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Correndo fama de serem taes águas efficazes contra esta enfermidade, o governo brazileiro mandou con- vidar, por intermédio do Marquez de Barbacena e do presidente de Goyaz, o Dr. Faivre para proceder á analyse das virtuosas águas, naturalmente no intuito de affirmar sua acçâo curativa, caso o exame revelasse a presença de agentes chimicos sobre cujas proprie- dades e actividade se fundasse a esperançosa me- dicação. - 6 — Em desempenho da importante incumbência este clinico transportou-se, com effeito, ao sitio onde brotam as fontes thermaes de Caldas Novas, descobertas em 1777 por Martinho Coelho, encontrando grande numero de morfeticos alli reunidos — para mais de cem — e attrahidos pela preconisada efficacia de taes águas. A presença de tão crescido numero de doentes sugge- riu-lhe, como natural, a idéa de estudar também a morféa, e para isso tratou de interrogal-os e acom- panhar os effeitos do tratamento a que estavam sub- mettidos, levando o zelo ao extremo de praticar 14 autópsias em cadáveres de morfeticos. Terminados estes estudos, o Dr. Faivre remetteu ao ministro do império aquellas memórias, ajunlando-lhes uma carta em que propunha uma serie de medidas hygienicas, conducentes a impedir o desenvolvimento da morféa. (1) E' de notar que, não tendo a academia imperial de medicina sido bastante solicita em estudar as questões levantadas pelo Dr. Faivre nos dous trabalhos, o mi- nistro instasse pela decisão, o que deu logar a que na sessão de 3 de Abril de 1845 fosse nomeado relator das mesmas memórias o Dr. De-Simoni, a quem se re- commendou brevidade na elaboração do respectivo parecer. O laborioso, direi mesmo — o infatigavel acadêmico— não se fez esperar, e na sessão de 10 de Abril, ao cabo de sete dias, apresentou o luminoso trabalho em que accentuou com habilidade os pontos mais importantes das duas memórias, encaminhando para elles a at- tenção de seus collegas. (i) Apezar do muitas diligencias não me foi possivel encontrar semelhante do- cumento na secretaria do império, nem no archivo publico, onde o Sr conso- llioiro Lopes de Leão e ou o procurámos. Em Agosto do mesmo anno travou-se na academia a discussão sobre o mesmo parecer; os acadêmicos vo- taram afinal algumas modificações de pouco valor para as conclusões de tão interessante trabalho, e de accôrdo com o vencido redigiram o officio que o Dr. Paula Cândido, de saudosa memória, endereçou, na qualidade de vice-presidente da academia, ao então ministro do império, conselheiro Manoel Alves Branco. Desta importante peça transcreverei somente os dous últimos considerandos, o sétimo e o oitavo, por serem os que se prendem ao assumpto, os quaes são conce- bidos nestes termos: « 7.° Sendo muito interessante a solução das questões relativas ao progresso e augmento da morféa entre os habitantes deste Império, convirá muito que o governo, para o bem da humanidade e do paiz, promova esta solução por uma boa estatistica, formada com documentos authenticos e exactos do modo indicado pelo Dr. Faivre na sua carta dirigida a S. Ex. o ministro daquella época; 8.° Tendo um grande numero de casos de morféa uma origem here- ditária, deve-se muito receiar que a prolificaçSo dos morfeticos augmente o numero destes infelizes e encha o Estado de uma população enferma: seria portanto conveniente pôr, a respeito delles, em execução a lei do seqüestro e apartamento não só entre os cônjuges, senão também para com quaesquer affectados da mo- léstia, para vedar que individuos taes procreem uma prole morfetica, e perpetuem no paiz uma geração doente. A academia julga que esta medida, indepen- dentemente de quaesquer estudos e illustrações ulte- riores acerca da morféa, poderá desde já produzir bens reaes para o paiz. » Foram estas as idéas capitães da academia, emit- tidas em satisfação dos reiterados desejos do governo brazileiro: verificar o numero exacto dos morfeticos existentes entre nós, e quanto antes, independente- mente de quaesquer outros estudos, tratar de impedir a propagação da enfermidade, sob o fundamento que mais penetra ou deve penetrar no animo dos governos patrióticos — o bem da humanidade unido ao bem do paiz. Qual das duas providencias, estatistica e isolamento, mais útil: com a primeira se conseguiria determinar os domínios e a freqüência da moléstia, e portanto julgar da gravidade das circum stancias ; ecom a se- gunda lograr-se-hia circumscrevel-a, embaraçar-lhe a carreira, de modo que a enfermidade ou antes « taes indivíduos não procreassem uma prole morfetica e não perpetuassem no Brazil uma geração doente. » São passados 37 annos, é triste dizel-o, depois que a academia de medicina propoz ao governo medidas cuja « utilidade e urgência » affirmou, e desde então até o present3 nada tem feito o governo imperial! Durante todo este tempo, — estes 37 annos —, se tem permittido com o mais lamentável descuido da sorte das famílias e da saúde publica que a morféa se haja reproduzido e cobrado proporções, hoje impos- síveis de calcular! Nem mais uma palavra proferiu-se: em torno da moléstia se fez um silencio completo; nem a mais ru- dimentar tentativa para esbarrar-lhe os passos, quer interroguemos os relatórios ulteriores dos ministros do império, quer os dos presidentes da junta de hy- giene publica ! Qual a razão de semelhante procedimento ? Será porque já não se vê reproduzido, como no tempo do Conde de Bobadella, o espectaculo de grande numero de morfeticos accumulados no campo de S. Christovão e expostos a todas as injurias, a todas as privações, a todas as misérias ? - 9 - Ou porque na capital da Bahia não se contam agora dous mil leprosos como então succedeu? Mas nada disto indica que o numero de affectados haja diminuído, e somente que os morfeticos de hoje são como os de todos os tempos, os quaes, obedecendo á voz do instincto, evitam e fogem dos centros popu- losos onde se armam prisões a titulo de asylos para os recolherem. Não ha vantagens, nem considerações, a que o homem, feliz ou infeliz, sacrifique a sua liberdade. O morfetico, apezar da maldição das sociedades egois- ticas, é homem, e como tal prefere a vida errante e desabrigada, a injuria das intempéries, o escondrijo donde sáe por momentos, mordido pela fome, para estender mãos supplices aos transeuntes, ao pretenso asylo que para si, que não é criminoso, importa uma pena, uma prisão perpetua. Livre, o morfetico encontra nos próprios episódios de sua vida e sobretudo nas scenas da natureza os meios de desviar a attenção de sobre sua enfermi- dade. No asylo — o aspecto do edifício, a qualidade do serviço, a physionomia dos companheiros, as queixas, as dores, os próprios cuidados, e até o próprio leito, tudo concorrerá para manter no seu espirito e des- pertar a cada instante a lembrança de uma enfermi- dade que é para elle a peior de todas as misérias e a maior de todas as desgraças. Soffrendo o martyrio de Tantalo, sem distracções, sem occupação alguma, tudo se resume para o mor- fetico no quadro lugubre do interior do asylo, desse asylo que, de mais a mais, preferem collocar nas ci- dades mais populosas. Si os Hebreus, julgados impuros, obedeciam á ordem de seqüestro emanada de Moysés, e cumpriam com M. 2 - 10 - religiosidade, era principalmente porque não compri- mia todas as suas faculdades. Uma vez intimados, retiravam-se para fora dos muros da cidade, onde apenas os retinha a prisão do dever. O homem, porém, si obedece ao dever, cede á força. Com effeito, para que na idade média o seqüestro desse os resultados de que temos noticia pela historia, foi preciso que o praticassem com o maior rigor, tornando-o extensivo a todos os leprosos. Não havia fugir, os morfeticos rendiam-se á força. A sociedade exigia e impunha o sacrifício a todo transe. Não se attendia ao homem, tinha-se unicamente em consideração a sociedade. A mesma pena para os morfeticos e os criminosos. Os morfeticos eram considerados delinqüentes de sua enfermidade, e culpados porque eram infelizes. Sua enfermidade era cruelmente punida. A natureza impunha-lhes uma pena, e a sociedade martyrio ainda maior. ,;.,■.■,. E até, para poupar trabalhos e evitar maiores despezas, chegaram a lançar mão da fogueira como recurso summario contra as delongas no interior das leproserias! « Verdadeiros centros immundos de uma população agglomerada, as leproserias tornaram-se, mais pela propagação hereditária do que pelo contagio, immensos focos de infecção, aos quaes aquella época desapiedada apabou oppondo a fogueira, seu ultimo argumento em hygiene, como já o era em politica e em theologia.» (*) (i) M. Brochard, art. bygiéne publique. Dictioiuiaii-e General Politiaue Maurice Bloock — 1880. * — 11 - Nos tempos modernos, é felicidade confessal-o, já se pensa mui diversamente. Os direitos cie um vão sendo os de todos, e o homem somente é privado de alguns delles ou por actos realmente criminosos, ou, de conformidade com os preceitos de uma hygiene ra- zoável e humanitária, sendo acommettido de moléstia transmissível a outro ser humano. Em qualquer dos casos toma-se em consideração o interesse social e o individual também. Si, pois, o direito social não é único, nem é tudo; si não tem o poder lato, discricionário, exclusivo, abso- luto, daquelles tempos, visto ser actualmente a conglo- bação dos direitos naturaes de todos de per si, cumpre entretanto reconhecer que o próprio direito individual está sujeito a restricções naturaes. Assim, a lei natural que concede ao homem a prerc- gativa de reproduzir a espécie, de modo algum e em nenhum caso confere-lhe a faculdade de transmittir a infelicidade, e sobretudo a infelicidade irreparável. Aquella attribuição está, pois subordinada aos deve- rés da paternidade, conducentes a dotar a prole de ele- mentos de resistência ás influencias que a podem dam- nificar, assegurando-lhe as primicias de um porvir feliz. Desconhecer esta restricção seria realizar na pessoa de seus descendentes o mais grave e perigoso attentado contra a própria natureza. Pois bem, de accôrdo com os sentimentos naturaes, com a sorte das famílias e com as aspirações da sociedade, qual será o melhor alvitre, o mais seguro e acertado, em relação aos morfeticos ? Abandonal-os, deixal-os em plena paz? Cruzar os braços em nome dessa liberdade, quaesquer que sejam as conseqüências? Não, não vou tão longe, porque o caso importaria uma concessão prejudicial aos direitos da communhão. - 12 — Nesta emergência uma das mais preciosas funcções do poder publico será sempre a de conciliar as leis naturaes com as sociaes, harmonisar os direitos da individualidade com os de todos. Todo o ser humano deve a seu semelhante uma parte de seus serviços e até de sacrificios, e para cumprimento desta contribuição, sagrado penhor da conectividade, tanto vale praticar o bem como evitar que succeda o mal. Demonstrado, como está, que a morféa se transmitte quasi fatalmente pela herança, corre ao infeliz que delia soffrer a obrigação de evitar o mal da transmissão hereditária a outro ser humano, emquanto a sciencia se considerar impotente contra aquella enfermidade. Como, porém, contar com a segurança de que este dever será fielmente cumprido, si o homem nem sempre resiste á tentação da fraqueza, e pelo contrario é muitas vezes ou quasi sempre por ella arrastado ? Sendo, entretanto, indispensável garantir o interesse social, não descubro nem conheço outro meio além do isolamento dos morfeticos, executado e mantido de modo que «não exceda do fim que se tem em mira obter ». Estabeleçam-se, pois, as prescripções a que terão de sujeitar-se esses enfermos, comtanto que sejam formu- ladas em sentido mais persuasivo do que rigoroso, e acima de tudo modeladas pelas leis naturaes. Ars, imitatio naturce. Deste modo supprime-se o doente, mas fica o homem, que será apenas privado de uma de suas funcções; a sociedade ficará preservada, garantida, e a natureza, quanto é possível, attendida, respeitada. Em outra parte, ao occupar-me do «seqüestro», conto desenvolver este meu pensamento. II DISTRIBUIÇÃO DA MORFÉA PELAS PROVÍNCIAS DO BRAZIL Quando os autores europeus occupam-se em fixar os limites geographicos da lepra, não deixam de con- templar o Brazil como um dos paizes em que mais abunda esta moléstia; ou mesmo, indo além, o apre- sentam como o paiz em que é ella mais freqüente. Por esse lado a reputação não é certamente das mais lisongeiras; mas, como nós os brazileiros temos a vir- tude da resignação ao conceito bom ou máo, justo ou injusto, razoável ou exaggerado, que de nós se faça no estrangeiro, não nos damos por apercebidos de mais esta circumstancia,— a da máxima freqüência da lepra, apontada como um dos signaes caracteristicos da exis- tência de nosso paiz. Não me darei ao trabalho de reproduzir tudo quanto se ha dito a semelhante respeito, e apenas transcre- verei um trecho do artigo lèpre publicado no Diccio- nario de Jaccoud e assignado pelos Drs. Hardy e La- barraque. Disseram estes Senhores: «Esta moléstia acha-se mais espalhada no Brazil do que em qualquer outro paiz, segundo a opinião de Sigaud, Rendu, Lallemant, Dun- das, Tschudi e outros. Reina principalmente nas pro- — 14 - vincias pantanosas de Mato Grosso, Minas Geraes e S. Paulo. E' tão freqüente nesses logares que, nos li- mites daprovincia cie Minas Geraes eS. Paulo, suppõe Tschudi, não existe uma familia que não seja affectada da lepra. Apezar disto, accrescentam os autores, só ha três leproserias no Brazil, nos arredores das três cidades —Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.» Nomeados os signatários do artigo, que são escri- ptores de reconhecida nomeada, e indicada a obra, que é um diccionario de medicina, falta-me accrescentar a data da publicação: 1875, ha sete annos apenas! Comquanto eu não tenha lido todos os autores no- meados naquelle artigo, posso todavia declarar que ha inexactidão, e não é somente uma, no que a alguns del- lesfoi attribuido: Rendu e Sigaud, por exemplo, não affirmaram ser no Brazil que mais abunda a lepra. Demais, os alludidos médicos não percorreram o paiz, estiveram apenas em algumas capitães de províncias, ou foram a logares determinados onde lhes constou que havia crescido numero de doentes, como succede nos limites da provincia de S. Paulo com a de Minas Geraes, e com taes elementos formaram seujuizo. Foram portanto observadores incompletos; julgaram do todo pela parte, pela peior parte, e desta inferiram para aquelle. Deixando de parte as inexactidões que o citado pe- ríodo contém, conviria averiguar si com effeito a lepra ê tão freqüente no Brazil, ou si somos o povo mais perseguido por ella. Como, porém, julgar da questão si nos faltam os elementos indispensáveis ? Si o governo brazileiro se tivesse occupado deste assumpto, digno dos governos patrióticos, talvez po- dessemos attenuar o rigor do conceito que é hoje cor- rente em relação á freqüência da lepra neste paiz. - 15 - Que temos a lepra, é incontestável; que temol-a em todas as nossas províncias, é igualmente certo; mas cumpre notar que, si em algumas é mais ou menos freqüente, em outras, sendo estas em maior numero, é moléstia rara. A província de S. Paulo, sobretudo na sua linha de contacto com a de Minas Geraes, é, julgo eu por ouvir dizer, a que maior numero de doentes contém. Que numero será este ? Será tão avultado como affirmam ? 0 terror que a moléstia infunde e a vida ambulatória dos leprosos não concorrerão para que este numero se afigure maior do que realmente é ? A isso só poderia responder uma estatística exacta, que serviria de mais a mais, sendo repetida de tem- pos em tempos, para indicar as tendências de au- gmento ou diminuição da enfermidade. Mediante este processo, applicado a todas as provín- cias, chegar-se-hia ao conhecimento exacto de nossa situação. Si o numero de enfermos fosse realmente tão grande como dizem, estaria o poder publico informado da gravidade das circumstancias e habilitado para pro- ceder com a resolução e energia que lhe dictasse o patriotismo. E si assim não fosse, além da delucidação do assumpto, menos apprehensivo trataria o mesmo poder de levantar barreiras ao incremento da enfer- midade, recorrendo a providencias correlatas. Ora, para ser exacto, devo accrescentar que, antes do já referido acto solemne da academia imperial de medicina, o conselheiro Domingos Ribeiro dos Gui- marães Peixoto (Barão de Iguarassú), em um relatório apresentado em 1833 ao conselheiro Bernardo Pereira de Vasconcellos, exprimiu-se nestes termos: «V. Ex. - 16 - sabe o estrago que em sua própria província faz esta terrível enfermidade sobre famílias inteiras, e só em um hospital methodicamente preparado é que se po- derá dizer á humanidade contagiada : Não, tu não tens cura. Iguaes, si não mais aterradoras são as noticias oraes que nos trazem os paulistas, os maranhenses, os piauhyanos, e quasi todos os habitantes provin- cianos, sem de nenhuma das províncias termos, nem podermos haver, um calculo estatístico, pelo menos approximado da latitude deste grassante flagello. » Entretanto, como nada se fez depois desta opinião do Barão de Iguarassú, aliás provocada pelo governo imperial; como não se attendeu aos conselhos da academia imperial de medicina, também pedidos pelo governo; e como ignora-se a marcha da morféa entre nós e as proporções assumidas, é-nos forçoso aceitar o que disserem ou quizerem dizer no estrangeiro sobre a freqüência da lepra no Brazil; emquanto não nos compenetrarmos da necessidade de não aguardarmos unicamente da fatalidade a solução de tão importante assumpto. Pouco se sabe, com effeito, da distribuição da lepra pelas províncias do Brazil, e por isso nos poucos tra- balhos publicados, theses de doutorandos e memórias, sobre esta enfermidade, divergem as opiniões: ao passo que na de alguns autores Minas Geraes e Bahia são as províncias que maior numero de morfeticos con- têm, na de outros são MinaseS. Paulo, ou o Maranhão eo Pará; e finalmente cabe á província de S. Paulo a maior partilha, sendo esta a opinião mais seguida. A' falta de dados officiaes que esclareçam o as- sumpto, únicos capazes de solverem duvidas, é real- mente licito a qualquer dizer o que conhece a seme- lhante respeito, pouco que seja. — 17 — E' o meu caso : tendo de entregar-me a indagações sobre varias questões que se prendem ao estudo da moléstia, dirigi-me para todas as províncias a collegas dos quaes solicitei informações, bem como a pessoas, cuja amizade tenho a fortuna de cultivar e que então administravam províncias, e finalmente a magis- trados meus amigos. Nesta correspondência inqueri quanto pude sobre a freqüência da morféa, e sobre esta questão cclhi o que era possível de pessoas, ás quaes, embora so- brasse vontade, faltavam todavia elementos para po- derem ministrar uma estatística precisa e rigorosa. Antes de apresentar o resultado de minhas inda- gações, seja-me permittido manifestar a todas estas pessoas, cujos nomes declinarei opportunamente, os mais sinceros votos de reconhecimento. E' uma simples noticia, e não uma estatística exacta, que vou dar da presença da morféa em cada uma de nossas províncias, como melhor se julgará pela seguinte exposição: amazonas.— No Diccionario topógraphico, his- tórico, descriptivo da comarca do Alto Amazonas, pu- blicado em 1852 pelo capitão-tenente da armada Lourenço da Silva Araújo Amazonas, encontra-se á pagina 15 a seguinte declaração: « Em Manáos não ha moléstia dominante; as mesmas que ahi chegam, degeneram, inclusive a bexiga e o venereo. A morféa, que desola alguns logares do Baixo Amazonas (não porque seja endêmica), não chega ao Alto. De igual, ou approximada salubridade, gozam as povoacões plantadas em elevações, como Tupinambarana, Ita- coatiára, etc.» 0 ex-presidente do Amazonas e actual da província da Parahyba, Dr. Satyro de Oliveira Dias, teve a bon- dade de me dar conhecimento de uma carta, de 10 de M 3 - 18 - Maio ultimo, que lhe fora dirigida pelo Dr. Aprigio de Menezes, clinico em Manáos, na qual este collega, entre outras cousas referentes á lepra, dizia: «Esta moléstia existe no Amazonas, mas manifesta-se isola- damente ; com certeza ella não se entretem endemi- camente em nenhum logar da província : a observação o assegura.» Occupando-se do modo como vivem os poucos leprosos, diz o Dr. Aprigio de Menezes : « Vivem em suas casas; não ha hospitaes aos quaes sejam re- colhidos. Três ou quatro doentes que «ha annos» existiam nesta cidade foram recolhidos a uma pe- quena casa, situada fora da mesma cidade, e alli se lhes dava a alím. ntação indispensável á vida, correndo a despeza por conta dos cofres provinciaes. Destes resta apenas um. » Pará.— « Essa moléstia, me informa o Sr. Dr. Francisco da Silva Castro, antigo e muito conhe- cido clinico do Pará, é mais freqüente actualmente do que ha cincoenta annos passados. Durante este lapso de tempo tem ella sempre e consideravelmente augmentado. Semelhante tendência para o augmento da elephantiasis dos Gregos é devida ao abandono absoluto das medidas sanitárias por parte do governo, á não observância dos preceitos de hygiene publica, e a outras causas de que fallei em minhas cartas an- teriores (4). Como sóe acontecer por toda parte, são desgraçadamente os maiores povoados os mais fla- gellados pela lepra. Assim pois, esta capital (Belém), as cidades de Santarém, Óbidos, Cametá, Vigia, etc, são os pontos da vasta bacia do maior rio do mundo, onde se encontra mais crescido numero de morfeticos. Pelos sítios, roças, logarejos e freguezias do interior (l) Opportunamente, quando occupar-mo da causa ou das causas da lepra, tomarei em considoração as opiniões do illustrado clinico. — 19 - ou sertão, semelhante doençaé muito rara. No mato, nas malocas, ou nas selvas, é totalmente desconhe- cida, como já tive occasião de lhe assegurar. » Si bem que não seja conhecido o numero exacto de leprosos no Pará, todavia, á vista das informações mi- nistradas pelo Sr. Dr. Castro que alli clinica ha mais de 40 annos, não o podemos considerar pequeno. Com effeito passa essa província por ser uma das mais flagelladas pela lepra; e como de dia em dia augmenta o numero de enfermos, pergunta-se : qual será no futuro o estado das populações das men- cionadas cidades? Maranhão.- Devo ao ex-presidente desta provín- cia, o Sr. Dr. Cincinnato Pinto da Silva, as informações que, ao tempo de sua presidência, colheu de médicos alli residentes. Eil-as: dizem os Drs. Francisco Joaquim Ferreira Nina e Affonso Saulnier de Pierrelevée que a « morféa é endêmica na província, e que o maior numero de casos se observa no Mearim e Vianna, affectando de prefe- rencia aos pretos ». O Dr. Santos Jacintho declara que « em quasi todos os pontos da província apparecem in- divíduos affectados dessa moléstia; porém é maior o numero delles em alguns logares humidos ou panta- nosos, em que predomina a alimentação de peixe e de carne de porco, por exemplo as margens do Pindaré, do Mearim edo Itapicurú». O Dr. Manoel Bernardino expendeuoseujuizo nos seguintes termos : «Logares ha em que é crescido o numero de indivíduos atacados da morféa pois temos noticia que no Rosário, Vianna e Mearim encontram-se com freqüência nas ruas indi- víduos morfeticos, o que está de perfeito accôrdo com as informações fornecidas pelos doentes do hospital dos Lázaros desta província, onde a maior parte é.re- presentada por indivíduos destas localidades. Dos - 20 - 33 enfermos existentes nas enfermarias, cinco são da vílla do Rosário, quatro da cidade de Vianna e seis do Mearim. Demonstram-nos os factos que é nas cidades collocadas nas margens dos rios, cabeceiras de igua- rapés, nos logares pantanosos, especialmente nas pessoas cuja vida é cercada de privações e misérias, que o mal sóe de preferencia apresentar-se.» Em presença destas opiniões, e attenta a sua concor- dância, parece fora de duvida que a morféa é freqüente em algumas localidades do Maranhão. Qual será, porém, o gráo da freqüência ? Será cres- cido o numero de leprosos? Será progressivo? Não será possível circumscrever a moléstia, visto mostrar tendência para domiciliar-se na província ? mauJxy. — A lepra é rara nesta província. «No sul da província, me scientifica o Sr. Visconde de Pa- ranaguá, quasi não se conhece essa enfermidade.» Igual informação obtive do pharmaceutico o Sr. Eu- gênio Marques de Hollanda, muito conhecedor da província, o qual declara ser alli muito rara a morféa. Possa a administração provincial isolar esses poucos casos, evitando por esta fôrma a reproducção de se- melhante mal ! Ceara.—O Sr. conselheiro André Augusto de Padua Fleury, ex-presidente desta província, fez-me a fineza de communicar-me as opiniões dos Srs. Dr. Rufino Antunes de Alencar, Dr. João da Rocha Moreira (inspector de saúde publica), Dr. Firmino José Doria (delegado do cirurgião do exercito), Dr. José Nogueira Borges da Fonseca e Dr. Meton da Franca Alencar. Todos estes collegas consideram a morféa moléstia rara nessa província. O Dr. Rufino Antunes de Alencar diz : « Tendo estado por duas vezes no Aracaty, onde não me demorei pouco tempo, não vi alli caso algum desta moléstia, nem — 21 - tão pouco na cidade de Icó, onde residi de 1859 até 1862, quando me mudei para esta capital.» O mesmo clinico accrescenta em seguida : « Quer na costa, quer no interior, é rara a dita enfermidade.» ODr. João da Rocha Moreira declara: «Que são raros os casos dessa moléstia entre nós, os quaes, apparecendo isoladamente tanto nesta capital como nos differentes pontos da província, não permittem estudos sobre sua etiologia. » O Dr. Firmino José Doria nada pôde dizer sobre a freqüência da lepra na província, visto datar sua resi- dência apenas de nove mezes; não obstante informa que tem conhecimento da existência da morféa no Ceará desde 1862, em que percorreu o interior dessa pro- víncia, assim como sobre a existência de alguns casos na capital. Quanto á influencia da alimentarão no desenvolvi- mento desta enfermidade, o Dr. Firmino emitte seu juízo, do qual me occuparei quando tratar da etiologia da lepra. O Dr. José Nogueira Borges da Fonseca considera a lepra rara tanto nas costas do mar, como no interior. Diz que na capital ha 12 morfeticos bem conhecidos e accrescenta que no Aracaty, Sobral, Icó, etc. a mo- léstia é igualmente rara. Este collega também esten- de-se sobre a influencia da alimentação, o que não me cabe incluir aqui. O Dr. Meton da Franca Alencar informa que em 10 annos de clinica na capital só tem tido conhecimento de 10 casos. Proseguindo, diz mais que, tendo-se achado a serviço clinico em vários pontos, Aracaty, Canindé, Imperatriz, Pecon, S. Gonçalo, Aquiraz, Cas- cavel, Maranguape, Pacatuba, Guayuba, umas sobre o litoral e outras centraes, nunca foi consultado,por morfetico. — 22 - Rio Gí-raxisis Tostes, quo, apezar de não ter de mim conhecimento alsum* foi solicito em satisfizer, por carta de 4 de Julho de 18si, o meu podido de in- formações sobre a lepra, offorecondo-so com a melhor vontade, — são suas ex- pressões, — para ministrar-me quaesquer outros esclarecimentos do que ou viesse st Ctirccor» - 33 — mero de morfeticos no município neutro; o que se deve attribuir não propriamente ao desenvolvimento da lepra aqui, mas principalmente á concurrencia de doentes procedentes de outros pontos, os quaes vinham para cá na esperanç i de obter com mais facilidade os meios de subsistência. Os leprosos gozam aqui de liberdade, e não é raro vel-os nas ruas, ou mesmo transitando em bonds, visto não encontrarem por parte dos habitantes sensível re- pugnância . E' certo que tanto não permitte a lei, mas por tole- rância não se tem constrangido os leprosos á menor reclusão. No regulamento de 17 de Fevereiro de 1766, baixado pelo Vice-Rei Conde da Cunha, ficou estabelecido: ca- pitulo 4o : « Neste hospital, o dos Lázaros, se hão de recolher indefectivelmente todas as pessoas de qual- quer estado ou condição, que estiverem contaminadas do mal de S. Lázaro, violentando-se ainda os que duvi- darem fazel-o voluntariamente, porque assim o pede a utilidade publica, que deve preferir á particular. » Nas providencias, porém, de 29 de Março de 1815, que nesta parte não foram alteradas pela lei de 15 de Setembro de 1827, estabelece-se (no capitulo 6o) outra disposição, a saber: «sem que sejam constrangidos a residirem no hospital aquelles lázaros, que tiverem meios de se tratarem em suas casas com as devidas cautelas, ficando nesta parte alterado o capitulo 5o (aliás 4o do regulamento). » Sendo esta a disposição legal, em cujo exame não entrarei, que nos devia reger, visto ser a ultima que tivemos, outra tem sido todavia a pratica geralmente seguida, conforme declarei. Rio de Janeiro. — Pelo conhecimento que tenho de vários pontos desta provincia, e pelo que hei colhido M 5 - 34 - de vários clínicos, a morféa não é freqüente nella, ao contrario do que se tem affirmado em algumas publi- cações scientificas sobre esta enfermidade. Não me consta que haja localidade alguma em que a lepra se tenha desenvolvido com certa insistência. O Sr. Dr. Aydano, que exerce dignamente ha annos na provincia as funcções de inspector geral do ensino e que a tem percorrido varias vezes em todas as direc- ções, me declarou não haver encontrado em parte alguma, nem mesmo esmolando pelas estradas, como sóe acontecer, pessoa que desse visos de semelhante soffrimento. Do mesmo Dr. Aydano tenho mais os seguintes apon- tamentos: « A morféa é moléstia quasi desconhecida no município de Paraty, não obstante a sua proximi- dade da provincia de S. Paulo, d'onde é separada ao sul e ao oeste pela serra de Paraty. « Na cidade deste nome existe um morfetico cujo soffrimento data de 30 annos. « Em toda a parte plana e accidentada do município não registram a clinica nem as informações particula- res movimento apreciável desta moléstia, segundo fui informado por dous médicos e por pessoas autorizadas do termo. « Ha uma circumstancia singular relativamente ao caso: ao passo que na parte da serra de Paraty, que verte para o município deste nome, não ha casos de morféa, na vertente opposta, que faz parte já de S. Paulo, são communs os casos desta moléstia. « Na parte baixa do município a alimentação consiste em peixe fresco ou salgado e farinha de mandioca: nos logares distantes da costa e na serra, em feijão, fari- nha, peixe secco em pequena escala, e carne secca em menor ainda. Ha famílias inteiras que se alimentam quasi exclusivamente de farinha secca. — 35 — « No município de Angra dos Reis são também raris- simos os casos de morféa. « O distincto medico, Dr. Santos Bastos, em sua cli- nica de 8 annos aqui, registrou (') apenas um caso, e me declarou que nunca lhe chegou noticia de outro qualquer no município. « A alimentação da classe menos favorecida de recur- sos é a mesma de Paraty. » Nos limites do Rio de Janeiro com a provincia de Minas é que se tem notado maior numero de leprosos procedentes quasi todos da segunda, os quaes passam livremente de uma a outra parte. Que na provincia do Rio se têm dado casos de mor- phéa, e que ainda os ha, não contesto, porquanto eu mesmo tenho noticias de alguns; o que não affirmo, como outros, é que a lepra seja ahi freq íente. E' possível que melhor do que eu estejam informados os que pensam diversamente; não me é licito duvidar disso ; digo entretanto o que me consta e o que sei. Minas Geraes. - Geralmente se acredita no paiz e fora delie, que a provincia de Minas é uma das mais flagelladas pela lepra. Na sua « Historia do Brazil » expressa-se Southey a este respeito do modo seguinte: « Em todas as partes desta capitania (referindo-se a Minas) era mui o vulgar a lepra. » Nas suas « Reflexões sobre a morphéa » dizoDr. Paula Cândido: « Um faclo incontestável se observa em grande parte das provincias de Minas e S. Paulo em certos logares em que abundam os morfeti- cos, etc. » i1) A communicacão do Dr. Aydano me foi dirigida do Angra de Reis em Io do Outubro do 1881. .... — 36 - No relatório apresentado á academia imperial de medicina do Rio de Janeiro, sobre a these do Dr. Coni (de Buenos Ayres), intitulada Contribucion ai estudo de Ia lepra anestheska, o Dr. Moncorvo de Figueiredo dizápag. 