ção do sangue? Alguém já consignou como facto authentico e constante a ictericia nos casos de envenenamento pro- duzido pela peçonha dosophidios? E não é bem certo que em taes casos ha dissolução do sangue com abundantes hemorrhagias? Por outro lado, si um facto fosse conse- qüência do outro, não era lógico admittir-se que a ictericia mais intensa devera corresponder a um mais alto gráo da dissolução do sangue, manifestando-se esta por hemorrha- gias mais profusas; e uma relação inversa não ha sido tantas vezes confirmada na pratica ? Por todas essas razões, que se me afiguram valiosas, declino da hypothese da origem hematica para explicar a ictericia na febre amarella. Ella é insustentável com a physiologia e não acha, a meu ver, apoio solido na patho- logia. Surge agora sobre os escombros dessas, a hypothese mais recente do colorido pelo pigmento amarello do ger- men. Pertence á classe das hypotheses seductoras, nas quaes parecem luzir uns vislumbres de verdade, mas que não resistem a uma rigorosa inquirição. Carmona y Valle e Domingos Freire a patrocinaram com os seus nomes e auctoridade. E' uma verdade fácil de verificar na primeira occa- sião a presença de abundante pigmento amarello côr de ouro nos substratos de gelatina, em que se cultiva o germen da febre amarella. Essa côr do pigmento, é também — 63 — a côr de varias fôrmas do fungus; e, conforme testemu- nharam muitos observadores precitados, as cellulas hyali- nas, depois amarellas, que representam fôrmas intermedias do fungus, são productoras de pigmento amarello. Também é certo que o pigmento granular, amorpho, proveniente dessas cellulas diffunde-se nos meios líquidos, em que ellas estão e communica ao fim de pouco tempo cor levemente amarellada ás substancias sólidas que se acham em con- tacto com áquelles líquidos. De outra parte, é facto tam- bém verídico que as vísceras de doentes mortos de febre amarella immergidas em álcool, dão-lhe, ao cabo de alguns dias, coloração amarella assaz pronunciada. Como contraste ainda do valor de todos esses factos lê-se no livro de Carmona, que o Dr. Henrique Palazuelos de Vera Cruz, observou que a água gelada, em que repe- tidas vezes immergira as mãos um doente de febre ama- rella, adquirio por fim coloração amarella bem accen- tuada. O próprio Carmona y Valle sujeitando a urina dos doentes de febre amarella a certos reagentes chimicos, conseguio isolar porção de uma matéria corante especial amarella, que elle denominou icteroídina, á qual, em sua opinião, se deve o colorido amarello peculiar aos doentes dessa moléstia. Sem negar um valor restricto a esse conjuncto de factos, aliás tão harmônicos e concordantes, que induzem a ver na matéria pigmentaria do germen a origem da ictericia peculiar á febre amarella, comtudo parece-nos que só forçando muito as leis de inducção se chegará a colligir de taes factos a conclusão de Carmona. Em abso- luto não queremos dizer que essa hypothese não tenha a seu favor uns visos de verosimilhança; mas obrigados somos a confessar que ella não satisfaz a um espirito exi- gente e inquiridor. — 64 - E o argumento mais ponderoso para invalidar essa hypothese consiste justamente no modo de explicar a diffusão no organismo da matéria pigmentaria do germen. Com effeito não se pôde conceber de outro modo a diffusão do pigmento que tinge o derma sinão admittindo que o sangue o leva comsigo e o vae depositando nos estratos superficiaes da pelle. Mas não fizemos ver já quão difficil na febre amarella é encontrar o germen no sangue? Suppôr que o sangue transporta o pigmento do estômago e do fígado, onde se opera com actividade a multiplicação do germen, daria razão a inquirir, porque trazendo elle dalli o pigmento não traz também o germen. E se o pigmento que empresta côr amarella á pelle viesse realmente do estômago e do figado, devera ser encontrado nestas duas visceras quantidade considerável delle capaz de chegar para tão ampla diffusão. Tantas incógnitas se oppõem actualmente a uma comprehensão clara da pathogenia da ictericia na febre amarella, e tão pouco consistentes são as hypotheses levantadas para explica-la que o mais razoável é adiar a explicação desse phenomeno. Não é commum, mas dà-se algumas vezes o facto de sobrepor-se á ictericia própria da febre amarella a ictericia verdadeira biliar. Isso succede em casos de longa duração da moléstia, e ás vezes no inicio da convalescença. CONDIÇÕES DO MEIO FAVORÁVEIS A CULTURA NATURAL DO FUNGUS O fungus da febre amarella parece ser de todos os micróbios pathogenicos aquelle que mais se deixa influen- ciar pelos agentes meteorológicos. As condições que, entre nós, tem até hoje presidido á desenvolução de grandes epidemias da febre amarella, — 65 — acham-se tão rigorosamente estabelecidas e prefixadas, que sem medo de errar se pôde d'ellas tirar numerosas inducções para o germen causai. Temperaturas altas do meio ambiente continuadas por muitos dias, excessiva humidade do ar, taes são as duas condições meteorológicas essenciaes ao desabrochar do germen da febre amarella, no meio exterior. Como são essas as condições habituaes do nosso período estivai — é n'esse período que apparece a febre amarella no Rio de Janeiro. O fungus febris fiavam é, pois, como se vê, um micróbio de estação, á guisa de muitas plantas phauero- gamicas, que só dão fructos em épocas determinadas do anno. A' entrada do inverno a esporulação cessa, e os esporos resisteutes hibernam até o começo do verão seguinte. A volta periódica da febre amarella não se explica de outro modo. Onde dormitam, porém, os germens, durante o in- verno, e onde vai haurir elementos de nutrição o fungus quando toca a hora de despertar; pois elle carece além de excesso de calor e humidade de matérias azotadas e hydro-carbonadas como substratum de cultura. São os detritos orgânicos que formam a camada super- ficial do solo, os residuos excrementicios da vida humana, os excrementos dos animaes, essa podridão accumulada de toda a sorte de ejectos, provenientes de uma popu- lação agglomerada e negligente do asseio e da hygiene, que contribuem com a matéria prima para a nutrição do germen. Por isso com razão diz o Dr. Hutton no seu interes- sante relatório sobre a epidemia da febre amarella, na Florida, em 1888: « as condições favoráveis á propa- gação do veneno da febre amarella, qualquer que elle seja, são —alta temperatura prolongada, humidade e por ultimo accumulação de immundicias, especialmente de matéria 5 — 66 — animal e de productos exci ementicios humanos. Supprimi este ultiiro factor, todos os outros ficarão annullados ». Bem se vê, portanto, que o calor excessivo e a humi- » dade por si sós, não tem o poder de mover a febre ama- rella ; elles agem nesse sentido somente quando existe um substratum de cultura constituido pelo modo por que ficou acima indicado. Partindo agora do conhecimento destes factos di- gam-me que racional applicação pôde ter a hypothese de Pettenkoffer ao desenvolvimento epidêmico da febre ama- rella ? As taes fatidicas oscillações do lençol d'agua sub- terrâneo poderão agir como factor da desenvolução do cholera, si assim quizerem, mas com certeza nenhuma influencia ellas exercem sobre a desenvolução da febre ama- rella. E' esta, quanto a mim, uma conclusão que não pôde ser destruida. A extraordinária resistência vital dos esporos do fungus da febre amarella pôde ser provada com muitos factos; e infelizmente, graças a essa resistência, quantas vezes tem sido burladas as medidas de prevenção usadas no nosso paiz contra a propagação da febre amarella. Range relata nos Archivos de Medicina Naval uma pequena epidemia de febre amarella, nas ilhas Salut, próximas á Guyana Franceza, cuja origem provou-se ser a lã de uns colchões velhos, guardada havia sete annos, em aposento fechado. Tinham naquella época servido os referidos colchões a doentes de febre amarella. Os esporos do fungus permaneceram, portanto, sete annos na lã, e ao cabo desse longo lapso de tempo elles não tinham ainda perdido a faculdade de germinar, nem a acção pathogenica Somos levados a admittir, com a observação dos factos,que entre ascondições que favorecem a desenvolução — 67 — do germen no meio exterior, está também a satura- ção do ar por substancias salinas. A predilecção da febre amarella pelos navios e pelas terras baixas do litto- ral acha principalmente nesse facto a sua explicação. Re- gando os substratos com água do mar também obtivemos culturas pujantes do fungus. A influencia da pressão barometrica afigura-se-me muito menos efficiente do que se suppõe. E' incontes- tável que nas grandes altitudes as condições do meio são adversas á desenvolução do germen. Mas aqui o problema é complexo—porque a dimi- nuição da pressão barometrica, que é condição natural inherente ás altitudes, coincide com o abaixamento da temperatura. De modo que a influencia das altitudes me parece dever antes ser explicada por virtude desta con- dição ultima do que mesmo pela diminuição da pressão barometrica. Essa maneira de encarar a questão condiz muito com certa ordem de factos observados no nosso paiz. A in- fluencia da altitude nullifica-se, quando pelo concurso de condições topographicas, relativas á exposição da locali- dade, ao livre curso do ar, á irradiação do calor solar, e á composição geológica do solo, a média da temperatura do ambiente attinge algarismos elevados. E' o que seda em Campinas, 600 metros acima do nivel do mar; é o que se dá em Cantagallo, cuja altitude ascende a mais de 400 metros. Entretanto altitudes iguaes a essas na Serra dos Órgãos, onde as médias thermicas sempre são mais baixas, tem ficado até hoje preservadas da febre amarella. A vehiculação do germen por objectos e cousas inani- madas é facto hoje provado até a evidencia, constituindo isso um dos attributos de maior relevância e peculiari- dade ao germen da febre amarella. O germen do cholera só é transportavel mediante roupas ou objectos de uso dos — 68 — enfermos ; fora disso os objectos que atravessam os meios infectados, sem soffrerem o contacto dos doentes, não tem probibilidade de transportar o germen do cholera. Neste sentido a febre amarella deve ser considerada o typo das doenças transportaveis. Por averiguação escrupulosa, communicou-me o Dr. J. Caldas, de Barbacena, que se chegou ultimamente a provar o transporte do germen da febre amarella desde o Rio de Já leiro até povoações do interior no Estado de Minas, em fardos de fazendas. A facilidade e a rapidez de communicações por via férrea tem assaz contribuído para diffundir-se a febre ama- rella pelo interior