8: «Em nosso paiz, particularmente nas provincias de S. Paulo e Minas Geraes, a lepra é uma moléstia que se manifesta com uma freqüência de ha muito demonstrada. Esta freqüência, accrescenta o Dr. Moncorvo, não nos parece tão exaggerada como faz crer Tschudi » Esta tradição e o conhecimento de algumas opiniões concordes fizeram-me acreditar que na realidade a morféa era freqüente em Minas Geraes, e por isso não foi pequena a minha sorpres:i quando recebi commu- nicações inteiramente contrarias, firmadas por médicos naturaes da provincia onde residem e exercem a clinica ha alguns annos, e contam numerosas relações. Um delles, o Dr. Saturnino Simplicio deSalles Veiga, cujas habilitações conheço de perto, exprime-se nestes termos: « O desenvolvimento da morféa em Minas tem sido referido publica e particularmente, de modo exaggerado, parecendo que se quer fazer crer que é a morféa uma moléstia peculiar da provincia. Tal não se dá, e o numero de doentes que se encontra nas po- voacões mineiras não é em sua totalidade e talvez que nem em sua maioria de procedência da provincia- Em razão do próprio mal que soffrem, e das naturaes excitacões do espirito de que são victimas, os míseros morfeticos vivem errantes, não demorando-se em geral em logar algum e esmolando em uma zona de muitas dezenas de léguas. Tem-se dito que ha em Minas uma zona em que se nota maior desenvolvi- mento da morféa. Para julgar da veracidade de se- melhante assercão procurei informações e nenhuma veiu confirmal-a. » - 37 - Não é menos explicito o Dr. Anastácio Simphronio de Abreu, merecidamente apreciado na provincia, onde ha mais de trinta annos clinica ; diz elle: « Sem exaggeracão não se dirá que o numero de mor- feticos seja crescido na população mineira, não passa de uma hyperbole dos que isso affirmam. Assim ex- pressanclo-me não pretendo contestar a existência desse mal na provincia, e somente fazer ver que é ell-? raro maximè entre os seus habitantes do norte ; ô para o sul, nas suas raias com a provincia de S. Paulo, que se vê maior numero de atacados da hedionda mo- léstia. « E', pois, esta a parte mais affectada da provincia ; em qualquer outro ponto da mesma apparece algum caso, :aramente. » Depois de algumas considerações sobre outras ques- tões, termina o Dr. Simphronio de Abreu dizendo: « Do que escrevi se conclue: Io que o numero de morfe- ticos na provincia de Minas Geraes não é o que dizem ser, e attendendo-se a que é moléstia de que não se trata, pôde mesmo ser considerado limitadíssimo; 2o que o ponto em que maior numero de doentes se conta é o limitrophe da provincia de Minas com a de S. Paulo, etc. » A estas duas opiniões tenho de reunir outras, emit- tidas por clínicos que residem em vários pontos de Minas Geraes, e das quaes tive conhecimento por in- termédio do Sr. senador Meira quando occupou a pre- sidência da provincia. Ao transmittir-me essas opiniões, o Sr. senador Meira dirigiu-me, com ocavalheirismo que o distingue, uma carta em que dizia o seguinte: « Em Minas não ha estudo feito sobre esta enfermidade (a morféa), não ha trabalho algum, nem official nem extra-official. Apezar da. accusação que se tem lançado á provincia — 38 - no tocante á existência da lepra, não se tem tratado de estudar e averiguar a verdade. » E' exactamente o caso de se dizer como Montaigne: Vhabitude en ôte Vétrangeté. Na deficiência de dados officiaes o então presidente de Minas, empenhado como mostrou-se em satisfazer o meu pedido de informações, dirigiu-se a vários clí- nicos da provincia, de cuja opinião sem demora me dei sciencia. Das respostas dos collegas pude colher os seguintes esclarecimentos : O Dr. Cornetio Pereira de Magalhães (clinico em Baependy) declara : « que no sul de Minas, zona em que resido, constituem as margem do rio Sapucahy o domínio mais considerável da morféa Assegura-me uma pessoa de minha família, originaria d'alli, que são muitos os casos que constantemente se dão em habitantes daquellas margens». Diz o Dr. Pacifico Mascarenhas (clinico em Curvello): « Ao norte desta provincia rarissimos são os lázaros, e nesta comarca, cuja população é de cerca de 35 mil habitantes, só tenho noticia de 10, e estes mesmos descendentes de morfeticos procedentes de outros pontos da provincia. » Esta opinião corrobora o que ficou dito á pag. 31, quando occupei-me com o interior da provincia da Bahia. Quanto á opinião do Dr. Pacifico Mascarenhas em relação ao sul da provincia, onde, seja dito, elle admitte a freqüência da morféa, eu a farei conhecida, afim de evitar repetições inúteis, quando houver de tratar da alimentação — encarada como causa da morféa. Tenho ainda a registrar a opinião do Dr. Pedro Sanches (clinico em Caldas). Com quanto tenha elle - 39 — sido reservado em emittir juizo sobre a freqüência da morféa, são comtudo dignas de nota suas ponderações. São estas as palavras do collega : « Não tendo nós, eu e meus collegas Dr. André e Dr. Bretas, feito estu- dos especiaes na área da nossa clinica sobre a morféa, nada poderemos dizer sobre semelhante mal em re- lação ás diversas partes desta provincia, vasta e extensa como ella é. Si os médicos de Minas tivessem dirigido a sua observação para este lado, communi- cando annualmente os resultados de sua pratica a especialistas da corte ou de qualquer ponto da pro- vincia, certo que em grande parte teriam concorrido para a elucidação de muitos pontos ainda obscuros sobre o mal de S. Lázaro, pois esta doença abunda nesta parte do Império, como é voz corrente. » Tem razão o Dr. Pedro Sanches, e possam suas palavras despertar a attenção dos clinicos tanto de Minas Geraes cômodas demais provincias, empenhan- do-os em um assumpto digno do mais sério estudo. Da mesma resposta do Dr. Pedro Sanches tomarei em consideração a parte concernente á alimentação quando chegar á etiologia da lepra. G-oyaz.—São escassas as informações que pude colher desta provincia. O Dr. Francisco da Costa Ramos (actualmente chefe de policia de Minas Geraes), o qual exerceu por algum tempo as funcções de juiz de direito da comarca de Santa Cruz, informa : «Sobre a morféa em Goyaz pouco posso adiantar. Vi alguns morfeticos na comarca de Santa Cruz e no meu trajecto á capital. » « Apparecem mais casos do que aqui (o Dr. Ramos escreveu de Sergipe), porém muito menos do que em S. Paulo e Minas Geraes. » Do Sr. Francisco Joaquim Marques, residente em Pouso Alto, recebi a seguinte resposta: «Sem poder - 40 - mencionar ponto algum em que a morféa seja en- dêmica ou se manifeste com certa freqüência, cabe-me comtudo informar que essa moléstia é encontrada por todo o sul da provincia, talvez na proporção de 1 para 100. No norte, principalmente em Santa Maria de Taguatinga, segundo me informam, esta cifra é ainda maior. » São estes os únicos esclarecimentos que pude obter a respeito da provincia de Goyaz. Mato Grosso.- Achando-se na presidência desta provincia o Sr. Barão de Maracajú, meu distincto comprovinciano, não hesitei cm dirigir-me a S. Ex. pedindo informações sobre a freqüência da morféa alli. Conforme eu previra, o digno presidente não me fez esperar pela sua resposta, na qual me dizia que a morféa não ê freqüente em Matto Grosso, e que o hospital de Lázaros, estabelecido na capital, recebe annualmente pequeno numero de doentes. Como esta resposta creasse no meu espirito o desejo de colher novas informações, sendo uma dellas refe- rente aos hábitos alimentares dos habitantes da pro- vincia, empreguei nesse sentido novas diligencias, não mais perante o Sr. Barão de Maracajú que já havia deixado a administração da provincia, mas junto a outra pessoa que prometteu-me dar as referidas infor- mações, promessa que infelizmente ainda não realizou. Como, porém, o essencial é saber si a morféa é fre- qüente em Mato Grosso, fica a questão resolvida negativamente. RioGrande do Sul. — Diz-se geralmente que esta provincia é uma das menos perseguidas pela morféa, o que foi confirmado pelas declarações do Dr. Pio Ângelo da Silva (Rio Grande), Dr. Abreu (Ja- guarâo), Dr. Seraphim Luiz de Abreu (Cangussú), e Dr. José Xavier da Costa (villa da Luz de Cacim- — 41 — binhas), obtidas por intermédio do Dr. Joaquim José Gomes, juiz de direito da comarca de Piratiny. O Dr. Pio, clinico no Rio Grande, declarou : « Nos logares em que tenho observado a moréa e que se limitam a esta cidade e suas cercanias não é ella en- dêmica ; bem como a tenho observado em casos iso- lados e affectando também a mais cie um membro da mesma familia. » 0 Dr. José Abreu affirma que: « a lepra é rara e que não conta em sua clinica caso algum ». O Dr. Seraphim Luiz de Abreu diz: « Durante 12 annos que vivo entregue á clinica não observei um só caso de morféa na cidade de Jaguarão, villa do Arroio Grande, Herval, e hoje nesta villa de Cangussú, e nem me consta que meus collegas das localidades citadas tenham observado caso algum. A'vista do exposto sou de opinião que a morféa nesta provincia ô mo- léstia que raramente terá sido observada por um ou outro pratico de outras localidades. » O Dr. José Xavier da Costa, ultimo dos médicos nomeados, o mais antigo — presumo eu, e que tem residido em vários pontos da provincia, confirmando a existência da morféa alli em casos isolados, declara, porém, que não teve occasião de observal-a em habi- tantes das praias, que não sabe a que causa ou a que causas a possa attribuir, e que os poucos doentes de que tem conhecimento eram nascidos de pais indí- genas e europeus. Em uma nota final o mesmo collega accrescenta estas palavras : « Pôde ser que o numero destes doentes seja maior do que se suppõe'geralmente, visto que elles não só não procuram medicar-se com os profissionaes, como occultam-se ás vistas de pessoas estranhas. » São estas as informações que colhi, das quaes infe- re-se que na provincia do Rio Grande a lepra é rara. M. 6 — 42 - Seria do maior interesse scientifico estudar detida- mente aquelles casos raros, tendo-se em attenção que alli não pôde haver suspeita de intervenção cli- matologia nem alimentar, nem de qualquer outra causa a que se tem attribuido a lepra. Trata-se de casos isolados, autochtones, cie cujo exame minucioso talvez resultasse algum esclareci- mento sobre a etiologia da lepra, o que mais difficil- mente se conseguirá fazendo-se este estudo em con- dições oppostas, isto é, em logares onde abunda a molest;a, e onde o juizo enreda-se em condições hereditárias, climatericas e outras. Acaso teria a lepra sido levada deS. Paulo para o Rio Grande, pela estrada que ha longos annos serve de communicaçâo entre as duas provincias ? Será, pois, de origem hereditária ? Santa Catharina. — Foram-me ministradas pelos Srs. Drs. Henrique Schutel e Duarte Schutel as informações, que passo a expor, sobre a presença da lepra nesta provincia. O primeiro exerceu alli a clinica cerca de 40 annos, e o segundo é clinico residente na capital. O Sr. Dr. Henrique Schutel (pai) informa que a morphéa apparecia (') na capital, sobretudo do lado de leste. Também era encontrada em outras localidades, como fossem o Ribeirão, Cubatão, Tijucas, Itajahy, S. Francisco, Laguna e Tubarão, sendo alli o peixe a base da alimentação, á qual era altribuida geralmente a moléstia. Notou, accrescenta elle, que nos últimos 10 annos de sua residência na provincia a morphéa se manteve estacionaria, si é que não diminuia, o que attribuiu ao (!) 0 Dr. Henrique Schutel deixou a provincia ha 10 annos, vindo Gxar sua residência neita corte, onde mo prestou verbalmente aquellas informações. - 43 - cuidado no regimen alimentar. Devido, com effeito, aos conselhos médicos em sentido contrario ao re- gimen composto de carne de porco, peixe, e da farinha de milho, o povo compenetrou-se de que tal alimen- tação lhe era realmente perniciosa, e tratou de a modificar. Posteriormente ao que me foi affirmado por este pratico, recebi cio Dr. Duarte Schutel a seguinte in- formação (i): « Poucos casos de morféa tenho obser- vado na minha clinica, sendo quasi todos em doentes da capital. Nos municípios ao norte da capital, na zona abaixo da serra (litoral), — S. Miguel, Tijucas, Porto Bello, Itajahy, Penha, Barra Velha, Paraty, S. Francisco; e mais para o centro, — Joinville, S. Bento, Brusque, Alto Tijucas, Alto Biguassú, só me consta a existência de um ca,-o era Brusque, na pessoa de um italiano colono que já trouxe o mal da Europa. « Nos municípios ao sul, — S. José, Enseada, Garo- paba, Laguni, Tubarão e Araranguá — abaixo da serra, só tenho noticia e conhecimento de dous doentes que mediq iei, dos quaes um é morto já e ooutro vivo, mostrani!o-se a enfermidade estacionada. « Acima da serra, —Lages, Coritibanos, Campos Novos eS. Joaquim da Cosia da Serra, não tenho co- nhecimento de caso algum. « Na capital tenho observado os seguintes casos (segue-se a relação de algumas famílias nas quaes a morféa se havia domiciliado). » A' vista desta informação do Dr. Duarte Schutel, entendi que era meu dever leval-a ao conhecimento do Dr. Henrique Schutel, o qual confirmou ter obser- vado em sua longa clinica maior numero de doentes, (•) Tem a data do Io de Fovoreiro do corrente anno. - 44 - conforme me havia exposto, attribuindo a raridade actualmente da morféa a sensível declinio na pro- vincia, onde elle mesmo observara tendência para isto. Em seu juizo, observa o Dr. Henrique Schutel, seme- lhante resultado pôde ser explicado pelas modificações introduzidas no regimen alimentar. Do que fica dito, o resultado é que a morféa é hoje rara na provincia de Santa Catharina. r»a:raiiá. — Aos esforços do ex-chefe de policia desta provincia, o Dr. Cassiano Cândido Tavares Bastos, devo interessantes informações, quer no to- cante á freqüência da morféa na mesma provincia, quer a outras questões concernentes á mesma enfermidade. Em carta de 31 de Maio do anno passado escrevia o Dr. Cassiano : « Tenho percorrido os relatórios de todos os presidentes que administraram esta provin- cia, e dos mesmos relatórios fiz os extractos que incluso remetto. » Destes documentos o único que cliz respeito á lepra ô o extraindo cio relatório do presidente Zacarias de Góes e Vasconcellos. O relatório traz a data de lSr>5. Diz o presidente Zacarias : « A morféa, que na pro- vincia de S. Paulo, de que esta foi outr'ora uma co- marca, faz tantos estragos, não deixa de contar também aqui, si bem que em p quena escala, algumas vi- ctimas. Urna vi eu, na freguezia cia Palmeira, que parecia soffrer o mal em gráo demasiadamente adian- tado, e alimentava-se do que lhe fornecia a caridade particular, tendo por habitação uma pequena barraca á margem de um córrego : mostrava ter menos de 15 annos e diziam-na oriunda de outro logar. Infor- mam-me que para o lado de Tibagy a moléstia atacava alguns individuos e famílias. » Em um curioso manuscripto que me offereceu o Dr. Cassiano C. Tavares Bastos, producção cio Sr. A. - 45 — Ricardo Lustosa de Andrade, que neste e em outros trabalhos mostra grande pendor para o estudo de as- sumptos pátrios, encontrei alguns esclarecimentos sobre a freqüência da morféa na provincia do Pa- raná. Depois de extensas considerações sobre as con- dições climatologicas e hygienicas dessa provincia ('), de mencionar uma affecção darthro-escrophulosa, ob- servada pelo Dr. Joaquim Ignacio Silveira da Motta, que por muitos annos residiu no interior da provincia, onde exerceu, como nesta capital, a clinica, e de al- ludir ás relações que sempre existiram entre o Paraná e S. Paulo, ob.-erva o Sr. Ricardo ce Andrade : « Es- tando a morféa muito esp dhada em diversas locali- dades de S. Paulo, a ponto de contaminar famílias in eiras, poder-se-hia evitar a introducção desse mal, sendo tão freqüentes as relações entre as duas provin- cias ? E' tradicional que nas antigas famílias cority- banas jamais se deu cas;> algum de lepra entre os seus membros. » Passando a indicar os logares onde a morféa se tem manifestado, diz o mesmo senhor : « No districto da capital o numero de morfeticos é limitadíssimo. Na demarcação urbana, no Rocio, com uma população de 18 a 20 mil almas, só conheço uma senhora mor- fetica. (M 0 Sr. P.icardo de Andrade csteude-se sobre o incremento quo no Paraná tèin tido as boubas o a syphilis. « í-eria longo, diz elle, enumerar os estragos dessa afiuccão (as boubas) do parcoria com a syplu is, o o grave damuo que causa á saúde publica. A mocidadi' paga o seu tiibuto por mais que so queira livrar da redo i|ue envolvo to.las as classes sociaes. » Já ou tii.ha conhecimento da fie uencia das boubas no Paraná, o quo encon- trei coi.íi. Jiiado por aqueilo sonhor, bom como pelo Dr. Walfrodo de ■Figueiredo. juiz de direito do Cmpo Largo, cm uma eommunicação quo teve a bondade do diiigir-mo. • iJíeeüvanienlo as boubas têm tomado naquclla provincia proporções espan- tosas : ó. enfermidade alli gene alisada, o que, transmissível pela herança, além do contagiosa, ameaça o futu u da popul ç.io do Paraná. Devido a isto c laiiibem aos vicios do regimon alimentar, os paianaonsos nao gozam de saude c robustez proporcionaes á acçãu tônica do clima sob que vivom. - 46 — « No bairro de Botiatuvinha houve diversos membros atacados dessa doença, que, segundo nos consta, não se tem reproduzido. «Em Campo Largo, a cinco léguas da capital, existem alguns affectados. « Nesta provincia é a fregueziade Tibagy onde se en- contra maior numero de morfeticos. Os habitantes dessa localidade são dados á criação de porcos, objecto de exportação para as provincias vizinhas. » O Dr. Walfredo de Figueiredo transmittiu-me o se- guinte resultado de suas pesquizas : « Póde-se compufar em 40 a 50 o numero de mor- feticos em toda a provincia, segundo me afflrmam pessoas de critério e antigas, sendo para notar-se que os casos têm augmentado progressivamente; dizem- me que antigamente o numero de affectados desse mal era mais limitado e circumscripto. E' exactamente em minha comarca que maior numero de casos se têm dado (na sede e sobretudo em dous pontos), onde actualmente ha uma família inteira atacada. Entretanto em diversos pontos da provincia, desde o litoral, ha doentes em numero limitado que vai augmentando de Corityba até Palmeira, existindo também, o que af- fírmo, morfeticos em Ponta Grossa, Castro e Lapa. » De outros apontamentos que me foram igualmente dirigidos pelo Dr. Cassiano Tavares Bastos, colligi o seguinte: « Nenhuma pessoa tem até o presente pro- curado colligir documentos que sirvam de base ao estudo da morféa nesta provincia, bem como pôr-lhe paradeiro, a ser possível. « No anno de 1816, mais ou menos, appareceram no Paraná alguns morfeticos vindos do norte a titulo de esmolarem. Tamanho era o horror que essa enfermi- dade causava aos poucos e disseminados habitantes dos Campos Geraes do Paraná, então comarca da pro- - 47 - vincia de S. Paulo, que á approximação de um morfe- tico se fechavam as portas das casas. A esmola era piamente entregue por algum corajosa que afastava-se o mais possível afim de evitar o hálito supposto em- pestado do pedinte. « Sem embargo a colheita era abundante, o que ani- mava a volta cLstes doentes em épocas apropriadas, acabando por se fixarem alguns no município de Castro, no logar onde está assentada a villa de Tibagy, extremo norte da população paranaense naquelles tempos. Ou- tros doentes, atravessando os Campos Geraes, se des- tinavam a passar para o Rio Grande; mas chegados que fossem ao Rio Negro, como tivessem diante cie si uma mata de 18 léguas toda deserta e cheia de perigos para os transeuntes, deixavam-se ahi ficar á espera de occasião favorável á realização de seu intento, acar bando alguns por se fixarem no logar. « Devido a isto é que a lepra se tem desenvolvido mais em taes paragens da provincia, pois, quanto ao resto, se pôde dizer que é moléstia rara. « O clima do Paraná parece refractario ao desenvolvi- mento da lepra, o que é confirmado pelo que passo a expor, certamente digno de nota. A provincia é atra- vessada de norte a sul por uma estrada que vem de S. Paulo e vai ao Rio Grande, sendo esta a única via por onde naquelles tempos primitivos da provincia vieram os seus primeiros habitantes. A' margem desta estrada estão collocadas as cidades de Castro, Ponta Grossa, Lapa e as villas de Palmeira e Rio Negro, logares esses, onde existe a morféa mais ou menos desenvol- vida, e a este está Corytiba que, reunida a outras po- voacões até ás praias do mar, contém metade da popu- lação da provincia, e onde não ha morféa. A oeste estão as comarcas de Guarapuava e Palmas, com uma popu- lação já crescida, eonde não se encontra essa moléstia. - 48 — Cumpre notar que os habitantes de Palmas e de Gua- rapuava, em virtude das exigências de sua industria, communicam-se freqüentemente com os Campos Ge- raes, e vão á capital e á marinha, bem como os habi- tantes do valle de Corytiba. « Pois bem, apezar destas communicações, a morféa não tem attingido a estes logares, limitando-se á pla- nura dos Campos Geraes no trajecto dessa estrada que vai do norte ao sul, e especialmente nos dous extremos. « E' o viajor mysterioso que caminha do norte ao sul sem pender nem para a direita nem para a esquerda, espalhando em sua passagem o germen que ha de com- prometter as gerações que se succed m. « Terminando o que ha a se dizer a este respeito, cumpre ainda mencionar um desses tristes quadros, em que se representa a miséria humana. « A opulenta villa do Rio Negro foi outr'ora uma co- lônia allemã, fundada pelo Barão de Antonina. Esta colônia jazeu por muitos annos em perfeito abandono e sem recursos; foi grande a pobreza, as necessidades eram muitas, cruciantes. Nestas condições os mor- feticos vindos deS. Paulo, ao atravessarem a provincia, adquiriam dinheiro por meio de esmolas, e chegados que fossem ao Rio Negro, ahi paravam e em seguida se transportavam para o Rio Grande. « Pois bem, essa demora no Rio Negro foi bastante para que se produzisse ahi essa raça infeliz, que tende a augmentar constantemente. » Do cxcerpto que fiz dos documentos ministrados pelo Dr. Cassiano Tavares Bastos e da resposta doDr. Wal- fredo de Figueiredo, não se pôde em rigor inferir que a morféa seja freqüente na provincia do Paraná; entre- tanto, attento o desenvolvimento que a moléstia vai alli tomando e o máo regimen alimentar das classes menos favorecidas, ha fundamento para se temer que - 49 - no futuro seja esta uma das provincias mais flagelladas por semelhante enfermidade. s. i^íxuIo.— A opinião geral, quer no circulo dos profissionaes, quer no extra-profissional, é que a morféa é freqüente na provincia de S. Paulo. Querem uns, com effeito, que seja a provincia em que mais abunda a moléstia, ao passo que outros a collocam entre as que maior numero de leprosos , contêm. A este respeito não ha quasi discordância, nem attenuação, nem contestação: é freqüente, dizem a uma voz fora e, o que mais é, dentro da provincia; affirmam-no igualmente médicos nacionaes e estran- geiros. 0 Dr. Argollo Ferrão (*) transcreve o trecho do rela- tório do presidente da provincia, publicado em 1840, no qual o presidente, com relação á freqüência da lepra, deciara: « E' um espectaculo digno de compaixão encontrar-se amontoados tantos infelizes infectados de lepra; nos arredores de cada cidade acha-se uma ou mais cabanas, que servem de refugio a estes proscriptos da sociedade. » Occupando-se do mesmo assumpto, accrescenta o Dr. Argollo Ferrão: « As ultimas informações minis- tradas pelo mui distincto clinico daquella provincia, o Dr. Arsenio de Souza Marques, confirmam o que acabamos de referir, e asseguram-nos que infelizmente a elephantiasis não tem diminuído. » Do seu estudo inferiu o autor que c< com mais ou menos intensidade a elephantiasis faz victimas nas differentes p ovincias do Império; porque em todas, além das causas que são inherentes ao clima, a ali- (') These de doutoramo-ilo, sustentada cm 1871 polo Dr. Manoel Gome» do Argollo Ferrão perante a facuídado de medicina da Bahia. - 50 - mentação e a incúria do governo pela saúde publica prestam o mais valioso apoio ». O Sr. conselheiro Tavares Bastos teve a bondade de me informar que, transitando por vezes pela estrada de Taubaté, encontrara grande numero de morfeticos em miseráveis choças, os quaes viviam da caridade publica; bem como que em suas excursões, como chefe de policia, pela provincia sempre encontrara morfeticos. O Dr. Villaça, ex-delegado de saúde publica na capital, confirma que a enfermidade é alli mui fre- qüente. O Dr. Salles Gomes, clinico em Tatuhy, m'o informa igualmente, accrescentando: « A morféa, si não poupa aos mais favorecidos da fortuna, todavia é mais fre- qüente nos desprotegidos por ella, o que se explica pelas condições hygienicas em que vivem. » (l) O Dr. Tobias Rabello Leite, o incançavel director do instituto de surdos-mudos desta corte, referiu-me, de volta da provincia de S. Paulo em Janeiro do corrente anno, haver também encontrado grande numero de morfeticos esmolando pela estrada de Mogy- merim. Em Fevereiro de 1881 o Dr. Pedro Paulo, actualmente na Europa, e eu fomos á provincia de S. Paulo, a estudo especial, e o que ouvimos dizer geralmente e sem rebuço foi que a lepra é alli mui freqüente. (') 0 Dr. Salles chamou-me a attenção para uma circumstancia pelo menos muito curiosa, e em todo o caso digna de nota : eis o quo me communicou o collega: « sendo o bocio (vulgarmonte conhecido por papo) uma enfermidade muito freqüento aqui na classo pobre, maxime nas mulheres, ainda não vi, nem pude ter noticia de que apparecesse essa enfermidado em um morfetico e recipro- camente. Será, accresconta o colloga, mora casualidade ou haverá alguma razão scientifica 1» Propondo o collega uma questão digna do ser estudada pelos práticos quo acharem-so em condições de o fazer, limito-me a consignal-a aqui, visto ino faltarem elementos com que contribua para a'aua elucidação. — 51 - A' vista de um tal consenso entendi escusado pro- ceder em relação a esta provincia do modo por que o fiz em relação ás demais provincias do Império. Effectivamente, é tão grave o que se diz a meia voz sobre a sorie cie não pequeno numero de famílias, e o que corre sobre os domínios da morféa na provincia de S. Paulo (l), que pouco mais adiantariam as infor- mações mais ou menos vagas que eu podesse colher de uns e de outros, aos quaes me dirigisse. No meu entender o essencial é definir a situação da provincia, determinar a extensão da moléstia e precisar o numero de enfermos. Repito: pôde succeder que este numero não seja tão grande como affirmam ; o terror que a moléstia infunde geralmente aos paulistas e a circumstancia de andarem os doentes esmolando em vários pontos podem de algum modo concorrer para que se exagere alli sua freqüência. Seja como fôr, julgo cumprir o meu dever expondo a situação da provincia de S. Paulo, sem confirmal-a, nem attenual-a. Pelo que fica exposto se pôde julgar que não tive a pretenção de apresentar um trabalho estatistico sobre í1) 0 Dr. .Moncorvo de Figueiredo, no seu já citado relatório, averbou de exagerada a assercão de Tschudi de não haver urna só família nos limites de Minas Geraes e S. Paulo 'que não eitivesse sofrendo de lepra. Entro as referencias que em meus estudos encontrei acerca da freqüência da moléstia na provincia do S. Paulo, e quo deixei de mencionar visto não asson- tarem sobre base segura, destacarei a quo consta de uma noa exarada á pag. 18 da memória do Dr. Emilio Coni, intitulada—Hütoria de una afeccion anestésica; reza a nota : « En Ia provincia de San Pablo, donde reina epidémicamente Ia lepra en su mas alto grado, se hace un empleo abusivo do Ia carne de puerco y se ha observado que este animal está a menudo altacado por una afeccion quo se asemeja mucho á Ia lepra (morféa, Brasil). » Como se vè, o autor diz, e o diz em boa fé, guiado apenas pela tradição, que a morféa reina em S. Paulo « epidemicamonto o no mais alto gráo ». Nesse conceito do Dr. Emilio Coni so reflecte, cumpro confessar, o desprezo a quo temos votado o estudo desta enfermidade entre nós. Que a morféa seja freqüente na provincia de S. Paulo, é admissivol, uma vez que nos faltam documentos em contrario; porém disto a um « opidomicamento e no mais alto gráo » vai, quero crer, excessiva distancia. — 52 - a freqüência da lepra nas provincias do Império, mas que o meu único intuito foi dar uma noticia do que nellas consta a semelhante respeito. Nem ao menos me foi dado indicar aproximadamente o numero de doent s em cada provincia, tal é a carência de documentos. Não obstante creio poder tirar esta conclusão: si a morféa é freqüente no Pará, em algumas localidades do Maranhão, em determinada zona de Minas Geraes, e sobretudo na provincia de S. Paulo, é pouco freqüente em umas e rara em outras das provincias do Amazonas, Piauhy, Ceará, Parahyba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Espirito S..nto, Goyaz, Matto Grosso, S. Pedro do Sul, Santa Catharina e Paraná. Foi até onde poderam chegar os meus recursos. III HOSPITAIS PAEA OS MORFETICOS Desde remotos séculos a morféa tem sido objecto de cuidados especiaes nos paizes cultos. Concorriam principalmente para isso o temor da moléstia, a persuasão do contagio e a transmissão hereditária. A physionomia do leproso infundia, com effeito, terror; encontravam nella os traços de um animal terrível, o leão. Semelhante transfiguração do homem dava logar a graves conjecturas sobre a origem, sobre a verdadeira causa de tamanha desgraça. A imagi- nação apoderou-se do facto, emprestou-lhe as mais feias cores, e deu-lhe uma interpretação sinistra. Fora preciso, diziam, que o infeliz houvesse com- mettido os mais graves d lictos para que sua physio- nomia tomasse aquellas feições, as feições de um ani- mal feroz ! O crime se espelhava no rosto do mor- fetico ! Aquella mascara era o cunho da punição, o estigma da vingança divina ! A originalidade de uma moléstia que não se limi- tava a alterar os tecidos, mas ia ao ponto de alterar os caracteres do homem, creou uma espécie de supers- tição contra os morfeticos. - 54 — Não tenho empenho algum em citar as scenas bar- baras, verdadeiros delictos praticados nas pessoas dos morfeticos, e o que mais é — em nome da lei e a bem da humanidade! Direi apenas que, ao ter-se conheci- mento de taes crimes, por exemplo — quando se sabe que na Escossia a mãi morfetica era judicialmente queimada viva, levando nos braços o seu filho recém- nascido, não é certamente da morféa que se deve ter horror. Como quer que seja, poucas são as pessoas que ouvem pronunciar a palavra morféa sem manifestar certa impressão de desagrado, e poucas as que vêm sem repugnância approximar-se um morfetico. Aqui, na capital do Império, tem-se é certo, menos repugnância desses infelizes; mas nas provincias não succede o mesmo. Os qualificativos geralmente empregados para indi- car o morfetico revelam o gráo de aversão e terror que se tem á enfermidade. E é somente isto? Porventura não se encontra a cada momento na linguagem clássica palavras que ex- primem o « asco, a hediondez, o terror» da lepra? Ora, pergunto eu, será isso permittido na linguagem medica? Si os próprios médicos usam de taes epithe- tos, não será de estranhar que outras pessoas pro- cedam do mesmo modo ou ainda com mais exa- geração. Não, não nos é permittido fazel-o: nós os médicos não julgamos das moléstias pelas impressões que nos transmittem os sentidos ; o nosso pensamento gira em torno da curabilidade ou não curabilidade do mal; e a partir d'ahi, si a morféa é reputada incurável, outras enfermidades ha que também o são, sem que a estas se appliquem qualificativos tão deprimentes e desa- gradáveis. — 55 — Os vocábulos feio, repugnante, asqueroso, horrível, hediondo, não foram inventados para figurarem na nossa linguagem medica. E' do nosso dever, pelo contrario, apagar os ves- tígios de uma tradição errônea, collocaro assumpto no seu verdadeiro terreno, e julgar a lepra por outro prisma, á luz dos sãos princípios da sciencia. De feito, o que é que no leproso assusta, e o que assim terrorisa? Confessemos a verdade: o que sobretudo assusta na morféa é a expressão do rosto, é a apparencia physio- nomica do morfetico. Causa terror a idéa de que se possa vir a softrer uma tal transformação: o rosto representa a individualidade, e por isso nos merece tanto zelo. Imaginal-o transformado um dia, e por aquella forma, é aterrador. Eis-ahi a interpretação do sentimento, que não é a admittida pela razão scientifica. A sciencia não liga, comeffeito, grande importância á alteração que o rosto do morfetico apresenta, que para ella não passa de um simples accidente, de uma cousa secundaria, isto é, de um acto de localisação da morféa, acto que umas vezes se dá e outras não tem logar. Ha, realmente, morfeticos que nenhuma alte- ração physionomica apresentam, e que entretanto são tão morfeticos como os outros. Em outros termos, ha morféa sem morféa, istoé, ha casos desta enfermidade, perfeitamente genuínos, sem a physionomia morfe- tica,o que quer dizer que a alteração das linhas phy- sionomicas não é constante, não é essencial, não é perfeitamente característica da moléstia. Vistos dous doentes, sendo um de fôrma anes- thesica em que a physionomia não exprime a morféa, e outro de fôrma tuberculosa em que a physionomia se altera profundamente, póde-se affirmar que o — 56 — primeiro passará desapercebidamente, emquanto o segundo levantará aquella repugnância, aquelle ter- ror. Isto posto, ê evidente que semelhante impressão não tem razão de ser, nem fundamento sério; não é racional, e antes de alguma sorte offensiva dos nossos sentimentos humanitários para com crea- turas, as quaes, mais do que com a própria moléstia, affligem-se com o repudio que de todos os lados encontram. Sim, é forçoso dizel-o: os morfeti os muito mais soffrem da sociedade onde são constrangidos a viver, do que da sua enfermidade. A esta circumstancia se deve attribuir o serem elles tão desconfiados, tão re- trahidos, tão esquivos ás vistas dos homens, e em grande parte o rejeitarem os próprios soccorros hospi- talares, que lhes são offerecidos, quero dizer impostos, menos em nome de uma caridade sincera, do que em pura satisfação do egoísmo. Quando se estuda a historia da morféa no Brazil, im- põe-se ao espirito a seguinte verdade: no regimen co- lonial houve mais solicitude para reprimil-a, do que depois da independência até o presente. E' verdade que os vice-reis tinham na maior conta o contagio da moléstia, o que os incitava á repressão, como nol-o mostra a correspondência trocada com a Corte de Portugal. Em officio de 1763, dizia o Conde da Cunha: « Faz-se preciso que V. Ex. ponha na real presença de Sua Ma- gestade o grande perigo em que esta cidade se acha, causado pelo mal contagioso da morféa, porque já não ha rua, nem praça, onde se não encontrem leprosos, nem também ribeiro ou fonte em que elles se não ba- nhem ; e por esta causa todas as águas estão infeccio- — 57 — nadas, e toda esta grande terra no risco de a devorar este tremendo fogo, que em todo o Brazil se tem ateado. « Este é o presente estado em que se acham os po- bres leprosos nesta terra ; e para que por culpa minha se não augmente este horrendo mal, como succede na cidade da Bahia, que por se não porem em separação os primeiros lázaros que naquella terra houve, se communicou o contagio nella com tal excesso que já chegaram a perto de quatro mil os que haviam, no anuo em que lá estive, vindo de Angola. » O Conde de Rezende dizia em officio de 1793: « Ha- vendo o Conde da Cunha, sendo vice-rei deste Estado, concebido o louvável projecto de occorrer ao funestis- simo mal de morféa, que já naquelle tempo grassava com grande excesso nesta cidade, tomou a bem fun- dada deliberação de representar a Sua Magestade os tristíssimos progressos, que fazia este terrível con- tagio, a voracidade com que se estende por causa da communicação de grande numero de infectados, etc. » E' este mais ou menos o theor das peças officiaes concernentes ao assumpto, as quaes, si nos indicam o gráo de convicção em que se tinha naquelle tempo o desenvolvimento contagioso da lepra, bem revelam o empenho de se impedir que a moléstia contaminasse a população, o que significa bons sentimentos huma- nitários. Alludindo a esse empenho, o Dr. Bernardino Antônio Gomes pondera : « ... lembrando-me do que Sua Ma- gestade tem feito no Rio de Janeiro, e tem mostrado estar disposto a fazer a favor dos lázaros daquella capital, £tc. (*) » (!) Ensaio Dermatológico—1820. m. 8 - 58 - E' possivel se tente explicar a menor solicitude do governo brazileiro com uma razão apparentemente plausivel: a de não participar o nosso governo da mesma crença do contagio, e, por assim pensar, jul- gar-se desobrigado do emprego de medidas de isola- mento, etc. A explicação procederia si se admittisse o contagio como o único modo de transmissão da moléstia; ora, si é corrente que a morféa não é contagiosa, igual- mente o é que se propaga pela herança; e como o grande empenho está em impedir a transmissão, o grande dever cifrar-se-ha em lançar mão dos meios conducentes a este resultado: o modo por que se opera a transmissão é matéria para as cogitações scientificas e não para a administração publica que somente põe a mira nos resultados práticos. Fora injustiça desconhecer, como se tem pretendido, os cuidados que tiveram com os morfeticos os pri- meiros dominadores do Brazil. Neste ponto o que torna desculpavel ao Dr. Soares de Meirelles a vehemencia de suas expressões ('), que não reproduzirei, é o haverem sido ditadas pelo senti- mento do patriotismo. Sobre ser a independência da pátria o que mais in- flamma o animo do cidadão, accresce que o illustre brazileiro achava-se ausente no estrangeiro. Nunca se ama com tanto extremo a pátria como quando delia ausente. E' então que mais nos ferem a attenção as faltas e os defeitos de nosso paiz, mais o lastimamos, e mais desejamos ver nelle introduzidos todos os melhoramentos que vamos encontrando pelo (i) Dissortation sur 1'hisloiro de Ia morphée, par J. C. Soares de Meirolles. Paris — 1827. - 59 - mundo. A ausência, com effeito, como que dilata o coração, e concentra e apura e exalta os sentimentos. Ainda ahi estão os documentos para attestar como aos portuguezes não foi indifferente a sorte dos mi- seros morfeticos. O Conde de Bobadella foi o primeiro que veiu em soccorro delles, fazendo-os recolher a umas casinhas sitas ao campo de S. Christovão. Em 1700 o Conde da Cunha conseguiu passal-os para o edifício que ainda hoje, depois de uma inter- rupção de annos ('), lhes serve de abrigo. Em 21 de Agosto de 1787 D. Rodrigo José de Menezes inaugurou o actual hospital dos Lázaros da Bahia. Desde 1796 possue Pernambuco um desses hospi- tais, que foi fundado por D. Thomaz José de Mello. Ainda no domínio portuguez e sob o seu influxo fundaram-se outros hospitaes de igual applicação, sendo um no Pará, um em Minas Geraes (o de S. João d'El-Rei), e dous na provincia de S. Paulo. Destes estabelecimentos de caridade e do seu estado actual passo a dar breve noticia. Começo pelo hospital do Pará. Este hospital está situado, dizem todos, em sitio aprazível, denominado Tucunduba, á distancia de meia légua da capital. Sua fundação data de 1818 ou 1819, e é devida aos esforços da Santa Casa de Misericórdia, que o manteve a seu cargo por muito tempo ; e como o numero de doentes crescesse, o thesouro provincial veiu, ha talvez 36 annos, em auxilio da Santa Casa, que não podia, (i) Por decreto de 8 deTOutubro de 1817 í foram os lázaros removidos para a Ilha das Enxadas, passando o edifício donde foram doialojados, a servir do quartel ao batalhão do caçadores da divisão do Portugal, que guardava a pessoa de El-Rei D. João VI. Em Io de Julho de 1823 ainda mudaram os pobres lázaros, o desta voz para a Ilha do Bom Jesus, donde, á falta de accomodações, foram a final retirados por decreto do 25 de Agosto de 1832 e restituidos ao sou primeiro estabeleci- mento, onde jazem. -60 - attenta a escassez de seus rendimentos, satisfazer tão pesado encargo. Diz Sigaud (1) que houve desejo de mudar este hos- pital para a Fazenda do Pinheiro, onde se pretendia levantar um vasto edifício que abrigasse maior nu- mero de morfeticos Quaes as razões desta preferencia e por que motivo não levaram a effeito, é que não sei informar. Consta-me que no hospício acham-se também re- clusos os (2) doudos da provincia, os quaes realmente não farão aos infelizes morfeticos a melhor com- panhia . O edifício é vasto, arejado e abastecido d'agua ; mas está bastante arruinado, destelhado em alguns pontos, e por isso não offerece sufficiente abrigo contra os ventos humidos. Accusam o regimen diete- tico e outras faltas hygienicas, bem como a deficiência do serviço medico : sou informado que o medico en- carregado do servi ;o \ai alli uma vez por semana, quando não falta a essa única visita. As enfermarias não offerecem aos doentes o com- modo de que tanto carecem: os leprosos dormem, com effeito, sobre estrados ou em redes velhas. Devido ao systema de reclusão, que lenho con- demnado desde o principio deste trabalho, por des- humano e irracional, e que condemnarei até o fim, ha freqüentes fugas de leprosos do hospício da Tucun- duba, os quaes preferem mendigar pelas ruas a um viver realmente miserrimo. Sei que o hospício é muito soccorrido pela caridade publica, por meio de esmolas, roupas e gêneros ali- (1) Du clímal et des maladios du Bróòil. (2) A romo ão dos loucos para o huspital dos morfeticos é posterior ao do« minio portuguoz. - 61 - mentidos de todas as qualidades, o que abona sobre- modo os sentimentos caridosos dos Paraenses. Passo ao de Pernambuco.— Do hospício desta provincia tenho a seguinte noiicia : « Aqui no Re- cife havia junto ao hospital Pedro II uma casa destinada a receber os lázaros; era mais um « reco- lhimento » do que um hospital, exactamente como succede agora em outra casa destinada a receber alguns destes desgraçados, e que está annexa ao hos- pital cos mendigos, no arrabalde de Santo Amaro das Salinas. « Alli se acham esses pobres quasi abandonados, isto é, á mingua de tratamento medico, e nenhuma observação se ha feito em relação á etiologia, nem quanto á therapeutica.» No relatório sobre a Santa Casa de Misericórdia do Recife, apresentado pelo Sr. Desembargador F. de A. Oliveira Maciel em 1880, encontrei as seguintes de- clarações : « hospital dos lázaros.— Dos infelizes soecorridos pela Santa Casa são os morfeticos os mais credores de compaixão. O horror da enfermidade que os afflige, a sua repulsão do seio da sociedade e até cia própria familia, o desespero que lhes traz ao espirito a incura- bilidade cia moléstia, torna-lhes a vida um constante martyrio, lento, cruel, doloroso, mil vezes peior que a morte, e esse lastimos > estado crèa-lhes um gênio insoffrido, odiento; é a desesperança que lhes atrophia a alma, é, a par do esphacelamento do corpo, a morte dos sentimentos ternos do coração. Nesse afflictivo estado não lhes faltem ao menos as nossas consola- ções ; levemol-as, que são nossos irmãos, em livros de boa moral o, religião, de que tem sede o seu espirito obscurecido pelo soíTrimento; levemol-as também ao corpo, já n'uma alimentação mais sóbria, mais agra- — 62 - davel, já no vestuário mais abundante, já no preparo e asseio da habitação, de modo a tornal-a mais sup- portavel e menos pavorosa. A caiadura e pintura das enfermarias duas ou três vezes por anno, o cimenta- mento do ladrilho, o ajardinamento do terreno em frente ao edifício para recreio dos enfermos, a con- strucção de banheiros, de latrinas, e a compra de uma machina para a lavagem da roupa, deve ser o comple- mento dos melhoramentos, que á 11a junta compete realizar, de modo a amenizar, si é possível, a horrível situação daquelles infelizes. » Foram tomadas em consideração as medidas propos- tas no mesmo relatório ? E' de crer que não, porque são de 1881, e portanto posteriores á sua publicação, as in- formações que sobre aquelle hospital transcrevi de uma communicação feita por pessoa circumspecta d'alli. Além da construcção de uma cozinha e de uma sala para a distribuição da comida aos enfermos, de alguns reparos na cozinha e na sala de jantar de serviço do regente, e do concerto geral no tecto do edifício e da capella, o quej consta do relatório é que se comprara roupa, lençóes, colchas e calçado, bem como uma machina de costura, além de diversas banquetas para as enfermarias, melhoramentos estes que não cor- respondem áquellas medidas aconselhadas sobre o influxo de sentimentos humanitários. A' pag. 39 do relatório encontra-se o quadro esta- tístico do movimento do hospital dos Lázaros durante dous decennios. O numero dos doentes elevou-se então a 1.440, dos quaes íálleceram 940 ! Quando se attende á marcha lenta da morféa entre nós, não pôde passar desapercebida semelhante mor- talidade, o que não abona as condições hygienicas em que são alli collocados os morfeticos, nem os cui- dados ministrados. — 63 — HOSPITAL DOS LÁZAROS DA BAHIA.— VÍSÍtandO este hospital, disse o Dr. Rendu^): «Na Bahia fui mais feliz; lá encontrei um estabelecimento melhor con- servado, mais solicitude com os doentes, um medico zeloso (*) e esclarecido, em summa todos os elementos de um bom hospital.» Levando más impressões do Im- perial Hospital dos Lázaros da Corte, e encontrando aquelle nas condições descriptas,o Dr. Rendu manifes- tou por estas palavras a agradável impressão que lhe causou a visita feita ao hospital da Bahia. Como estão trocados os papeis! « Hoje, diz o Dr. Argollo Ferrão (3), é o verdadeiro contraste de hontem ; a sciencia marcha; seus passos repercutem-se e reforçam-se pelas mil boccas da im- prensa ; os descobrimentos renovam-se, e entretanto nem uma experiência se faz, nem um tratamento se ensaia, e o individuo que desgraçadamente para alli entrou é um condemnado á morte, que se guarda mais para furtar-se ás vistas publicas tão hediondo espe- ctaculo, do que por commiseração e caridade. » Ahi está o que disse o Dr. Argollo Ferrão: o con- traste é realmente frisante e lamentável, sobretudo dando-se semelhante falta na capital da Bahia, onde distinctos médicos, de algum tempo a esta parte, têm-se dedicado do modo o mais serio á indagação de importantes problemas pathologicos. Correndo-me, porém, o dever de não repetir censuras ha 11 annos formuladas naquelles termos, procurei colher informações sobre o estado actual do hospital dos Lázaros da capital da Bahia, tendo em resultado a confirmação disso mesmo. (') E'tudcs sur 1c Brésil. (2) 0 finado Dr. José do Góes Scrquoira. (3) The»e citada. - 64 - O serviço medico é na verdade deficientissimo; ape- nas uma formalidade, um simulacro. Lamento com o Dr. Argollo Ferrão aquelle desser- viço, porquanto no estado actual da sei meia, e attenta a actividade que por toda a parte os médicos desenvol- vem, armados co no estão de importantes instrumen- tos de investigação, é sobremod ) lamentável seme- lhante inércia, semelhante apathia ! Si é muito louvável o procedimento de alguns mé- dicos que da Europa têm emprehendido longas viagens para estudar a morféa onde ella exisfe, torna-se real- mente censurável que aqui nem ao menos a estu- demos em doentes próximos de nós. A tradição da incurabilidade desta moléstia, em vez de nos esmorecer, nos deve pelo contrario estimu- lar, Effectivamente d'entre as moléstias que entre nós se encontram com mais ou menos freqüência, a mor- féa é, a meu ver, uma das que merecem e reclamam mais deUdo estudo, mais profundo exame. A causa não é somente nossa, sim da sciencia, da humanidade; e diante de dever tão sagrado a condes- cendência de uns e o indifferentismo de outros excitam a maior reprovação. Além disto o medico deve ter bem presentes á sua memória estas palavras de um pratico muito conhe- cido de todos nós, Hufeland : « A funeção do medico, disse elle, não é somente curar ; é seu dever também, o que constituo um grande mérito, prolongar a vida e tornal-a supportavel nas moléstias incuráveis. » Consta-me que a actual administração do hospital de Lázaros da Bahia, composta de distinetos nego- ciantes, acha-se animada do maior desejo de melhorar as condições dos infelizes doentes, para o que aguar- dam que sejam removidos para o asylo, que estão pre- - 65 - parando á Boa-Viagem, os mendigos que actualmente occupam com os lázaros aquelle estabelecimento (*). Não será opportuno, quando a administração houver de cuidar da reforma, resolver antes de tudo sobre a conveniência ou não conveniência de continuarem alli os lázaros ? Próximo como está o hospital dos Lázaros de um cemitério de grande extensão, será prudente mantel-o d'aqui em diante no mesmo local, humido, abaixo do nivel do terreno occupado pelo cemitério ? Em taes assumptos não se pôde prescindir dos con- selhos da hygiene, os quaes certamente não serão favoráveis a essa permanência. Ainda com relação ao actual estado do hospital dos Lázaros da Bahia encontra-se em uma these sustentada o anno passado na faculdade de medicina daquella cidade (2) estas palavras: « Foi fundado o nosso laza- reto pelos padres jesuítas em 1783 a 1786, no logar que mais tarde foi denominado Quinta dos Lázaros. Este estabelecimento, que a principio tinha seu rendimento, é hoje custeado pelo governo, e o seu estado de deca- dência é tal que tudo poderiamos chamal-o, menos hospital de Lázaros. » HOSPITAL DE LÁZAROS DA CORTE. — Este llOSpital apresenta a quem o visita os cuidados de rigoroso as- seio. Dos hospitaes para morfeticos é o único que tal qualificação merece. O serviço medico, pelo menos de algum tempo para cá (3), é mui diverso do encontrado (*) No Pará, como vimos, colloearara os loucos ao lado dos lázaros; em Por* nambuco o na Bahia deram-lhes molhor companhia—os mendigos. (s) Thcso do Dr. José de Corqueira Daltro Júnior sobre a morféa.-^Bahia, 1881. (3) 0 Dr. Rendu deu uma dcscripção muito desfavorável do imperial hospício do lázaros, figurando entro as censuras o máo serviço clinico. Não sei quando osto serviço foi reformado ; porém o quo asseguro é que o Dr. .loão Pereira Lopes foi alli um clinico muito cuidadoso, bem como o Dr. Pontes Ribeiro. Actualmente o quo me consta c quo o sorviço medico, dirigido pelo Dr..José Joaquim de Azovodo Lima, é muito exacto. u. 9 - 66 - e descripto pelo Dr. Rendu. Os doentes de um e outro sexo occupam pavimentos differentes. A alimentação, si bem que não seja a mais rigorosamente adaptada a semelhante moléstia, é comtudo abundante e de boa qualidade. Devido a consideráveis accrescimos feitos ha sete annos (*), na esperança de que o hospital viria a receber muito maior numero de doentes, o que aliás não tem succedido, proporciona espaço para numero quatro ou cinco vezes superior ao dos morfeticos que habitualmente o freqüentam. Si se tratasse de hospital para outras enfermidades, eu não opporia objecção alguma; sendo, porém, para morfeticos, penso que o imperial hospital de Lázaros da Corte não satisfaz as verdadeiras condições hygie- nicas e clinicas. Effectivamente, comquanto seja pequeno o numero de doentes que o procuram, nota-se todavia repetidas fugas, não porque o serviço no hospital seja máo, nem deixem os doentes de encontrar alli o que lhes pôde offerecer a caridade, e sim porque o hospital em taes condições é uma verdadeira prisão. Ha, é certo, algum espaço para recreio dos doentes, porém não existe para elles quasi occupação alguma. O tédio os acommette, a situação os afflige e horrorisa, eem tão cruel conjunctura só resta aos morfeticos um partido : o de saltarem os próprios muros da caridade em busca da liberdade, que, como disse um hygienista distincto, é a suprema aspiração de toda creatura hu- mana. Melhor argumento eu não encontraria contra o sys- tema hospitalar para morfeticos, do que o que se deduz da fuga dos doentes do hospital da corte. ■ (») Do relatório aprosontado om 1874 pelo escrivão o Sr. João Antônio da Silva Guimarães vê-se que naquelle anno concluíram-so as obras. — 67 — hospital de minas geraes. —A respeito da pro- vincia de Minas Geraes encontra-se no livro do Dr. Sigaud o seguinte trecho: « Ha nos diversos districtos desta immensa provincia muitos hospícios e asylos de leprosos; d'entre os primeiros merece especial menção o de Nossa Senhora Mâi dos Homens construido em 1771 pela caridade de um só homem, na serra do Ca- raça, hoje convertido em casa de educação. » Por maior que fosse o meu empenho em colher in- formações sobre o auxilio que esta provincia presta aos seus morfeticos, só pude alcançar que em toda ella ha, não um hospital e ainda menos muitos hospícios e hospitaes, mas uma simples enfermaria annexa ao hospital de Misericórdia de S. João d'El-Rei; e por isso o pouco a dizer não passa daquella enfermaria, sobre a qual tenho as seguintes informações do Dr. João Salustiano Moreira Mourão: « Essa enfermaria, que se denomina— hospital dos Lázaros,— foi fundada em 4 de Maio de 1806 por Manoel de Jesus Fortes e outros, sendo o compromisso de sua creação confir- mado por provisão regia de 31 de Outubro de 1816.» O thesouro provincial concorria com a quantia de 400S annualmente, elevada depois a 2:000$, graças aos esforços do deputado Aureliano Mourão. E' insignificante o movimento, não direi annual, mensal de enfermos. Actualmente existem três mulhe- res, não havendo nunca o numero de morfeticos attin- gido a oito. Informa mais o Dr. Mourão que a « morféa é des- conhecida» no município de S. João d'El-Rei e que «todos » os doentes têm vindo de diversos pontos da provincia de Minas. O distincto collega termina assim a sua exposição: « E' para notar que os indivíduos atacados desta terrível moléstia só procuram o hospital nos últimos tempos — 68 — da maldita affecção.» Attribue isto a «exagerada reclu- são a que são condemnados esses infelizes ». São mui- to communs, relativamente fallando, os casos de fuga de morfeticos. » í1) Do exposto se infere que não ha proporcionalidade entre o numero de morfeticos, que a provincia conta, e os soccorros que lhes presta. A receita desta provincia foi orçada no exercício de 1880 a 1881 em 2.764:510$ e entretanto, é triste di- zel-o, somente a quantia de 44:000$ foi applicada á saúde publica, como auxilio em partes iguaes de 22 casas de caridade da provincia. Com os morfeticos despende a provincia de Minas a quantia de 2:000$000 ! Basta dizer que alli só ha para elles a enfermaria fundada, como vimos, em 1806, e ainda assim mantida em uma cidade onde não se dá caso algum de morféa ! Como lá a collocaram por motivos que somente a occasião teria justificado, alli mesmo a conservam, única na provincia, e sem opportunidade ! HOSPITAES DA PROVÍNCIA DE S.PAULO.— No Capitulo de seu livro Du climat et des maladics du Brésil, em que fez menção dos hospitaes de caridade da provincia de S. Paulo, seu autor, o Dr. Sigaud, não podendo con- ter-se, accrescentou que alli não Jiaoia hospital algum para iiiorféticos. Sendo geralmente sabido que esta provincia era (e é) uma das de maior numero de morfeticos, dever-se-hia com effeito estranhar-lhe a falta de um asylo para abrigo daquelles infelizes. A ser exacto o reparo do Dr. Sigaud, faltava a provin- cia de S. Paulo a um dever de caridade, consentindo que, (>) Esta exposição traz a data do 13 do Setembro de 1881. - 69 - mendigando, vagassem pelas ruas os morfeticos, con- siderados com muita razão pelo Sr. Francisco Martins de Almeida a classe mais desgraçada de mendigos. (*) Eu disse « com muita razão», e repito, porque, em- quanto aos mendigos em geral acompanha a condo- lência, que sua posição desperta, sentem os morfeticos em cada esmola a picada da repugnância que o seu aspecto aviva. Além disto, desde que os doentes transitassem li- vremente, e que a morféa não encontrasse obstáculo algum,—o menor paradeiro,—o resultado seria ficar a provincia contaminada, levando a moléstia a desola- ção a muitos logares e a desgraça a muitas familias. Cabe-me entretanto ponderar que o Dr. Sigaud não foi bem informado, porquanto a esse tempo a provincia de S. Paulo possuia dous hospicios, sendo um na ca- pital e outro na cidade de Itú. E' certo que dos dous hospicios o da capital não dava motivos para ser conhecido, nem mencionado, o que de algum modo justifica a omissão involuntariamente commettida pelo Dr. Sigaud. O da capital da provincia foi installado em 1803 em uma pequena casa, sita em um arrabalde, a Olaria, que para esse fim fora mandada edificar pelo Gover- nador Capitão General Antônio José da Fonseca e Horta em um terreno, pelo mesmo arrematado no anno anterior por 1208000, offerecendo-a como Pro- vedor á irmandade, e instituindo em favor dos mor- feticos um subsidio pela Santa Casa, e as esmolas. (2) (') Este bonomerito cidadão succumbiu ba poucos dias, no dia 8 de julho do 1882, na Capital do S. Paulo. (-) Encontrei estos esclarecimentos no « primeiro relatório sobro a Santa Casa do Misericórdia da cidade do S. Paulo ». Depois do mais do dous soculos do existência teve essa Santa Casa, em 1875, ha seis annos apenas, o seu primoiro relatório, graças á dedicação e á tenacidade do Provedor — interino— Francisco Martins de Almoida. - 70 - A partir de então o hospicio continuou a prestar serviços aos morfeticos, mas de modo o mais restricto até 1856, época em que a irmandade de Nossa Senhora da Conceição e S. João Baptista veiu em soccorro delles tomando-os a seu cuidado, para o que recebia da Santa Casa o auxilio mensal de 100$000. Tendo mais tarde esta irmandade, por motivos que não me é dado aquilatar, abandonado os morfeticos, tornou-se de novo muito critica a situação destes infe- lizes, aos quaes só se offereceu um recurso—o das esmolas imploradas pelas ruas da capital de S. Paulo. Foi então que o benemérito Francisco Martins de Almeida propoz á Santa Casa que pozesse cobro a ta- manha vexação, offerecendo-se elle próprio para diri- gir o serviço do Asylo, onde seriam prestados aos infelizes morfeticos os soccorros indispensáveis á vida. 0) O asylo foi pessimamente situado: de um lado acha- se cosido a um monticulo que impede o arêjo da casa, e do outro é cercado de extenso pântano. Quando o visitámos, o Dr. Pedro Paulo e eu, encon- trámos sete doentes, um dos quaes, Ventura, africano, de 70 annos de idade, lá está recolhido desde 1841. Si, (*) Para que melhor se possa ajuizar do sentimento que guiava as acções desto homem caridoso, transcrevo aqui o seguinte documento: A CARIDADE U0S HABITANTES DE S. PAULO O hospital dos Lázaros desta cidade tom a seu cargo a sustentação e o trata- mento dos infelizes lazarentos, considerados párias das sociedades modernas. A irmandade da Santa Casa de Misericórdia, alcançada o onerada com o elevado numero de doentes de seu hospital, com a criação de expustos, o a braços com a edificação do um novo edifício para o hospital, é a protectora única dos infe- lizes lázaros, abandonados pelos poderes públicos e pola irmandade de S. João Baptinta da Consolação que outr'ora delles cuidava. Em nome dos lázaros peço ao povo de S. Paulo uma esmola pelo amor de Dous para os nossos pobres e infelizos irmãos, quo tanto carecem de soccorros para sua manutenção e reparo do edilicio em ruínas no qnal se acham. 0 obolo com que quizerem concorrer aquelles em cujo coração echoar este reclamo pela classe mais desgraçada dos mendigos, pode ser inscripto ou deixado no es- eriptono das rodacções do Correio Paulistano, Provincia de S. Paulo, Tribuna Liberal e Jornal da Tarde.-*---S. Paulo, 26 de Abril de 1879.—O mordomo do hospital dos Lázaros.— Francisco Martins de Almeida. — 71 — pois, faltassem outros dados, bastaria a existência desse doente para attestar a antigüidade do estabele- cimento. Eis-ahi o que tem sido o asylo de lázaros da capital da pujante provincia de S. Paulo, com o qual, é bom que se saiba, os seus cofres nunca despenderam nem despendem um só real. O da cidade de Itú é igualmente muito anterior á pu-, blicação do livro do Dr. Sigaud. A respeito deste asylo se encontra o seguinte na 2a parte da Revista Trimensal (*) : « Como insti- tuição de caridade existem em Itú a Casa da Miseri- córdia e o Hospital dos Lázaros. O Hospital dos Láza- ros, collocado fora da cidade, foi fundado no principio deste século pelo virtuoso padre Antônio Pacheco e Silva. « No frontal do edifício está inscripta a data de 1806, que parece ser o anno da conclusão da obra. » Na Peregrinação pela provincia de S. Paulo, de Zaluar, ha pouco fallecido, encontra-se mais: « O Hospital dos Lázaros é também um edifício importante e collocado fora da povoação. Foi fundado e conser- vado muitos annos pelo padre Antônio Pacheco. Tem capacidade bastante para receber grande numero de morfeticos, offerecendo para isso todos os commodos; pois, além de uma boa quinta, possue um cemitério e a capella em que se administra aos enfermos o pasto espiritual. » Concluindo, diz : « Quanto a nós bastava esta insti- tuição para fazer honra aos Ituanos. » Este hospício ainda existe, e ha mais de anno está em reparos, para os quaes concorreram os cofres pro- (!) Excursão pelo Ceará, S. Pedro do Sul o S. Paulo, polo Dr. Francisco Ignacio Marcondes Homem do Mello (Barão Homem do Mollo). — 72 — vinciaes com a quantia de 2:000$, conforme consta do relatório do presidente da provincia o Sr. Dr. Lau- rindo Abelardo de Brito. Consta-me que por algum tempo a Assembléa Pro- vincial consignara a quantia de 1:000$ annualmente para supprimento do asylo de Itú, e que, ha quatro annos, a supprimira, não sei sob que fundamento, do orçamento provincial. (*) No asylo de Itú nunca houve serviço medico : os en- fermos, cujo numero attingiu a 26 em um anno, reco- lhiam-se confiadamente á sombra da caridade christâ, evitando assim a mendicidade pelas ruas e estradas. Como se tornassem muito escassos os recursos de subsistência, viram-se os morfeticos obrigados a pedir esmolas ás pessoas que transitavam pelas immediações do hospicio. Nestas condições achavam-se os infelizes enfermos, quando tomou a seu cargo soccorrel-os o sacerdote Bento Dias Pacheco, pessoa aliás de poucos recursos pecuniários. Actualmente o hospital de Itú não abriga um só morfetico. Sou informado de que o mesmo Rev. Bento Dias Pacheco continuará a prestar seus soccorros aos mor- feticos que houverem de recolher-se no asylo, si de algum modo o ajudarem no seu caridoso empenho. (2) (i) Nao me consta que, alem das quantias acima mencionadas, haja a pro- víncia de S. Paulo despendido outras com o sorviço do morfeticos. Entretanto nao vem fora de propósito saber com quo recursos conta osta provincia , ?» È„a'f 5? d0 1878-1879 vê-so quo a receita foi naquelle exercício do o ko7 eí^fln f q.U? "° P"1"6"0 semestre do seguinto exercício so elevara a z.594:612#310 (relatório citado). HQS^ennd?JinfOrmT0S a™SoÍíís,.,íLU0 tonh0' a receita n0 ultimo exercido de 1880—1881, orçada em 3.732:371^176, excederá desta somma. (2) Não conheço o hospital da cidado de Itú, nem sei até que ponto Doderá aproveitar aos morfeticos quo porventura haja em suas circuinvizinhancas • cabe-me, no emtanto, repetir, por maior que soja minha veneração aos homens philantropicos, quo sou contrario a similhante estabelecimento; como hoi por vozõs declarado. 73 — Quando a sociedade retrae-se em presença da misé- ria, surgem em compensação uns entes providenciaes que na cidade de Itú tomaram os nomes de Antônio Pacheco e Silva e Bento Dias Pacheco, ambos sacerdotes e um delles herdeiro das virtudes e da missão do outro. Póde-se deste modo dizer que aquelle edifício da ci- dade de Itú não era um hospital, nem é um asylo; mas sim era e é a igreja, — a matriz da caridade hu- mana, como o templo o é do culto divino. Foram estes os hospitaes fundados pelos portu- guezes ou sob o seu influxo, o que demonstra que não descuidaram-se de 'prestar soccorros aos mor- feticos. Si tivéssemos prestado alguma attenção a seme- lhante serviço, outro seria o estado actual de taes estabelecimentos, e não succederia o que tive de ex- por: exceptuando, com effeito, o hospital de Lázaros da corte, vê-se que o da cidade de Itú não funcciona ; o outro da provincia de S. Paulo não condiz com a im- portância de sua capital; o da Bahia, o do Recife e o do Pará acham-se em deplorável estado. Examinarei agora o que temos feito neste sentido. « Quando reflectiinos nos poucos meios, diz o Dr. Rendu, empregados para combater uma enfermidade cuja invasão incessante ameaça disimar uma popula- ção já demasiadamente insufficiente para occupar as immensas regiões em que se acham disseminadas, não podemos deixar de lamentar esta imprevidencia fatal que abandona populações inteiras á mercê de um fla- gello destruidor. Dir-se-hia que nos logares onde a Providencia con- cedeu seus dons com mais liberalidade, o homem se M. 10 — 74 - encarrega de contrariar-lhe os benefícios, entregando- se á mais apathica negligencia (*).» Percorrendo quasi todos os relatórios do ministério do império, encontrei, com referencia á morféa, algu- mas palavras á pagina 54 do relatório do Conselheiro Joaquim Marcellino de Brito (1847) sobre tentativas do tratamento desta moléstia por meio do guano; e outras á pagina 44 do relatório do Visconde de Mont'Alegre (1850) sobre o tratamento (aliás bárbaro) que então, em- pregava contra a mesma enfermidade em S. Paulo o francez Pedro Carlos Etchoin. Além destes dous trechos encontrei apenas em al- guns relatórios informações a respeito do hospital de Lázaros da corte, versando sobre o movimento de doentes, orçamento, etc. Quanto a providencias em ordem a evitar o desen- volvimento da morféa no Brazil, nada encontrei: ne- nhuma idéa, nenhum projecto, nenhuma intenção. Eis a triste verdade. Depois da nossa independência política se têm fun- dado no paiz os seguintes hospitaes para morfe- ticos: Na capital do Maranhão ha um asylo, sobre o qual tenho informação do ex-presidente o Dr. Cincinnato, concebida nestes termos: «Por deliberação da mesa ad- ministrativa, em virtude de indicação do governo da provincia, foi estabelecido a 7 de Julho de 1833 em uma pequena casa da rua do Passeio, por detraz do antigo cemitério desta irmandade, o hospital dos lázaros, e nelle recolhidos 28 morfeticos, remettidos pelos juizes de paz, e outras autoridades da capital. « O hospital é destinado somente para morfeticos. (») Obr. cit. - 75 - c< Para as despezas com o custeio deste estabeleci- mento, inclusive medicamentos, roupa, utensílios, concorre a Santa Casa desde que foi elle fundado, re- cebendo da provincia de 1861 a 1869 o supprimento de 1:833$333 annualmente, de 1871 a 1873 o de 2:550$ e de 1874 em diante o de 6:000$ como auxilio ás despezas feitas com o dito hospital. « Finalmente, sendo estabelecido o mesmo hospital com o numero de 28 doentes como já disse, tem-se alli conservado esse numero com pequenas alterações para mais ou para menos em conseqüência de falleci- mentos de uns e entradas de outros, existindo em 1880 — 33 e em 1881 — 35 doentes. » O procedimento da provincia do Maranhão é a este respeito merecedor de elogios, sobretudo si o compa- rarmos com o de outras mais vantajosamente dotadas de recursos. Confesso-o com prazer. Entretanto, não posso, sob o ponto de vista hygie- nico, deixar de accusar a pequenhez da casa que serve de hospital, a sua posição central, e a collocação atraz de um cemitério, embora antigo. A capital de Mato Grosso possue igualmente um pequeno serviço para morfeticos, segundo me foi com- municado pelo Sr. Barão de Maracajú, conforme de- clarei. O hospital de Cuyabá não é antigo, e recebe pequeno numero de doentes. Além dos dous, o da capital do Maranhão e o de Cuyabá, só me consta a existência de mais dous asylos, sendo um em Piracicaba e outro em Campinas. Em Piracicaba o prestimoso cidadão Manoel Ferraz Arruda Campos, no humanitário intuito de ver abriga- dos os morfeticos que andavam esmolando pelas ruas, promoveu a edifícação de um asylo em um arrabalde da cidade, sendo auxiliado por uma subscripção pro- movida entre os seus habitantes. — 76 — Graças aos perseverantes esforços do Sr. Arruda Campos, o asylo ficou prompto em 1880, sendo no mesmo anno entregue á respectiva câmara municipal. Cabe-me accrescentar que este asylo não teve ainda occasião de funccionar por se haverem afugentado da cidade de Piracicaba os morfeticos, que por lá anda- vam esmolando. A rica e florescente Campinas, cidade cheia de ani- mação e de vida, e das cidades do interior a mais adiantada que conheço, também possue um hospital para lázaros. Quando o visitamos (*), continha este hospital 14 morfeticos. Comquanto a casa seja menos má que a do asylo da capital de S. Paulo, e a situação incompa- ravelmente melhor, todavia, á excepção dos tectos sob os quaes se abriga a miséria, nada mais encontrámos que fizesse recommendavel o asylo de Campinas. O administrador não permanece no estabelecimento, e sim na cidade., onde ô procurado para os misteres do serviço. Os doentes acham-se sobre si, e são elles próprios que preparam os seus alimentos, que, de passagem o digo, não são bem escolhidos : por exemplo — a fa- rinha de que usam quasi quotidianamente, é a de milho. Os doentes não transitam pelas estradas, e limitam os seus passeios ao terreno baldio que circumda a casa. E' lamentável que estes enfermos não disponham ao menos de um pequeno terreno onde cultivem legumes e hervas para sua alimentação. O asylo de Campinas ô o único custeado pela câmara municipal. (M 0 Dr. Podro Paulo o eu, sondo acompanhados nosta visita pelo diitincto Dr. Cândido Ribeiro Barata, um dos nossos mais illustrados clínicos. — 77 - Circumstancia notável! Como este asylo não tem ar de prisão, como os doentes não se acham em custodia e podem passear sem esbarrar em muralhas, não só não fogem, como até se nos confessaram alli satisfeitos, apezar da carência absoluta de cuidados médicos e da muita deficiência do serviço interno. Não me constando que haja no Brazil algum outro hospital com semelhante destino, ciou por terminada, sem mais commentarios, esta parte do meu trabalho. 