do Brazil. A semente morbigena assim transportada, vai pousando nesses pequenos núcleos de população formados em torno das estações das estradas de ferro, e promovendo alli a irrupção de epidemias parciaes, localisadas. Em grande extensão do valle do Parahyba, e do Parahybuna, por onde transitam as linhas da Estrada de Ferro Central e da Leopoldina se tem ido formando, pouco e pouco, pequenos focos, que ora parecem ex- tinguir-se, ora revivem. Não é para desprezar-se essa permanente ameaça de uma diffusão crescente da febre amarella, á medida que se vão internando as nossas vias férreas. Deve isso con- stituir ao contrario objecto de sérias apprehensões por parte das autoridades sanitárias e da suprema gover- nação do paiz. O accrescimo da virulência do germen, e a accen- tuação dos seus effeitos mórbidos por virtude de trans- missões successivas, preenchendo-se nellas a condição de desenvolução alternada — no organismo humano e no meio exterior—é quanto a mim, facto de extraordinária importância, e que, ao que parece, não foi até hoje sufficientemente aquilatado. — 69 — Quando se desloca de um foco antigo, constituído de longa data, como é o do Rio de Janeiro, para pontos onde elle era desconhecido, o germen enfraquece de virulência, e só chega a leval-a ao gráo máximo, depois de repetidas passagens no organismo humano. Esta in- ducção fundamenta-se no facto observado em muitas loca- lidades do interior de se manifestarem a principio casos indecisos, mal caracterisados, e mui benignos; e pouco a pouco, á medida que se elles vão succedendo a doença vai retomando os seus traços physionomicos característicos, e augmentando consideravelmente de gravidade. Em Re- zende, Parahyba do Sul, Vassouras, Cantagallo, foi assim que se delineou o traçado da desenvolução epidêmica da febre amarella. Attenda-se bem agora para a applicação desse facto ás condições do Rio de Janeiro, e digam-me si não é plau- sível acreditar-se que a virulência do germen da febre amarella aqui mantem-se e tende sempre a elevar-se pela razão de agglomerarem-se no foco massas de indivíduos, dotados de extrema receptividade. A presença dessas massas facilita as transmissões successivas, que fazem crescer a virulência do germen—e a moléstia propaga-se como o incêndio que se vai alimentando á custa de ma- térias dotadas de grande combustibilidade. AS EPIDEMIAS NO RIO DE JANEIRO Por infelicidade do Brazil ha muitos annos que lu- ctamos improficuamente por extinguir a febre amarella no Rio de Janeiro; e a impossibilidade de attingir esse resul- tado tem como amortecido as energias dos homens de bôa vontade, que almejam ver a nossa pátria expurgada desse flagello. — 70 — Os mais optimistas não perderam ainda a esperança de conseguir isso; e propõem medidas ou lembram alvitres que, comquanto onerossissimos para as finanças do Estado devem, na opinião delles, ser promptamente realizados. Outros, apoiados nos factos, no conhecimento das condições do meio, e talvez com uma comprehensão mais nitida do modo pelo qual se mantém, se propaga e se diffunde o germen na extensa área occupada pela cidade, consideram empreza difficilima a extincção da febre ama- rella no Rio de Janeiro. Devo confessar que pertenço ao numero destes e que já tive occasião de externar esta opinião com toda a fran- queza, quando deste assumpto se occupou o primeiro Con- gresso de Medicina e Cirurgia, que se reunio, ha três annos, na capital do Brazil. Não podendo deixar fora do quadro do nosso trabalho essa questão, cuja importância é intuitiva, e que tão in- timamente se prende ao estudo do germen, vamos sobre ella dizer algumas palavras. Foi em Novembro de 1849 pela primeira vez impor- tada no Rio de Janeiro a semente da febre amarella. A grande e mortífera epidemia que então assolou a metrópole brazileira custou o sacrifício de mais de 4000 vidas. Desde esse anno até 1854 a febre amarella durante os mezes mais calidos do verão não deixou de fazer victimas, sendo po- rém a mortalidade relativamente reduzida comparada com a de 1849—1850. Em 1854 a mortalidade foi apenas de 21 pessoas, se- gundo as estatísticas officiaes. Nos annos seguintes de 1855—1856 o obituario não registrou um só caso de febre amarella. Ella parecia extincta, quando fomos flagellados pelo cholera. Em 1857, porém, reappareceu epidemicamente e fez 1,425 victimas. D'ahiem diante ella não cessou de fazer - 71 — as suas funestas apparições, durante os mezes do verão, com maior ou menor intensidade até 1863, em que não foi registrado um só caso de óbito. Deste anno até 1868 a febre amarella pareceu estar completamente extincta no Rio de Janeiro. Em 1869, porém, começa um novo período de activi- dade do germen, e desde então até hoje não nos tem pou- pado a terrível moléstia, apparecendo todos os annos, du- rante o verão, e ás vezes com intensidade tal, que chegou a egualar e até exceder a grande epidemia de 1850. Assim em 1873 a mortalidade no Rio de Janeiro devida á febre amarella attingio á elevada cifra de 3,659 pessoas ; em 1876 a 3,476 ; em 1889 a 2,155. Cotejando e analysando estes dados estatisticos o que mais fere a attenção é esse período intercalar de seis annos, durante os quaes não foi registrado um só óbito de febre amarella. Antes d'este já outro período de tréguas mais curto (1855—1856) havia incutido a esperança de ficarmos de uma vez livres desse flagello. Por infelicidade nossa assim não succedeu. Que influencias ou condições se deram em virtude das quaes sobreveio esse período de seis annos, precedido de outro mais curto, durante os quaes pareceu extincta a febre amarella no Rio de Janeiro ? Não se pôde explicar esse facto por mudanças extra- ordinárias nas condições climáticas ou meteorológicas, que não occorreram, nem por trabalhos de saneamento que não se realizaram. Entretanto é evidente que uma condição qualquer in- terveio, por força da qual a natural e periódica desenvo- lução da moléstia não pôde mais ter logar. Qual ella foi, eis o ponto intrincado e obscuro da questão. Os sectários da doutrina ou antes da hypothese de Pettenkoffer, áquelles que ligam exagerada importância á — 72 — humidade do sub-sólo como condição primordial da desenvo- lução do germen da febre amarella, pretendem que a ex- plicação do facto está na drenagem do sub-sólo operada pela canalisação dos esgotos de matérias fecaes. Por mais seductora que se afigure essa explicação, hão de permittir os fautores delia que não a julguemos admissível. Conforme já foi adduzido em lúcida argumentação por um illustre membro da Academia Nacional de Medi- cina, também adverso á razão expendida, o facto da re- trocessão com tendência á completa extincção da febre amarella já era patente ao tempo em que apenas iniciava-se aconstrucção da galeria de esgotos. Esse argumento é ponderoso, podíamos quasi dizer convincente. Temos, porém, para corroboral-o ainda a seguinte razão : si na verdade foi a drenagem do sub-sólo, produzida pela canalisação dos esgotos, que fez cessar a febre amarella no período decorrido de 1863—1868, é caso de perguntar como esse effeito deixou de produ- zir-se no fim de seis annos, de tal sorte que o germen novameute importado veio encontrar então no solo con- dições favoráveis ao seu desenvolvimento ? N'este caso ou a drenagem do sub-sólo constitue uma condição indifferente á multiplicação do germen, conforme é rainha opinião, ou seremos obrigados a admittir que, seis annos depois de começada a construcção da rede de esgotos, já ella se havia tornado imprestável para operar a drenagem do sub-sólo. E' esta a razão a que se arrimam os sectários da doutrina de Pettenkoffer para escaparem ás torturas da objecção. Mas porque não havemos ter antes como mais vero- simil e racional que a condição, qualquer que ella seja, que presidio ao período de 1863-1668, foi da mesma ordem daquella que creou o período de tréguas de 1855-1856 ? — 73 — Essa condição suspensiva esquiva-se até agora á penetração da nossa intellegencia; e a respeito delia só é licito formular hypotheses. Destas a que se me afigura cercada de maiores probabilidades consiste em suppôr que houve naquelles períodos notável decrescimento na virulência do germen, anteriormente importado. Sabe-se que o gráo de virulência dos germens pathogenicos é su- jeito a variar immensamente por influxo de numerosas condições extrinsecas; o que falta á sciencia é chegar a determinar todas essas condições. Com relação á febre amarella ha duas condições conhecidas que contribuem efficazmente para manter e revigorar a virulência do ger- men: elevação de temperatura, e transmissões succes- sivas em organismos dotados de grande receptividade. Seria porque faltaram essas duas condições adju- vantes da virulência que nos dous períodos precitados pa- receu extinguir-se a febre amarella no Rio de Janeiro ? Esta supposição não deixa de ter, a meu vêr, algum funda- mento. Na grande epidemia de 1850 o germen importado encontrou grande massa de indivíduos dotados de rece- ptividade. A virulência foi se incrementando mediante successivas e numerosas transmissões, e logo a epidemia lavrou como um incêndio. Os que escaparam á confla- gração, e os que delia sahiram triumphantes tiveram para si a compensação da immunidade adquirida. Res- tringio-se assim o campo de acção do germen ; e como lhe faltasse para manter a virulência a condição das trans- missões successivas, elle começou a debilitar-se, de sorte que tendo se dado em 1853, 853 óbitos pelafebre amarella no anno seguinte só se deram 21, e vieram depois dous annos de cessação completa. Idêntico facto se nota nos annos que precederam o período de 1863-1868. Em 1860 deram-se 1,249 óbitos de — 74 — febre amarella; em 1861, 247 ; em 1862, 12, em 1863, 15. Depois seguio-se o período de seis annos de cessação com- pleta. Tréguas como essas podemos ainda alcançar, si im- pedirmos que á população do Rio de Janeiro venham encorporar-se massas de indivíduos, dotados de grande receptividade para febre amarella. Acredita-se que a reapparição desta moléstia em fins de 1869 foi conseqüente á nova importação do germen pelo navio italiano Creolla dei Plata, chegado ao Rio de Janeiro com escala por S. Thiago. De então para cá todas as condições tem vindo favorecer a multiplicação do germen e o augmento de sua virulência : verões rigo- rosos, extraordinário accrescimo da população com agglomeração de indivíduos em pequenas habitações ; entrada de massas de immigrantes, tudo isso aggravado pela ausência de hygiene domiciliaria, e má applicação da hygiene aggressiva. Ninguém pôde contestar que a população