18 PV OS IMGENAS DO BRMIL E A MORFÉA Tendo eu de estudar, com applicação ao Brazil, as causas a que se tem attribuido a morféa, julgo da maior importância para o desenvolvimento do meu raciocínio deslindar esta questão preliminar : existia tal moléstia entre os indígenas antes do descobrimento do Brazil ? Existe actualmente entre os indígenas ainda não mes- clados ? A razão da importância que ligo ao assumpto é obvia: como o clima tem sido geralmente considerado um dos factores da morféa e se tem affirmado, não sei si com muito fundamento, que esta moléstia é peculiar do clima quente, do clima tropical, lançando-se ao esque- cimento que ella reinou, não por espaço de annos, mas durante muitos séculos em paizes de clima temperado, e ainda hoje lavra com bastante intensidade nos de clima frio, torna-se muito conveniente indagar qual foi a accão do nosso clima sobre os primeiros habi- tantes. Si o clima do Brazil é deveras capaz, si possue o funesto privilegio de gerar a morféa, certamente não teriam a ella escapado os nossos indígenas, por pas- sarem quasi a vida expostos ao sol, á chuva, ao relento; - 80 - por não se acautelarem de cousa alguma, residirem nos focos de humidade, ás margens dos rios e lagos, e ignorarem os perigos da intoxicação palustre; e, em summa, por viverem inteiramente dominados pela influencia do clima, receberem em cheio sua acção, sem o amparo e sem o correctivo dos climas artifi- ciaes, de que usam os homens e os povos civilisados. Effectivamente, indígenas e clima andaram e andam tão intimamente cosidos, si assim me posso ex- primir, um ao outro, que tornar-se-hia impossível aquelles furtarem-se aos effeitos deste, quaesquer que fossem—bons ou máos. Muito de industria não limitarei o meu estudo ao passado, fazendo-o extensivo aos actuaes indígenas, somente para evitar alguma objeccão no sentido de qualquer modificação em virtude da qual, si o clima não possuía, veiu adquirir a funesta acção. Em vez, pois, de ir direito ao estudo das causas da morféa, suspendo-o por um pouco afim de examinar primeiro a influencia, neste ponto, do clima do Brazil no seu período de pureza e isolamento. E' o que passo a fazer. Ao tempo do descobrimento do Brazil povoavam o litoral tribus selvagens, que constituíam nações dif- ferentes sob o ponto de vista político e econômico, mas tendo provavelmente a mesma origem ethnica, como parecem attestar os seus caracteres physicos, linguagem e tradições (*). Os tupys, procedentes do Norte, haviam conquistado e estabelecido suas tabas nas piscosas praias do mar e nas margens dos rios, repellindo para o interior do (') Sobro a unidade othhica das tribus selvagens do Brazil, veja-so : D'0r- bigni—L'hommo Americain ; J. ü'0malius d'Halloy — Manuol prat. d'Ethno- graphio, o Gonçalves Dias — 0 Brazil o a Oceania—obras posthumas — vol. VI. - 81 - paiz seus antigos povoadores, os quaes, na época do descobrimento, ainda procuravam recobrar por meio das armas o território perdido. « Destas duas raças, diz Gonçalves Dias(1), — a tupy, a raça conquistadora ou invasora, era talvez a mais numerosa e de certo a mais forte, comquanto em alguns logares já houvesse cedido ou fosse cedendo terreno a seus contrários: era a que se achava de posse das praias, das mattas mais abundantes, e das mar- gens dos rios mais piscosos. » Foi ella pois a pri- meira conhecida e a que mais despertou a attenção européa, que só mais tarde dirigiu-se para as tribus do interior. Quando os europeus viram pela primeira vez essa raça de côr bronzeada, mal poderam acreditar perten- cesse ao gênero humano (2), e considerando-a de origem baixa, muito inferior á delles, trataram antes de aproveitar-se do trabalho physico dos indígenas, do que de estudar convenientemente seus hábitos, tra- dições e conhecimentos. Deste menos preço parte toda a diffículdade que se encontra em elucidar qualquer assumpto concernente aos indígenas americanos, maximè á sua pathologia e á sua hygiene. Felizmente, ao lado do caracter dos primeiros domi- nadores, cegos pelo interesse material e pelas preoccu- pações de fabulosos lucros, andaram por vezes espíritos elevados, que aguçados pela curiosidade e movidos (i) 0 Brazil e á Oceania —pag. 19. (2) Paw, citado por Gonçalves Dias (obr. cit, pag. 213) diz * haver*se sustentado nas Universidades da Europa, quo oshabitanlcs da America não oram verdadeiros homens, mas verdadeiros ourang-ovtannos». O mesmo Gonçalves Dias « apoiando-sO nos trabalhos de Herrera o Torqucmada, diz quo « os hespanhoes os consideravam como animaes de classe inferior á ospecio humana. » Foi nccossario quo uma bullá particular de Paulo III, cm 1537 — Veritas ipsa qum_ ncc {alli ncc fallere pctPSt,os dccíarasso vordadeiros homens, capazes do íé e religiãochristã. 11 - 82 — pelo interesse scientifico e humanitário, estudavam e descreviam o que sobre o homem americano lhes di- tava o conhecimento próprio São pois os escriptos daquelles observadores, escriptos coévos, a principal fonte onde fui colher os materiaes para esta parte de meu trabalho. Os caracteres physicos geraes da raça brasilio-guara- nyense são assim descriptos pelo Dr. D'Orbigni: « Côr amarellada com mistura de vermelho muito desbotado, estatura um metro 620 millimetros, fôr- mas massiças, fronte não inclinada, rosto cheio e circular, nariz estreito e curto, ventas estreitas. Boca mediana e pouco saliente, lábios delgados, olhos oblíquos e sempre repuxados para o angulo exterior, como os dos Mongóes, ossos da face pouco salientes, feições de mulher, physionomia doce. » Gonçalves Dias que havia feito sobre os indígenas americanos, e especialmente sobre os do Brazil, ac- curado estudo, ao qual por vezes terei de recorrer, tra- tando da conformação physica dos tupys, exprime-se nestes termos: « Cabeça antes grande que pequena comparada com o resto do corpo, tronco largo e robusto, peito arqueado, espaduas largas, quadris pouco salientes. Ainda que os seus membros sejam algumas vezes curtos, com- parados ao resto do corpo, são sempre repletos, arre- dondados e musculosos: as extremidades superiores nunca magras, bem desenhados os braços, artistica- mente fallando, ainda que algumas vezes grossos de mais, e as mãos pequenas em relação a elles. As ex- tremidades inferiores são bem proporcionadas, e as bellas fôrmas raras vezes magras, e os pés pequenos posto que largos. São portanto as suas fôrmas menos bellas do que hercúleas. Assim também as mulheres, acostumadas a uma vida livre, exercendo as forças — 83 - desde a infância, sem nenhum obstáculo ao desenvol- vimento de suas forças e de seus membros, têm tudo quanto poderiam desejar para o gênero de vida a que são destinadas: assim, bem que sejam raras vezes esbeltas e graciosas, porque são muito robustas para serem bem feitas, são próprias para o trabalho e sa- dias : têm partos fáceis, filhos vigorosos desde a in- fância e nunca defeituosos. Entre homens e mulheres, ainda na velhice, raros são os casos de obesidade. » Esta ultima observação do nosso notável poeta tem sua explicação natural em dous factores importantes, de que dão conta todos os escriptores coévos, e que vem a ser: os exercícios corporeos e o regimen ali- mentar. exercícios corporeos. — De hábitos bellicosos e obrigado a procurar na caça, na pesca e nos fructos silvestres o seu alimento, o selvagem americano era levado a dar a seus filhos accurada educação physica, que lhes garantisse, além da conservação da saúde, a maior força muscular. Para isso os habituavam desde a infância ao exercício do arco, á carreira, á subida das arvores, á caça, á natação e ao manejo dos remos. Durante a puberdade eram os filhos sujeitos a do- lorosas provas de iniciação antes de serem admittidos ao logar dos indígenas combatentes. Hans-Stadt(1), que esteve prisioneiro entre os tupys, « refere ter visto durante seu captiveiro um índio que á noite percorria as cabanas munido de um dente de peixe aguçado com o qual rasgava as carnes das pernas dos mancebos, afim de que aprendessem assim a sofírer sem se queixarem » (') Citado por Gonçalves Dias — Obr. cit. pag. 118. — 84 — A dança era um dos exercícios favoritos dos indí- genas americanos. Nestes folguedos de ordinário simulavam ora com- bates, ataques ou defesa de povoacões fortificadas, ora reproduziam episódios de caça, ou ajustes de paz depois dos combates, ou finalmente encontros e com- primentos a tribus amigas. Estas danças eram ver- dadeiros e utilissimos exercícios em que tomavam parte todos os habitantes de cada taba ou toda a tribu, formando grupos inteiramente separados, de três or- dens : Io o dos guerreiros, os que representavam as scenas que acabo de indicar; 2o o das mulheres, as que exhibiam as scenas de suas occupações habituaes; 3o o dos meninos, os futuros guerreiros que reproduziam, iniciando-se nelles, os exercícios bellicos de seus pais. A estas festas nunca presidia a lubricidade —evitada pela separação dos sexos. O matrimônio não se effectuava entre os indígenas sem ser precedido de serias provas de agilidade e destreza. Passando os dias nas florestas, entregues á caça ou á colheita de fructos silvestres, eram os indígenas a cada passo solicitados a desenvolver e apurar a sua natural sagacidade, coragem e agilidade, afim de lhes não falhar a presa bravia, e de evitarem os constantes perigos, que os cercavam, quer proviessem dos ani- maes ferozes ou peçonhentos, quer do ódio irreconci- liavel da tribu inimiga. Regimen alimentar. — A alimentação dos indi- genas americanos não era sujeita ao que se chama propriamente um regimen. Nômades, detestando a vida sedentária, alimentando-se de fructos, da caça e da pesca, para o que andavam sempre dispersos pelas florestas, pelos rios e lagos , e ignorando a utilidade e o valor dos preceitos hygienicos, não — 85 - podiam elles fazer uso razoável e methodico dos ali- mentos. Tão concordes são os escriptores que estudaram os costumes alimentícios dos primitivos americanos, que julgo desnecessário estender-me neste ponto; por isso, e somente para especialisar os mesmos costumes, limitar-me-hei aos seguintes juizos: « Os Botucudos, diz Gonçalves Dias (pag. 88), si é preciso, supportam a fome por muito tempo; mas co- mem depois immoderadamente; a sua principal neces- sidade é a nutrição—comem pois com avidez, e du- rante a comida são surdos e mudos para tudo o mais. » Compunha-se a sua alimentação, como tenho por vezes dito, de fructos silvestres, dos productos da caça e pesca, bem como dos de uma lavoura nascente, que pesava exclusivamente sobre as mulheres, encarre- gadas além disso de preparar as bebidas fermentadas de que eram grandes amadores. Pero de Magalhães Gandavo, o primeiro portuguez que escreveu sobre o Brazil, setenta e tantos annos depois de seu descobrimento (*), tratando da alimen- tação dos aborígenes, diz o seguinte: « Os mantimentos que plantam em suas roças, com que se alimentam, são mandioca e milho zaburro. Além disso ajudam-se de carnes de muitos animaes que matam, assim com frechas como por industria de seus laços e fojos, onde costumam caçar a maior parte delles. « Também se sustentam do muito marisco e peixes que vão pescar pela costa em. jangadas. » (i) Este trabalho intitulado Historia da provincia de Santa Cruz, a que vulgar- mente chamamos Brazil, vem annexo á Golleccào das Noticias Históricas do abbade Diogo Barbosa Machado, cujo único oxemplar pertence á Bíbliotheca Naeional do Bio de Janeiro. Foi depois publicado em 1858 no tomo XXI da Revista do Ins- tituto Histórico e Geographico Brazileiro. -86 - Gabriel Soares de Souza, senhor de engenho na Bahia de Todos os Santos, ahi residente e vereador da câ- mara municipal, em seu Roteiro do Brazil, obra ter- minada em 1587 em Madrid, segundo deduz-se da carta que dirigiu a Christovão de Moura a quem a dedicou, occupando-se deste assumpto exprime-se por estas palavras: « Este gentio (Tupinambás) não come carne de porco, dos que se criam em casa, senão os escravos criados entre os brancos; mas comem a carne dos porcos do mato e da água; os quaes também não co- mem azeite, senão os ladinos : toda a caça que este gen- tio come, não a esfola, e chamuscam-na toda ou pel- lam-nana água quente, a qual comem assada ou cozida, e as tripas mal lavadas; ao peixe não escamam nem lhe tiram as tripas, e assim como vem do mar ou rios, assim o cozem ou assam: o sal de que usam, com que temperam o seu comer, e em que molham o peixe e carne, fazem-no da água salgada que cozem tanto em uma vasilha sobre o fogo até que se coalha e endurece, com o que se remedeam ; mas é sobre o preto e requei- mado. Este gentio é muito amigo do vinho, assim machos como fêmeas, o qual fazem de todos os seus legumes, até da farinha que comem; mas o seu vinho principal é de uma raiz que chamam aipim. » Com tal gênero de alimentação, com a falta de regu- laridade nas horas da refeição, com a privação que as guerras, as viagens e a deficiência da caça ou pesca algumas vezes lhes impunham, sobretudo com a vida activissima que levavam, não é de extranhar a rari- dade da obesidade entre elles. Além disso tinham os americanos em muita conta o asseio. 0 padre Ivo d'Evreux fna sua Historia das cousas mais memoráveis havidas em Maranhão nos annos de 1613 a 1614, publicada pela primeira vez em Paris, em — 87 - 1615), diz a este respeito: « Têm (os Tupinambás) mui o cuidado na limpeza de seus corpos: lavam-se muitas vezes, e não passa um só dia em que não dei- tem muita água sobre si, em que se não esfreguem com as mãos por todos os lados para tirar o pó e ou- tras immundicies. Penteiam-se as mulheres muitas vezes. » Extractando, como fiz, as citações de vários escri- ptores, e reunindo-as nesta rápida exposição, que eu poderia ter alongado si não me parecesse desneces- sário, julgo ter dito bastante para dar idéa dos cara- cteres physicos e dos hábitos hygienicos dos indígenas. Eram homens robustos, valentes, ousados, não por superstição, conforme Montesquieu pretendeu explicar a coragem dos habitantes dos paizes de clima quente, porém por sua robustez physica, real, completa, e da educação moral que recebiam. Quem, com effeito, examinar as qualidades physicas e os dotes moraes dos nossos indígenas, necessaria- mente interrogará : e eram os habitantes deste paiz, e viviam sob este clima geralmente accusado de ener- vador ? Por que razão os não enlanguecia o clima, os não tor- nava inactivos e preguiçosos ? Póde-se acaso admittir que o clima fosse um para o indígena, e seja outro, tão diverso, para o homem civi- lisado ? Protector para o primeiro, ingrato para o se- gundo ? A molleza, a passividade, a preguiça, podem, avista do exposto, ser lançadas á conta do clima ? A historia dos indígenas nos instrue, é-me grato confessal-o, que o clima do Brazil não é incompatível com a maior robustez physica nem com a maior ener- gia moral, e o affirma tão esplendidamente que não ha oppor a menor duvida. - 88 - Si no estado civilisado, de que gozamos, não apre- sentamos as mesmas qualidades physicas e moraes, é porque, sendo-nos impossível recorrer aos meios próprios da vida selvagem, não nos deliberamos a acceitar os que em substituição offerece-nos a hygiene, aliás perfeitamente adequados ao desenvolvimento das faculdades physicas, intellectuaes e moraes; e porque a razão e a sciencia têm menos poder sobre o homem civilisado, do que a natureza sobre o selvagem. Com estes caracteres physicos e com os seus hábitos hygienicos, isto é, com semelhantes exercidos corpo- reos e semelhante regimen alimentar, era possível que os indígenas soffressem de morféa ? Si me fosse permittido anticipar a resposta, eu diria: absolutamente não. Existia a morféa entre os indígenas do Brazil antes de seu descobrimento ? Primeiro que tudo cumpre-me mencionar uma cir- cumstancia muito importante para o caso: o colorido da pelle e as pinturas com que a ornavam os indí- genas do novo mundo foram sempre objecto de par- ticular attenção dos europeus. Biet, em sua Voyage dans Ia France Equinoxia l pag. 352 (*), diz em referencia aos Caraibas « Leur chair est bonne et fort douce, ü semble que ce soit du satin, quand on touche leur peaux. » Gonçalves Dias, referindo-se ás tribus Tupys, assim se exprime: « A pelle, longe de ter a aspereza que Ulloa lhe quiz attri- buir, é muito mais macia que a dos europeus e homens do antigo mundo; é lisa, polida, brilhante e macia como setim, sem offerecer portanto desigual- (!) Citado por Gonçalves Dias—pag. 108. - 89 - dade alguma, qualidade que em máximo gráo se apresenta nas tribus que habitam a zona torrida. » « Estes povos, e não só elles, porém geralmente todos os indios do Brazil, disse Ivo d'Eoreux, têm por costume cortar o corpo e recortal-o tão lindamente que as costureiras e alfaiates, embora hábeis em sua profissão, buscam imital-os no corte dos seus ves- tidos (pag. -40). » « Esta côr, diz por sua vez'Cláudio d'Abbeville, não diminue sua belleza natural. Ahi existem rapazes tão bonitos e raparigas tão lindas como n'outro qualquer logar, menos na côr. » Merecendo, pois, a pelle dos indígenas tanta at- tenção, nenhum observador certamente deixaria cie mencionar quaesquer modificações que se asseme- lhassem ás da lepra, como por exemplo não omit- tiram as boubas ou pian; sobretudo attentas as pro- fundas alterações que a lepra em regra geral causa já na pelle do enfermo, já no rosto, etc. Do estudo minucioso e exame comparativo que tive de fazer dos mais importantes documentos históricos sobre os indígenas americanos, pude obter duas series de provas tendentes a justificar minha resposta, deci- didamente negativa, ao quesito acima formulado. Destas duas series de provas, a primeira (prova in- directa) se apoia na autoridade de europeus que, tendo visitado e estudado os indígenas, descripto os seus hábitos, os seus costumes e as suas enfermidades, nenhuma menção fizeram da lepra, sendo aliás uma moléstia em que os caracteres exteriores estão perfei- tamente visíveis, e mais accentuados na generalidade dos casos do que em qualquer outra enfermidade; o que certamente não teria escapado mesmo ao mais superficial observador, si tal moléstia com effeito existisse entr'elles. ir 12 - 90 - A segunda serie de provas (directas ou positivas) se firma na declaração franca e explicita de alguns au- tores coévos quanto á não existência da lepra entre os indígenas americanos. Começarei pela exposição das primeiras provas, as indirectas. Américo Vespucio, em suas cartas traduzidas e annotadas criticamente pelo Visconde de Porto Se- guro, na parte relativa ás suas três viagens ao Brazil (Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, 1878), descrevendo a gente que encontrou no Novo Mundo, diz: « Andam nús, têm os corpos grandes e robustos, bem dispostos e proporcionados. Vivem cento e cincoenta annos e raras vezes adoe- cem. » Não viu, pois, morfeticos. Pero de Magalhães Gandavo, na sua Historia da provincia de Santa Cruz, tratando dos indígenas, diz que elles são de côr baça, bem dispostos, rijos, etc; mas não menciona semelhante moléstia. Gabriel Soares de Souza, no seu Roteiro Geral do Brazil, occupando-se com as moléstias dos Tupinam- bás da Bahia, falia nas boubas, febres terçans, etc, mas nenhuma referencia faz — absolutamente ne- nhuma—, á morféa. Jean de Lery, em sua Histoire d'un voyage fait en Ia terre du Brésil, cuja Ia edição foi publicada em Rochelle, no anno de 1578 (e a 7a, que tivemos á vista, em Genebra, no anno de 1600), nem no Capit. XIX, que tem por titulo « Comment les sauvages se traitent en leurs maladies, ensemble de leurs sepultures et funerailles, etc. »; nem em parte alguma de seu trabalho falia da lepra, entretanto tendo-se occupado detalhadamente com o Pian ou boubas. O Padre Ivo d'Evreux, em sua Continuação da Historia das cousas mais memoráveis havidas no - 91 - Maranhão de 1013 a 1614 (*), nos capítulos XXIX e XXX, em que occupa-se de algumas indisposições naturaes e moléstias particulares a estes paizes de índios, trata das boubas, febrespalustres, moléstias de olhos, etc, e nada diz sobre a morféa; no emtanto este padre, minucioso observador, falia de uma moléstia de pelle, que descreve nos seguintes termos, pag. 102 : «Encontra-se também uma espécie de sarnentos de raça, os quaes mudam de pelle annualmente, e com- tudo não soffrem moléstia alguma, estão sãos, e cha- mam-se a todos que soffrem este mal Kuruuebore. » A descripcão e a marcha de tal enfermidade clara- mente mostram que não se trata da morféa ; e certa- mente Ivo d'Evreux não se calaria si com essa moléstia se parecesse a que descreveu, ou si tivesse encontrado a morféa com os seus tão característicos signaes ex- teriores ; e tanto mais razão tenho para assim pensar, quanto o seu companheiro de missão, o padre Cláudio d'Abbeville, que com elle observou os índios Tupi- nambás do Maranhão, nominadamente affirma não existir lepra entre elles, como mostrarei. O veneravel padre José de Anchieta, o apóstolo do novo mundo, que não só visitou como viveu entre os indios Tupinambás, Tamoyos, Tupiniquins, Aymorés, Papanases, Carijós, etc em sua celebre carta dirigida em Maio de 1560 ao padre Geral de S. Vicente (2) diz que a destes Brasis (chama assim os indígenas) nenhum encontrou affectado de deformidade alguma natural.» Occupando-se nessa mesma carta dos (') Esta obra (como a do padre Cláudio d'Abbevi!lo) foi traduzida polo Sr. Dr. César Augusto Marques o publicada, ern 1874, no Maranhão, sob o titulo do His- toria da missão dos padres Capuchinhos na ilha do Maranhão. Esta traducção é a quo temos á vista, e a ella se refere a indicação das paginas. (2) Publicada no volume I dos Annaes da Bíbliotheca Nacional do Rio de Janeiro, Bio do Janeiro 1876. - 92 — peixes, diz o seguinte: «Os peixes são muito sau- dáveis nesta terra e podem-se comer todo o anno sem prejudicar á saúde, e até na moléstia, sem medo da sarna que aqui não existe em parte alguma. » Ora o padre Anchieta, conhecedor como era dos indígenas do Brazil e cuidadoso observador das suas moléstias, como está claramente indicando aquella referencia á sarna, não deixaria de ^mencionar a morféa, si por- ventura a houvesse encontrado entre os indígenas. André Thevet, em sua obra intitulada Les singu- laritês de Ia France antarctique (1), cuja primeira edição appareceu em Paris, no anno de 1558, nem no capitulo XLV (Description d'ime maladie nommée Pians à laquelle sont subjects ces peuples de VAmé- rique, etc), nem no capitulo XLVI (Des maladies plus freqüentes en VAmérique, etc), nem em qualquer outra parte trata da lepra. O padre Fernão Cardim, em sua Narrativa epistolar de uma viagem e missão Jesuitica pela Bahia, Ilheos, Porto-Seguro, Pernambuco, Espirito Santo, Rio de Ja- neiro, S. Vicente (S. Paulo), etc. desde o anno de 1583 ao de 1590, publicada pela primeira vez em Lisboa (1847), absolutamente nada diz sobre a existência da morféa entre os Índios. João de Laet, d'Anvers, na sua Histoire du nouveau monde ou description des Indes occidentales, publi- cada em Leyde em 1640, tratando do Brazil, diz (livre 15me chap. I, pag. 475): «Le climat du Brésil est presque tempere, Vair y est sain, de sorte que les hom- mes y vivent nonante et par fois cent ans. » Em nenhuma parte de seu trabalho, porém, refere-se á existência da lepra entre os indígenas do novo mundo. (!) Tivemos presente a nova edição publicada em Paris pelo Sr. Paul Gaffarol, em 1878. — 93 - Gonçalves Dias na sua obra tantas vezes por mim citada, ao occupar-se na sua primeira parte com os indígenas do Brazil, nenhuma allusão faz quanto á existência da lepra, nem mesmo quando trata dos ca- racteres physicos dos primeiros habitantes do nosso paiz, apezar do cuidado com que redigiu esta parte, e do estudo minucioso e esmerado a que teve de entre- gar-se, como indica o seu importante trabalho. Pois bem, na segunda parte, destinada á descripção do estudo physico, moral e intellectual dos povos da Oceania, diz a propósito dos Malaios o seguinte: « Con- cluímos a descripção dos caracteres physicos desta raça com dizer que está sujeita a febres, syphilis, ele- phantiasis, e á lepra, etc. » Pag. 319. Eu poderia apresentar outras muitas citações nesse sentido, si não entendesse que esta serie de provas vae bem escudada em importantes e insuspeitas auto- ridades, que bem claro deixarão ver que nos indígenas do Brazil não encontraram indicio algum da existência da lepra, nem de qualquer manifestação na sua pelle que fizesse ao menos suspeital-a. Passo agora a tratar da outra serie de provas, as directas. Os elementos que encontrei para esta demonstração não são, é certo, em grande numero; mas, assim mesmo os considero bastantes para firmar convicção a tal respeito. São em numero de ires as provas que tenho a apresentar. A primeira obtive-a da obra do padre Lafítau, da companhia de Jesus, intitulada — Mceurs des sauvages ameriquains, comparées aux mceurs des premiers temps, e publicada em Paris em 1714 (2 volumes in 4o). Escripta com grande cópia de erudição, a obra do padre Lafítau é baseada não só na observação — 94 — pessoal, porque, como elle mesmo o diz (tom I, pag. 2), esteve cinco annos em uma missão de selvagens do Canadá, como também nos conhecimentos de um antigo missionário Jesuita, o padre Julien Garnier, que per- maneceu mais de 60 annos entre os selvagens ameri- canos . Além disso inspirou-se, como elle próprio confessa á pag. 3 do tomo I, nas Relações publicadas em diver- sos tempos por differentes auctores, particularmente por missionários. No extenso artigo que tem por ti- tulo maladies et medicine (Tomo II, pags. 359 a 386), só uma vez o padre Lafítau refere-se á lepra, e isso mesmo para deixar bem claro que esta moléstia não existia entre os selvagens americanos. Eis o trecho a que me refiro: « O que ha de singular, é que elles (os selvagens) costumam levantar uma cabana nas flores- tas para aquelles que são atacados desse mal infame (piansou syphilis),e separal-os do meio do povo, como os judeos procediam para com os que eram affectados de lepra .» «Ce quHl y a de singulier, c'est qiVils ont coútume defaire une cabane dans les bois à ceux qui sont attaqués de ce mal infame, et de les separer du milíeu du peuple, comme les juifs en usaient à Végard de ceux qui etaient taches de Ia lepre.t) Referindo-se de modo tão directo á lepra e não a mencionando entre as moléstias dos americanos, é evidente que o padre Lafítau nunca a encontrou entre elles. O mesmo podemos dizer a respeito da seguinte citação do padre Cláudio d'Abbeville em sua Historia da missão dos pa- dres capuchinhos na ilha do Maranhão e suas circum- vizinhanças. Comparando elle o estado do homem civi- lizado da Europa com o dos selvagens do Maranhão, diz (pag, 306 da traducção do Dr. César Marques): «Quan- tos de seus parentes corrompidos e gastos pela lepra, gota, cálculos e catarrhos, não por herança, vivem — 95 - aqui fracos, soffrendo dores de baço, de fígado, ulceras nos pulmões, ou outro qualquer padecimento ? Naquelle paiz (referindo-se ao Brazil), porém, não ha taes enfer- midades. » D'aqui se infere igualmente que nos sel- vagens do Maranhão e nos de suas circumvizínhas o padre d'Abbeville nunca observou a lepra. A ultima prova que me resta dar é a mais categó- rica e de todas a mais autorizada, visto partir de um medico, e medico dos mais notáveis de seu tempo; refiro-me a Guilherme Pison, medico e naturalista hollandez do começo do século XVII. A seu respeito eis o que se encontra em Larousse Diction. Univers.: « Elle exerceu a medicina em Leyde e Amsterdam, depois acompanhou, com Margraff, o príncipe de Nassau em sua viagem ao Brazil (1637). As descobertas destes dous sábios foram publicadas por Laet sob o titulo Historia naturalis brasilice (Leyde, 1648). Esta obra foi durante muito tempo o que havia de mais completo sobre o Brazil. Deve-se a Pison a descoberta e a importação do ipecacuanha na Europa. Pison é autor de um tratado De medicina brasiliensi librilV. » E' pois este medico notável que me vem prestar o valioso auxilio e fornecer o ultimo argumento com a exposição do resultado de sua própria e autorizada observação. Guilherme Pison em seu tratado de medicina brazi- liense (*), no livro I, pag. 12, occupando-se das mo- léstias do Brazil, cita a cegueira, dysenteria, hemor- rhoides, etc, e accrescenta: « Lepra autem et scabies incógnita; sunt » isto é, a lepra, porém, e a sarna são desconhecidas. (!) Edição de Amsterdam sob o titulo do Historia naturalis brasilice, 1648. — 96 - No livro II, cap. XXI, pag. 37, diz o seguinte: «Inter vitia cutânea nondum scabiem, lepram, Elephantiasin observasse contigit, sicut in /Egypto aliisque fervi- dioribus regionibus grassari testatum est ab Auto- ribus. » Além do que pude colligir, encontrei valioso subsi- dio na opinião que sobre o assumpto emittiu o Dr. Bernardino Antônio Alves Machado na sua these de doutoramento, uma das melhores publicadas entre nós sobre a lepra, e sustentada perante a faculdade de medicina do Rio de Janeiro em 1846; opinião que com muito prazer reproduzo aqui: « Depois de procurar cuidadosamente os escriptos onde encontrasse esclarecimentos, e depois de árdua pesquiza, diz o Dr. Bernardino Machado, eis-aqui a opinião que colhi de quasi todos os auctores, que na America têm tratado desta questão. Tomsom (*) em Barbadas, Hillary (2) na Guadalupe, Bajon (3) e Ber- geron (*) em Cayenna, e mui particularmente o Sr. Dr. Silva entre nós, são unanimes em sustentar que a elephantiasis era completamente desconhecida na Ame- rica, antes de sua descoberta e civilisação. » A' vista do exposto posso sem receio affirmar que « a morféa não existiu nos indígenas do Brazil ao tempo do seu descobrimento », e até fazer, apoiando-me nas mesmas autoridades, o seguinte additamento: « que nem encontrada foi depois de decorridos alguns annos. » (i) Remarks on the tropical diseases. (*) Obs. on the changes of the air and the concomitant cpidemical in lhe Island of Barbadoes. (3) Memoirc pour servir à l'histoire de Cayenne et Ia Goyane. ('*) Dissertation sur le mal rouge observe a Cayenne. As quatro ultimas obras vêm citadas na thesoi — 97 - Existe actualmente a morféa entre os indígenas do Brazil ainda não mesclados ? Para responder a este segundo quesito não pude colher tão abundante cópia de documentos como para o precedente, porque infelizmente tem havido muito descuido de se estudar esta raça infeliz, que durante muitos séculos foi a única povoadora deste vasto e uberrimo solo da America. Aproveitando-me, porém, dos elementos que me foi possível obter, vou expol-os afim de justificar a minha illação final. O capitão-tenente da armada Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, no seu Diccionario topographico, histórico e descriptivo da comarca do Alto Amazonas, publicado no Recife em 1852, diz o seguinte: « A mor- féa, que desola alguns logares do Baixo Amazonas (não porque seja endêmica), não chega ao Alto. » E' preciso attender que o chamado Alto Amazonas é hoje a provincia do Amazonas, cuja população em 1852 era em sua maioria composta de indígenas. O Dr. Paula Cândido, em suas Reflexões sobre a morféa, publicadas no vol. I dos Annaes de Medicina Brasiliense, diz (pag. 253): « Não a morféa, mas uma affecçãD citanea escamosa e furfuracea, afflige as tribus indígenas, ao menos a dos Purús (que habita entre a Parahyba e Rio Doce) no tempo do fructo da sapucaia de que são ávidos. » O Sr. Dr. Francisco da Silva Castro, laureado pra- tico, que ha quasi meio século (45 annos) clinica na provincia do Pará, forneceu-me as seguintes: infor- mações que registro com muito prazer: « A morféa, diz este collega, isto é, a elephantiase dos Gregos, não é moléstia conhecida entre os indí- genas do Brazil. Nas suas malocas ou tribus não se vê um só indivíduo acommettido' de semelhante enfer- M. 13 - 98 — midade. Quando assim me expresso quero dizer que a leontiase é doença desconhecida dos habitantes das flo- restas, quer na provincia do Pará, quer na do Ama- zonas. Eu ainda não me internei pelo mato virgem, não visitei as malocas desses selvagens, mas no de- curso cie minha vida, que não é curta, tenho estudado bastante esta questão, tenho ouvido os padres, os mis- sionários, os regatões (negociantes em canoas), que têm ido junto delles, que com elles têm tido convivên- cia por largos tempos, que hão perscrutado os seus hábitos, costumes, Índole, necessidades, religião, doenças, medicina, e sei com certeza que a morféa não invade a raça americana aborígene. «Noemtanto entre esses homens das selvas lavra uma moléstia em quasi todas as tribus, chamada por elles—purú-purú, que para os ignorantes talvez pas- se por morféa, porém na realidade assim não é. « O purú-purú não é mais do que uma alteração do pigmento cutâneo. A pelle de amarellada que é entre os indios, vai-se, pouco a pouco, tornando embaceada, acinzentada, como suja, até que por fim fica cinzenta azulada. Isto opera-se em toda a peripheria do corpo, porem mais pronunciadamente no rosto, pescoço, peito, mãos é pés, em geral nas partes mais expostas ao ar, á luz e ao calor. A doença não se manifesta logo nos primeiros annos. Dos quatro para cinco annos começam a pintar de cinzento ligeiras ephelidcs, até que por ul- timo, annos depois, ficam cinzentas, e assim vivem sem encommodo algum apreciável, nem ao menos embaraço na secrecão cio suor. Quando ella se vai tornando antiga, e ás vezes mesmo no começo, depois de cinzenta torna-se-a a pelle branca, alphoide de pre- ferencia hás mãos, pés, pescoço e lábios. Pensam al- guns que essa moléstia é contagiosa, mas eu creio o contrario. Tenho nesta capital (Belém) observado - 99 — muitos casos em casas de familia, onde têm existido indios e índias domesticados, com essa doença, e por muitos annos, sem que todavia ella se tenha com- municado a pessoa alguma. Quanto a mim sua trans- missão na economia animal faz-se por hereditariedade; e tanto isto deve assim acontecer, quanto é sabido que os indios selvagens não cruzam sua raça e nem se casam senão com os da mesma tribu, ou da mesma maloca. Com os tripolantes das canoas, barcos e vapores que navegam pelo Amazonas e seus affluentes, andam a bordo muitos indios domesticados, de pura raça, affectados de purú-purú, sem que tenham con- tagiado seus companheiros de embarcação. «Agora devo accrescentar, continua o Dr. Castro, que em minha longa pratica medica, aqui na capital e em vários logares do interior da provincia, nunca encontrei um indio (tapuyo) domesticado, de raça pura, que sotTresse de morféa, lepra ou elephantiase tuber- culosa. Suspeitos delia tenho visto alguns, e não poucos, dessa raça já cruzada com a africana, a européa e a mestiça (atapuyados, mamelucos, cari- bócas, cabras, amulatados, etc). No hospicio dos lasaros em Tucunduba, onde se acham constantemente de 90 a 100 enfermos, isto ha muitos annos, não se encontra um indio (tapuyo), nem mesmo um atapuyado. Parece que a raça americana é refractaria a semelhante doença.» Esta interessante communicação do nosso douto collega paraense, de grande valor sob o meu ponto de vista, não o é menos pela descripção da singular mo- léstia cutânea dos indígenas, o purú-purú, que não sei fosse antes descripta por algum outro. A respeito da provincia do Paraná volto aos dous manuscriptos cuja acquisição devo á bondade do Dr. Cassiano Cândido Tavares Bastos. — 100 - Em um delles se diz: « Não consta se tenha dado entre os indios de Paraná um só caso de morféa, seja entre os selvagens propriamente, seja entre os cathe- quisados. Ao contrario elles são sadios.» No interessante manuscripto do Sr. A. Ricardo Lus- tosa de Andrade (de Coritiba) deparei com a seguinte informação: «Duas tribus existem na provincia: os Botucudos que habitam as divisas de Santa Catharina com esta provincia, e os Coroados que occupam a vasta extensão desde o Iguassú até o Paranapanema. A primeira, pouco numerosa, nunca pôde ser cathe- quisada pela ferocidade de seus costumes ; a segunda, mais numerosa, mais intelligente, mais valente, entre- tem relações comnosco, produz grossúros artefactos, planta o milho, amendoim e até a canna. Uma gran- de parte desta tribu relacionou-se com os habitantes de Guarapuava, desde as missões do virtuoso padre Chagas, sem comtudo deixar a vida nômade, nas occasiões de caçadas e pescas. O indígena coroado sobretudo é bastante corpulento, de estatura mais que mediana, tem bellas fôrmas e a pelle fina. « Além destes existem no Paranapanema duas fa- mílias ou malocas: Cayuase Guaranys que vieram dos lados da serra de Maracajú e do rio Iguatemy. São in- dios de indole pacifica, propensos a civilisarem-se, e dados á navegação dos rios.» Depois de estudar os hábitos alimentícios destes in- dígenas o Sr. Ricardo de Andrade accrescenta: «Em relação a moléstias de pelle, de que possam soffrer os indios que habitam os nossos sertões, tenho-me in- formado particularmente de sertanejos que com elles têm convivido e apreciado seus costumes e suas en- fermidades, os quaes são concordes em affirmar que os selvagens não são presas de enfermidades de pelle, ou de qualquer outra que persegue o homem civilisado.» — 101 — Sobre este ponto encontrei na já citada these do Dr. Bernardino Machado o seguinte esclarecimento: «Ain- da mais o Sr. Dr. Silva ('), que se tem dado a minu- ciosas indagações sobre este ponto, sustenta que entre os indígenas ainda hoje só são affectados do mal aquelles que têm cruzado a raça.» Como se vê, si as autoridades não são em numero tão crescido, são entretanto de grande peso, e em presença da formal negativa de todas ellas é-me licito concluir « que ainda no presente os indígenas do Brazil não padecem de morféa.» Em ultima conclusão: a morféa nunca existiu entre os indígenas no Brazil, como dão testemunho as mais competentes autoridades a que se pôde recorrer para o julgamento de semelhante questão. Portanto, o clima não gera esta moléstia, não é seu factor, ao contrario do que se pretente affirmar. (M O auctor alludoao Dr. Joaquim José da Silva, pai dos actuaos professores da faculdade do medicina e distinetos clínicos os Dis. João Silva e José Silva. O Dr. Silva (pai) foi de todos os nossos clínicos o quo se entregou mais aceuradamento ao estudo da morféa e ao seu tratamento. jfc V CAUSAS DA MORFÉA Vou agora entrar no ponto mais difficil e sem duvi- da o mais intrincado deste trabalho. Dos estudos médicos o que ainda hoje menos satis- faz ao espirito, é o concernente á etiologia das molés- tias. « Or, Vestia, diz Baglivi, cettequestionfameusedont Ia solution, si long-temps clierchée, est encore de nos jours le triste drapeau autour duquel lesfactions mé- dicales se livrent de si iludes combats (1).» Realmente, quando se penetra na etiologia das en- fermidades, encontram-se tantos desvios, tantas são as sinuosidades, e tão confusamente se cortam e se cruzam as veredas, que afinal a intelligencia pára in- decisa e desalentada. São tão extremados os conceitos e quasi sempre tão contradictorios, o sim e o não se succedem tão rhy- thmiticamente, que por ultimo o que fica no espirito não é uma idéa clara e assente, mas a duvida, a incer- teza, a confusão. (M B\e raocroissement de Ia medicine pratique, pai?, 393, - 104 — Dir-se-hia uma imitação da tarefa astuciosa da mulher de Ulysses no intuito de sophismar o termo da imprudente promessa. Si não fosse julgar mal da intenção de homens aliás respeitáveis por seu caracter e saber, eu ousaria pensar, tal é a força da coincidência, que uns autores, nesta questão, examinam as opiniões alheias mais para contradizel-as do que para demonstrar a superiorida- de das que èmittem e sustentam. Em outros assumptos medkos os autores enten- dem-se mais ou menos, auxiliam-se, condescendem; no tocante, porém, á etiologia as relações entre elles mudam de caracter, e cada autor, póde-se dizer, segue o seu norte. Deste choque de opiniões offerece a pellagra exem- plo, entre outros, muito frisante. Passava como certo que a pellagra era causada pelo milho alterado. Casal foi o primeiro a denunciar o pão de milho mal fermentado e mal cozido, bem como as sopas preparadas com a mesma farinha, como pre- judicial á saúde. Touvenel impressiona-se com a marcha parallela (*) da pellagra e da cultura do milho. Roussel adopta esta opinião e a defende com grande talento, expondo os fundamentos em que a estribava. Muitos autores adherem a ella: a alteração do milho é a causa da pellagra, dizem elles. Na 7a sessão do Congresso dos sábios italianos em Nápoles, em 1845, se decidiu que era muito positiva a influencia do milho sobre o desenvolvimento da pella- gra. (') Journal de Thêrapeutique de Gublem. 23—1880— Artigo do Dr. Bordier. - 105 - Depois surge a opinião contraria: muitos autores entendem que o milho alterado não é pellagrogenico. No Congresso de Gênova em 1848, Calderini, relator de uma ccnimissão, exrlue o milho d'entre as causas da pellagra ! Muitos outros autores sustentam que o milho não é causa dá pellagra, em opposição por conseqüência a outros tantos que pensam de modo inteiramente con- trario. Não se procura um meio de conciliar, a ser possivel, taes opiniões, nem se tenta descobrir um élo que as una. Não se quer saber dos argumentos dos adversários ; não se demora a attenção sobre os factos comproba- torios da opinião contraria: cada qual, que tem colhido certos factos, nelles funda seus argumentos, e desde então deixa de attender a quaesquer outros factos e argumentos cm contrario. E' forçoso confessar que o estudo da etiologia das moléstias, nas circumstancias em que o podemos fazer, torna-se desagradável e penoso. Depois de muito trabalho não se chega a um resul- tado satisfactorio, não se chega a uma noção clara do objecto, e nem se sabe para que lado se deve inclinar o espirito. E' nestas condições que vou penetrar no exame da causa da morféa, e o faço como quem tem presente ao pensamento estas palavras do Dr. Hardy: « a etiologia da lepra foi desde muito tempo, e será durante longos annos ainda, objecto de múltiplas divergências entre os diversos autores que a estudaram. » Assim é. Não podendo, porém, e mesmo não devendo prescin- dir de similhante estudo, ao qual, cumpre-me confes- sar, ligo a maior importância, porque penso que trará algum beneficio ao meu paiz, não hesito em empenhar- ia. 14 — 100 - me na discussão, si bem que preveja as diffículdades com que terei de encontrar-me e de lutar, reconhe- cendo a inferioridade dos elementos a meu alcance para um trabalho de tanta monta. Para maior clareza dividirei o assumpto em três partes: na primeira tratarei de reunir as principaes opiniões dos autores estrangeiros sobre cada uma das causas a que se tem imputado a lepra; na segunda seguirei o mesmo processo em relação ás opiniões emittidas pelos médicos nacionaes, quer nos poucos trabalhos que sobre esta moléstia possuímos impres- sos, quer nas communicações manuscriptas que estão em meu poder; e na terceira apresentarei, em fôrma de resumo, minhas reflexões sobre as mesmas causas, que são: Clima; Condiçõestelluricas, humidade; Desenvolvimento espontâneo; Contagio; Syphilis; Parasytismo; Regimen alimentar; E, finalmente, herança. Os autores mencionam ainda outras causas como podendo influir mais ou menos na producção da mor- féa, como sejam as depressões moraes, a idade, etc; porém, sendo, como são, consideradas predisponentes ou coadjuvantes, e não determinantes, as deixarei de lado afim de não alongar de mais este trabalho. OPINIÕES DOS AUTORES ESTRANGEIROS Climas.— Os autores não estão de accordo sobre a influencia que os climas possam exercer na producção — 107 — da moléstia. Alguns, si bem que em menor numero, negam completamente esta influencia. « E' difficil, diz Hebra, (*), levar em linha de conta, relativamente á etiologia desta affeccão, as condições do clima. « Com effeito a Islândia e Bergen, o Egypto e a cidade de Cabo, o Rio (2) e Java etc. têm climas inteiramente diversos. « Em Buenos Ayres não são conhecidos os longos invernos da Islândia. » Depois de proferidas estas palavras, o professor Hebra como que recua deste conceito, e accrescenta: « E entretanto certas circumstancias, que são de alta importância, permittem suppôr que as condições cli- matologicas e telluricas não deixam de exercer in- fluencia sobre o desenvolvimento da lepra. » Para confirmar esta «supposição» o professor Hebra men- ciona pessoas que, tendo nascido em paiz immune de lepra e habitado regiões onde ella reina, foram acom- mettidas da enfermidade; allude também á circum- stancia de desenvolver a morféa uma evolução mais lenta, ou ficar estacionaria, ou curar, quando os mor- feticos demoram-se longos annos em paiz onde não existe a lepra; e finalmente attende a que a lepra autochtona não tem a gravidade da lepra endêmica. » Outros autores, porém, e em maior numero, acredi- tam na influencia decidida mas dos climas extremos. « O clima parece influir de um modo muito directo, diz Alibert, sobre a producção das differentes espécies de lepra; os paizes quentes são o seu maior theatrô, são os preferidos por este flagel Io tão terrível para o (i) Hebra, Maladies de Ia peau, tomo 2o pag. 552. (2) Monographie des dermatoses, Baron Alibert tomo 2o pag. 310. — 108 — gênero humano e provavelmente foi seu berço a África. Si a temperatura é excessiva, produz a lepra seus grandes estragos : é freqüente nas latitudes as mais oppostas, e é tão funesta nos gelos do Norte como no clima ardente da zona torrida. » A Alibert acompanham outros autores sustentando a sua opinião. « A influencia dos climas, diz o Dr. Jacques Cavas- se (*) sobre a producção da lepra parece ter todos os visos de certeza; os climas extremos, sobretudo, devem ter uma acção mui pronunciada. » A' pagina 71 diz o mesmo autor: « Nas Antilhas as condições climatologieas parecem ser mais favoráveis ao desenvolvimento da moléstia. » Les lieux (Motard) ou Ia lipre est endemiquc sont independents des climats (2). « A elephantiasis dos Gregos (Rayer) é actualmente uma enfermidade peculiar ás regiões equatoriaes e tropicaes (3).» II faut assurement (Valleix) faire une part à Vinjhi- ence des climats tropicaux, équatoriaux et polaires, puisquHls nous présentent Ia maladie, non-seulement d'une manière plus freqüente, mais encore dans sa plus grande gravite: en outre, Ia plupart des Euro- péens qui en sont atteints Vont presque tous contractée dans ces regions (4). « Depois da herança (Bazin) é a condição do «meio » a mais poderosa causa da elephantiasis: a humidade, o calor excessivo e o frio rigoroso, isto é, as tempera- (!) Contribuition à 1'ètude de Ia lèpre aux Antilles et dans le Levant. Pag. 69. (4) Traitè de 1'hygiène générale—tomo 2o pag. 620. (3) Tratiè theor. etprat. des maladies de Ia peau. ('■■) Guide dii, medecin praticien—tomo 5o pag. 070, — 109 — turas extremas, predispõem evidentemente a essa en- fermidade. » « A influencia dos climas e do regimen alimentar (Hardy e Labarraque) tèin provocado discussões que ainda duram. Os climas exercem acção muito impor- tante na prcducção e no desenvolvimento da lepra. « Em uma palavra -as temperaturas extremas favo- recem muito a invasão da moléstia ; são agentes dessa influencia o calor forte e o frio excessivo, talvez por alterarem as secreções cutâneas, e, portanto, a estru- ctura da pelle (*). » « O clima quente e num ido (Neumann) dos paizes pantanosos ou situados perto dos grandes mares in- fluo, segundo alguns autores, para o desenvolvimento da moléstia. » La lèpre (Lamblin) est comprise entre les 35e degrés de latitude nord et sud de VEquateur, c^est-à-dire dans toutes lesparties chaudes du globe. Les climats extremes predispo ent particuliòrement à cette ma- ladie (2). De tout le temps (Danielssen e Bceck), V expérience a demonstre que Ia spédalskhed (morféa) règne prin- cipalement sur les rivages de Ia mer, les bords des ri- vières, dans les ile> et dans toute localité ou existent un air et un territoire humides. A Vhumidité, comme cause de Ia spédalskhed, on ajoute une haute tempe- rature (3). V pag. 341 accrescentam os mesmos autores: les causes externes de spédalskhed doivent être recher- chées dans les conditionsphysiques; et lorsque le lit- toral, surtout des contrées autour des baies profondes (») Artigo citado. (2) Etv.de sur h lèpre taberculeuse. (3) Traité de Ia Spédalskhed — pelos Drs. Daniolsson e Boeek. — 110 - sont sa propre patrie, il vient aisément àlapensée que Vair humide, brumeaux de ces localités lui donne fréquemment naissance. Já que cito a opinião de Danielssen e Bceck sobre os climas, não vem fora de propósito addicionar o juizo dos mesmos sobre qual dos climas, o frio ou o quente, é mais favorável ao desenvolvimento da lepra e qual mais pernicioso. Dizem elles: « Ha uma outra questão a elucidar, a de saber si nos climas do Norte a moléstia pôde che- gar a inteiro desenvolvimento, com o que muitos patho- logistas não concordam. Raymont, por exemplo, affirma que não é somente muito mais commum, po- rém até mais perniciosa nas proximidades do Equa- dor do que para o Norte. Nossas observações demons- tram o contrario; a spédalskhed attinge, ao menos na Europa, o seu apogêo de gravidade no Norte (pag. 93). » A este respeito passo a citar a opinião de Saint-Vel (') sobre o que se passa nas Antilhas relativamente á gravidade das mol. stias de pelle, visto estar a mesma opinião de accôrdo com o que se observa no Brazil, onde as moléstias de pelle, inclusive a morféa, não apresentam o cunho de gravidade, descripto pelos autores nas que se desenvolvem em paizes frios. II semblerait, diz Saint-Vel, que les maladies cuta- nécs dussent ctre communes aux Antilles: qtiéchaufféc par une atmosphère brúlante ou par Vaciion directe d\m soleil ardent, cxaltccpar une iranspirationabon- danic, lapeau dút ctre lesiege d'unc foule d'afl'cctions à caracteres variablcs comme les colorations diverses qui distinguent les races blanrhc et noire et leurs dé- <}) Traitè des maladies des regions intertropicales, pag. 463. - 111 - riccs, les races indicnne etciiinoise, dont lesdifférents rcpréscntaiits forment Ia population des Antilles. Mal- gré Ia diversiíé des races, les dermatoses ij sont moins freqüentes qu'en Europe. Lc froid et les variations de temperature qiCamène Ia succcssion des saisons sem- blent ctre plus favor ables à Vevolution de ces maladies que Vaction continue d^nuc chaleur constante. La patliologie cutanée presente moins de formes et moins de complications au,r Antilles ; comme les ma- ladies internes, elle ojfre un cachet de simplicité bien marque. Ao terminar este resumo das opiniões, as principaes, dos autores, farei esta simples pergunta: si, guardada a condição da existência, em vez cie publicarem suas reflexões no século XIX, o tivessem feito no sé- culo XVI, como opinariam com relação ao clima tem- perado? Como o julgariam í Certamente como o mais apto para o desenvolvimento da lepra. De então para cá, nestes três séculos, operou-se tal mudança no clima temperado, d'onde resultasse, de favorável que era á morféa, tornar-se desfavorá- vel? Não ha negal-o : raras vezes se manifesta a mor- féa nos paizes de clima temperado; mas o que falta provar é que seja isto devido a antagonismo do clima. Diante da historia da morféa não se pôde com ef- feito aceitar sem reservas a pretendida inocuidade do clima temperado, desde que sob este clima e du- rante séculos tal moléstia reinou impávida. Si hoje aquelles paizes soffrem rarasvezes os ataques da morféa, parece ser outra a razão: as conquistas e o aperfeiçoamento cia hygiene social, c sobretudo da hygiene alimentar. - 112 — Condições telluricas, humidade.—Quanto á in- fluencia das condições telluricas e da humidade os autores também opinam diversamente. Para uns é evi- dente esta influencia, attenta a quasi fatalidade com que a enfermidade se desenvolve e permanece em certos lo- gares ; ao passo que para outros tal influencia diminue de valor, attenta a consideração de que, embora menos freqüente, a moléstia apparece em condições oppostas. «Já dissemos, observam Danielssen e Bceck, que é sobretudo ao redor das bahias profundas, de que é tão rica a nossa costa occidental, que a spédalskhed (nome dado á morféa na Noruega) toma incremento, pois o ar d'alli, além de sempre humido, é demasiadamente ingrato em nossos invernos rigorosos e longos. As ca- banas de nossos aldeãos são edificadas, em geral, perto das praias, em logares humidos ; são muito estreitas e baixas» ( Obr. cit. 343). Hardy, Neumann, e muitos outros autores, inspi- rando-se nos estudos dos dous médicos norueguenses, admittem com elles que as condições telluricas e a humidade cooperam para o desenvolvimento da morféa. «O Dr. Beirão (') diz: « Em referencia á elephantiasis sabemos por exemplo que as Asturias na Hespanha, e Vitrolles e Martigues na França são as regiões onde ella costuma apparecer com mais freqüência. Haverá igualmente para Portugal um Vitrolles e Martigues, ou umas Asturias, como existem para a Hespanha e para a França ? « E serão o Algarve, e os campos das margens do Tejo edo Mondego as malfadadas regiões, que possuam tão horrorosa prerogativa? (') Memória acerca da elephantiasis dos Gregos, pag. 86. - 113 — « As noticias que temos acerca da freqüência da ele- phantiasis nestas localidades, fazem-nos acreditar que desgraçadamente assim é. « Alguma cousa cie commun, accrescenta o autor, apresentam as localidades que forneceram vinte dos casos de suas observações, e vem a ser: o serem hu- midas, baixas e próximas aos rios, ao mar, ou a grandes lagoas (margens do Tejo e Algarvcs, as margens do Mondego, as immediações do rio de Friellas, e as inundações da Lagoa de Óbidos). » Outros autores, fundados igualmente em factos de sua observação, ou de seu conhecimento, discordam desta opinião ou pelo menos não dão o mesmo valor a semelhante causa. O mesmo Dr. Beirão accrescenta: « Os trinta casos restantes pertenciam a localidades que parecem não ter influencia sobre a producção desta enfermidade. » O professor Hebra exprime-se nestes termos : « No Libanonãose encontra a atmosphera humida e nebulosa de differentes paizes collocados nas proxi- midades das costas e das ilhas ; e todavia a moléstia existe no estado endêmico em todos estes paizes e por toda parte guarda o mesmo caracter (552). » O professor Moritz Kaposi é do seguinte parecer : « Sabemos que a lepra é uma moléstia endêmica e eu já descrevi a situação geographica dos logares em que ella se apresenta e se desenvolve. Do facto de ficar a lepra limitada a um numero restricto de paizes, quizeram os práticos concluir que sua causa residia em condições climato-telluricos, na constituição phy- sica do solo, ou em um agente resultante destas condições e análogo á malária. Esta opinião, po- rém, não se concilia com o facto experimental de se manifestar a lepra em paizes essencialmente M. 1J - 114 — differentes sob o ponto de vista climato-tellurico. » (Obr. cit. 310.) O Dr. Jourdanet, no seu livro Le Mexique et VAmérique Tropicale, diz á pag. 413: «No México apparece muitas vezes a elephantiasis tuberculosa. Porém a experiência demonstra que a altitude é sem influencia sobre sua producção, por ser observada igualmente em todos os niveis nas vizinhanças do México, em algumas localidades humidas perto das lagoas próximas á cidade, nos Estados de Michoacan e de Jelisco, á meia distancia entre a costa e a altura do plateau, no Iucatan e finalmente ao nivel do mar. Por toda parte apresenta o mesmo cortejo de sympto- mas e um caracter idêntico.» Desenvolvimento espontâneo.— No intuito de innocentarem de todo o clima temperado, alguns au- tores, francezes sobretudo, negam que nos paizes influenciados por este clima se manifeste a lepra es- pontaneamente. Na sua opinião os casos alli observados são em indivíduos que já vieram contaminados ou que trouxeram em si o germen hereditário. Como era de esperar, outros autores se oppoem a tão completa e absoluta immunidade daquelle clima. Danielssen e Bceck affirmam ter encontrado na Noruega casos de lepra espontânea. « Ao passo que, dizem elles, todos os autores são accórdes em admittir o desenvolvimento espontâneo em c°rtos climas, não o são em acatar a opinião de poder a spédalskhed se apresentar deste modo sob cada clima. Ha pouco citamos Vidal, que não admitte a possibilidade de, sob a influenciada costa meridional da França, causas externas engendrarem esta enfermidade; e Hyaltelen, que considera todos os leprosos da Islândia como tendo contraindo a moléstia por herança. — 115 — « Outros autores ha, continuam os médicos norue- guenses, que pensam de modo inteiramente diverso ; acreditam elles que o desenvolvimento espontâneo pôde dar-se em todos os climas, opinião exacta, tanto mais que a experiência, entre nós, falia em seu favor do modo o mais decisivo. » Bazin tinha a este respeito a seguinte convicção : « A lepra pôde se desenvolver de um modo quasi accidental, pelo concurso de circumstancias exteriores que passo a enumerar; porém a predisposição natural persiste sempre, como causa principal, sem a qual todas as outras ficam sem effeito. » Ouçamos agora outro autor: «A herança, ponto que investigamos com o mrior cuidado, diz Lamblin (obr. cit. pag. 791), não pôde nos explicar o desen- volvimento da moléstia entre nós.» O mesmo autor cita um caso autochtone, por elle observado, no qual a moléstia não podia ser attribuida á predisposição he- reditária, nem fora adquirida fora. O professor Hardy diz: « O desenvolvimento espon- tâneo da moléstia é todavia um facto bem averiguado.» ( Obr. cit. 359.) O mesmo autor accrescenta que «na Inglaterra, Dina- marca, Allemanha, Paizes-Baixos e na Suissa, pó- de-se encontrar casos de lepra, que são sem duvida de origem estrangeira. » Contagio.— Sobre este assumpto ainda se dividem as opiniões dos autores, umas a favor, outras con- tra. D'entre os primeiros nenhum tem mostrado mais convicção do que Schilling, de quem tem sido acerrimo adepto Drognat Landré (1). (!) De U contagiou, seule cause de Ia propagation de Ia lèpre, par le Dr. h. L. Drognat-Landré. 18©. - 116 - Cumpre desde já assignalar que, apezar de uma tradição de muitos séculos, sustentada nas paginas de livros sagrados, e do horror que a moléstia sempre inspirou e ainda hoje inspira a muita gente, todavia a opinião contraria ao contagio, depois que se dissipou a confusão da idade média, foi a pouco e pouco ganhando terreno, conseguio romper por entre os preconceitos, e afinal engrossou de tal modo que constituiu-se dominadora da opinião contagio- nista. Actualmente com effeito a opinião geral é contraria ao contagio da morféa, que por poucos é susten- tado. «No grande numero de leprosos, dizem Danielssen e Bceck, que observámos e visitámos por centenas diariamente, não existe um só exemplo de transmissão da moléstia por contagio. » (Pag. 340.) Referem-se em seguida a casados que viveram conjugalmente muitos annos sem que o affectado de morféa transmittisse a moléstia ao outro. Além disto mencionam o facto de terem vivido no hospital de S. Jorge muitos individuos sãos em contacto com morfeticos, para mais de trinta annos, sem que por isso viessem a soffrer desta moléstia. « E' também uma felicidade, accrescentam elles, para o nosso paiz a sua não contagiosidade, pois que f de outro modo, teria immolado um numero muito maior de victimas. « Segundo as nossas observações, concluem os mes- mos autores, não podemos deixar de negar o contagio da spedalskecl ». (Pag. 361.) Hebra emitte a este respeito uma opinião vaci- lante. A' pagina 553 diz: «Em uma época mais recente Landré procurou demonstrar a contagiosi- dade da lepra de Cayenna a principio, depois da ■— 117 — lepra em geral. Porém não fez proselytismo sua opinião.» Immediatamente accrescenta : « Desenvolvendo-se muitas vezes a lepra em pessoas da mesma familia e em individuos estabelecidos nos paizes onde reina esta moléstia, é incontestável que taes factos depõem em favor da contagiosidade.» (Pag. 554.) No periodo seguinte o mesmo autor dá a entender que não acredita no contagio, e, depois daquelle in- contestável, declara : « Porém nesses casos as condi- ções physicas e hygienicas, ás quaes se pôde attri- buir a lepra, são precisamente as mesmas para todos os individuos que habitam o mesmo paiz ou a mesma casa.» Para accentuar ainda mais o seu ultimo voto, o anti-contagionista, cliz o Dr. Hebra (554): « E de ou- tro lado, ficou provado que leprosos de um e de outro sexo viveram 25 annos e mais em relações conjugaes as mais intimas, partilharam o mesmo leito longos annos, sem que o marido communicasse a lepra á esposa ou vice-versa.» O professor Hardy, declinando de sua competência para emittir juizo sobre esta questão, visto habitar um paiz ( a França) onde não encontra elementos de estudes sobre a morféa, apenas diz: «Tudo quanto podemos dizer é que nenhum autor contemporâneo aponta exemplo de contagio da lepra effectuado nos paizes onde a lepra não existe.» Bazin definiu a lepra uma moléstia não contagiosa e essencialmente hereditária: « Relativamente ao contagio, admitto com a maioria dos autores que a elephantiasis nunca se transmitte deste modo, e que qualquer pôde impunemente pôr-se em contacto com o leproso, usar de suas vestes, dormir em seu leito, etc. Os médicos que observaram a moléstia nos paizes — 118 - onde ella é endêmica, negam-lhe todo o caracter con- tagioso.» (*) Godart, no seu livro Égypteet Palestine, diz: «Sup- põe-se que não ha exemplo aqui de europêo algum ter contrahido a lepra.» Godart, que era de espirito expansivo, refere um pequeno episódio que se deu por occasião das suas pesquizas sobre o contagio entre elle e um morfetico : « Eloné mostrou-se muito satisfeita quando lhe disse que, si contrahisse a moléstia, quereria habitar com elles, porém que desejaria ser seu cheik e pergun- tei-lhe si me aceitava como tal. A isto ella respondeu que a lepra não me acommetteria. » ( Pag. 186. ) Alibert pronunciou-se também em sentido con- trario ao contagio ; disse elle : « Em todos os tempos se tem incutido no animo do povo o terror, fa- zendo-o acreditar no caracter contagioso desta hor- rível moléstia; porém, a este respeito, tem-se con- fiado de mais em falsas tradições. De accôrdo com a minha própria experiência, e somente com ella, posso assegurar que o grande numero de individuos por mim tratados nunca foram seqüestrados de seus vizinhos, recebendo constantemente os mais caridosos cuidados dos que tiveram occasião de os assistir em sua enfermidade e sempre sem inconvenientes.» (Obr. cit. pags. 312 e315 .) Ao professor Kaposi não repugna a idôa do con- tagio. « Sem duvida, diz elle, observam-se neste sen- tido casos admiráveis. Assim vimos um homem, natural de Turin e que passara alguns annos no Egypto , que ahi contrahiu a lepra tuberculosa, e sua mulher, que só alli estivera alguns annos mais (ü Obr. cit. pag. 285. - 119 - tarde, adquirira lepra maculosa e anesthesica. » (Obr. cit. 312.) A este respeito os traductores da obra de Kaposi, Besnier et Doyon, addicionaram uma nota em que dizem : «O contagio da lepra, outr'ora admittido como uma verdade evidente e depois negado systematica- mente, torna-se hoje questão digna de ser estudada. Qual o medico, pergunta um de nós, que ousaria hoje inocular em si a lepra ? E como comprehender a im- portação da lepra de uma nação para outra, no correr dos séculos, senão pelo contagio ? » Rayer era decidido anti-contagionista ; as seguintes palavras lhe pertencem : « Os factos observados na índia por J. Robinson e Anislie, na Madeira por Adams e Heberden, e os poucos de minha própria ob- servação em França, onde vi creoulos elephantiacos viverem e habitarem com famílias numerosas, sem communicarem a pessoa alguma sua horrível mo- léstia, provam, de modo a não deixar duvida, que a elephantiasis dos gregos não se transmitte, pre- sentemente, de um indivíduo doente a um indivíduo são. « Estão accordes actualmente todos os observadores em considerara elephantiasis como não contagiosa. Um de meus discípulos, o Sr. Raisin Filho, muitas vezes e durante muitos dias serviu-se das vestes de um elephantiaco, sem experimentar a menor alteração em sua saúde. » ( Obr. cit. pag. 306 .) « Nos árabes do Archipelago, diz o Dr. Arman (*), não se observa a lepra. A immunidade de que gozam estas tribus é um poderoso argumento contra a pre- tendida contagiosidade.» í1) Traitè de Climatologie génèrale du globe pag. ?69. - 120 - O Sr. Léon Collin exprime-se nos seguintes termos : « As observações modernas demonstram que a con- tagiosidade actual da lepra se dá em pequena escala ; nenhum soldado francez voltou leproso de nossas expedições ao Egypto, ao México e Cochinchina; gozou da mesma immunidade o exercito hollandez e até o exercito inglez que viveu em contacto com os principaes focos desta moléstia. « A promiscuidade dos leprosos com os individuos sãos na costa meridional da Ásia, nas vizinhanças dos asylos de Singapour, de Penang, de Malacca (An- derson ), a affluencia inoffensiva dos chinezes leprosos que mendigam nos centros populosos da índia, a inocuidade notória dos spedalscos na Noruega são igualmente infensas a esta contagiosidade. » (*) Na Grécia, na Turquia e nas Antilhas, a opinião cios médicos é em geral contraria ao contagio. O Dr. Uhlig(2), medico da Batavia, depois de uma re- sidência de oito annos e de uma observação minuciosa, declarou-se formalmente contra o contagio da lepra em um relatório official dirigido ao governo: « Eu nunca vi, diz elle, um caso de lepra adquirida pelo contagio.» Brassac, competente neste assumpto, é igualmente anti-contagionista : « Começamos, são suas as expres- sões, declarando altamente que não conhecemos um facto sequer bem averiguado em favor do contagio: seria tempo de fazer desapparecer a prevenção da população de nossos colonos contra estes infelizes, deixando de ver nelles um objecto de espanto e de reprovação, que ninguém encara de frente sem expòr- se aos ataques do mal.» (3) (*) Cit. por Cavasse. (») Cit. por Catasse. (3) Extrahido do livro La lèpre estcontagieuse, par un Missionnaire. - 121 - Finalmente mencionarei um documento que ô de grande valor nesta questão : o resultado cio inquérito mandado proceder nas colônias inglezas pelo Duque de New-Castle. O Duque de New-Castle, interessado em colher algu- mas informações sobre a morféa nas colônias inglezas, principalmente quanto ao contagio desta moléstia, en- carregou em 1862 o Royal College dos médicos de Londres de redigir os quesitos concernentes ao as- sumpto e dirigil-üs não só aos módicos das mesmas colônias, como a outros. O resultado deste vasto inquérito foi mais de 250 respostas dirigidas ao Royal College, que nomeou afinal uma commissão para examinal-as e relatal-as. A commissão, cujo relatório tem a data de 1867, desempenhou-se pela seguinte fôrma (*): «A convic- ção quasi unanime dos observadores os mais expe- rimentados de differentes partes do mundo é inteira- mente opposta á crença de ser a lepra contagiosa ou communicavel por aproximação ou contacto com os doentes. A prova tirada da experiência de pessoas empregadas nas leproserias é, a este respeito, espe- cialmente concludente. « Alguns casos que foram apontados em sentido contrario, ou são filhos de uma observação imperfeita, ou são consignados com tão pouca attenção relativa- mente ás minudencias necessárias, que não podem invalidar a conclusão que estabelecemos. « Acredita a grande maioria das pessoas consultadas, as quaes achavam-se nas melhores condições de obser- var a lepra, que esta enfermidade é raras vezes, si em realidade o é, transmittida pelas relações sexuaes. » (i) Extrahido do livro La lèpre est conagieuse, par un Missionnaire. m. 16 — 122 — O Dr. Milroy, membro dessa commissão, e que foi mandado á índia pelo Colonial Office expressamente para estudar a questão do contagio, apresentou em seu regresso um relatório confirmativo das conclusões da commissão, de que fizera parte. Em 1872, foi por ordem do Duque de Argyle repetido o inquérito na índia, examinando-se o que se passasse nas estações coloniaes a respeito de moléstia da pelle, e ainda desta vez o resultado veiu confirmar aquellas conclusões (*). Eu poderia augmentar o numero de citações, si as que apresentei não fossem das mais competentes autoridades na matéria. Syphilis. — Quando no século XVI a morféa decli- nava em alguns paizes da Europa, suecedeu que a syphilis se fosse desenvolvendo. Esta circumstancia, ou antes esta coincidência, impressionou de tal modo os práticos daquelle tempo , que muitos delles consideraram a syphilis suecessora da morféa, uma degeneração, uma trans- formação, ou mesmo uma outra fôrma desta enfer- midade. Como era natural que nem todos os práticos pensas- sem do mesmo modo, não tardou que entre elles se travasse renhida discussão sobre a interpretação a dar ao novo typo mórbido. Foi este erro, diz Bazin, que Nicolas Leoniceno, que