do Rio de Janeiro cresce todos os annos; que a corrente immigra- toria tendo a augmentar cada vez mais; que a agglome- ração urbana vai-se tornando de anno para anno mais compacta ; que a maior parte da área construída da ci- dade está em condições hygienicas condemnaveis; que finalmente, as condições meteorológicas do Rio de Ja- neiro tendem antes a peiorar do que a melhorar pela fre- qüência menor das chuvas e das descargas electricas, assim como pelo excessivo rigor da temperatura nos mezes do verão. Portanto do que servirá drenar o solo, tornal-o es- tanque, aterrar uma duzia de pântanos, construir um cáes em todo o littoral, e outros melhoramentos proje- ctados com fim de extinguir a febre amarella, si as con- dições essenciaes ao seu desenvolvimento persistem ? - 75 — Transformai o clima, si isso é possível; arrazai a cidade ou parte delia para de novo reconstruil-a sob outro plano, si isso é factível; impedi a entrada de immigrantes europeus ; fundai uma administração de hygiene sobre bases fortes e verdadeiramente scientificas, então se po- derá talvez conseguir a extincção da febre amarella no Rio de Janeiro. Mas como é intuitivo que muitas d'essas medidas são impraticáveis, e outras difficilmente e só cora enormes sacrifícios de dinheiro podem ser levadas a effeito, eu continuo a pensar aqui, como no Congresso a que acima me referi, que é uma aspiração legitima, mas muito pro- blemática em seus effeitos—extinguir a febre amarella no Rio de Janeiro. Tem sido invocados os exemplos de Nova-York, de Nova Orleans, de Vera Cruz para reforçar a opinião daquelles que julgam possível a extincção da febre ama- rella na capital do Brazil. A meu ver, porém, não são argumentos de valor os exemplos acima invocados. Em Nova-York as condições climáticas são mui diversas das nossas. Alli os invernos são rigorosíssimos e assaz prolongados ; e o período das temperaturas eleva- das relativamente curto. Bastam essas condições para enfraquecer a vitalidade do germen; e actuando ellas por longo tempo, são mesmo capazes de fazei o succumbir. E' deste modo, disse-me uma vez o Sr. Sternberg, que se explica o desapparecimento da febre amarella em Nova- York. Em nova Orleans fizeram-se, é verdade, importantes trabalhos de saneamento que honram o Dr. Holt, sob cuja direcção elles foram realizados. Mas ainda é cedo para concluir-se que por esse meio conseguio-se alli destruir totalmente o germen. No Rio de Janeiro, sem que se tivesse realizado nenhum trabalho dessa ordem, tivemos — 76 — também um longo período de tréguas, era que se julgou extincta a febre amarella (1). Em Vera Cruz despenderam-se grandes sommas para melhorar as condições hygienicas da cidade e não obstante isso irrompeu alü o anno passado a febre amarella com grande intensidade. (Vide Jornal do Commercio de 31 de Janeiro de 1892). O que nos estão mostrando os factos mais recentes é a tendência á formação de novos focos de febre amarella no continente americano em vez da extincção dos já for- mados. Para esse resultado estão concorrendo diversos factores, entre os quaes tem logar proeminente a rapidez e a facilidade de communicações, quer marítimas, quer terrestres, em todo o continente. Depois que se foi incrementando o movimento com- mercial de Santos, por onde transitam, de alguns annos a este parte, grandes levas de immigrantes, e onde entram mensalmente grande numero de navios mercantes estran- geiros, tornou-se aquella cidade marítima do Brazil, um foco de febre amarella. Outro tanto é provável que succeda a vários portos do Brazil, situados entre os trópicos, quando nelles se venham produzir condições idênticas ás de Santos e do Rio de Janeiro. Dadas certas condições favoráveis do meio, o germen da febre amarella carece apenas de tempo para consolidar a sua adaptação e constituir um foco permanente. Tão compenetrados desta verdade estão os Americanos do Norte, que para defender o seu vasto paiz de uma ingente calamidade, elles não tem poupado esforços nem sacrifícios, afim de conseguir a completa extincção do germen alli (1) Informou-nos pessoa mui fidedigna que residio nos Estados- Unidos de 1886 a 1891 ser exacto o apparecimento da febre amarella, durante áquelles annos, em Nova Orleans. — 77 — importado. Assim procederam, por oecasião da recente epidemia da Florida, em 1888 ; onde os meios empregados para extinguil-a podem servir de norma a outros paizes periodicamente atacados por aquelle flagello. MEIOS PREVENTIVOS DO DESENVOLVIMENTO DAS EPIDEMIAS Tratando deste assumpto, não podemos deixar de, antes de tudo, confessar que nas cousas referentes á hygiene publica estamos muitissimo atrazados. Temos bons hygienistas, scientes de todos os progressos da hygiene moderna, capazes de bem comprehenderem as necessidades do nosso meio sanitário e de traçar excellen- tes planos de reformas, tendentes a melhorar as más con- dições hygienicas do Rio de Janeiro; de outro lado, porém, faltam-nos todos os meios de acção, sem os quaes nada se pôde realizar em beneficio da saúde publica. Não temos legislação sanitária, ou si alguma cousa existe, que se deva assim chamar, é um conjuncto de dis- posições contradictorias, muitas vezes casuisticas, sem unidade no ponto de vista, feitas para servirem segundo as circumstancias de oecasião e sem força para lutar contra os interesses individuaes. E' uma cousa que espanta e entristece ao mesmo tempo ver-se, em nome da saúde publica, reclamar-se com insistência a execução de certas medidas que são in- dispensáveis para sustar a propagação das epidemias, e o interesse dos particulares, protegido pelas próprias au- toridades, impedir a execução dessas medidas! Em nenhum outro paiz, onde se tem em grande valor a vida humana e se zela a saúde publica, haveria força capaz de impedir o arrazamento de muitos desses antros em que se esconde a febre amarella, e que são chamados entre nós— — 78 — cortiços. Aqui os gananciosos proprietários dos cortiços zombam das autoridades sanitárias; e não ha lei que os faça capitular diante do interesse publico ! A base de qualquer reforma da hygiene entre nós deve pois, consistir nos poderes amplos e discricionários conferidos á autoridade sanitária. Sem isso todos os es- forços para melhorar as condições hygienicas da Capital Federal serão improficuos ; e a prova do que dizemos está gravada na consciência de todos os homens que occuparam até hoje as mais elevadas posições nas repartições de hy- giene do Rio de Janeiro. Temos razões ponderosas para acreditar que os gran- des viveiros do germen da febre amarella estão nas estalagens ou cortiços e nas galerias subterrâneas dos es- gotos. Esta opinião não é minha só; com ella estão os mais notáveis representantes da classe medica do Rio. A agglomeração de indivíduos nas estalagens, onde se abrigam centenares de estrangeiros não acclimados, tem feito dessas habitações insalubres excellentes campos de cultura do germen da febre amarella. Nos períodos epi- dêmicos ellas contribuem com um notável subsidio para o registro da mortalidade. Attendendo á difficuldade de sanear conveniente- mente essas habitações, a única medida a tomar é decretar a sua demolição, lançando ao fogo os escombros e desin- fectandoosólo. Dissemos em outra parte deste trabalho que o germen da febre amarella parece não multiplicar-se na superfície do solo, quando este não contém grande quantidade de ma- térias orgânicas. Parece, porém, fora de duvida que elle vive e reproduz-se debaixo do solo da cidade, dentro dos canos dos esgotos. Humidade, calor próprio ás fermen- tações das matérias fecaes, e um substratum de cul- tura rico de princípios azotados, taes são as condições — 79 — favoráveis de vida e de multiplicação que aquelle germen encontra na canalisação subterrânea dos esgotos. Attenda-se agora o que por espaço de muitos annos tem sido lançados alli dentro, os liquidos do vomito, as fezes e as urinas de muitos milhares de indivíduos ata- cados de febre amarella, sem desinfecção prévia, e que esses productos excrementicios, como a observação de- monstra, contém quantidades grandes do germen,e compre- hender-se-ha então como os esgotos do Rio de Janeiro tor- naram-se um dos principaes viveiros do germen amarillico. Sobre as incrustações humidas que revestem interior- mente áquelles canos devem existir extensos campos de cultura, e como por effeito das variações da temperatura e de outras causas physicas a atmosphera dos esgotos é sujeita a deslocar-se com as correntes de ar; os germens impellidos por essas correntes diffundem-se atravez as ga- lerias até os pontos mais remotos do systema ; de tal sorte que pode-se bem dizer—que a febre amarella caminha com os esgotos- Comprova-se esta asserção com o facto de que muitos arrabaldes, que por longo tempo ficaram isentos da febre amarella, começaram a ser delia infestados depois que os esgotos lá chegaram. Tão imperfeito é ainda hoje o systema de ligação da canalisação subterrânea com as bacias de recepção (water closets) existentes na mór parte das casas, que não é difficil comprehender como se estabelece a communicação da atmosphera da casa com a atmosphera dos esgotos, E desde que livre communicação existe assim entre a casa e os esgotos, succede que as correntes de ar ascen- dente trazendo d'ahi gazes tóxicos e germens, vem pro- duzir a infecção da casa. O que cumpre fazer paraiuutilisar os effeitos d'esse vasto foco de infecção já o disseram os nossos mais — 80 — distinctos hygienistas : mudar o systema de latrinas que existem actualraente em quasi todas as habitações da ci- dade de accôrdo com os últimos aperfeiçoamentos da en- genharia sanitária. A execução d'essa medida é urgente e imperiosa. A lavagem freqüente e impulsiva (chasse) dos canos dos esgotos com soluções desinfectantes, si fosse de fácil execução, seria também uma medida útil. Não sabemos, porém, si as condições de resistência da canalisação sub- terrânea permittirá esperar bom êxito do emprego d'essa medida. A má qualidade do material empregado na con- strucção dos canos de esgotos, segundo affirmam os homens competentes que acompanharam os trabalhos da canalisação desde o começo, é razão para se não confiar inteiramente nos resultados d'essa medida que, aliás, seria de grande utilidade. Os outros viveiros do germen da febre amarella, cuja importância na propagação da moléstia, forçoso é con- fessar, está longe de comparar-se á dos dous focos a que acima nos referimos—são os Cemitérios e os Hospitaes de isolamento. Provaram as nossas observações que o germen da febre amarella não morre nas vísceras do cadáver; mas alli se conserva longo tempo, aguardando oecasião propicia de passar a outras condições de vida. E' razoável suppor, portanto, que com a dissolução do cadáver elle passa á terra das sepulturas, onde pode permanecer por tempo indefinido. Calcule-se agora o numero de indi. viduosque tem suecumbido á febre amarella no Rio de Ja- neiro durante estes últimos 20 annos, inhumados nos cemi- térios públicos e poder-se-ha então imaginar como a área subterrânea,occupada por tão grande numero de sepulturas 4eve estar saturada do germen. A abertura d'essas sepultu- jas no fim do prazo regulamentar, ou mesmo a prazo mais — 81 — longo, tem o inconveniente de facilitar a diffusão dos ger- mens alli encerrados quer pelo ar, quer mediante a terra revolvida das sepulturas. E isto que se dá com a febre amarella dá-se também com outras moléstias infectuosas devidas a germens. A conclusão pratica que se deduz d'ahi é que ha urgente necessidade de fundar-se um cemitério exclusi- vamente destinado aos indivíduos que tenham succum- bido de febre amarella e de outras doenças infectuosas, cujas sepulturas fiquem sempre fechadas; ou quando se julgue necessário abril-as, se faça acompanhar o processo de exhumação de completa e perfeita desinfecçãodosólo. Penso que a maioria da classe medica do Rio de Ja- neiro está commigo de accôrdo em que os nossos hospi- taes de S. Sebastião e de Santa Isabel, apezar dos grandes melhoramentos que alli foram ultimamente adoptados, não satisfazem ainda as condições exigidas para um hos- pital de isolamento. Acredita-se que a desinfecção convenientemente praticada nesses hospitaes é uma garantia contra a for- mação ahi de focos pestilenciaes ; e que elles, por esse modo, prestar-se-hão a servir indefinidamente como hospi- taes de isolamento. Essa crença que infelizmente, ao que nos dizem, domina na administração sanitária superior é quanto anos, errônea e perigosa. Demais pela sua posição relativamente aos núcleos de população, elles podem vir a ser, e parece mesmo que já foram, focos de irradiação da febre amarella. Neste particular somos de parecer que melhor preen- cheriam as condições do isolamento, sem as desvantagens provenientes da agglomeração de enfermos um hospital Jluctuante, collocado á distancia conveniente do littoral, e alguns hospitaes-barraças, em pontos da cidade, onde mais rareada seja a população. 6 — 82 — Falámos até aqui das medidas que convém empre- gar para nullificar a acção Aos focos permanentes. Agora diremos algumas palavras sobre medidas de outra ordem, as quaes bem executadas,não devem concorrer menos para attenuaros estragos da febre amarella no Rio de Janeiro. Queremo-nos referir á entrada de immigrantes na Capital Federal. Já fizemos notar em outra parte d'este trabalho que a chegada de massas de indivíduos dotados de grande receptividade em um foco de febre amarella, é condição que assaz contribue para augmentar a virulência do ger- men. E' combustível que se lança á fogueira, para atear o incêndio. E tão compenetrados já estão desta verdade áquelles dos nossos profissionaes, que tem os olhos fitados nessas questões de hygiene prophylatica, que, sem discre- pância, clamam todos pela execução de medidas prohibi- tivas da entrada de immigrantes na Capital Federal. A Academia Nacional de Medicina fez-se écho desse justos clamores perante o poder competente, e, com pezar não vimos até hoje decretadas medidas tão urgentemente reclamadas e de tão provada effícacia. A observação dos factos tem mostrado que, reinando a febre amarella, a demora apenas de alguma horas no foco epidêmico, è quanto basta para adquirir-se a in- fecção. Dahi resulta que atravessando a Capital Federal, em época de epidemia, levas de immigrantes, que vão espalhar-se pelos Estados de S. Paulo, de Minas e do Rio de Janeiro, tornam-se elles mesmos portadores da febre amarella para o interior d'aquelles Estados. Aquillo que dizemos com relação á cidade do Rio de Janeiro tem perfeita applicação á cidade de Santos, o segundo empório commercial do Brazil, freqüentado por grande numero de navios mercantes estrangeiros, e outro desaguadouro da torrente immigratoria — 83 — Portanto, medida indispensável e urgente é— tran- car os portos do Rio de Janeiro e de Santos aos immi ■ grantes durante alguns annos, como meio de reprimir alli as explosões da febre amarella. Não fecharemos este capitulo sem dizer duas palavras sobre as desinfecções. Este recurso da hygiene aggressiva que pôde ser e tem sido muitas vezes um meio salvador por excellencia, parece que, entre nós, não tem provado toda a sua pro- ficuidade. Desinfecção rigorosa, praticada opportunamente com todas as regras recommendadas pela sciencia, dá sempre bom resultado. Como, porém, succede que os executores d'esse trabalho, ao menos entre nós, ignoram taes regras ou as infringem conscientemente para economisar tempo e fadigas, aqui as desinfecções por mal praticadas são quasi sempre illusorias. A nossa Inspectoria de Hygiene já podia ter organisado um corpo de desinfectadores, bem industriados e peritos no seu officio, cujo serviço fosse fiscalisado por pessoa de reconhecida competência n'essa matéria. Não merece pouca ponderação a escolha dos agentes desinfectantes, e o modo de applical-os uma vez que, con- forme julgamos ter demonstrado, o germen da febre ama- rella é um fungus polymorpho e não uma bactéria. Variando as fôrmas do fungus no meio exterior e nas matérias ejectadas pelo doente, conviria primeiro que tudo inquirir si a resistência aos agentes desinfectantes é a mesma para as varias fôrmas do germen. Na matéria expellida pelo vomito, assim como na urina o germen apresenta a fôrma torulada; no meio exterior sobre as matérias excrementicias animaes, sobre as immundicias, é o fungus completo, e o germen infe- ctante — o esporo do fungus. — 84 - Em relação aos effeitos germicidas do calor graduado nas estufas de esterilisação o Sr. Miquel, do Laboratório de Montsouris, inclue as torulas e as leveduras entre os germens do ar que succumbem em temperaturas inferiores a -f70°C. A natureza, porém, do meio de cultura, a sua reacção chimica, e o tempo de exposição ao calor, podem trazer notáveis differenças nos resultados. Por isso que a fôrma torulada do germen da febre amarella pertence á vida parasitaria intra-orgânica, e a sua eliminação effectua-se pelos liquidos e matérias eje- ctadas do doente, a desinfecção d'essas matérias obtem-se mais facilmente mediante os desinfectantes chimicos do que pela acção do calor. Conforme demonstraram as experiências de Koch, Loeffler e Gaffky, os esporos das mucedineas em geral só succumbem em temperaturas de 110°C, ou 115°C, man- tidas durante hora e meia. O esporo do fungus febrisfiavm não se exime a essa lei. Já dissemos que elle resiste por muito tempo ao calor humido de 105°C. A desinfecção da matéria do vomito e da urina me- diante a água em ebullição como tenho visto fazer e recommendar, não garante a destruição do germen, ainda que este tenha então a fôrma torulada, e se queira admittir as conclusões de Miquel — de que as torulas succumbem na temperatura de 70°C. E a razão disso é intuitiva — a temperatura da água diminue rapidamente, uma vez misturada com a matéria do vomito ou com a urina, e os effeitos do calor assim applicado, são tão ephemeros, que inteiramente não podemos confiar n'elle. N'esse caso a desinfecção mediante os agentes chi- micos é mais facil e de exito mais seguro. O agente chi mico que deve ser aqui preferido é o bichlorureto de mercúrio. Tudo leva acrerqueaacçãodesinfectanted'este — 85 — agente provém de uma alteração physico-chimica por elle produzida no protoplasma da cellula, da qual resulta o irrevogável aniquilaraento da força geratriz do germen. Em experiências que fizemos cultivando a torula em assucar e juntando-lhe na proporção de 1 para 5 a solução do bichlorureto de mercúrio a 1:1000 vimos a torula resistir e continuar a multiplicar-se naquelle meio. Deve ser, portanto, mais elevada a dosagem do bichlo- rureto de mercúrio, si quizermos ter plena segurança no bom exito da desinfecção. (1) Na epidemia que assolou a Florida, nos Estados Unidos, em 1888, foram usadas soluções de bichlorureto de mercúrio a 4:1000; e o Dr. Guitéras só achou motivos para louvar-se do emprego daquelle desinfectante n' essas proporções elevadas. Na desinfecção do ar dos aposentos fechados onde estiveram doentes de febre amarella, o accôrdo hoje é unanime na preferencia dada ao gaz sulphuroso. Este e o bichlorureto de mercúrio fizeram, por si sós, quasi todos os gastos da depuração na epidemia da Florida. Cumpre, porém, ter muito em vista a recommendação feita pelo Conselho sanitário de Washington na circular publicada em 29 de Julho de 1879, quando diz « estando o germen da febre amarella secco ou em parte dessecado, não se pôde esperar destruil-o comum desinfectante volátil ou gazoso. E' preciso primeiro humedecel-o para se contar com o bom exito da desinfecção.» (1) Em um importante trabalho, realizado no Inst. Pasteur, cujas conclusões vêm exaradas najflew. des Cours. Scientif. de 6 de Maio, 1893, os Srs. Chamfoerland e Fernbach aííirmam, após experiências rigorosas que fizeram, que o chlorureto de cal a y,0, a água oxigenada do commercio são mais activos como germicidas de que a solução ácida do sublimado a Viooo. Maior rapidez da acção germecidaobtense, aquecendo a solução de chlorureto de cal até a temperatura de 40" a 50% e usando delia assim aquecida. — 86 — Quanto á esterilisação do germen mediante o em- prego do calor nas estufas, mui bem fundada nos parece também a recommendação do Conselho sanitário de Was- hington, quando determina que a temperatura nas estufas seja elevada a + 120° C. Só assim é licito contar com a completa e total destruição do germen. Salvo objectos de algum valor, que foram do uso do doente, e que convém não destruir, tudo o mais onde pôde ter-se depositado e adherido o germen, colxões, traves- seiros, roupas de cama, toalhas, etc. deve ser consumido na fogueira. D'esta sorte procederam em Jacksonville (Florida) os prepostos do National Board of Health, sendo indemnisados os proprietários do valor dos objectos destruídos. Não podemos deixar de transcrever aqui o que a tal respeito disse o Dr. John Hamilton, Inspector geral do serviço dos Hospitaes marítimos nos Estados Unidos, no seu relatório de 1889, á pag. 114 : « Não ha exemplo na historia d'este paiz de terem sido praticadas medidas tão rigorosas de desinfecção, como foram as de Jacksonville e das cidades da Florida, depois que cessou alli a epidemia