então vivia, combateu energicamente em seu livro De morbo gallico. Com o correr do tempo, depois que a syphilis se generalisou, outros práticos não duvidaram inverter os papeis attribuindo a morféa á syphilis quando (') Extrahido do mesmo livro La lèpre esteontagieuse. - 123 - succedia sobrevir aquella em pessoas que haviam tido accidentes da segunda enfermidade. Devo accrescentar que ainda hoje práticos ha que pensam a este respeito do mesmo modo. « Poderíamos considerar verosimeis estas opiniões sobre as moléstias em questão, observam Danielssen e Bceck ('), n'uma época em que a syphilis não estava ainda bem conhecida e em que a pathologia cutânea era pouco desenvolvida; porém, reproduzir hoje esta opinião e procurar interpretar do mesmo modo uma tal transição, é provar simplesmente ignorância no assumpto. « Por meio de rigorosa observação, acrescentam os mesmos autores, nos convenceremos facilmente de que estas moléstias não se confundem entre si, e que uma não engendra a outra. « A morféa pôde, todavia, se complicar de syphilis; e esta complicação é mencionada por Schilling como muito freqüente. » O professor Bazin é inteiramente contrario á opinião dos que admittem a degeneração da syphilis em mor- féa. Occupando-se com as complicações exprime-se (pag. 282) nestes termos: « A syphilis e a elephan- tiasis podem coexistir no mesmo doente; são duas moléstias que não se excluem, e a combinação de seus symptomas em um mesmo indivíduo contribuiu sem duvida para se acreditar que esta não passava de uma transformação daquella. Porém, hoje que pelos progressos da semeiologia cutânea se sabe que parte cabe a cada uma dellas nesses casos com- plexos, o facto desta coincidência tem mui diversa significação. » (i) Obr. pit, pag. 111. — 124 - Na opinião do professor Bazin « é grande erro patho- logico considerar a syphilis como causa da morféa. » Sobre o assumpto opina o Sr. Léon Collin: « Da sy- philis á morféa, como da peste inguinal ao typho ou á febre typhoide, ha mui grande distancia para que con- sideremos da mesma natureza as duas moléstias. Demais, vemol-as mesmo actualmente, em certos pai- zes, se manifestarem ambas perfeitamente discrimi- nadas. » (*) Finalmente mencionarei a seguinte observação do Dr. Beirão : « Temos notado também, declara este pratico, que o apparecimento da syphilis, contrahida depois da existência da elephantiasis, em nada altera ou modifica esta enfermidade : a moléstia syphilitica corre então todos os seus períodos, e apresenta todas as suas variadas phases sem receber a menor modifi- cação da parte de um organismo tão profundamente alterado. » (2) Origem parasitaria. —Quer na opinião de alguns práticos antigos, quer na de outros modernos, a lepra deve ser considerada uma enfermidade de origem parasitaria, entrando por isso no quadro da antiga « pathologia animada ». Sabemos do impulso que nestes últimos annos tem tomado os estudos da origem parasitaria das molés- tias, graças aos esforços de infatigaveis exploradores. Depois de ter vogado entre os antigos e cabido em descrédito, a que arrastaram-na, como sóe acontecer, as exagerações, a origem parasitaria das moléstias renasceu entre os médicos, despertando para logo grande enthusiasmo. (i) Obr. cit. pag. 476. (») Obr. cit. — 125 — Com applicacão á lepra mencionarei os trabalhos sobre o germen parasitário, dos quaes alguns ainda proseguem, certo de que até o presente não se chegou a resultado definitivo, visto não se ter ainda podido descobrir as relações pathogenicas entre os parasitas encontrados e a evolução daquella moléstia. « Muitos autores, dizem Danielssen e Bceck, fada- ram de animalculos sob a pelle: assim Kalmet declara que se encontram nos leprosos uma serie cie vermesi- nhos entre os tegumentos e os músculos ; de Furno, que ha uma porção de piolhos e de vermes debaixo das escamas; e Linnèo, que na elephantiasis da Noruega se apresenta uma espécie de gordius. » (Obr. cit. pag. 67.) Os mesmos autores dão á pagina 232 o resultado cie suas próprias investigações nos seguintes termos: « Já dissemos que ha uma espécie de tuberculos cobertos de crostas espessas, de côr escura, nos quaes desco- brimos um acarus; este insecto se apresenta aos mi- lhões, não só na superfície dos tuberculos, porém mesmo na massa tuberculosa amollecida. » Depais de descreverem o acarusc ncontrado, accres- centam elles: « Em verdade é um microcosmo de ani- malculos; uma geração succecle rapidamente á outra e seus esqueletos compõem esta fôrma da spedalsked. Não queremos dizer que a presença deste animalculo revela de um modo qualquer a natureza particular da moléstia; porém acreditamos que indica perfeitamente a fôrma singular por que ella se apresenta entre nós.» A respeito do parasita encontrado por Danielssen e Bocck o professor Hebra acredita que trata-se sim- plesmente do acarus ordinário, igualmente encontrado em individuos que não padeciam de lepra: «Ficou assim demonstrado que a sarna coberta de cròstas, ou sarna noruegueza de Bceck, nada tem de commum com a - 126 - lepra propriamente, mas é simplesmente uma modi- ficação da sarna (1). « Recentemente o Sr. Dr. Armauer Hansen(de Bergen) e o Sr. Dr. Eklund da marinha sueca, refere o Dr. Ca- vasse, acreditaram descobrir a natureza parasitaria da lepra. O professor Hansen encontrou nos tuberculos le- prosos grandes elementos escuros que suppõe serem agglomerações de pequenos corpos bacilliformes, en- cerrados nas cellulas, assim como numerosas bacte- ries de 0,mm0015 a 0,mm006. » Em seguida diz o mesmo autor: « o Dr. Hansen não encontrou bacteries no sangue fresco dos leprosos. » Continuando, diz o Dr. Cavasse : « Quasi na mesma época o Dr. Eklund publicava uma brochura sob o nome — Amspetelskan — em que fazia conhecer a ver- dadeira causa da lepra, e que julgava ter descoberto e que dizia ser micrococus. Segundo elle, as bacteries deste gênero apresentam-se com uma profusão extra- ordinária em todos os leprosos. Por sua acção irritante sobre as partes em contacto, estas bacteries deter- minam uma proliferação considerável de cellulas e a formação de um tecido granuloso. « Penetram no sangue, na lympha, nos tecidos que são pouco a pouco destruídos; e a gravidade da mo- léstia augmenta com a multiplicação das bacteries. Eklund encontrou estas bacteries nas secreções das cavidades buccal e nasal, nos suores e nas lagrimas.» A' pagina 73 o Dr. Cavasse allude á opinião dó Dr. Beauperthry (-), a qual muito se aproxima da de Danielssen e Boech, e como esta incorre na mesma (i) Hebra—Obr. cit. pag. 539. (2) O"1 Dr. Silva Lima occupou-so cm vários artigos, publicados na Gazela Medica da Bahia, do tratamento a que o Dr. Boauperthry sujeitava os seus doontes leprosos. - 127 — contestação que o professor Hebra oppòz ao acarus norueguez. O mesmo Dr. Cavasse accrescenta as seguintes pa- lavras: «A theoria parasitica da lepra foi admittida ainda ultimamente pelos Drs. Hansen e Eklund, que attribuem a uma bacterie particular a causa da mo- léstia. Porém, concedida a existência desta bacterie, póde-se considerar completamente resolvido o pro- blema etiologico? Basta haver encontrado um parasita para ter-se o direito de denunciar como causa de qualquer moléstia ? Da possibilidade de viver e de multiplicar em outros organismos deve-se concluir que provocam em indivíduos no estado physiologico todos os processos mórbidos da lepra? Seguramente não. » Em sua já citada obra o Dr. Moritz Kaposi diz á pa- gina 312 : «Como um grande numero de moléstias in- fecciosas ou como taes consideradas se tem desco- berío recentemente na lepra bacteries e micrococus (Caster, Hansen, Klebs, Eklund, Neisser), todavia sua relação com a moléstia que nos occupa está ainda por demonstrar. » A esta declaração accrescentam os traductores do livro uma nota á mesma pagina, dizendo : « As pes- quizas de Armauer Hansen são do mais alto interesse e é necessário proseguil-as com actividade, pois nos levam á verdadeira solução. » Eis o resultado de repetidos exames do sangue de um morfetico, obtido por um dos traductores : « Io, inte- gridade dos glóbulos vermelhos e dos leucocytos; 2o, granulações claras cie contorno nitido, muito nume- rosas, moveis (de movimentos rápidos); 3o, pequenos bastonetes em haltere mui numerosos e também do- tados de movimentos; 4°, bastonetes regulares, refrin- gentes, immoveis; 5o, granulações claras, de contorno mui pronunciado, immoveis.» - 128 — « Agora mesmo, disseram mais, Hillairete seu dis- tincto discípulo Gaucher continuam seus estudos sobre a cultura da bacterie da lepra, e sobre a inoculação da moléstia no porco, animal que, segundo muitos obser- vadores, pôde servir para esta experimentação, si é verdade que pôde realmente contrahir a lepra. » Depois disto o mesmo Sr. Gaucher tornou conhecido o resultado das investigações do Sr. Hillairet, lendo á Sociedade de Biologia de Paris, na sessão de 10 de Dezembro de 1880, uma nota, que vem transcripta na Gazeta Medica da Bahia, em o n. 7 (Janeiro de 1881), da qual extractei o que se segue: « As investigações do Sr. Armauer Hansen ver- saram especialmente sobre os tuberculos cutâneos da lepra, dos quaes elle fez numerosas preparações pela raspagem e pela dissociação. Estas preparações en- cerravam sempre cellulas arredondadas, das quaes algumas eram granulosas, outras se achavam cheias de bacteries em fôrma de bacellos. Bacteries existiam também em grande numero em estado de liberdade, em torno das cellulas principacs. Mas no sangue examinado em estado fresco o mesmo autor nunca poude descobrir elementos semelhantes, e põe em duvida os resultados obtidos pelo Dr. Eklund, que diz ter encontrado micrococos. « Ora, é precisamente para a existência destes ve- getaes inferiores no sangue fresco dos leprosos, que queremos chamar a attenção, e neste ponto nossas observações não concordam absolutamente com as do Sr. Armauer Hansen. « Em Paris os casos de lepra não são communs; nossas investigações foram feitas n'um só doente. E uma mulher que chegou a pouco tempo das Cordi- lheiras dos Andes, e que ô actualmente tratada pelo Sr. Hillairet no Hospital S. Luiz. - 129 - « Temos examinado o sangue extrahido por meio d'uma simples picada, ao nivel de um tuberculo, e depois da extremidade de um dedo, n'um ponto onde não existia tuberculo leproso. Todas as precauções possíveis foram tomadas para pòr-nos a abrigo das causas de erro. « No sangue tomado no centro de um tuberculo, e examinado no mesmo dia em estado fresco, era fácil de ver um grande numero de bacteries, pela maior parte moveis, umas punctiformes, outras alongadas em fôrma de bacellos. Independentemente destes mi- crococosem fôrma de bacellos isolados, distinguiam-se em differentes logares cadeias de monadas justapostas em numero de duas ou três no máximo, e certas bacteries alongadas, terminadas n'uma das duas extre- midades, ou em ambas, por uma monada punctiforme. « No sangue da extremidade do dedo, os mesmos microphytos existiam em numero muito menor; as bacteries sobretudo eram muito raras, apenas po- demos ver três ou quatro na preparação. « Porém os micrococos moveis eram em quantidade sufficiente para não deixar duvida sobre a infecção geral do sangue. « Importa insistir sobre estas particularidades, a disseminação das bacteries, sobretudo em estado de mi- crococos na circulação geral, e sua accumulação muito mais considerável em estado de monadas e de bacellos nos tuberculos leprosos; é este, cremos, um argu- mento importante em favor da origem parasitaria das lesões cutâneas da lepra. « A infecção parasitaria do sangue dos leprosos nos parece, pois, bem estabelecida pelas observações pre- cedentes. Temos a intenção de proseguir nestas inves- tigações, e de examinar, si fòr possível, as bacteries da lepra em líquidos de cultura. H. 17 — 130 - « Temos também inoculado sangue leproso em diffe- rentes animaes, e si houver occasião, communica- remos proximamente á Sociedade de Biologia os novos resultados que podermos obter.» Mais recentemente o Sr. Cornil, na sessão de 25 de Outubro de 1881 da Academia de Medicina de Paris, leu uma nota sobre a sede das liacteries na lepra e das lesões dos órgãos nesta moléstia. « Não são só os tu- berculos cutâneos que contêm bacteries; o fígado, o testículo, órgãos molles ou contendo cavidades, no estado normal também os contêm, e como as bacteries nestes órgãos não são comprimidas, adquirem por isso grandes dimensões. No tecido fibroso, entre as lâ- minas e as fibras, na cornea, etc, os parasitas se dispõem em longos filamentos collocados uns em se- guida aos outros, cujos artículos são separados por septos transparentes. « Emfim, no piotoplasma das cellulas, nos destroços accumulados nos tubos testiculares, nos vasos sangüí- neos, encontram-se sporos livres ou accumulados em grupos que enchem em alguns logares os vasos capillares. « As lesões devidas ás bacteries se dividem em duas series: Ia, quando a infiltração affecta um órgão pa- renchymatoso molle como o fígado, as bacteries tor- nam-se volumosas; nos tecidos quasi mortificados a circulação sangüínea é pouco activa ou nulla e os vasos capillares se enchem de infartus bacteridianos ; 2a, na maior parte dos tecidos fíbrinosos as bacteries lançam longos prolongamentos nos interstícios das fibras, mantendo-se pouco alteradas ou mesmo normaes as cellulas fixas do tecido fibroso, do que resulta es- pessamcnto deste tecido. » (*) (') Ar claves Générales de Mèdecine—Decembre 1SSÍ. Paris. - 131 - Foi o que pude colher sobre a origem parasitaria da lepra. Insistindo neste estudo, devo notar que Lamblin, dando por extenso o resultado, na sua 2a observação (pag. 115), da analyse microscópica praticada pelo Dr. Ranvier, no tuberculo de um leproso, cousa alguma diz quanto á presença de parasitas. Comquanto eu já me tivesse referido a publicações posteriores ao artigo lèpre do diccionario de Jaccoüd, não vem fora de propósito mencionar que os autores do mesmo artigo não mostram-se inclinados á origem parasitaria da moléstia. A mesma reflexão cabe-me fazer quanto ao professor Hebra que até nenhuma referencia faz a semelhante origem. Regimen alimentar. — A influencia de alimentos na producção da lepra tem sido um dos pontos mais con- trovertidos entre os autores: para uns a influencia é grande, para outros pouca, e para alguns nulla. O que se increpa á alimentação é, ou se compor de certos alimentos exclusivos ou quasi exclusivos, ou de alimentos corrompidos e insufficientes. Quanto aos alimentos exclusivos, pensam alguns autores (Danielssen e outros) que não ha fundamento para tal accusação, attendendo-se a que a morféa se tem desenvolvido em paizes onde a alimentação é muito variada. Quanto a alimentos corrompidos, por exemplo o peixe, reflectem outros que esta causa não é igual- mente aceitável, porque a morféa se tem manifestado em logares onde se come peixe fresco. Finalmente observam alguns autores, quanto á de- ficiência de alimentos, que semelhante causa torna-se inadmissível attendendo-se a que a morféa, si é mais freqüente nos pobres, ataca também os ricos, isto — 132 — ê, os que se alimentam á vontade e confortavel- mente. Em contraposição aos que não admittem que o re- gimen alimentar possa, em certas condições, produzir a morféa, outros autores ha que pensam exactamente de modo contrario. Desde já declaro que, comquanto me merecessem attenção as diversas causas a que se tem attribuido a moléstia, liguei comtudo particular interesse ao estudo das varias opiniões sobre a influencia dos alimentos, na esperança de que resultaria disso algum benefício ao meu paiz, onde em verdade ha muito a propor e muito a obter em matéria de regimen alimentar, defi- ciente aqui, exagerado alli e inteiramente despropor- cionado ás exigências de nosso clima. Si, com effeito, preponderar a opinião dos autores es- trangeiros e nacionaes, que acreditam que certos re- gimens alimentares, causando profundas alterações ao organismo humano, podem gerar a morféa, tornar- se-ha então necessário indagar si esta opinião é ou não applicavel ás nossas circumstancías, quero dizer applicavel aos hábitos alimentares adoptados nas lo- calidades do Brazil, onde a morféa é endêmica. São tão intuitivas as razões de tal exame ou in- dagações que dispenso-me de as apresentar aqui, reservando-me para dar ao assumpto maior desenvol- vimento quando entrar nas « minhas reflexões ». Os alimentos increpados são a carne de porco, o peixe, as carnes salgadas, os alimentos gordurosos, as aves aquáticas, a insufficiencia de pão, o uso de arroz e o abuso de bebidas alcoólicas. Como de todos estes alimentos a carne de porco e o peixe têm sido os mais accusados, visto serem, na opinião de alguns autores, capazes de gerar a molés- tia, ao passo que os demais não passam de auxiliares, — 133 — occupar-me-hei principalmente daquelles, e, para me- lhor ordem, de cada um de per si. Carne de porco.—Das substancias alimentares nenhuma tem sido tão accusada como a carne de porco, o que nos revela a sua prohibição desde os mais remotos tempos. Esta prohibição não data de Moysés, po:s a consideram anterior a elle. Parece que os Hebreus, antes mesmo de Moysés, abstinham-se da carne de porco; entre os animaes de que se alimenta- vam os patriarchas não se encontra mencionado o porco. Os Árabes, os Phenicios, os Egypcios, os índios, não tinham do porco menos horror (*). Moysés, porém, legalisou a prohibição e sanccio- nou-a, classificando o porco de animal immundo nos artigos de suas leis. O que é singular e, mais do que isso, verdadeira- mente notável, é que, não sendo este o único animal assim qualificado pelo grande legislador, recahisse não obstante sobre o porco somente a gravíssima culpa de gerar a lepra « O uso muito freqüente da carne de porco, diz Ali- bert (2), pôde também produzira lepra: assim o le- gislador dos Hebréus havia expressamente interdicto a carne desse animal. » Larrey (3) observou os funestos effeitos de seme- lhante nutrição nos francezes que estiveram no Egypto; e Pariset fez a mesma observação. « Os Turcos são raras vezes acommettidos de lepra, porque abstêm-se da carne de porco.» f) LVnivers. Arügo—Palestine, par M. S. Mune. (2) Tomo 2o pag. 312, obr. cit. (3) Esta opinião do Larrey tem sido mencionada cm vários trabalhos! sobro a lopra. r- 134 — Occupando-se com as causas da morféa, o professor Hardy considera muito importante o regimen ali- mentar. « Não é esta alimentação somente, diz elle, que pôde favorecer o desenvolvimento da lepra: os alimentos gordos, a carne de porco, as gorduras são essencial- mente prejudiciaes nos climas quentes, etc.» Peixe.—Si a carne de porco, considerada como of- fensiva á saúde do homem e capaz de produzir a morféa, tem contra si uma tradição, até o presente não interrompida, de tantos séculos, em relação ao peixe occorre uma circumstancia que de algum modo o torna ainda mais suspeito na opinião da maioria dos práticos: é a da predilecção da lepra pelas locali- dades sitas á beira do mar, ás margens das enseadas, ás bordas dos rios, onde o peixe constitue a base do regimen alimentar. A mais antiga reprovação, de que se tem noticia, de algumas espécies de peixes, é a legislada por Moysés, que as considerou igualmente immundas. A' vista disto, e não sendo o peixe isento de culpa, não sei por que os autores, dando aquella interpre- tação ao acto prohibitivo do grande legislador dos Hebreus com referencia á carne de porco, não a esten- deram ao peixe, quando é certo que, tanto certas qualidades de peixe, como aquella carne, foram ful- minadas por Moysés. Com effeito, no cap. XI do Levitico se encontram estas disposições: « 9.° Estes são os animaes que se criam nas águas, e de que vos é licito comer. Tudo o que tem barba- tanas e escamas, tanto no mar, como nos rios e lagos, comel-o-heis. « 10. Mas tudo o que move e vive nas águas, sem ter barbatanas, nem escamas, será para vós abominável - 135 - « 11. e execrando: não comereis as suas carnes, e guardar-vos-heis de tocar os seus corpos mortos. o 12. Todos os que não tiverem barbatanas, nem es- camas nas águas, serão para vós immundos. « Esta discriminação feita por Moysés não tem sido admittida pelos hygienístas, os quaes, estudando os peixes, limitam-se a considerar o seu maior ou menor valor nutritivo, fazendo quando muito menção de pei- xes venenoso?.» (') De accordo com aquella prohibição de Moysés encon- tra-se, entretanto, a mesma dislincção entre os peixes de doente e peixes «carregados » no conceito e praxe populares. No seu ultimo livro de Hygiene o professor Bouchar- dat, occupando-se com a alimentação ichthyophaga, abriu um titulo para as « endemias devidas á alimen- tação exclusiva de peixe », e mencionou entre muitas endemias, que se têm attribuido a esse regimen ali- mentar, o lymphatismo, a « elephantiasis » e o escor- buto. Dizem Danielssen e Bceck que os práticos têm prestado sempre a maior attenção ao regimen ali- mentar, bem como que sobre o uso do peixe têm recaindo suspeitas de produzir a morféa; accrescen- tando que Avicenna era explicito a este respeito, tendo sido sua opinião adoptada por autores, tanto an- tigos como modernos. « Não assenta, diz o pro'essor Kaposi, em me- lhores fundamentos o attribuir-se a causa da lepra ás más condições alimentares, á alimentação exclusiva pelo peixe, ás gorduras, e ás carnes salgadas e con- servadas ; porquanto nos paizes onde a lepra é ende- (») Fonsagrives et Loroy do Mérieourt. Recherches sur les poisson storicophores. Annales de hygiene.—1881. — 136 — mica, por exemplo no Rio de Janeiro, observa-se a moléstia em pessoas que vivem no meio do luxo da grande cidade (o autor allude á capital do Império) e pertencem ás melhores classes da sociedade. » (*) Para demonstrar a perniciosa influencia da alimen- tação de peixe, Bceck cita o que succedera nas ilhas de Feroé, situadas ao SE. da Irlanda, no oceano atlântico. E' realmente um facto muito significativo: nestas ilhas, cujos habitantes entregavam-se á pesca e ali- mentavam-se de peixe, inclusive a baleia, reinava a morféa havia muito tempo. De Chanseur e Coquereau (2) referem que em 1636 já a lepra era alli endêmica. Tendo, porém, se operado completa revolução nos hábitos daquella gente, que abandonou inteiramente a pesca para entregar-se á cultura dos campos, resultou que em menos de meio século a morféa havia quasi desapparecido das mesmas ilhas. Cita-se igualmente um acontecimento relativo aos Judeus no Egypto. Em quanto alli permaneceram, da- dos como eram á alimentação do peixe, era freqüente a lepra entre elles; mas, tendo emprehendido uma viagem pelo interior cia Arábia, onde não encontraram peixe de que se alimentassem, succedeu que a lepra não os atacasse como d'antes. Hebra não liga grande importância á influencia que o peixe salgado e o corrompido, bem como as más con- dições hygienicas, possam exercer na producção da morféa, e a razão que dá é a de igualmente soffrerem (!) E' de todo o ponto inoxacta essa reforencia ao Rio de Janeiro. Não contostn que a moiféa no Brazil, como succodo sempre em outros paizes, se tenha manifestado em pessoas abastadas, comquanto seja muito mais fre- qüente, relativamente, em indivi.luos do poucos recursos ; mas o quo contesto, 6 o exemplo attribuido á capital do Império, quo não presta ao autor somolhanto argumento. (2) Recherches sur Vètat acluel de Ia lèpre en Europe. Citado polo professor Rayer. — 137 - pessoas ricas que habitam grandes cidades, onde en- contram os recursos da civilisação européa. Bouchardat cita Clot-Bcy que observou perto de Damietta populações icthyophagas inteiramente isen- tas de lepra. Hardy é de opinião que o regimen exclusivamente icthyophago pôde ser prejudicial. « Na Grécia, na Turquia e nas ilhas do Archipelago, diz o Dr. Cavasse, verificamos que a nutrição, sobre- tudo a dos pobres, é igualmente muito defeituosa e muito insufficiente. Em grande extensão o paiz é pouco fértil e mal cultivado. Ao trabalho de cultivar a terra o grego prefere a vida marítima e o commercio, resul- tando disto serem relativamente pouco abundantes os productos da lavoura. Em sua alimentação figura em primeiro logar o peixe.» O mesmo autor accrescenta que nas Antilhas é prodi- gioso o consumo de bacalháo salgado. «Entre os pobres o pão é substituído pela farinha de mandioca ou pelo arroz e alli muitos individuos entregam-se ao uso do tafiáe a outras bebidas alcoólicas. A' vista de seme- lhante regimen, debilitante e ao mesmo tempo exci- tante, não admira, accrescenta o auctor, que a pelle soffra abalo, dando logar a uma moléstia que até então estivera em estado latente.» Sob o titulo Até que ponto concorre a alimentação para o desenvolvimento da elephantiasis disse o Dr. Beirão : «E' uma crença geral do paiz que certas alimen- tações exclusivas, por exemplo de peixe salgado, do inhame de má qualidade, de mariscos, concorrem po- derosamente para o desenvolvimento da elephantiasis ; comtudo as nossas observações não nos autorizam, por ora, a seguir esta opinião, posto que não pos amos negar alguma importância, que mais de uma vez se observa ter a alimentação exclusiva de certas substan- M. 18 — 138 — cias, como causa predisponente ou occasional da ele- phantiasis. Assim nós vemos que nas observações, que apresentamos, em onze, parece ter tido bastante influencia para a producção da moléstia a casta da ali- mentação, ou também o excesso das bebidas alcoóli- cas ; mas quando observamos que nos restantes en- fermos não é possível assignar a mesma causa, e quando reflectimos no immenso numero de pessoas que em Portugal fazem uso, quasi exclusivo, de peixe salgado, como n'uma grande parte da Beira, sem com- tudo soffrerem da pelle, custa a ligar muita importân- cia a esta circumstancia. Em Portugal mesmo havia corporações religiosas, que em virtude de suas regras ou institutos comiam sempre peixe, como eram entre outros os Cartuxos e os Carmelitas reformados, e não consta que a elephantiasis fosse uma moléstia de pelle que se tivesse verificado alguma vez em religiosos daquellas ordens. Sem negarmos portanto uma tal ou qual importância, que taes alimentações possam ter na manifestação desta horrível enfermidade, estamos com tudo muito longe de acreditar que só e exclusiva- mente a estas alimentações deva a elephantiasis a sua origem e desenvolvimento.» (*) O mesmo autor, entretanto, addiciona á sua obser- vação XII (á pag. 231) a seguinte nota: «Refere o doente que a morféa é muito freqüente nos campos do Mondego : quando a moléstia consiste só no estropea- mento das mãos e dos pés chamam-lhe — maneias e si apparecem tuberculos — morphéa. Aquella gente do campo do Mondego, accrescenta o Dr. Beirão, quasi que se alimenta exclusivamente de peixe salgado, es- pecialmente a sardinha, passando grande parte do dia (i) Obr. cit. pag. 88. — 139 — dentro d'agua encharcada dos paúes. Refere igual- mente o doente que a observação ahi mostra bastan- tes vezes que os filhos de elephantiacos, são elephan- tiacos desde pequenos ; comtudo não acreditam que seja contagiosa ; mas na grande maioria de casos pa- rece provir de constipações.» Quanto a quaesquer outras circumstancias que por- ventura se dèm nos logares ribeirinhos, e que talvez explicassem porque em uns reina a morféa endemica- mente, ao passo que em outros nenhum caso delia ap- parece, os autores não dizem palavra : é estudo que ainda está por fazer. E quanto á qualidade do peixe também se nota grande omissão em um estudo tão interessante. A este respeito apenas encontrei uma referencia feita por Danielssen e Bceck a certos peixes, reputando-os como causa da morféa, por se usar nos logares onde esta moléstia reinava. Accrescentam esses práticos que, no intuito de verificarem os fundamentos desta noticia, trataram de examinar os taes peixes, truta e linguado, encon- trando exactamente dous peixes doentes, porquanto apresentavam tuberculos que se assemelhavam, á pri- meira vista, aos da lepra tuberculosa. Averiguadas as cousas, reconheceram que taes tuberculos eram cau- sados por um parasita vegetal que não podia produzir a morféa, e que não havia correspondência entre a morféa do peixe e a morféa dos homens. Encontrei mais o seguinte: « Hyelt refere que na Fin- lândia por muito tempo acreditou-se que o uso de um peixe do gênero coregonus, cuja prdle secreta uma substancia espessa, viscosa, semelhante ao leite azedo, favorecia o desenvolvimento da morféa.» (x) (») Citado por Neumann, pag. 482. — 140 — Virchow (*) é de opinião que se deve ligar certa im- portância ao regimen alimentar, particularmente ao uso do peixe de má qualidade. Pouco mais direi quanto ás demais causas a que se tem attribuido a producção da lepra, como sejam os alimentos gordos, a falta de pão de trigo, o uso do arroz, e o abuso das bebidas alcoólicas, visto se have- rem os autores quasi exclusivamente limitado a tomar em consideração o uso da carne de porco e a do peixe, e das demais apenas fazerem menção. « Muitos doentes do Peloponeso e da Attica, onde abunda a oliveira, diz o Dr. Cavasse (2), me confessaram que grande consumo haviam feito do óleo, a cujo uso immoderado attrib dam elles sua enfermidade. Os habitantes das ilhas sobretudo accusam o peixe e a aguardente de má qualidade.» Quanto á alimentação de feculentos, eis o que infor- ma Valleix: « O Dr. Dilioux, depois de ter accusado a alimenta- ção defeituosa como causa predisponente, insiste prin- cipalmente sobre a falta de pão na alimentação dos povos expostos á lepra. E', com effeito, digno cie nota, accrescenta Valleix, que no extremo N. como nos paizes tropicaes, esteja o pão banido da alimentação das clas- ses desafortunadas e das raças inferiores, dadas sobre- tudo ao uso das bebidas alcoólicas, aos feculentos, e ás carnes salgadas ou seccas ao fumeiro. » (3) Em outros autores tcnho encontrado esta mesma accusação, e entre elles Lamblin, que assim se ex- pressa : « E' quasi exclusivamente nos povos que não consomem pão que grassa a lepra. Está fora cie du- (') Citado por Lomblin. (2) Obr. cit. pag. 69. (3) Obr. cit. paç. 691. - 141 - vida que o uso deste alimento e uma nutrição melhor muito concorrerão para o c esapparecimento da lepra em França. » (l) Por ultimo cito a notável opinião de Alibert: « Exa- minaie o que se passa em todos os paizes onde a lepra é endêmica, e convencer-vos-heis de que esta moléstia é quasi sempre causada pelo modo como vivem seus habitantes. E' digno de nota ter a lepra desapparecido de todos os logares, que affectava, á proporção cia mul- tiplicação dos recursos hygienicos. » (2) Herança.