de febre amarella. Po- demos ter a certeza de que á destruição das matérias susceptíveis de reter e transmittir o germen deve-se attri- buir em grande parte a immunidade de que gozou este anno aquelle Estado. » As desinfecções post epidêmicas, isto é praticadas depois do periodo epidêmico, tem vantagens, que entre nós, não são ainda bem aquilatadas, mas que ficaram já sufficientemente demonstradas pela pratica, nas mais recentes epidemias dos Estados Unidos. No fim de cada periodo epidêmico, o germen cuja virulência cresceu por virtude de transmissões succes- sivas, entra na phrase de hybernação, deixa de proliferar — 87 — no meio exterior, aguardando a volta da estação se- guinte, em que revivesce a sua actividade prolifica. As desinfecções praticadas durante esse periodo de somno tem a vantagem de atacar os productos mais recentes da prolificação, os fructos da ultima temporada, deixem que assim me exprima, áquelles que em si conservam vir- tualmente o gráo máximo da virulência, para fazel-a depois agir, quando terminado fôr o prazo da hyber- nação. Esperamos ver entre nós adoptada esta pratica, em favor da qual consegui adhesões no Conselho Superior de Saúde Publica. Em resumo, as medidas que, na nossa opinião, devem concorrer para attenuar os effeitos das epidemias de febre amarella no Rio de Janeiro, são as seguintes : a) Arrazamento das estalagens e cortiços, com a des- truição do material pelo fogo e desinfecção do solo. b) Melhorar o systema de latrinas nos estabeleci- mentos públicos e nas casas particulares; lavar e desin- fectar os esgotos. c) Fundar um cemitério exclusivamente destinado aos indivíduos que tenham succumbido de febre ama- rella, e cujas sepulturas se conservem perennemente fechadas. d) Isolar os enfermos em um hospital fluctuante, collocado á distancia conveniente do littoral, ou em hos- pitaes barracas, collocados fora da área populosa da cidade. e) Trancar os portos do Rio de Janeiro e de Santos á entrada de immigrantes europêos. /) Adoptar o systema das desinfecções post epidê- micas. — 88 - THERAPEUTICA Quando não se tinha ainda sinão idéas falsas ou errôneas sobre a pathogenia da febre amarella ; quando era esta doença considerada uma gastro-hepatite grave, conseqüente a desvios do regimen eao excesso do calor, a therapeutica empregada foi irracional, incendiaria desastrosa. Nas primeiras epidemias que victimarara a população do Rio de Janeiro, applicavam-se logo de principio os sudorificos, os revulsivos cutâneos, os vomitorios e a sangria! ! As estatisticas dessa época que digam qual foi o exito de semelhante systema de tratamento. Vieram depois os apologistas do sulphato de qui- nina, fundados na idéa preconcebida de que a febre ama- rella era de origem palustre. Pouco e pouco, porém, os factos encarregaram-se de provar que o sulphato de quinina era pelo menos uma droga inútil na febre amarella. (I) As effusões frias, preconisadas porabalisado clinico, cujo nome a classe medica ainda hoje venera, foram de efficacia tão duvidosa e incerta que ninguém mais se lembrou deasapplicar. Estes insuccessos, e a tremenda cifra do obituario fizeram retroceder os Ímpetos dessa therapeutica aventu- rosa, e como signal de desalento e desconfiança, vol- veram então os clínicos as suas vistas para o tratamento expectante. (1) Entre os práticos do Rio de Janeiro fizeram a apoie ^ia do qui- nino o Barão de Petropolis, e o Barão de Torres Homem. Combateu-a como inútil, ás vezes até nociva, o Barão do Lavradio. — 89 — A expectação opportunista, a qual não sei si conta ainda hoje adeptos fervorosos, a não ser nas fileiras dos sectários de Halmemann, teve a seu tempo preconisadores convictos mesmo entre os que professam a medicina hippocratica. No importante tratado da febre amarella de La Roche lemos as seguintes palavras, que vem a propósito transcrever aqui: « Contra esta formidável moléstia (a febre amarella) não deve ser o nosso empenho neutralisar o veneno diffun- dido no organismo, mas sim corrigir os seus effeitos na ■ economia. Seguindo attentamente o curso da moléstia, a nossa intervenção só far-se-ha necessária, quando fôr preciso prevenir desordens nos órgãos essenciaes á vida. Devemos principalmente confiar na acção da natu- reza; e dar tempo a que o veneno se elimine. Cumpre não tentar fazer aquillo que as forças da natureza podem por si melhor fazer ; e estejamos certos que n'estes casos é maior o perigo de uma intervenção enérgica do que o de uma acção comedida !» De tempos a tempos surgia, porém, um medica- mento novo, recommendado com grande enthusiasmo ; masque chegava apenas a gozar de reputação ephemera. Succedeu assim com a kairina, o salycilato de sódio, o glyco-borato de sódio, o permanganato de potássio, etc. Queria isso dizer que era uma utopia andar pro- curando medicamentos específicos para a febre amarella, quando era sabido que taes applicações obedeciam quasi sempre a suggestões empíricas ou a fallazes inducções theoricas. E' verdade que até então reinavam no espirito, ainda dos clínicos mais distinctos, as mais confusas e estranhas idéas sobre a evolução do processo mórbido da febre amarella. — 90 — Queriam alguns principalmente visar o elemento pyretico inconscientes de que atacavam assim a sombra em vez do corpo. Outros buscavam alliviar o figado suppondo que das desordens funccionarias desta víscera partia todo o processo mórbido. E assim em volta d'essas desencontradas hypotheses andava attonita a therapeu- tica vibrando golpes a esmo. Por ultimo assentaram os espíritos mais práticos em que a therapeutica da febre amarella devera ser toda ella symptomatica. A febre era muito alta, empregava-se os medicamentos que fazem baixar a temperatura; contra os vômitos as poções anti-emeticas, o gelo, os sinapismos, o vesicatorio no epigastro; contra as hemorrhagias os hemostaticos; contra a anuria os diureticos. A divergência versava somente quanto a escolha do agente hemostatico ou diuretico ; e sobre a precedência de uma medicação emeto-cathartica ou simplesmente cathartica. Cada um apresentava depois a sua estatística, que abonava este ou aquelle medicamento ; mas no fim forçoso era confessar que, apezar de tudo, a mortandade pela febre amarella tinha feição assustadora. O nosso distincto compatriota Dr. Domingos Freire, fundado em idéas theoricas, propoz, ha já alguns annos, a administração do salycilato de sódio pelo methodo hypodermico; mas infelizmente os resultados práticos não corresponderam á sua expectativa, pelo que foi completamente abandonado esse methodo de trata- mento. Outro tanto succedeu aos Srs. Sternberg e Gibier, com a administração pela bocca de uma solução de bichlo- rureto de mercúrio associado ao bicarbonato de sódio. Entretanto, essa therapeutica tinha uma base scientifica, pois, de um lado, ninguém ignora o poder microbicida do bichlorureto de mercúrio, por outro lado, acreditavam os — 91 — preconisadores desse methodo de tratamento que a infec- ção na febre amarella partia do tubo digestivo. Fundado na theoria que em outra parte d'este tra- balho expendemos sobre a infecção na febre amarella e que tem a seu favor a observação dos symptomas mórbidos e os resultados da observação microscópica vamos falar agora do tratamento, que, em nossa opinião, mais deve convir á febre amarella. E' para nós fora de toda a duvida, tornamos a dizer, que a infecção do organismo pelo germen da febre amarella tem o seu ponto de partida na cavidade gástrica. E' alli que se dá a primeira cultura do germen e se fabrica a toxina, cujos effeitos locaes principam logo a mani- festar-se, e cujos effeitos geraes só se produzem depois que ella ha sido absorvida e diffundida na corrente circulatória. O que é a febre, iniciando o processo mórbido, sinão um effeito da absorpção e diffusão da toxina ? A que se deve attribuir a irritabilidade gástrica, as repetidas con- tracções expulsivas do estômago, a sensibilidade do epi- gastro, a sensação interna de calor e de ardencia, alli localisada sinão aos effeitos tópicos da toxina? E qual poderá ser então a indicação racional a preencher sinão procurarmos extrahir da cavidade gástrica o germen e o seu veneno, fazendo assim estancar a fonte da infecção ? O emprego dos vomitivos bem longe está de con- seguir esse fim; e tem elles mais o inconveniente de agitar o doente, de deprimir-lhe as forças, de promover o abai- xamento da tensão nas artérias, concorrendo dest'arte para perturbar mais ainda a funcção depuradora dos rins. O processo racional que se impõe n'esse caso, como único capaz de satisfazer a indicação, é lavar o estômago, mediante a sonda gástrica ou syphão e desinfectal-o em seguida. — 92 — A antisepsia do estômago obedece aqui á mesma lei que a desinfecção intestinal na febre typhoide, a des- infecção vesical, na febre urinosa ; a desinfecção da cavi- dade uterina, na febre puerperal; a desinfecção da cavi- dade pleuritica, no empyema e nas collecções purulentas do thorax. Todas ellas visam o mesmo escopo—estancar a fonte da infecção. O essencial, porém, era saber de que agentes chi- micos deve utilisar-se o clinico para operar a desinfecção do estômago na febre amarella, pois, o processo technico da lavagem mediante o emprego da sonda ou do syphão, esse já tinha conquistado para si, desde muito tempo, a sancção da pratica. Só a experiência podia resolver essa questão pre- liminar. Tornava-se necessário para isso ensaiar o valor germicida de varias substancias chimicas, com relação á torula, que, conforme já ficou dito, representa a fôrma gástrica do fungus. Sobre assucar esterilisado foi semeada a torula e preparada uma série de culturas em cápsulas. Em cada uma dellas juntámos as seguintes substancias: bichlo- rureto de mercúrio a 1/1000,4 gram. ; nitrato de prata a 1/1000,4 gram. ; perchlorureto de ferro, 1 gramma de solução normal para 200 grammas d'agua; acido borico a 2/100; essência de eucalyptus 10 gottas. Examinando as culturas no fim de 48 horas notámos o seguinte ; com o bichlorureto de mercúrio a torula conti- nuou a multiplicar-se; idem com o acido borico ; idem com o nitrato de prata; com o perchlorureto de ferro a multiplicação não se deu ou foi assaz diminuta ; com a essência de eucalyptus todas ás fôrmas do germen haviam desapparecido, e só restavam no liquido assucarado granulações irregulares, immoveis. — 93 — Os exames feitos em dias subsequentes confirmaram plenamente esses resultados. Juntando agora á lamina da preparação, sob a obje- ctiva do microscópio, uma gotta da essência do eucaly- ptus, observámos ao cabo de alguns minutos a descolo- ração