—Si o contagio da lepra é negado pela quasi totalidade dos autores que se têm occupado desta enfermidade, a herança, pelo contrario, é admit- tida quasi geralmente. E' certo que, para não falhar desta vez a regra, alguns autores, raros, não julgam a herança da mor- féa assaz demonstrada, e práticos ha que admittem-na, mas de modos diversos. Entendem uns que a herança só pôde ser directa, de pai a filho; outros que só pôde ser collateral; ha terceiros que só a admittem saltando sobre uma ou duas gerações; e finalmente ha os que entendem que só um dos pais transmitte o mal: Valex de Ta.ren.to, citado por Danielssen e Bceck, é de opinião que só a mãi, e não o pai, pôde transmittir a lepra, etc Deixando de parte, como menos essencial ao meu estudo, o modo de transmissão hereditária, passo a occupar-me com o facto principal, que ô o que merece particular attenção. (') Mcm. cit. pag. 32, (2) Obra citada. — 142 - Já na idade média se acreditava que a morféa trans- mittia-se pela herança, e desta crença se originaram, segun:1o Hebra, os interdictos de casamento de pes- soas morfeticas, como ainda hoje succede em vários paizes, não sendo mesmo raras as acções de divorcio por igual fundamento. Ainda desta vez os autores norueguenses, que me servem aqui de guia, como têm servido a quantos de- pois de 1848 têm escripto sobre a lepra, expendem com decisão o seu modo de pensar. Na opinião de Danielssen e Bceck a morféa, uma vez introduzida em uma familia, estende-se a todas as gerações que delia descendem. Em sua opinião a herança da lepra pôde ser directa e também collateral, é mais freqüente do lado materno que do paterno, e mais pela via collateral do que pela directa ; poupa uma e mais gerações para atacar a se- guinte, e finalmente na segunda e na quarta geração sobrevem com mais intensidade do que na primeira e na terceira. De algumas outras circumstancías, meros caprichos da moléstia, concernentes ao modo da transmissão hereditária, não me occuparei, por não interessar tanto ao meu estudo. Da estatistica colhida no hospital de S. Jorge, Danielssen e Bceck obtiveram o seguinte resultado : « De 213 morfeticos verificaram que 185 a tiveram por herança, e que apenas em 28 a moléstia fora espon- tânea. Dos 185 a procedência em 104 foi materna e em 81 paterna. A moléstia, que é rara antes de seis annos, declara-se as mais das vezes durante apuberdade. » A esta opinião de Danielssen e Bceck, e também de Conrado, de Kessler e outros muitos autores, diz Hebra que Hyort e Holmsen oppuzeram sérios argumentos, accrescentando que Bidenkop e van Someren demons- 143 — traram que é quasi impossível provar a herança da lepra. (*) Quanto á transmissão hereditária cia lepra o profes- sor Hebra tem opinião mui diversa da da generalidade dos autores. No conceito do celebre professor alguma cousa se transmitte de geração em geração, mas não é a molés- tia desde logo, e sim a disposição leprosa. Melhor é ouvil-o: « Em caso algum a lepra se trans- mittirá como a syphilis, que é, diz Hebra, incontes- tavelmente hereditária. Immediatamente ou pouco depois do nascimento nunca os filhos dos leprosos apresentam os symptomas da moléstia de seus pais (2), e poucos são os casos de lepra hereditária aos 3 annos de idade. » Reconhecendo que é impossível repellir completa- mente a idéia da herança, como Hyort e Bidenkop pre- tenderam fazel-o — apezar dos quadros g nealogicos organizados por Danielssen e Bceck, por Conrado, e apezar das informações ministradas por outros auto- res, o professor Hebra pensa com tudo, de accòrdo com Virchoic, que não é propriamente a moléstia que se transmitte, mas sim— uma disposição para a moléstia — leprosa—, á semelhança da disposição para a tuber- culose e para o cancro; «disposição, accrescenta elle, (*) Obra cit. tomo 2o pag. 534. (2) Por maior que seja o meu respeito ao professor Hebra,não posso furtar-mo á sorpreza desta sua opiniã . Diz elle que « os (ilhos dos leprosos não apresentam os symptomas da moléstia de soas pais». O que então apresentam ? O quo tonho colhido do minha expoiioncia é que os piimoiios symptomas da lopra herdada são em tudo iguaes aos primeiros symptomas apresentados por aquei cs quo a trans- mittiram. O que, polo contrario, a experiência lambem nos tem demonstrado é que no3 filhos dos morfeticos a lepra se completa mais depressa, os períodos se suecodom mais rapidamonte, e, como terei occasião de referir, dá-se ás vezes uma como antecipação do período ; isto é, manifostam-se desorde-ns trophicas, propiias do 3" período, cm meninos morfeticos (por herança) quando apenas se iniciava ncllos o segundo período. Eis o que tenho observado, o por isso se mo tornou diílnil coinprehondor nesta parte o pensamento do profossor Hobra. - 144 — pela qual estas moléstias se desenvolvem em virtude de certas condições exteriores, podendo, em condições favoráveis, deixar, pelo contrario, de se desenvolver.» Ainda com relação ao modo por que, segundo Hebra e Yirchoic, se opera a transmissão hereditária, outros autores esão em desaccôrdo: os «traductores » do livro do professor Kaposi não acham applicavel á lepra o que succede com a transmissão da tuberculose e do carcinoma. Emfim, deixo de parte esta questão que exige maior desenvolvimento do que o que eu lhe poderia dar aqui. O próprio professor Kaposi, e com elle os traductores de seu livro,são avessos á opinião da origem hereditária da lepra, não só por não acbarem-na demonstrada, como também por acharem-se compenetrados do valor da opposicão a que referiu-se Hebra, levantada por Bidenkop e porHyort(1). Todavia aquelle pro- fessor, em cuja opinião ipag. 314) as condições physicas e geographicas são a causa da moléstia, acredita que pais leprosos possam transmittir uma disposição here- ditária a seus filhos c a outros descendentes, com o que aliás não concordam os seus traductores. No conceito de Bazin a morféa é essencialmente he- reditária : « Quanto á herança, diz elle, a questão muda de'face e podemos então nos pronunciar categoricamente, por não ser possível a duvida.» Na opinião cie Alibert o accôrdo a este respeito é geral: « A via hereditária é a causa mais freqüente do desenvolvimento da lepra. «Effectivamente, si esta moléstia reina hoje em Vi- trolles, foi porque alguns habitantes casaram-se com pessoas infectadas de Martigues.» (i Obf. cit. pag. 313. — 145 — O mesmo Alibert declara ter observado muitos casos de herança da lepra, e accrescenta: «A herança é tão poderosa causa, que cedo produz seus effeitos nos me- ninos, salvo o emprego de medidas acertadas, como a de fazel-os amamentar por amas sadias e robustas, mudar de ar, e até de clima, e finalmente o uso de tudo quanto possa concorrer para combater a nova disposição do organismo. » (*) Virchow, que não admitte o contagio, é partidário da herança da lepra (Lamblin, 84). Nas respostas dadas pelos médicos japonezes a Virchow vem consignada esta declaração : « A disposição hereditária deve ser considerada como provada ; salta algumas vezes uma geração.» (Citado pelo Dr. Ch. L. Drognat Landré, pag. 41.) O Dr. Cavasse considera que a herança é uma das causas mais freqüentes da lepra. Apezar da difficuldade de se colher informações a semelhante respeito, diz comtudo que a herança foi a causa da moléstia nos doentes que figuram em suas obser- vações. (2) O Dr. Beirão diz : «Depois de numerosas experiências feitas no hospital da Madeira, I. Adams e Th. Her- berden pensam que a elephantiasis pôde não somente ser hereditária, mas se transmittir algumas vezes por muitas gerações. As indagações do Dr. Ainsley na índia confirmam a crença daquelles sábios obser- vadores . » Occupando-se, porém, com o resultado de sua experiência, assim se exprime o Dr. Beirão: « Mas em, relação á hereditariedade ou não da elephantiasis (i) Obr. cit. tomo 2o pag. 310. (2) Idem idom pag. 6'j. u 19 — 146 — a nossa observação está muito longe de confirmar a hereditariedade desta moléstia ; porquanto nas cin- coenta observações, que fazem objecto deste trabalho, apenas quinze podem «fazer presumir» que ella o seja.» Godard, que como se sabe foi ao Egypto e á Palestina estudar, entre outras moléstias, a lepra, tendo tido a infelicidade de succumbir a tantas fadigas antes de terminar sua humanitária empreza, era sectário da doutrina da herança. Diz elle que encontrou muitos meninos, mais ou menos affectados, filhos de pães leprosos. Como Alibert, observou que a moléstia de- clara-se cedo, quando tem essa procedência. Teve exemplos de lepra transmittida hereditariamente pela mãe; porém não viu um só caso em que a moléstia proviesse do avô, da avó, do tio ou da tia. O Dr. Godard confirma que a herança é mais fre- qüente do lado materno do que do paterno. Terminada esta primeira parte do meu estudo sobre causas, na qual limitei-me a expor as opiniões de autores estrangeiros (i), passo a occupar-me com a segunda, que é a consagrada ás opiniões de médicos brazileiros sobre as mesmas causas da morféa. (') E' com bastanto pezar que deixo do incluir aqui as opiniões dos módicos do Moxico, onde soi se tèm publicado trabalhos inloressantes, mas quo não possuo nem tenho mais tempo do os obtor ; como lamento igual falta em relação aos collegas do Prata, os quaes se oslão entregando com tanto affinco a estudos niedico-hyídcnieos. Tenho, é corto, um trabalho, intitulado Historia de una affeccion anesthesica, contracturante, amputante y dactiliana o publicado pelo Dr. Emílio R. Coni, assaz conhecido por outros trabalhos de incontestável merito scienüfico; porém, como ue;ta publicação o Dr. Emilio Coni encarou o assumpto da lepra debaixo do uni ponto do vista rostricto, não pude colher nolla subsidio algum, quo alias muito mo aproveitaria para a elucidação das variadas questões que se prendem á etiologia da moléstia. Deixo apenas consignado o meu pezar. Como esto meu trabalho é um simples es- boço, traçado apressadamente entro tantas difficuldades, que são bem conhecidas dos que têm cmpruhendido publicações sciontificas, deixo aquella lacuna para ser preonchida por quom, com mais compotoncía, mais títulos o melhores habilitações tiver de voltar a um estudo do tanta importância. - 147 - OPINIÕES DOS MÉDICOS BRAZILEIROS Nesta exposição das opiniões dos médicos brazi- leiros seguirei a ordem por mim estabelecida quando oecupei-me com as dos médicos estrangeiros. Clima.— Na memória (*) « Opiniões dos médicos do Rio de Janeiro acerca da elephantiasis dos gregos, vul- garmente denominada morféa, expendidas e conheci- das antes das memórias do Sr. Faivre sobre esta mo- léstia» o Dr. DeSimoni attribuiu aoDr. Paula Cândido a opinião seguinte: «Porém a causa principal parece-lhe ser a temperatura quente equatorial e dos trópicos, opinando que não só o calor influe directamente como estimulante da pelle, senão também dilatando os vasos da mesma, facilitando n'elles o ingresso da maior ou menor porção dos respectivos líquidos, ou mesmo permittindo a introducção de glóbulos que sem esta circumstancia não entrariam.» O Dr. Aquino da Fonseca (2) entende que « mais do que a quaesquer outras causas se deve attribuir o des- envolvimento da lepra á temperatura elevada, á hu- midade, á variações constantes da atmosphera, á habitação em logares baixos, humidos e visinhos de águas estagnadas ou pantanosas. » Os Drs. Ferreira Nina eSaulnier Pierrelevée reconhe- cem que as verdadeiras causas das moléstias são ainda desconhecidas, mas entendem que a sua etiologia liga-se sobretudo á influencia climática.» Analysando as condições do Rio Grande do Norte, pegunta o Dr. Luiz Carlos Lins Wanderley: «D'onde (') Publicada nos Annaes de Medicina Brasilense, 184.;. (2) Memória citada. — 148 - procede, pois, esse privilegio feliz para esta provincia, a qual abrange na sua área de 18 mil milhas quadra- das, uma população superior a 240 mil habitantes ? « Será da sua posição geographica, entrando no cabo de S. Roque, umas poucas de milhas pelo oceano atlântico, como em procura da África ? « Será da sua posição geographica afastando-se da linha equinoxial cinco gráos ao Sul f « Será das condições do seu clima, quente no correr do dia, e temperado á noite, quando reina uma viração larga e franca ? São questões a que não me julgo habi- litado a responder. » O Dr. José Nogueira Borges da Fonseca (Ceará) acredita que a causa da morféa é uma condição climatologica especial, ajudada de uma predisposição individual, determinada por herança e por moléstias anteriores como a syphilis. Ao Dr. Manoel Marcondes de Sá parece que o clima e os alimentos têm influencia muito secundaria no des- envolvimento da morféa. Nada mais pude colher das respostas, em não pe- queno numero, dos collegas que foram consultados sobre a causa ou as causas da morféa. Condições telluricas, humidade.—Agora mesmo acabo de mostrar que o Dr. Aquino Fonseca attribuia certa influencia á humidade, á habitação em logares baixos, humidos e visinhos de águas estagnadas ou pantanosas. O Dr. Bernardino A. A. Machado (*) diz, pelo con- trario, « que os logares mais pantanosos e ao mesmo tempo mui calidos da provincia do Rio de Janeiro são algumas vezes os pontos em que a elephantiasis é (>) Theso cit. — 149 - rarissima. Assim na villa da Estrella e em toda a fre- guezia de Inhomerim se dão as referidas circum- stancias, entretanto nunca tive occasião de ver ali um só morphetico, nem me consta que ao menos nestes 12 últimos annos, de lá tenha vindo alguém para o Hospital dos Lázaros. O mesmo estou autorizado a dizer a respeito de Iguassú e mesmo de Macacú.» O Dr. Villela Guapiassú (*) repete essas mesmas considerações estendendo ás condições topographicas de Santo Antônio de Sá. O Dr. Manoel Bernardino da Costa Vaz diz: « que os factos demonstram que é nas cidades collocadas nas margens dos rios, cabeceiras de iguarapés, nos logares pantanosos, especialmente nas pessoas cuja vida é cercada de privações e misérias que o mal sôe de pre- ferencia apresentar-se.» No Brazil, diz o Dr. Argolo Ferrão (2), á semelhança dos demais paizes, que acham-se sob as mesmas con- dições, esta moléstia sôe apresentar-se com mais fre- qüência nos negros e seus descendentes e especial- mente naquelles que habitam o littoral, as margens dos rios, os logares pantanosos, e as ilhas; na provincia da Bahia «a ilha de Itaparica é onde se observa esta moléstia sem duvida produzida pelo uso da carne de baleia e pela morada em logares insalubres.» O Dr. Firmino José Doria informa «que, pela expe- riência que tem, a moléstia tanto se desenvolve no in- terior, como na costa, onde comtudo os casos são mais freqüentes.» O Dr. José Nogueira Borges da Fonseca affirma também que tem apparecido casos na costa e casos no («) Thc30 sustentada perante a Faculdade do Medicina do Rio -1856. (2) Theso cit. — 150 - interior, se bem que os primeiros sejam raros e os segundos rarissimos.» «Porque razão, interroga o Dr. Meton Alencar, ha de ser somente no littoral que ella se origina, si no mais alcantilado monte ella pôde ser hereditária, como também adquirida no sertão ? » O Dr. Espindola declara «que a morphéa se desen- volve no littoral e no interior.» O Dr. Manoel Goulart de Souza informa « que os casos na provincia do Espirito Santo apparecem isola- damente e em differentes pontos, o que prova que as causas não residem em logares especiaes.» Em uma das memórias manuscriptas que tenho sobre o Paraná, encontrei o seguinte: «Pois bem, apezar dessas communicações, a morféa não tem attingido a esses logares, limitando-se á planura dos campos geraes no trajecto da estrada que vai de N. ao S » Em seguida vem mais esta informação digna de nota : « Na provincia do Paraná, no plateau central, cuja altitude mede 930 metros, e onde se gosa de um clima salubre e temperado, existe a morféa na linha central. « No valle de Coritiba, cuja altitude mede 890 metros, batido de continuo por ventos humidos do mar, onde a atmosphera é humida e fria, e o thermometro poucas vezes chega a zero durante o inverno, não ha morphéa, bem como não ha nas praias do mar onde reina um clima quente e humido. «Para O. nas altas planuras de Guarapuava e Palmas a 983 metros acima do nivel do mar, onde o thermo- metro chega muitas vezes a zero, paiz pastoril, não ha morphéa.» Desenvolvimento espontâneo.—Sobre este ponto pouco colhi das opiniões dos autores e dos médicos brazileiros. - 151 - Destes, os que mais accentuaram este modo de pensar, foram os Drs. Ferreira Nina e Affonso Saulnier de Pierrelevée (do Maranhão) nestas palavras: «Acre- ditamos sobretudo na origem autochthonica, isto é, na espontaneidade da moléstia, dando-se as circumstan- cias climatericas próprias para o seu desenvolvi- mento.» O Dr. Henrique Schutel é de opinião que a morféa se desenvolve espontaneamente A esta interrogação «será indigena ou importada?», que a si próprio dirigira o Dr. Argolo Ferrão, respon- deu (pag. .4) pelo seguinte modo: « Terrível decepção! ter de viver envolto em trevas, quando o espirito anhe- lante pede luz, e condemnado a ouvir de lábios estran- geiros palavras como estas: (*) on dirait que lá ou Ia Providence a di pense ses dons avecplus de libéralité, Vhomme prendi tache à combattre ses bienfaits et de lui jeter en défi son apatique insouciance. Existe, accrescenta o autor, algum documento histórico com que possamos responder a estas questões? Não. « Vejamos se conseguimos respondel-as sem este auxiliar: existindo o Brazil em quasi totalidade sob a influencia da zona torrida; gosando portanto das mes- mas condições climatericas, que se encontram na África, como sejam o calor ardente vibrado pelos raios de um sol africano, variações rápidas de tempe- ratura atmospherica, emanações telluricas e panta- nosas; e sendo além disto a nossa principal alimen- tação insufficiente e má, para que apontar o infeliz escravo victima da mais repulsiva e abominável ambi- ção, como portador de tão terrível mal, si nós sabemos que estas causas são sufficientes para determinal-o ? (i) Memória cit. — 152 — Declaramos pois que, não existindo documento que prove o contrario, a moléstia é indígena desgraçada- mente de nosso paiz e que portanto ella existe nelle.» Sobre a espontaneidade cia lepra entre nós nada mais encontrei. Contagio.— Affirma o Dr. De-Simoni que o Dr. Paula Cândido em sua primeira memória sobre a morféa, admittindo a transmissão hereditária, negou positiva- mente o contagio. Na sua segunda memória, publicada em Dezembro de 1845 nos Annaes de Medicina braziliense, o Dr. Paula Cândido não emittiu, conforme verifiquei, juizo algum no tocante ao contagio da lepra, ou porque lhe houvesse escapado, ou por julgar desnecessário fazel-o uma vez que sua opinião a este respeito era assaz conhecida. Depois de varias citações, diz o Dr. Aquino Fonseca « que é permittido abster-se ainda hoje (*) de pronun- ciar opinião definitiva sobre a questão do contagio nos paizes tropicaes onde a elephantiasis é endêmica.» Na pagina immediata (270 ) accrescenta o autor: «No estado de incerteza em que se está não nos é permittido darmos uma opinião positiva ; porquanto se sustentarmos que a elephantiasis não é contagiosa, só poderemos explicar a transmissão da moléstia de um a outro individuo pela predisposição; mas contra esta explicação que francamente fallando pouco ex- plica, se apresentam aquelles, que nella não querem crer, dizendo que, como não se pôde adivinhar quem é que tem predisposição, convém que os doentes sejam separados do resto da população e que haja toda a 0) Memória cit. pag. 269. — 153 — cautela; e confessamos que não sabemos si a isto se poderá responder. » Esta perplexidade do autor desapparece, porém ao occupar-se com a lepra anaisthétos; diz elle: « não nos ê possível admittir o contagio dessa fôrma da le- pra ; um só facto não temos encontrado que possa abalar a nossa convicção ; e é isto mais uma razão que temos, para insistirmos sobre a distincção entre uma e outra espécie de lepra. » Com effeito o Dr.' Aquino Fonseca aclmittia a dua- lidade da lepra, ao tempo ( 1847) da publicação de seu trabalho ; e como não me consta que este dis- tincto pratico haja publicado algum outro sobre o mesmo assumpto, não sei si ainda pensado mesmo modo, em contrario á opinião hoje corrente, que não admitte a dualidade, mas sim , unidade da lepra, ou si suas idéas soffreram neste ponto alguma mo- dificação. Já que toco neste ponto, devo accrescentar que o Dr. Castro (do Pará) também aclmitte a classificação do Dr. Aquino Fonseca. Em uma communicação particu- lar a mim dirigida ( 2í de Maio de 1881), disse o Dr. Castro : « Devo ponderar que sob a denominação ge- nérica de morphéa ou melhor amorphéa ( do alpha privativo grego sèm e morphos figura, isto é, sem figura ou desfigurado ) se comprehende a lepra tuber- culosa ( a leontiase e suas variações ), a elephantiasis dos grego •, a lepra anaisthétos, ou sècca, a lepra mixta, que participa das qualidades e symptomas de ambas estas espécies de dermatoses, e a lepra verme- lha ou de ( ayenna. Esta é a classificação que adopto, a qual pertence ao nosso douto collega de Pernambuco, Dr. Joaquim d'Aquino Fonseca. » Em outro periodo accrescenta o Dr. Castro: « Direi que as quatro espécies de morphéa ou lepra, são total- m. 20 — 154 - mente distinctas quanto a sua natureza, embora par- ticipando da mesma denominação.» Eu não penso a este respeito como os dous distinctos práticos brazileiros, por mais que lhes respeite a sciencia e a experiência : sou unicista, e o sou muito convencidamente, baseado em meus próprios estudos. Entendo que a natureza das varias fôrmas de lepra é a mesma, é uma só ; o que varia são as localisações, como succede em outras moléstias constitucionaes. Os meus estudos hemathologicos, que expenderei opportunamente, a analyse do producto da secrecão urinaria, a evolução symptomatica, e até o seu trata- mento me convenceínda completa identidade das duas fôrmas principaes da lepra, a tuberculosa e a anesthe- sica, sendo variável somente o que não é essencial á sua natureza interna. A moléstia é a mesma, sempre idêntica, única, porém, variável exteriormente, variável nas suas determinações secundarias, em vir- tude das disposições orgânicas, do prisma individual, o que lhe altera a fôrma, a manifestação externa, mas não lhe muda a substancia, a essência, a evolução in- tima, a natureza em summa, que é sempre a mesma e inalterável. Não sendo a natureza da lepra o que agora estudo, visto não m'o ser permittido ao presente trabalho res- tricto á hygiene, limitarme-hei a este simples enuncia- do sem exhibir desde logo as provas que o sustentam, e sem addicionar os argumentos fornecidos por alguns autores entre os quaes occupam o primeiro plano os Drs. Danielssen e Bceck, a quem a sciencia deve, no conceito do professor Hebra, a demonstração da « uni- dade » da lepra ; sendo esta, no meu entender, a parte a mais notável e a mais meritoria do trabalho dos dous práticos. Volto á questão do contagio. — 155 — O Dr. Silva (pai) e os discípulos, que sob a influen- cia de suas idéas escreveram theses de doutoramento, sustentaram qu> a lepra nãoé contagiosa. O Dr. Bernardino Antônio Alves Machado diz na sua these: « O contagio tão temido pelos antigos é ainda hoje admittido por autoridades de grande vulto ; entre- tanto, numerosíssimos são os factos que destroem se- melhante opinião, que aliás já foi victoriosamente combatida pelo bem conhecido Bernardino Antônio Gomes. A maior parte dos nossos médicos concordam nesta parte, com o illustre naturalista; as observações de morféa que o Dr. Silva cita nas suas lições de pa- thologia interna, são bastantes para decidir a questão (pag. 14.) » Na mesma pagina accrescenta o autor: « O hospital de lázaros me forneceu nova prova, e bem evidente do que levo dito: os empregados que foram para este es- tabelecimento livres do mal, ahi se têm mantido exemptos delle, o que de certo não seria concebivel na hypothese contraria » Adoptando a mesma idéa, o Dr. Villela Guapiassú cita em sentido contrario ao contagio diversos casos que se tornaram notáveis, accrescentando que « nenhuma precaução foi tomada para evitar o cantagio e que nem por isso elle se manifestou.» O Dr. Albino c'e Alvarenga C1) exprimo-se nestes termos: « E' sabido que as moléstias produzidas pela syphilis inveterada não são contagiosas, e pois a ele- phantiasis o será raramente; pois que somente nos casos de ser ella determinada pela syphilis recente o (i) Theso do doutoramento, 18ü7. — 156 - contagio terá logar. Além disso os factos faliam a favor dessa opinião, pois que fomos informados pelo director dos Lázaros em S. Chrístovão, que, servindo a cinco annos, ainda não viu um só empregado ou ser- vente ser contagiado desse mal, e que conhecendo esse estabelecimento ha vinte annos, e tendo relações com uns ecclesiasticos que então dirigiam o hospital, soube delles que nunca uma só pessoa do serviço foi conta- giada, por mais freqüentes e intimas que fossem as relações entre elles.» O Dr. Argolo Ferrão diz (pag. 12): « Em nosso hos- pital desde a época de sua fundação até a presente não ha um só exemplo da moléstia adquirida por contagio, nem nos serventes do interior do edifício, nem nas la- vadeiras das roupas dos doentes.» Não obstante o Dr. Argolo Ferrão conclue « admit- tindo com o Dr. Wilson o contagio pela inoculação tão somente. » O Dr. Castro ô de opinião que a lepra ô contagiosa. Os Drs. Ferreira Nina e Saulnier de Pierrelevée « nada podem affirmar sobre o contagio ; que ha casos que parecem ter essa origem, outros porém provam o contrario. Durante 25 annos, accrescentam elles, de ob- servação no hospital dos Lázaros desta cidade (S. Luiz do Maranhão), um de nós que ali exerceu a clinica, nunca viu empregado algum, embora convivendo com os doentes, que fosse atacado do mal. » O Dr. José Paulo Antunes ( Maranhão) « não aceita a idéa do contagio, e só se convencerá do contrario quando os factos o confirmarem. Ainda não verificou que a moléstia se transmittisse, de algum dos casos de que tem conhecimento, a pessoa sã. » « O contagio, diz o Dr. José Nogueira Borges da Fon- seca, é negado com bom fundamento, sendo muito pro- vável que não influa como causa.» — 157 - ODr. Anastácio Simphronio de Abreu é de opinião que a lepra nunca se transmitte por contagio. O Dr. Cosme de Sá Pereira se confessa indeciso : « não sou nem contagionista nem anticontagionista, porém não acho repugnância em admittir o contagio, logo que o indivíduo morphetico se acha em pleno e constante contacto com indivíduos não morpheticos, mas com disposição de receber d'aquelle qualquer cau- sa que possa fazer apparecer a morphéa. « Embora os infinitos casos citados para se negar o contagio já em esposos, já em filhos, já em enfermeiros, e.finalmente em criados ao serviço dos doentes, etc, todavia pode-se dizer que nem todas as faíscas pro- duzem incêndios; e qual o |motivo ? De certo pela falta de circumstancias que se deram n'este caso ; n'outras porém verifica-se a destruição produzida por igual faisca.» Discorrendo sobre o mesmo assumpto, o Dr. Cosme de Sá Pereira chega a aproximar os dous termos — herança econtagio — accrescentando mesmo que, «ad- mittida a transmissão hereditária da lepra, se chega philosophicamente a admittir o contagio.» Na impossibilidade de acompanhar o illustrado col- lega no terreno em que collocou as questões cio conta- gio e da herança da morféa, limito-me a ponderar, que «clinicamente» não se observa semelhante aproxi- mação. Ha, com effeito, moléstias francamente here- ditárias, e a cujo respeito nunca houve a menor sus- peita de se transmittirem também por contagio — ; e bem assim não se tem como forçosamente hereditária a moléstia contagiosa, tão independentes são um do outro —o contagio e a herança. A única enfermidade que faz excepção á regra, é a syphilis, a qual, sendo incontestavelmente hereditária, é incontestavelmente contagiosa ; mas contagiosa de - 158 - modo definido, ás escancaras, e não de modo um tanto mysterioso como o collega e os raros contagionistas tentam explicar o contagio da lepra. « Nenhum obstáculo, me communica o Dr. Veiga (Campanha), mais que a vontade, impede a união ma- trimonial entre individuos que parecem marcados com o stygmá da desgraça e algumas uniões conhecemos entre um homem são com uma mulher doente ou vice- versa sem que o mal de um passe para o outro.» * Syphilis.— Entre os médicos brazileiros ha pronun- ciado pendor para attribuirem a morféa á syphilis, como passo a mostrar. O Dr. De-Simorii, no seu parecer sobre as memórias do Dr. Faivre (*), diz que este autor inclinava-se a at- tribuir a morféa a um virus e principalmente ao syphilitico, e partindo deste principio recommendava que no tratamento se combatesse antes de tudo este virus. {2) O mesmo Dr. De-Simoni, no trabalho em que reuniu as opiniões dos médicos brazileiros sobre a morféa, observou que a 23 de Setembro de 1841, na sessão da Academia Imperial de Medicina, o Dr. Júlio Xavier entre outras considerações disse o seguinte : « Insis- tiu na idéa de haver nesta moléstia um principio syphilitico, citando a opinião do Dr. Silva, que em uma lição sua na escola de medicina asseverou nunca ter visto esta enfermidade em pessoa qcn não tivesse tido bobas ou sido amamentada por ama da Costa d'Africa, ou sido filho de indivíduo syphilitico ou bôbatico. » (i)_Comquanto o Dr Faivre fosso de origem franceza, menciono todavia sua opinião visto tel-a ei o formado aqui no Brazil depois dos estudos a auo leve do entregar-se, como e sabido. ' (2) Dr. De-Simoni, parecer cit. - 159 - Em um manuscripto (pertencente ao Dr. Martins Costa) onde vêm colleccionadas as lições do Dr. Silva (pai) sobre assumptos de pathologia especial, encontrei, na lição consagrada á morféa, a confirmação do que affirmara o Dr. Júlio Xavier; eis o trecho : «A ele- phantiasis dos gregos tem por causa a syphilis. Disse que levou morfeticos para sua casa afim de bem os examinar, que interrogou muitos enfermos e sempre verificou que a morféa era devida á syphilis, accres- centando que os que têm bobas, virus venereo, os filhos de pais syphiliticos, os que tiveram amas de leite bòbaticas, acabam quasi sempre elephantiacos. » Esta opinião assim formulada em termos tão posi- tivos, não podia deixar de formar, como succedeu, de cada discípulo um proselyto. Effectivãmente, os doutorandos daquella época eram unanimes em acolher e repetir em seus traba- lhos as opiniões de seu professor, que á autoridade de mestre reunia a de pratico de grande nomeada; e como cada um delles relata alguma circumstancia, attinente ao assumpto, que os outros não mencionam, procurarei reunir estes elementos dispersos, os quaes, ainda que não resolvam a questão, não deixam de ter seu mérito, seja embora minimo. Sim, podessemos nós colher e reunir os pensamen- tos dos que na jornada da vida vão ficando atraz de nós, e com isto praticaríamos de certo uma acção me- ritoria. Um pensamento é uni producto, muitos pen- samentos constituem, — um patrimônio. Demais os pensamentos alheios formam uma escala para a ele- vação de nosso próprio espirito : o primeiro delles, por mais tímido e insignificante que seja, tem pelo menos o mérito de servir de gráo para esta ascensão. Quasi que se contam pelas quedas as primeiras passadas da criança, o futuro homem robusto: assim - 160 - também os erros são as primeiras balbuciacões, os ensaios successivos, a aprendizagem da irradiante verdade. Depois de'reportar-se ao seu professor, o Dr. Ber- nardino A. A. Machado accrescenta: «Esta opinião é também partilhada pelo mui digno presidente desta these (Dr. João José de Carvalho), que teve a bondade de me referir alguns factos, que provam exuberan- temente esta verdade. (l) «A elephantiasis, escreve o Dr. Joaquim Coelho Gomes (2), somente appareceu entre nós depois da importação de bobas trazidas pelos africanos, as quaes o Dr. Silva encara pelas mais sabias observações como a syphilis genuína, que modificada e degenerada pelo nosso clima, vinha a atacar debaixo de uma moléstia differente, porém cuja causa e principio viroso eram os mesmos.» O Dr. José Joaquim Ubeiaba de Sá accrescenta: « A estas objecções responde o Dr. Silva, que é raro encontrar um morfetico, que antes da apparição do mal não tivesse muitas moléstias syphiliticas, princi- palmente boubas; e que quando isso não se chega a dar, ou elles foram amamentados por amas affectadas de boubas, ou de outra moléstia syphilitica, ou então nasceram de pais morfeticos. « Conclue emfim o Dr. Silva, dizendo que « a inexa- ctidão destes respeitáveis autores (alludia a Casenavee a Schelden) ô sem duvida devida á falta de observações fr, quentes desta moléstia, e que no século actual é absurdo dizer-se que a syphilis não é causa da morféa. » (i) Theso cit. (2) Those sust. cm 183G poranto a faculdade do medicina do Rio. < Ele- phantiasis dos gregos, suas causas e seus tratamentos » e o ponto. — 161 — « Todas estas causas, diz oDr. Albino de Alvarenga, para nós não são mais do que predisponentes ; a de- terminante nós vamos conhecer pelo exame de um grande numero de factos e pela expressão sympto- matica da moléstia. « Temos em nosso poder, accrescenta elle, um grande numero de observações do Dr. Silva, pelas quaes vê-se que os indivíduos que actualmente soffrem da elephan- tiasis ou eram descendentes de pais que tiveram boubas ou foram amamentados por amas nas mesmas condições, ou emfim elles mesmos foram dellas affe- ctados. O Sr. Dr. José Joaquim da Silva teve a bon- dade de me mostrar dous doentes morfeticos, a quem prestava seus cuidados, em cujas famílias têm havido boubas ; e nós mesmo dirigimos actualmente o tratamento de um morfetico, cuja mãi fora quando moça affectada de boubas. « Estes factos já nos bastariam para provar que é syphilitica a causa determinante da elephantiasis dos gregos, etc. » O Dr. Paula Cândido, porém, opinava diversa- mente : « A genuina elephantiasis dos gregos não resulta da syphilis ('): as coincidências da morféa em individuos syphiliticos, que apparecem algumas vezes, não so- brepujam outros muito mais numerosos casos em que nas mais recatadas famílias, no meio da mais bella apparencia de saúde, em geral na flor da idade, sem infecção syphilitica antiga ou recente, a morféa se de- clara e percorre inexorável seus períodos: os anti-sy- philiticos vegetaes ou mineraes aggravam os pri- (') Momoria cit. (Copiei textualmente). m . 21 — 162 — meiros e ainda longínquos vislumbres do horrível mal. « Além disto quantos inveterados syphiliticos que se pôde chamar como o Gênesis, inveterata malorum, não vemos nós uns sem queixos, outros estropiados, etc, chegarem ao ultimo gráo da infecção, arrastando dolo- rosa existência, horrivelmente mutilado?.', sem appa- recer a morféa ? Ora era este bem o caso de degenerar em elephantiasis.» Como Danielssen e Bceck attribuissem ao Dr. Paula Cândido uma opinião contraria á que consta desta memória, é meu dever restabelecer a verdade, e para isso reproduzirei as palavras do medico brazi- leiro. « Syphilides ha, sem duvida, de fôrma tuberculosa que apparentam a elephantiasis ; mas as inflammações da garganta, as ulceras a bordos cortados a pique, a côr de cobre das cicatrizes, a mudança e embaciamento da cutis do syphilitico, contrastando no começo do mal com a apparencia da mais brilhante saúde no fu- turo morfetico; as dores rheumaticas e outros « indi- cios differenciaes » são muito sufficientes para se discriminara « syphilide tuberculosa» da elephan- tiasis. Emfim a syphilis tuberculosa cede e se cura perfeitamente, ao menos em muitos casos pelos anti-syphiliticos, os quaes aggravam pelo contrario a morféa. « Quanta gente não terá assim curado syphilis an- nunciando cura de morféa 1 ! ? « Em conclusão, pois, a syphilis não é causa da morféa, mas poderá accelerar e modificar esta affeccão cutânea quando com ella coincidir. » Esta foi a opinião do Dr. Paula Cândido, clara, explicita e emittidaem 1845; no emtanto osDrs. Da- nielssen e Bceck, em seu livro publicado três annos — 163 - depois(1848), disseram o seguinte: enfin récemment Candide (*) expose que les exanthemes sijphilitiques, et d'autres eruptions chroniques dègénerent en ceux de Ia spédalskhed;pourtant cette dernière affection ne ãe vient jamais si pernicieuse que lorsfelle s^annonce primitivement. (Pag. 110.) Conforme se vê pela confrontação dos dous pe- ríodos o pensamento do medico brazileiro foi com- pletamente alterado na traducção: o Dr. Paula Cân- dido disse exactamente o contrario do que lhe foi attribuiclo, embora sem intenção, pelos Drs. Danielssen e Bceck. Ao Dr. Aquino Fonseca parece que «a syphilis con- corre para o desenvolvimento da lepra em alguns individuos» e nossa experiência não só nos faz crer o que dizemos, como nos tem convencido de que ella aggrava muitíssimo o mal. Temos por vezes encontrado individuos que outra cousa não accusam; e tratamos neste momento um que todo o seu soíTrimento provém de moléstias vene- reas; e o certo é que nesse indivíduo o tratamento anti-syphilitico tem produzido melhoras, não só na côr e elevação das grandes nodoas, que tem por todo o corpo, como no volume de alguns tuberculos da face e * no movimento dos dedos. Schiling fallando das causas da lepra assim se exprime: « Neque omittendo est Ve- nm.» (M Esla referencia é ao Dr. Paula Cândido, conformo so vorifica por outras citaçúos ; exemplos: un des autres les plus rêcenls, Candide, apresente 1'hypothèse qna l'essênce de li maladie consistait dans li plaiticité du sang etc. fpag. KM). Esta era a opinião do Dr. Paula Cândido.