das cellulas amarellas das torulas. Ellas tornaram-se pallidas, de côr aperolada, mui transparentes, immoveis. Procedendo da mesma sorte com o perchlorureto de ferro, em vez do effeito descolorante, notámos que os bordos das cellulas tornavam-se mais escuros, tendendo a ennegrecer, assim também as granulações intra-cellulares. O aspecto geral das cellulas era emmurchecido, encarquilhado ; como de cellulas mortas. A torula resistio, portanto, ao bichlorureto de mer- cúrio, ao acido borico, ao nitrato de prata ; foi, porém, intensamente actuada pelo perchlorureto de ferro e pela essência de eucalyptus. Os effeitos promptamente desco- lorantes d'esta essência foram realmente notáveis ; e elles nos indicaram o emprego d'esta substancia como uma das mais convenientes para operar-se a desinfecção da cavi- dade gástrica na febre amarella. E' a acção fortemente oxydante daquella essência que se deve provavelmente attribuir tão extraordinários effeitos. Visto ser facto reconhecido e provado a excessiva acidez dos líquidos do estômago na febre amarella, ha toda a conveniência em lavar o estômago com uma solução fortemente alcalina (bicarbonato de sódio) addicionando- se-lhe, em cada lavagem, a essência de eucalyptus. Essas lavagens podem ser repetidas 3 a 4 vezes por dia, no de- curso da moléstia. Nos casos em que houver grandeimpres- sionabilidade da pharynge á intromissão da sonda, pôde ser esta aplacada mediante applicações tópicas da cocaina. O nosso illustre collega Dr. Jobim, a quem expuz as minhas vistas theoricas com relação ao tratamento que se — 94 — me afigurava mais racional na febre amarella, communi- cou-me alguns factos da sua clinica que apoiam inteira- mente as minhas idéas. Como medico da Sociedade de Be- neficência Franceza o Dr. Jobim, em nma das passada* epidemias, teve numerosas occasiões de prestar os seus serviços médicos a estrangeiros recemchegados, não accli- mados. Reconhecendo em alguns d'elles os symptomas que caracterisam o periodo inicial da febre amarella, procedeu sem demora a lavagem e desinfecção do estômago, á qual, elle vio succeder, ás vezes no fim de 3 horas, o abaixa- raento de mais de Io na temperatura, e no fim de três dias o completo restabelecimento do enfermo. Como não tivesse sido empregado nenhum outro tratamento activo, e como pelos symptomas observados, e ainda mais pela recente estadia dos individuos no foco, havia todo o fundamento para n'elles se diagnosticar febre amarella. pareceu con- cludente que a lavagem do estômago praticada a tempo fizera abortar aquella moléstia, logo no seu inicio. Outros individuos não acclimados, que obedientes aos conselhos do mesmo clinico, habituaram se a fazer em si próprios a lavagem do estômago, duas vezes por semana, esses atravessaram incólumes a estação epidêmica- Em - bora seja ainda limitado o numero d'estes factos, elles por si sós já constituem unia valiosa recominetidação do único methodo de tratamento que julgo racional na febre ama- rella e que consiste nas lavagens com desinfecção do estômago. E' evidente que o emprego tardio d'esse methodo, quando a infecção já estiver generalisada, e o figado e os rins invadidos, dará resultados menos seguros. Entre- tanto, mesmo assim, se deve esperar algum beneficio da lavagem com desinfecção do estômago, pois ella irá removendo pouco e pouco as quantidades de toxina que continuam a ser alli fabricadas. — 95 — Quando a infecção tem tocado o seu auge, o perigo está principalmente nos rins e no coração; nos rins, cuja funcção depuradora supprime-se por obstrucção mecânica dos tubuli; no coração, cuja energia contractil deprime-se muito pela acção da toxina. E' então que se estabelece a indicação da cafeína, cujos effeitos sobre o coração e sobre os rins são bem conhecidos. Cumpre, porém, ter sempre em vista, n'este caso, que as substancias medicamentosas muito activas, áquellas que em doses accumuladas no organismo podem chegar a produzir effeitos tóxicos, carecem ter sempre aberta uma porta de sahida ; e que, na febre amarella, uma vez fechado o rim á expurgaçãodos resíduos excrementicios, fica ipso facto impedido também o egresso das substan- cias medicamentosas. Pelas experiências anteriormente relatadas, vimos que o perchlorureto de ferro tem acção suspensiva sobre a multiplicação da torula, e que esta, ao contacto daquelle agente, apresenta o aspecto de cellulas mortas. D'aqui deduz-se uma indicação precisa e imperiosa do emprego do perchlorureto de ferro na febre amarella (1) A pratica jatem factos que sanccionam essa deducção. Em uma epidemia de três annos passados, fazendo appli- cação d'esse meio therapeutico em doentes de minha cli- nica, vi os bons effeitos que elle produzia, principalmente na suspensão dos vômitos. O Dr. C. Faget, de Nova Orleans, no seu relatório sobre a epidemia da febre amarella na Florida, em 1888, diz a tal respeito o seguinte : « Quatro casos de vomito preto, em Vicksburgo, aos quaes fiz administrar o perchlorureto de ferro no intento (1; A aciclez da solução de perchlorureto de ferro, que poderia ser motivo para não se a recommendar na febre amarella, flcaattenuada pelas bebidas alcalinas, de que deve concomitantementeusaro doente. — 96 — de sustar profusas hemorrhagias, únicos em que appliquei esse medicamento, todos os quatro restabeleceram-se. N'esta epidemia administrei em todos os casos 10 a 20 gottas da tintura de perchlorureto de ferro em água e glycerina, quatro vezes por dia, e não tive do que me arrepender, pois com essas doses pareceram suspender-se os vômitos. Dos dous enfermos que succumbiram, um era caso gravissimo, e estava apenas dous dias no hospital ; o outro teimou em não ingerir o medicamento, e só se pôde conseguir d'elle leval-o em quantidades diminutas » . Watsonno capitulo relativo á íebre amarella do seu grande livro — Principies and Practice ofPhysic expri- me-se d'esta sorte : « Tantos são os testemunhos que temos em favor da tintura de perchlorureto de ferro como medicamento apropriado ao primeiro periodo da febre amarella, que se torna necessário novamente ensaial-o ». A hyperthermia e as hemorrhagias, por si sós, não representam o papel defactores da morte na febre ama- rella. Ellas podem, porém, contribuir para augmentar a gravidade do prognostico, e exigir por isso, uma thera- peutica especial. A observação clinica tem mostrado que os casos de febre amarella, cuja assenção thermometrica vai até 40° ou 41° C, logo no principio da moléstia, são mui graves e terminam freqüentemente pela morte. Mas então a morte não sobrevêm por effeito directo da hyperthermia, mas por outra ordem de phenomenos intrínsecos, em que entram sempre por boa parte as perturbações dos rins e do coração. A febre inicial muito alta está em relação com a maior intensidade da infecção do sangue, conseqüente a aborpção e diffusão da toxina, fabricada no estômago. N'esse caso si se consegue fazer baixar a tempera- tura com o emprego dos medicamentos antithermicos, — 97 — nem por isso se terá removido a causa primordial da per- turbação, que é a presença e a diffusão do veneno no sangue. Para removel-o d'ahi ha dous meios: activar a secreção intestinal, ou augmentar a secreção do suor. O primeiro meio vale mais que o segundo, e tem menos inconvenientes. A secreção sudoral provocada peloaconito, pela jaborandy ou pelos excitantes diffusivos, leva tempo a produzir-se, e muitas vezes quando chega a dar-se é tão limitada e ephemera, que, com ella, não se obtém o effeito desejado. Accresce ainda que a superactividade das glândulas sudoriparas produz simplesmente uma expoliação aquosa, sem real eliminação de productos tóxicos. A pelle não é a porta natural de sahida dos venenos; ella deixa passar a água extrahida dos tecidos e do sangue ; mas deixa lá ficar as toxinas e as impuri- dades. Mais racional n'esses casos é activar a secreção intestinal mediante os purgativos drásticos. E como estes não podem chegar ao intestino sinão passando pelo estômago, convém preferir os drásticos, que ingeridos em doses pequenas, são todavia capazes de provocar abundantes descargas. As pilulas de óleo de croton, a coloquintida, ou o elaterio preenchem a indi- cação. Nãoé permittido hoje duvidar que as descargas opera- das pelo systema glandnlar do intestino extrahem do sangue e dos tecidos quantidades incomparavelmente maiores de substancias tóxicas do que áquellas que são eliminadas pela diaphorése cutânea. O intestino e os rins são como dous registros para limpar a economia das impuri- dades e substancias nocivas que a vida collectiva das cel- lulas está incessantemente dejectando na torrente cir- culatória. Quando, pois, succede, como na febre amarella, — 98 — estar o sangue carregado de principios tóxicos, sem sa- hida franca através dos rins, o que ha a fazer é abrir larga- mente o registro intestinal. Clinicos ha que prescrevem aos doentes de febre ama- rella, de modo empirico, bebidas e limonadas ácidas. Não conhecemos nada mais irracional, e cuja contraindicação seja mais formal. Basta lembrar que na febre amarella as matérias contidas no estômago são, desde o começo exces- sivamente ácidas, contribuindo naturalmente essa exces- siva acidez para accentuar as desordens gástricas. Como vamos agora revigorar essa acidez, juntando ao conteúdo do estômago bebidas ácidas ? O mesmo occorre dizer com relação ás bebidas assu- caradas eaos xaropes que temos visto freqüentemente nas fórmulas prescriptas por alguns médicos. Assucarar o estô- mago na febre amarella é nada mais, nada menos, que for- necer ao germen alli contido um dos seus melhores substra- tos de cultura. Com a presença do assucar a prolificação da torula deve activar-se, tornando mais intensa a infecção local, com todas as suas seqüências funestas. A medicação clássica pelos calomelanos e o óleo de ricino já tem um periodo longo de experiência para se poder julgar do seu real valor. Em nossa opinião ella não passa de umaraedicação banal. Os calomelanos não podem ter acção sobre o germen, nem provavelmente terão também sobre a toxina. Elles poderão excitar o figado a segregar um pouco mais de bilis ; mas esse augmento de secreção, aliás duvidoso na febre amarella, nenhuma influencia exercerá sobre os effeitos, nem sobre a marcha da in- fecção . O óleo de ricino, agindo mecanicamente, é um pur- gativo fraco, de acção demorada, e cujo effeito não pôde, ainda mesmo auxiliado pelos calomelanos, ser considerado eliminador. — 99 — Em resumo, o tratamento fundamental da febre ama- rella, o mais conforme com as noções scientificas que hoje possuímos acerca da origem e da natureza do processo infectuoso n'essa moléstia éo seguinte : Lavar e desinfectar o estômago logo no começo da moléstia; e continuar as lavagens em todoo decurso d^lla, usando n'esse mister de uma forte solução alcalina (bicar- bonato de sódio) á qual se addicione a essência de euca- lyptus na proporção de 2 %. Si no intervallo das lavagens persistirem os vômitos faça-se o doente ingerir de hora em hora uma colher das de sopa de uma solução de perchlorureto de ferro na pro- porção de uma gotta para cada 10 grammas d'agua. Bebi- das geladas, alcalinas, revulsivos cutâneos no epigastro coadjuvarão os effeitos da antisepsia gástrica, agindo contra a acidez e a hyperemia do estômago. Si fôr soccorrido o doente após 48 horas da moléstia as urinas escassas e carregadas de albumina, denun- ciando extensa diffusão de veneno no sangue, cumpre abrir largamente o registro intestinal para dar sahida ao veneno. O elaterio eo óleo de croton, em fôrma pilular, são agentes que preenchem bem essa indicação. Não priva isso de se praticar também a lavagem do estômago pelo processo supra-referido, porquanto a eliminação do ve- neno effectuada através do intestino, não obsta que conti- nuem a produzir-se quantidades d'elle no estômago, donde vão sahindo a diffundir-se novamente no sangue. Nas recentes epidemias de Santos o Dr. Oliveira Martins, applicou em grande numero de casos de febre amarella, no primeiro periodo da moléstia, o systema entero-clysico de Cantani, servindo-se de uma solução de acido borico associado á tintura de eucalyptus. Con- forme se vê nas estatísticas d'esse medico publicadas pelo Revue Medico-Chirurgicale du Brésil n. 3, os resultados — 100 — colhidos com esse systema foram animadores. A proporção dos doentes curados no Io periodo da moléstia foi de 92-96%. As injecções no intestino, diz elle, forçaram algumas vezes a válvula de Bauhin e alcançaram o estômago. Tem, porém, contra si esse systema a desvantagem de ser violento, precisando o liquido injectado percorrer todo o longo trajecto do grosso e fino intestino para entrar na cavidade gástrica. Accresce ainda que não foi bôa a escolha do acido borico como liquido de lavagem, pois não tem esse acido, mesmo na proporção de 2/100, o poder de impedir a multiplicação da torula. E' muito de presumir que os bons resultados obtidos pelo Dr. O. Martins, foram devidos á feliz associação do eucalyptus e á penetração do liquido na cavidade gástrica. Não se pôde duvidar que a febre amarella seja doença maligna. A despeito, porém, da sua natural malignidade, é minha convicção que muito menos assustadora seria a cifra da mortalidade se soccorridos fossem os enfermos com a máxima presteza. Regra geral o soccorro vera tardio ; pois em moléstia de tamanha gravidade e de evolução tão rápida, como é a febre amarella, 24 horas que se passem, sem a intervenção do medico, é um tempo precioso perdido ; com elle vão-se para não mais voltarem as opportunidades para certas medicações de effeito prompto e seguro, no inicio da moléstia. A's 24 horas perdidas pela não intervenção medica, accrescem outras tantas ou mais, também perdidas pelo emprego das medicações banaes. Desta sorte desassombradamente segue a moléstia o seu curso,as forças da economia luctando só, desamparadas, com a infecção, até o desfecho quantas vezes fatal para a vida do doente. — 101 — Taes condições, favoráveis á gravidade sequente do ataque da febre amarella, occorrem com mais freqüência, nas classes desfavorecidas da fortuna, entre os immigran- tes e não acclimados, que vão buscar abrigo nas estala- gens, donde são transportados aos hospitaes, já em estado gravissimo ou desesperador. As freqüentes visitas domi- ciliarias, em tempo de epidemia, por parte dos delegados da Repartição Sanitária teriam portanto, immensas van- tagens em favor dos atacados — porque lhes facilitariam recursos para um tratamento efficaz, immediato. Nestas paginas, traçadas em linguagem concisa e desataviada, como a natureza do assumpto exigia, hei concretisado o producto de um trabalho assiduo de três annos em construir sobre alicerces experimentaes, uma theoria que tem jus a ser considerada scientifica — da infecção na febre amarella. Como todas as theorias que não são inane espe- culação de um espirito phantasioso, nsas sim creações da razão applicada ao exame ponderado dos factos, ella tem nos contrafortes da constructura algumas pedras angula- res de boa solidez, que supportam com valentia o peso da abobada. Os factos valeram sempre mais do que as theorias ; n'elles sujeitos ao summo critério da razão, que quer illuminar-se á luz resplandescente da verdade, firmou-se a contextura deste livro. Alimento a esperança de que ulteriores perquisições, por outros realizadas com abstenção de systema e sem exclusivismo doutrinai, virão, pelo tempo adiante, con- firmar muitas das minhas asseverações, quer no terreno positivo dos factos, quer no campo mais amplo e mais livre das deducções theoricas. ANNOTAÇÕES Inclui nestas annotações factos e observações que, comquanto correlatos de vários assumptos desenvolvidos no corpo deste trabalho, não ficavam alli bem collocados. Alguns desses factos servem para vigorar opiniões emit- tidas alli, outros para levantar problemas, que aguardam do tempo e dos ulteriores progressos da sciencia a sua solução. IVotà A Em experiências relatadas neste trabalho mostrei que o germen productor da febre amarella, introduzido no estômago de cobaias, pôde atravessar o organismo destes animaes e eliminar-se com a urina, sem dar logar á infecção. Ao que se deduz de uma communicação de Rumpel (de Hamburgo) e de observações de Gaffky no Congresso ultimo de Wiesbaden o mesmo pôde dar-se com o germen do cholera. Lê-se no Rev. des Cours Scient. de 22 de Abril de 1893 p. 509: « On sait même, aujourd'hui, d'une maniére posi- tive, que des individus, dont les selles ne sont nullement diarrhéiques, peuvent propager aussi Ia maladie en raison des bacilles spécifiques, qui traversent leur organisme, alors même qu'ils n'entrainent aucune altération appré- ciable de leur santé. » — 104 — Para nós é evidente que nos períodos epidêmicos, quando o germen da febre amarella se acha profusamente espalhado no meio ambiente, todos quantos vivem nesse meio recebem o germen ; entretanto só áquelles que não gozam da immunidade são atacados da moléstia. Como se comporta o germen introduzido no estômago daquelles que têm immunidade ? Irá elle passando através o tubo gastro-intestinal como elemento inerte, que não pôde proliferar porque faltam, no meio em que se acha, condições favoráveis para a sua multiplicação ? Terá elle apenas restringida a sua proliferação e ao mesmo tempo abolida a sua virulência por incapacidade de alli se produzirem as toxinas? Neste caso, sem causar a infecção elle poderá transitar no sangue e sahir pelo rim, exacta- mente como nas cobaias que serviram ás nossas expe- riências . Este facto nos levaria a admittir como cousa factível a propagação do germen da febre amarella me- diante individuos sãos, procedentes do foco. Com referencia ainda a este ponto, citaremos as observações de Gaffky tiradas á mais recente epidemia do cholera na Europa, e que vêm summariadas no artigo da Revista a que acima nos reportamos: « ... Cest ce qui a montré encore, dans Ia dernière epidémie 1'observation de deux equipages, dont le prender transmit le cholera au second par 1'intermediaire de ma- télots qui n'avaient presente aucun symptôme morbide, et dont les selles contenaient pourtant des bacilles ca- ractéristiques ». Tudo ignoramos ainda até este momento com relação ás condições bio-chimicas que crêam a immunidade para a febre amarella. Entretanto me parece certo que a condição primordial da immunidade não reside em modificações chimicas do sangue, ao envez do que se chegou já a provar para infecções de outra espécie; porquanto na febre — 105 — amarella está demonstrado que o sangue não é o ha- bitat do germen. A chave do segredo deve residir nas secreções gás- tricas. E' possivel que estas não tenham composição chimica idêntica nos individuos immunes e naquelles que têm a receptividade. Eis ahi um assumpto digno de apurada investigação. Porque a residência prolongada em clima frio faz perder a immunidade áquelles que já a tinham adquirido é ainda um problema a resolver. Quem nos diz que as con- dições differentes do clima não influem sobre a composição das secreções gástricas, assim como influem sobre a riqueza oxy-hemoglobinica do sangue? IVota B Nos casos em que se dá a irrupção da febre amarella logo após uma perturbação accidental das funcções diges- tivas, de uma indigestão, de excessos alcoólicos, da ingestão de grande quantidade de fructos ácidos, ou de alimentos indigestos e irritantes—tudo leva a crer que o germen já preexistia na cavidade gástrica, e que as condições acima enumeradas foram apenas causa occasional da sua rápida multiplicação. A exposição ao sol por longo tempo deve, quando ella se torna a causa occasional do ataque, agir por modo se- melhante. As secreções gástricas se perturbam e esta perturbação ajudada por um excesso do calor accumulado no organismo dá o coup d'épéron ao germen preexistente no estômago. IVota C Com relação á excessiva acidez dos líquidos do estô- mago que buscamos tornar bem saliente no corpo deste — 106 - trabalho, transcrevemos aqui o que nesse particular diz o professor Griesinger: « Com a remissão febril coincidem eructações ácidas e vômitos de um liquido claro, abundante, muito acido, cuja expulsão provoca constricções violentas,dores no eso- phago e na garganta. ... Parece que neste momento uma secreção ácida abundante, de natureza particular, produz-se ao contacto da mucosa gástrica e nella exerce acção corrosiva. » (Op. cit. p. 114.) Não se tentou até hoje, que eu saiba, perscrutar a natureza desses ácidos. Por isso que aos ácidos normaes do estômago (chlorhydrico, lactico) não é permittido re- ferir taes phenomenos—tudo induz a crer que são, se- gundo pensa o autor precitado, ácidos de natureza parti- cular, provavelmente, productos de uma fermentação sui generis, operada no estômago sob o influxo do germen pathogenico. Não deixa de ser também digno de nota o facto citado pelo mesmo auctor de se encontrar algumas vezes depois da morte reacção ácida no sangue. Serão productos ácidos as toxinas da febre amarella ? Watson {Op. cit. p. 1134) diz: «o estômago é o ór- gão mais geralmente e mais intensamente lesado na febre amarella.« Também diz Blair {Op. cit.) : «no primeiro periodo do ataque as matérias vomitadas são alcalinas; no se- gundo, terceiro, quarto, quinto dia ellas tornam-se ácidas e ficam assim até o fim.» Consoante á observação do mesmo autor é do se- gundo dia que começa o doente a queixar-se de dor urente no epigastro, de sensação de peso, de constricção, a irritabilidade do estômago crescendo sempre dahi em diante. Estes phenomenos de irritação gástrica coincidem portanto com a formação abundante de ácidos no — 107 — estômago ; e as lesões profundas neste órgão encontradas depois da morte não podem visivelmente reconhecer outra causa sinão a acção corrosiva desses ácidos. IVota D A curva thermica da febre amarella nada offerece de especial nem de característico. Não pôde ella aferir-se a um typo ; é uma curva de ascensão rápida, quasi sem- pre muito elevada, com remissão no terceiro ou quarto dia, e oscillações subsequentes, em que o máximo não attinge nunca á elevação do primeiro dia. As temperaturas da manhã e da tarde mostrara ás vezes uma inversão na remissão hemerica, a qual appa- rece como phenomeno vespertino em vez de ser matutino. Não é raro encontrar-se temperaturas de 42 ° C. logo na primeira ascensão . Berquin , citado por Jaccoud (Traité de pathologie interne) notou uma elevação má- xima inicial de 42 °, 9 C. Os acmés secundários,na curva oscillante, que vem após a remissão, raramente vão acima de 40 ° C. Estas ascensões irregulares do segundo periodo exprimem provavelmente reacções secundarias do orga- nismo á entrada de novas quantidades do veneno no sangue. Percorrendo uma série grande de curvas sphygmo- thermicas que acompanham o trabalho de Gama Lobo, vê-se alli do modo mais evidente o decrescimento progres- sivo do pulso a partir do segundo dia, chegando no quarto e quinto dia a descer o numero de pulsações, em alguns casos, a 40 e 36 por minuto ! Logo do principio o pulso é depresso ; pois, ha cur- vas naquella série que assignalam no primeiro dia tempe- raturas de 40 ° C, coincidindo com 80 e 92 pulsações — 108 — por minuto. O mesmo facto assignalaram Thomas (de Nova Orleans) e o Dr. Faget. Minucioso estudo desses quadros sphygmo-thermicos mostrou-nos igualmente até á evidencia que nenhuma re- lação guardou a depressão do pulso com a anuria nem com a ictericia. Um phenomeno não parece ligado ao outro. Isto corrobora mais ainda a minha supposição de que o facto da lenteza do pulso é conseqüência de uma acção electiva do veneno amarillico sobre o coração. Que esta acção depressiva do coração não é o que se deve mais temer no curso da febre amarella demonstram também áquelles quadros, porquanto conseguiram resta- belecer-se doentes que tiveram o pulso a 40 e a 36 sem anuria. IVota E Um facto sobre o qual deve de ter-se já fixado a attenção dos observadores com referencia á natureza da lesão renal na febre amarella—é que não ha exemplo de indivíduo atacado da febre amarella, com albuminuria e suppressão da urina, apresentar depois de curado as per- turbações de uma nephrite parenchymatosa de marcha chronica. Como se conceberia que lesões tão profundas, que chegaram ao ponto de supprimir a funcção do rim, não deixem, terminado o processo mórbido, resíduos que pos- sam tornar-se mais tarde o ponto de partida de uma das fôrmas da moléstia de Bright? E' que a lesão renal na febre amarella reduz-se na maioria dos casos á obstrucção tubular com alterações do epithelio. Vencida a obstrucção, o epithelio regenera-se promptamente, e o rira volta ao exercício normal da sua funcção. — 109 — Também uma simples descamação epithelial (nephrite descamativa) não bastaria sem a obstrucção tubular para explicar a gravidade dos phenomenos ligados ao ataque do rim na febre amarella ; porquanto é sabido que em muitas outras moléstias infectuosas dá-se a nephrite des- camativa sem que desse facto resulte a máxima gravi- dade do caso. XTota F Mélier, citado no livro de Griesinger, diz, no seu relatório sobre a epidemia de Saint Nazaire haver obser- vado que os navios trazendo carregamento de assucar são os que mais vezes importaram a febre amarella na Europa, o que eqüivale dizer—que o assucar é excellente vehiculo para o germen da febre amarella, conforme pre- sume o mesmo autor. Comquanto se possa de outra sorte interpretar o facto alludido, dizendo que os navios carregados de assu- car que chegam á Europa procedem quasi sempre do Mar das Antilhas ; todavia não é para despresar-se inteira- mente essa correlação de factos, tão de accôrdo com as minhas experiências de laboratório, precedentemente re- latadas neste livro. A vehiculação do germen mediante objectos inani- mados, malas de roupa, fardos de lã, de fazendas, etc. —tem sido comprovada por numerosos factos de obser- vação no nosso paiz. Comprehende-se como taes objectos procedentes de um foco epidêmico, podem comsigo trans- portar uma pequena parte da atmosphera do foco onde existe o germen. Os navios velhos, cujo cavername começa a soffrer esse trabalho de decomposição da madeira, que ha sido designado pelo nome de podridão secca,conservam e retém o germen por longo tempo. A matéria humica que se - 110 - depõe e se accuinula nas partes já corroídas da madeira, á medida que a podridão vai ganhando em extensão e pro- fundidade, impregnada de substancias salinas, constitua um terreno bem preparado para a cultura em grande escala do germen. O Anna Maria que transportou a febre ama- rella a Saint Nazaire estava precisamente nessas con- dições. Xota O Na parte relativa á prophylaxia deixei vêr quão pequena confiança merecia a solução de sublimado a Yiooo como desinfectante na febre amarella. Agora tenho para reforçar essa desconfiança as conclusões de um in- teressante trabalho dos Srs. Chamberland e Fernbach publicadas na Revue Scientifique, 6 Maio, 1893. Con- cluíram esses eméritos experimentalistas que a água de Javelle do commercio, a solução de chlorureto de cal a Yio- a água oxygenada do commercio são mais activas que a solução ácida do sublimado V1000. Estes agentes chimicos, empregados na temperatura de 40° - 50° C sobre germen previamente humidecido destróe-os mui rapidamente. Em poucos minutos os esporos do carbún- culo, do Aspergillus niger, a levedura da cerveja e o micróbio da febre typhoide são destruídos ao contacto desses desinfectantes. Convém, portanto, para escapar de muitos inconvenientes próprios ao sublimado, quando elle é empregado para desinfectar os aposentos e os navios, voltar de novo ao emprego do chlorureto de cal, em solu- ção a Yio aquecida a 50° C. Nota H Ficou exarado n'este trabalho de modo assaz inci- sivo o effeito germicida da essência do eucalyptus sobre — 111 — a fôrma torular do fungus da febre amarella. Este effeito de incontestável importância para a therapeutica dessa moléstia vem accrescentar mais um facto á collecção de outros análogos, consignados em um valioso trabalho de Chamberland publicado nos Annaes Pasteur, 1887, pag. 153-164, sobre as propriedades antisepticas das es- sências . Ahi prova-se o grande poder antiseptico da es- sência da canella de Ceylão, ao mesmo tempo que se confirma o poder antiseptico quasi nullo, do acido borico e do salycilato de sódio. Xota I O papel dominante do esporo do fungus da febre amarella como agente da infecção parece decorrer ainda de alguns factos de observação, que tiveram por objecto outras espécies de fungus communs, não pathogenicos. Assim notou Wasserzug (Annaes Pasteur, 1887, pag. 525) que a producção da invertina no assucar, em que eram cultivadas varias espécies de fungus, só se dava depois da esporulação do fungus. A secreção da diastase, que produz a invertina, parece, portanto, uma funcção peculiar ao esporo, com exclusão dos outros órgãos do fungus. A mesma funcção diastasogenica do esporo pas- saria ás cellulas toruladas, nas transformações operadas no fungus pela mudança do meio de cultura. EXPLICAÇÃO DAS ESTAMPAS ESTAMPA I Fig. 1. Fungus febris fiava? no estado de desenvolvimento com- pleto. Cultura em pão. regado com água do mar. a) Longos rosários de conidias amarellas, presas a uma expansão terminal de um tubo myeelial. Verick. 3/8. b) Começo de formação das conidias. c) Esporos isolados do tubo myeelial, apresentando formas ob- longas e quadrangulares. Fig. 2. Torulas amarellas procedentes da cultura do fungus no assucar. Formas variadas, grandezas differentes. Algumas nucleadas : outras não. Verick. 8/ 8. Fig. 3. Torulas no sangue, extrahido do dedo de um doente, a; glóbulos vermelhos do sangue, b grandes cellulas redondas, hyalinas ; c torulas congregadas. ESTAMPA II Fig. 1. Torulas em um vaso do rim. Preparação colorida pelo azul methyl. Zeiss occ. 12 obj. D D. Fig. 2. Longas cadeias de torulas redondas dentro de um cana- liculo do rim. Zeiss occ. 12 obj. D D. Fig. 3. Matéria grumosa do vomito preto. Preparação feita sem matéria corante. Zeiss occ 12, obj. apochr. 0,95—4,0.inm a grandes cellulas redondas amarellas; b; torulas formando cadeias: c massas amorphas de pigmento amarello, provenientes da destruição das grandes cellulas redondas. Ausência de glóbulos vermelhos do sangue. Mota. Os desenhos gravados nestas estampas foram alguns feitos pelo Sr. Emil. Gõldi, antigo sub-director de uma das secções do Museu Nacional; outros pelo auctor do presente trabalho e o seu assis- tente o Sr. Arthur Moncorvo. Rogo-lhes queiram por esse obséquio acceitar os meus cordiaes agradecimentos. P1.I Fig-l 4&t >Ht? Fig.2 Fig.3 â Comp.Typ. d» Brazil .Invalidas 93. Rit P1.II. Ficj.l rv- ^j Fig.3 / ,##■# ;J G f ' C •u vJ V_ •L* d Comp.Typ.doBra7.Un. OLl £j Q^jlKjL^ O FEBRE AMARELLA TRABALHO LIDO PERANTE A ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA E APRESENTADO AO Congresso Medico Pan-Americano de Washington PELO Çf. João fjfopiisia de Lacerda _______ Presidente da Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro ; Direetor do Laboratório de Biologia ; Vice-Presidente do Congresso medico Pan Americano em Washington ; e Presidente honorário da secçâo de Physiologia do mesmo Congresso; membro da Sociedade de Geographia e da Sociedade de Sciencias médicas de Lisboa: membro da Sociedade de Hygiene de Pariz ; da Sociedade de Anthropologia, Ethnologia e Pre-historiã de Berlim ; da Sociedade de Anthropologia de Paris ; da Sociedade de Anthropologia, Etimologia e Psychologia de Florença ; da Sociedade Medica Argentina ; professor honorário da Faculdade de Medicina de Santiago do Chile ; Premiado com a medalha de bronze na Exposição anthropologica de 1878 em Paris. Ia L LJ L^;\*.'*- i 1900 RIO DE TANEIHÕT / iUnn panhia Typographica do iCrazil ANTKJA TYPOGIUPHIA LAE.YIMEKT 93—Rua dos Inválidos—93 6877 s£)