— Outro exemplo: A Sai»t-Ckristofle on prèl Já no Maranhão Agassiz e os companheiros haviam fruido as auras cie um clima ameno e hospitaleiro: « Nous avons passe hier (3 de Agosto de 1865), disse elle, Vaprès-micli à Ia ville avec Ia familfe Braga. I1) Agassiz—Voyage au Brèsil, pag. 156,—1869. — 199 - « Le temps était ravissant; une fraiche brise traver- sait doucement Ia rérandah ou nous avons dinnê. On avait invité beaucoup de monde en notre honneur, et nous eúmes de nouvcau Voccasion de reconnaitre com- bicn cepeuplc Iiospitalier sait faire en sorte que Vé- tranger qiVil accueille puisse se croire chez soi.» A partir do norte do Império todas as nossas pro- vincias possuem, além dessa brisa suave e constante, localidades mais ou menos extensas onde o clima se manifesta por uma temperatura branda e reparadora. São logares que a uma vegetação quasi sempre opu- lenta reúnem uma certa altitude. 0 Piauhy conta a sua comarca—Pedro Segundo,— onde a temperatura é muito agradável. Descrevendo a serra delbiapaba, no Ceará, o grande padre Antônio Vieira exprime-se nestes termos: «Os dias no povoado da serra são breves, porque as primeiras horas do sol cobrem-se com as nevoas, que são continuas, e muito espessas. As ultimas escon- dem-se antecipadamente nas sombras da serra, que para a parte do occaso são mais vizinhas e levantadas. As noites, com ser tão dentro da zona torrida, são frigidissimas em todo o anno, e no inverno com tanto rigor, que igualam os grandes frios do Norte, e só se podem passar com a fogueira sempre ao lado. As águas são excellentes, etc. » (2) Assim em uma província quente, como o Ceará, ha climas de uma suavidade que custa a acreditar. O Dr. Jaguaribe Filho cita em sua interessantíssima these Canindé, S. Francisco, Quixeiramobim, Mecejana, onde o clima goza da melhor reputação. (i) Obras varias do padre Antônio Vieira, tomo Io pag. 71. — 200 — f Tenho ouvido fallar em uma localidade central da mesma provincia, o Jardim, acima do Crato, onde se encontra uma flora quasi européa. Na Parahyba ha a serra da Borburema, em cuja cha- pada estão assentadas as cidades de Areia, Bananei- ras, Campina Grande, e as villas de Araruna, Cuité, S. João do Cairiry e Teixeira, com um clima que ri- valisa com o de Petropolis e o de Friburgo. Abaixo da serra se encontra a villa cie Itabayana, que é o refugio dos convalescentes, e poderoso abrigo dos beribericos. No Rio Grande do Norte a serra do Martins, a co- marca da Maioridade e especialmente o termo da Im- peratriz são muito saudáveis. Em Pernambuco, além dos lindos arrabaldes do Recife, ha o Cubatão, e mais para o interior o afamado Garanhuns com o seu clima secco e fresco, logar em que se pôde dormir impunemente, ao relento, e onde os affectados de tuberculos pulmonares encontram grande allivio e poderoso auxiliar para a rehabilitação do seu organismo. Além de Garanhuns ha a saudável Villa do Brejo da Madre-Deus. Em Alagoas, bem perto da capital, goza-se da linda situação—o Bebedouro. Os Alagoanos lisongeam-se ainda com a sua villa de Atalaya. Além de muito férteis são saudáveis a Matta Grande e Água Branca n'essa provincia. Em Sergipe encontram-se as interessantes locali- dades—Santo Amaro, Itabaiana, Lagarto, Santa Luzia e as praias de S. Chrístovão e da Estância, sobre cujos coqueiraes sopram, revesando, a viraçâo do norte (o terral\ e pelo resto do dia, a brisa do nordeste. Na estação calmosa que dias felizes se passam por alli entre moradores innocentes, que vivem no seio de uma pobreza abundante! - 201 - A começar pela capital até o alto sertão quanta ri- queza climática não possue a provincia da Bahia ! Nas immediações da capital, Itapagipe, as Quintas e o Rio Vermelho; para "o centro, entre outros, prima Monte Santo, para onde affluem os tuberculosos. Foi alli que o Dr. Antônio José Alves (pai do poeta Castro Alves) conseguiu restabelecer-se de uma caverna pulmonar, o que permittiu-lhe desempenhar em seguida as funcções de professor da escola de medicina e entre- gar-se á clinica extensa. A capital do Império, apezar de sua situação topo- graphica e de estreitada por altas montanhas, também conta os seus oásis climáticos. Do centro da cidade levanta-se o morro de Santa Thereza onde os seus fre- qüentadores, em grande numero, encontram, sobre- tudo á noite, uma temperatura suave e compensa- clora. Nas extremidades a Tijuca com a sua excellente e abundante água e variados passeios, e a Gávea, meio adormecida, com a sua vegetação basta e o seu ribeiro que corre para o mar precipitando-se cie pequenas em pequenas cascatas. A provincia do Rio de Janeiro ostenta Petropolis, Friburgo 0) e Theresopolis. Descrevendo um passeio a este ultimo ponto, conta Agassiz: « Nous fumes un excellent rcpa*, dont Vair (i) Das nossas estações climáticas a do Friburgo é uma das melhores, sobre- tudo uo inverno.-São notáveis os c isos de tuberculosos quo alli tem recuperado a saudo Xo verão os aguacciros repetido^ perturbam o ostado atmospherico ; no in- verno, porém, a temperatura é constante, o ar é fresco o seceo : quanto a mim, sua acção tomea é sem excitação. Com e(foito nessa situação os phenomenos de improssionabililade pulmonar apresentados pelos tuberculosos, se moderam o cessam. Xo importante estabelecimento sanitário do Dr. Eholi observei doze doentrs tuberculoso , dous moços, nos quaes mediante a hydrothoiapia, a tosse, o movi- mento febril, o em um" delles, a homoptisis haviam cessud i inteiramento. Ü ap- petite tornou-so franco c d'ahi a melhoria do estado geral. Foram dous casos que mo deixaram sobremodo impressionado. Eiii relação ao tratamento dos tuberculos pulmonares entendo quo o clima do Friburgo mereço mais attonção do quo so tem prestado até o prosente. m. 26 - 202 - vif de Ia montagne et Vexercice que nous venions de prendre furent le meilleur assaisonement. Le village de Thérésopolis est dans une situation charmante.» Na pagina immediata (476) alludindo á fazenda S. Luiz, accrescenta: «Les jardins sont dessinés avec beaucoup de goút, et M. ttEscragnole a reussi à y faire venir presque tous les fruits et les legumes d'Eu- rope aussi bien que ceux du Brésil. Cest une raison deplus pour regretter qu'un cantou si pittoresque ne soit pas cultive; lespoires, lespèclies, les fraisespous- sentadmirablement, ctilen est demême des asperges, des artichauts, des petits pois et des chou.i-fleurs, etc. » 0). Quem não tem conhecimento, ao menos por ouvir dizer, do clima de Barbacena, S. João d'El-Rei e Juiz de Fora, em Minas ? Naquella mesma provincia, a mais extensa do Im- pério, ha ainda outros thesouros climatologicos. Em toda a provincia de S. Paulo, que é a primeira a romper a linha tropical, fruem seus habitantes clima muito agradável; em alguns pontos, mais para o sul, a temperatura desce bastante, sobretudo no inverno. São desta provincia os afamados campos do Jordão, cujo clima o Dr. Clemente Ferreira, servindo-se de uma phrase do professor Fonssagrives, considera ideal. Desenvolvendo seus estudos sobre a efficaz in- fluencia do clima dos campos do Jordão na marcha da tuberculose pulmonar, o Dr. Clemente Ferreira, entre outras considerações dignas de apreço expõe o se- guinte: « A transfiguração das constituições é tão rápida, tão precipitadas as transformações orgânicas nesse bello clima, que não ha tempo para que as acompanhe paripassu a involução da moléstia; e (i) Obr. cit. - 203 - d'ahi procede essa falta de parallelismo que se nota al- gumas vezes entre o estado local e as condições geraes da economia. E' um facto curioso e digno de nota c que nos despertou vivamente a attenção. » (*) Carecerei porventura dizer aqui o que é o clima do Paraná e de Santa Catharina ? Como se sabe, metade do Paraná acha-se na zona tropical e metade na zona temperada; Santa Catharina, com a sua serra onde está a comarca de Coritibanos, acha-se toda na zona temperada. Quanto ao Rio Grande do Sul, não se ignora o seu clima temperado e potente (2). Vivemos, é certo, sob uma atmosphera que é mais quente pela posição do nosso paiz na geographia do globo de que pelo calor que nós os Brazileiros sen- timos. Deu-nos a natureza esta situação, mas concedeu-nos ao mesmo tempo todos os seus favores no intuito de corrigir os inconvenientes que poderiam resultar de uma temperatura elevada. Temos o clima quente, temol-o mitigado pelas ondas de vapor humido, que se alevantam das amplas superfícies do oceano, dos nossos magestosos rios e dos rios menores que cortam o território do Brazil em todas as direcções, realizando por esta fôrma o mais completo systema de irrigação; temol-o ainda miti- gado pela maior e menor altitude dos terrenos, e fi- nalmente pelas amplas florestas que se estendem para todos os lados. « Le climat du Brésil, disse Sigaud, est repute avec juste raison le plus beau des principales contrées du !i) Gazeta Mediei Brazileira n. 2,1882. (2) \ão foi por esquecimento, mas por ignorar as ostaçõos climáticas, que deixei do contemplar Mato Grosso, Goyaz, Espirito Santo o Amazonas. Quanto •i ultima lenho ouvido fallar da suavidade do clima dos campos do Rio Branco. - 204 — globe. II est pour le continent des deux Amériques ce qui celui de VItalie est pour VEurope. (*) Cabe-me, entretanto, accrescentar que não é desses climas parciaes, verdadeiros mimos da natureza, mas simdos climas geraes, que pretendo tirar argumento applicavel ao desenvolvimento cia morféa entre nós. Na sua obra (5) sobre os climas, etc, do Brazil, o Sr. Liais, fundanclo-se na differença que ha entre algumas espécies animaes e vegetaes perto do equador e outras espécies á aproximação dos trópicos, admitte para o Brazil dous climas que apresentam consi- derável mudança de temperatura. A um denominou equatorial e a outro tropical, accrescentando que este estende-se até realmente 3o ou 4o além do trópico cTonde começa então a zona temperada quente, na qual penetra a extremidade sul do território brazileiro. Cortando o trópico cie Capricórnio a extremidade sul da provincia de S. Paulo e a metade da provincia do Paraná, ficando fora delle Santa Catharina e Rio Grande do Sul, é evidente que, embora não seja mui grande a extensão, tem o império do Brazil uma parte de seu território nessa zona temperada, outra nas imme- diações do trópico, uma-grande parte intermediária, e finalmente outra debaixo cio equador, resultando de toda esta disposição mud nça de temperatura, que o Sr. Liais traduziu por aquellas denominações. (3) (i) Obr. cit. (2) Climats, Geologie, faune et geographie botanijue du\Brésil par Emmanue Liais; 1872. (31 E' realmente lamontavol quo om trabalhos notáveis seus autores mostrom-so tão mal informados a respeito do Brazil quo se tem imposto á afonção do mundo pelos títulos do sua grandoza natural. E'assim quo no seu Traité de climatologíe general du globe o De. Armand deicroveu o Brazil com muita nogligoncia, re!eiindo-so ao Brazil para mencionar do modo o mais inexacto enformidados quo reputou endêmicas. Figura como reinando nas costas do Pernambuco, Bahia o Rio epidomias do longa duração, as quaes, diz o Dr. Armand, rounom todos os perigos das ondemias tropicaos, desde a fobro intormittento simples até a íobro amarolla. - 205 - Effectivamente, do Rio cie Janeiro (*) ao Amazonas a temperatura média na zona intertropical é de 26 gráos. Do mesmo ponto para o sul a média é de 17,7 na opinião de Martin de Mussey, o que torna evidente a differença entre o clima equatorial e o clima tropical. Examinemos agora como actua a morféa em re- lação ao gráo de calor. Não é conhecido o movimento meteorológico da provincia do Amazonas, o que não me impede de acreditar, attenta a sua posição geographica, seja alli bastante elevada a temperatura. Pois bem, naquella provincia, como mostrei, é pouco freqüente a lepra, podendo-se mesmo affirmar que é rara. No Pará, é certo, já não succede o mesmo. Nesta provincia, cuja média de temperatura é 27°, a morféa é freqüente; temos pois, duas, provincias de tempera- turas equivalentes, nas quaes a morféa actua desigual- mente: n'uma é freqüente, n'outra não o é. Dos dous factos não se pôde inferir que o calor seja a causa da morféa no Pará. No Maranhão, onde a temperatura é bastante elevada (a média é como no Pará, 27°), a morféa é muito menos freqüente do que na sua vizinha do lado N.; notando-se que no Maranhão a morféa apparece nos sitios onde a temperatura atmospherica é mitigada por ondas de vapor humido. Naquella provincia o argumento também não é favorável á elevação da temperatura considerada como causa da lepra. Do mesmo modo dá como causando damnos, desde Pernambuco até a capital do Paraguay e isso aiinualmcnte, a febre amarella, a varíola o o cholora. A rcspoito do bcri-bcri, do ainhuni, etc, o mesmo autor apresenta outras muitas inexaClidõos. (O Extrahida das « Reflexões sobro a coloilisação do Brazil » polo Dr. Domingoâ José Nogueira Jáguaribo Filho, pag. 148. — 206 - No Piauhy (média 27° em Oeiras e 25u na serra (*) a morféa é rara; no Ceará (média 28° no verão, e 23° no inverno) rara ; no Rio Grande do Norte (média 27°,5 no verão, 23° no inverno) rara; na Parahyba (27° no verão, 23° no inverno) rara ; em Pernambuco Í27° no verão, 24° no inverno) pouco freqüente; nas Alagoas (26° no verão, 22°,5 no inverno) rara ; em Sergipe (24° no verão, 21° no inverno) rarissima; na Bahia (25° no verão, 22° no inverno) pouco freqüente; no Es- pirito Santo (22° no verão, 20° no inverno) rara ; e final- mente na Corte e na provincia do Rio de Janeiro, onde a temperatura tem a média de 22° no verão e 19° no inverno, a morféa é pouco freqüente. Na provincia de Minas a morféa é mais freqüente ao sul, que é mais frio do que ao norte onde aliás é rara. No Paraná, de uni clima temperado e feliz, a morféa é pouco freqüente, porém é relativamente mais fre- qüente do que em algumas provincias do norte do Império, nas quaes são raros os casos da moléstia, o que não quer dizer que o seu clima temperado fosse obstáculo ao desenvolvimento da moléstia. No Rio Grande do Sul a moléstia é rara. Vejamos agora a provincia de S. Paulo. — Qual é o clima desta provincia, dil-o frei Germano na carta que dirigiu ao Dr. Jaguaribe Filho, e que foi por este publi- cada na these de doutoramento e no seu livro sobre colonisação do Brazil: « Cette rille, diz frei Germano, est bâtie sur unplateau dont Valtitude moyenne est de 754 mètres cai clessus du niveau de Ia mer... Le climat est bon et on y jouit généralement d'une bonne (U Para a determinação das temperaturas vou acompanhando o livro citado do Dr. Jáguaribo Filho, que empregou os seus melhores esforços para elaborar um trabalho serio o util com os olomontos de quo podo dispor; comquanto eu tenha á mão alguns dostes elementos, prefiro comtudo acompanhar o autor. - 207 - sauté: sauf 1'apparition périodique de Ia cariole, il n'y exis. — 224 — e mostrando-se apprehensivo sobre o futuro das fa- mílias, terminou suas judiciosas e humanitárias re- flexões por esta interrogação : « Clamarei no deserto ? » E' bem de ver que nestas circumstancias em raros doentes o medico não encontrará indicio, próximo ou remoto, que explique, de conformidade com a sua pre- visão, o producto morfetico. Comquanto na Europa alguns autores tivessem opi- nado que a morféa era a syphilis degenerada, sem invocarem para isso influencia alguma climática, to- davia entre nós já se apresentou a opinião de ser a lepra o resultado do virus syphilitico «degenerado pelo nosso clima ». Essa degeneração da syphilis envolve outra questão, a da transformação das diatheses, assumpto muito debatido por médicos notáveis. Já tive occasião de dizer que Bazin sustentava opi- nião inteiramente contraria á transformação das dia- theses, qualificando-a de erro pathologico; o mesmo autor accrescenta: «J'ai dit ailleurs que les unités mor- bides ne s1'alterent et ne se transforment jamais, ni sur le même individu, ni dans les générations succcs- sivcs, et je rten voudrais pas d'autre preuve que Ia lèpre elle-même, que nous retrouvons, après tant de siècles écoulés, telle que nous Vont décrite Moise et Arètée. » (*) Em um notável artigo sobre diatheses o Dr. Maurice Regnaud (2) aprecia a mesma questão pelo modo seguinte : « Cette question nxst autrc que cclle de Ia mutabilité des espèces pat/iologiques. « II est un argument « a priori» bien devcloppé par Liujs dans son travail sur les maladies heréclitaircs, (i)Obr. cit., pag. 258. (2) Nouveaudictionnaire, tom. 11, pag. 43o. - 225 - et qui me par ai t avoir une grande valcur pour résoudre cette difflculté. Si les maladies héréditaires étaient aptes à se métamorphoser, à mcsure qu'elles évoloucnt à travers les genérations, elles auraient dú déjà subir un nombrc incalculable des modiflcations successives par suite cVune serie de croissements varies jusqiCà Vinfni, et de combinaisons enchevrètées les unes dans les autres, qui auraient Jini depuis longtemps par voiler complètement leur physionomie première, et rendre leurs caracteres inéconnaissables aux yeux des observateurs de notre époque. » Effectivamente, si a morféa e a syphilis têm man- tido, atravez de tantos séculos, o cunho de sua indivi- dualidade ; si a sua passagem em tantos organismos não lhes tem feito perder um só de seus caracteres; si podem coexistir no mesmo individuo, sem que uma exerça sobre a outra a menor influencia, facto evidente de que entre ellas não ha pontos de contacto nem affi- nidade; e finalmente si a morféa tem sido sempre a morféa e continua a sel-o, succedendo o mesmo á syphilis; como se pôde conceber, admittir, justificar á clegeneração da syphilis em morféa, o que é contrario aos princípios scientificos e á observação de tantos séculos ? Poder-me-hão objectar que a syphilis não degenera em morféa, mas crêa no organismo dos que a tiverem forte predisposição para a morféa. Ouçamos ainda um dos autores de maior compe- tência sobre o assumpto. « Todas as influencias cós- micas, physiologicas ou mórbidas, diz Bazin ('), são apenas «circumstancías accessorias » na producção das diatheses; e em caso algum, quer isoladas quer (i) Obr. cit, pag. 336. m. 29 - 226 - reunidas, poderão produzir a moléstia, si não houver no organismo predisposição latente. Sem a intervenção da causa interna todas as outras de nada valerão. » A predisposição latente da syphilis, da tuberculose, do cancro, da morféa, etc, uma vez posta em activi- dade, não produzirá senão a syphilis, os tuberculos, o cancro, a morféa, etc. Que a syphilis, na qualidade de circumstancia ac- cessoria, possa facilitar a manifestação de outra dia- these, como a tuberculosa, a escrofulosa, a mor- fetica, não por conversão, não por metamorphose, mas por subsidio de actividade prestado ao germen la- tente, quando este existir, é o que se comprehende fa- cilmente e o mais que se pôde conceder. Insistem alguns médicos brazileiros em attribuir a morféa á influencia das. boubas : o ter soffrido de bou- bas, o ter sido amamentado por uma boubatica, explica a manifestação daquella moléstia, dizem elles, em virtude do poder que as boubas têm de a gerar. Entre os meus doentes uma senhora, que fora ama- mentada por uma boubatica como se veiu a verificar mais tarde, me referiu : « Que aos 5 annos de idade tivera feridas na garganta e na bocca, e alguns outros accidentes que não sabe descrever, pelo que fora sub- mettida a tratamento mercurial por bastante tempo. « Tendo estes encommodos desapparecido mediante o tratamento, seu organismo fora tomando o desen- volvimento natural. Na idade própria casou-se e tem tido oito filhos, dos quaes nenhum até o presente apre- senta indícios de vicio boubatico ou de qualquer outra diathese. Ha dous annos, porém, appareceram-lhe os primeiros signaes de sua moléstia actual. » Na doente a morféa está perfeitamente caracterisada. Devo accrescentar que esta doente, pessoa de família, não conta entre os seus ascendentes um só morfetico: - 227 — não pôde haver, pois, suspeita de origem hereditária, como fui bem informado. Porventura poder-se-ha attribuir este caso ao vicio boubatico, que lhe foi transmittido por sua ama de criação f Convém notar que esta senhora é perfeitamente desenvolvida, é alta, de fôrmas ajustadas, e elegante. Seu desenvolvimento operou-se do modo o mais cabal, sem obstáculo algum gerado, como sôe acontecer, por alguma diatliese. Seus filhos, já crescidos, absoluta- mente nada apresentam que faça suspeitar vicio her- dado da mãi; são todos sadios e robustos. Será possível admittir que a moléstia actual, a mor- féa, deve sua origem ao vicio boubatico, somente porque foi boubatica a ama que lhe deu o leite da criação i Creio que ninguém oaffirmará. E' sabido que os indígenas brazileiros soffriam, ao tempo do descobrimente do Brazil, de boubas: porque nelles esta moléstia nunca se converteu em morféa? E' igualmente sabido, e disto já occupei-me detida- mente, que as boubas são muito freqüentes, ha muito tempo, no Paraná: qual a razão por que nesta provincia a morféa não é igualmente freqüente í A syphilis não foi banida dos paizes de clima tempe- rado : como se explica o ser rarissima a morféa nesses paizes i No Alto S. Francisco a syphilis é muito freqüente: porque é que no Alto S. Francisco não se encontra um só caso de morféa ? No Uruguay, conforme me informa o distincto me- dico brazileiro, que, ha bastantes annos, alli exerce a clinica, o Dr. José Ignacio, a syphilis é muito freqüen- te, ao passo que a morféa é rarissima. Que a morféa é muito rara no Uruguay, não só mo declarou o Dr. José Ignacio, como foi confirmado pelos — 228 — distinctos médicos daquella republica os Drs. Vidal e Gualberto Mendes, segundo informaram ao Sr. con- selheiro Lopes Netto, a quem devo a fineza de m'o haver instruído a este respeito. No empenho de concorrer com algum contingente para a elucidação desta questão, a das relações entre a syphilis e a morféa, eu não duvidaria estudar aqui e comparar a marcha das duas enfermidades, os seus symptomas, e outras circumstancías mais que segu- ramente me prestariam elementos para o meu racio- cínio ; porém, attendendo a que semelhante estudo me levaria mais longe do que convém, deixarei de empre- hendel-o desta feita. Ha, entretanto, um ponto que considero muito im- portante, e que merece algum exame. Não entrarei em assumptos de pathogenia das duas enfermidades, mas não posso prescindir de examinar o sangue dos morfeticos e o dos syphiliticos. O sangue nos casos diathesicos é o campo das mais importantes evoluções das respectivas diatheses. E' provável que nem todos assim pensem, e que me pretendam contestar a im- portância, nesses casos, dos estudos hematologicos—: Cada um tem a sua convicção. Passo a apresentar o quadro dos exames do sangue de uns e do sangue dos outros: o confronto não será estéril, e pelo contrario pôde ser instructivo. Com effeito, si a syphilis tiver uma evolução muito diversa e até contraria á da morféa, si o exame do sangue revelar antagonismo entre as duas enfermi- dades, como se poderá admittir esse conchego entre ellas, essa approximação, essa metamorphose ? Sangue dos morfeticos.— No meu entender o estudo do sangue dos morfeticos offerece interesse muito maior do que o manifestado por alguns autores mo- dernos . ✓ — 229 — Ao passo que se nota que os antigos prestavam, como estava nas suas forças com os elementos de que dispunham, grande attenção ao sangue dos morfeticos, observa-se de outro lado qne os modernos limitam-se a reproduzir o resultado das investigações dos Drs. Danielssen e Bceck, sem quasi accrescentarem obra sua. Comquanto eu reconheça que esta occasião não é a mais própria para occupar-me com a hematologia da lepra, apresentarei comtudo o resultado das pesquizas a que os Drs. Martins Costa, Pedro Paulo e eu nos temos entregado, somente na parte que interessa ao assumpto em discussão. Para que, porém, se possa julgar do resultado, intei- ramente novo, de nossas investigações, torna-se conveniente que eu exponha aqui o estado actual dos conhecimentos a este respeito. « Les recherches des anciens sur le sang des sujets atteints de spedalsked, dizem Danielssen e Bceck, caracterisent les époques. « Si l'on saignait le malade, le sang êtait êpais et par cette raison prêt à fermer Vouverture de Ia veine. Plongé dans Veau, il ne se mélangeait pas aisément avec elle ; mais il se coagulait de suite et se precipitait en grumeaux. Était-il recuelli dans une vase, il se montrait noir, de couleur plomb, brunâtre, oucendré, d'une couleur désagréable. II se coagulait aussi à Vinstant en sérum, et en caillot de sang qui se fen- dait bientôt, on le trouvait inégale, granuleux et sablonneux. » (') A outras operações ainda entregavam-se os antigos afim de determinar o estado do sangue dos morfé- ia) Obr. cit. pag. 70. - 230 — ticos, e que por menos interessantes supprimo-as aqui. « Quant on étcdt, continuam os mesmos autores, dans Vincertitude de savoir si une personnc rtait atta- quée de Ia spédalskhed, onse livrait àplusieurs experi- mentations sur le sang. Après avoir isole le sérum, on mcttait quelque grains de sei sur lc caillot: si ceux-ci fondaient, tfétait bon signe; si, cai contraire, ils ne se denaturaientpas, tfetait un signe de lèpre, car il y avait dans le sang trop des pariies tetriques, pour que Ia dissolution du selfútpossiblc. Si Von ver- sait du vinaigre sur le sang et que le melange com- mençait à entrer en ébolution, tfétait un signe de moti- vais augure. De mèine, on versait de Vitrine sur le sang, et s'Use mélangeait aisément avec elle, tfetait un signe de spédalskhed. » Schilling (*) ligava grande importância ao estado do sangue na lepra, estado que consistia em não separar incompletamente o soro do coagulo, cobrindo-se este de uma crosta amarello-pardacenta. Chegava este autor a dizer que em casos de amputações da perna ou da coxa, praticadas em leprosos, tornava-se des- necessário ligar a artéria crural, bem como inútil era o emprego de stypticos, tão diminuta era a hemorrhagia. Os Drs. Danielssen e Bceck, depois de referirem as opiniões dos antigos sobre a composição do sangue nos leprosos, dão o resultado (pag. 238) de seus próprios estudos. « Voici, dizem elles, les resuliats de nos investigations, tant physiques que chimiques, sur le sang. Le caillot est, le plus souvent, assezferme, sans ètre trop volumineux ; il est d'ordinaire revètu d'une couenne plastique, plus ou moins épaisse, converte jre- (i) Bibliothêjue du médecin-praticien—lom. 8o, pag. 326—Art, Lèpre. - 231 — quemment dhine couche gelatineuse. Lc sérum est plus ou moins tcnu ; il est visqueux, et il a, presque tou- jours, une couleur verte, parfois semblable mcme à de Veau laiteuse. Dans le uing, depourvu de sa fibrine, nous avons constamment observe, sous le microscope, une grande foule de cellules irregulières, assez grandes, remplies de molecules transparentes ; sans doute, ces cellules sont des globules de sang non encore asscz developpés. Enoutre, toute le champs du mi- croscope était couvert de molecules limpides, extrè- mement tênues, peut-ctre de Valbumine. Les globules de sang ont toujours étéplus rares là ou les cellules ri.entionées se trouvaient en grande quantité. » A este exame physico segue-se o chimico, do qual Danielssen e Bceck occupam-se, das paginas 245 em diante. Dos quadros publicados tomarei apenas três, correspondentes ao exame de um caso de lepra tuber- culosa, de um da tuberculosa e anesthesiea (mixta) e de um da anesthesiea. Antes, porém, transcreverei o quadro analytico do sangue normal afim de que melhor se possa apreciar as differenças encontradas pelos mesmos autores. Sangue normal Poids especifique du sang................... 1,051 Fibrine..................... Graisse adherente à Ia fi- brine................... Ainsi fibrine.............. Sang defibriné............. Residu après dessication..-. Ainsi eau................... gr. doe. cont. mgr. ... 1 7 ......... 5 0,067 . .. 1 0 5 2,205 ... 6 3 ... 1 2 ...5 1 — 232 — 1.000 parties de sang defibriné contient ainsi: Eau......................................... 809,5 Et parties solides.......................... 190,5 Dans 9 deci. 2 a4milli. de sang defibriné, abso- lument desseché, il s'est trouvé en: gr. dcc. cent. mgr. Graisse........................... 1 ... 2,062 Albumine..................... 3 8 5 79,353 Seis et matières extractives....... 5 5 11,339 Globuline...................... 4 5 8 94,437 Hematine......................... 1 6 3,299 * * Lepra tuberculosa {pag. 245) Poids especifique du sang................... 1,046 gr. dec. cent. mrg. Fibrine........................ 2 1 Graisse adherente à Ia fi- brine............................ 5 0,078 Ainsi fibrine.................. 2 ... 5 3,201 Sang defibriné................. 5 4 4 Residu après dessication...... 1 Ainsi eau..................... 4 4 4 1.000 parties de sang defibriné contient ainsi : Eau........................................ 816 Et parties solides........................... 184 Dans 9 deci. de sang defibriné absolument desseché, il s'est trouvé en : Graisse.......................... 1 2 2,453 Albumine..................... 4 9 7 100,609 — 233 - Seis et matières extractives....... 5 5 11,244 Globuline...................... 3 2 2 65,821 Hematine........................ 1 6 3,275 + ¥ Lepra tuberculosa anesthesiea Poids especifique du sang.................1 1,052 Dans 1.000 parties de sang il s'est trouvé: En eau..................................... 803 Et en parties solides...................... 197 Fibrine..................................... 4 Graisse......................■............... 6,1 Albumine.................................. 113,6 Globuline.................................. 68 Hematine.................................. 4,1 Seis et matières extractives................. 1,4 * * Lepra anesthesiea Poids especifique du sang.................. 1,052 gr. doe. cont. mgr. Fibrine........................ 2 Graisse adherente à Ia fi- brine......................... 1 6 0,224 Ainsi fibrine.................. 1 8 4 2,578 Sang defibriné.............. 3 5 6 3 Resudu après dessication...... 7 1 5 Ainsi eau.................. 2 8 4 8 1.000 parties de sang defibriné contient ainsi: En eau..................................... 799 Et en parties solides........................ 201 m. 30 — 234 — Dans 9 dec. de sang defibriné absolument desseché s'est trouvé : Graisse.......................... 1 ... 2,233 Albumine..................... 4 5 ... 100,500 Seis et matières extractives....... 4 7 10,497 Globuline...................... 3 7 8 84,420 Hematine........................ 1 8 4,000 Resultam dessa analyse, mesmo assim incompleta, duas observações interessantes: Ia que em qualquer das fôrmas a alteração do sangue ô a mesma, o que prova a favor da unidade da lepra ; 2 > que a fibrina e a albumina augmentavam sempre no sangue leproso, havendo pelo contrario diminuição da globulina e da hematina, menos no quadro correspondente á lepra anesthesiea, em que se verifica augmento da ultima. Tomando por base a analyse que praticaram, os mesmos autores formularam sua opinião sobre o papel representado pelo sangue na evolução da lepra. Para elles não resta duvida de que essa dyscrasia sangüínea está ligada á existência da lepra, bem como que « a mesma dyscrasia, ao cabo de algum tempo mais ou menos longo, oceasiona hyperhemias e con- gestões passivas no systema capillar da pelle, cujos nervos vegetativos diminuem de energia, formando-se manchas periódicas: e quando estas congestões per- manecem por algum tempo, sobrevem no mesmo logar uma exsudação, que é o principio elementar de futuro tuberculo. » Releva acerescentar que esta theoria pouco diverge da anteriormente emittida pelo Dr. Paula Cândido e que os Drs. Danielssen e Bceck citam á pag. 103 de modo incompleto. Comquanto estes autores pozessem em duvida, ás mesmas paginas, que as theorias até então apresen- — 235 — tadas, entre as quaes inscreveram a do Dr. Paula Cândido, tivessem contribuído para o progresso da ♦ sciencia, accrescentando que pelo contrario era mais verosimil haverem-na prejudicado, todavia o que se nota é que sua theoria em nada adiantava a do Dr. Paula Cândido, como passo a mostrar. Conhecido o papel que os autores norueguenses at- tribuiam ao sangue na pathogenia da lepra, compa- remos sua opinião com a do Dr. Paula Cândido ; disse este medico: « — seu sangue abundante de fibrina e matéria corante, reproduzindo-se, como nos mostra a experiência com extrema facilidade, e sempre fibrinoso mesmo depois de copiosas sangrias...... Tudo emfim que a observação nos ensina na morféa nos induz a crer que é o sangue com excesso de fibrina, de ma- téria corante ou outros princípios immediatos c ele- mentos combustíveis, que penetrando o systema lym- phatico cutâneo, tão desenvolvido no elephantiaco, desorganiza a pelle e torna-se desfarte a essência cia morféa. « E' verdade que ainda não determinamos positiva- mente a proporção de fibrina, matéria colorante e albumina, porém é certo que o sangue do morfetico se coagula tão rápida e energicamente que não se pôde duvidar de seu excesso de fibrina ; ell.3 é escasso em serosidade e a côr dos morpheticos não deixa duvidas de que ha excessso de glóbulos ou matéria corante. » Em que, pois, poderia contribuir para o regresso da sciencia esta theoria do Dr. Paula Cândido? Em que diverge ella da dos autores norueguenses? Em dizer aquelle que o sangue penetra nos vasos lymphaticos da pelle, o que foi um lapso, e em affirmarem estes que é nos vasos sangüíneos cutâneos que elle penetra ? Comparando-se, com effeito, as suas theorias, a maior differença que nellas se nota é vir uma acompanhada — 236 — de analyses physica e chimica do sangue e outra não • o Dr. Paula Cândido limitou-se a affirmar o augmento da fibrina e da albumina, guiado somente pela in- specção ocular, ao passo que os Drs. Danielssen e Bceck foram além delle, mas depois delle, e, dominados das mesmas idéias, trataram de determinar analytica- mente as doses dessas substancias. Differença, pois, substancial entre as duas opinieõs não ha, cumprindo-me accrescentar que a opinião do Dr. Paula Cândido foi conhecida na Europa alguns annos antes da dos médicos norueguenses. Com esta rectificação não tenho em vista diminuir e ainda menos contestar a importância dos trabalhos, que muito aprecio, dos Drs. Danielssen e Bceck; o que apenas procuro é restabelecer a verdade, reivindicando para o medico brazileiro a prioridade da mais adiantada doutrina que até o presente tem apparecido sobre a pathogenia da lepra. Eis porque eu disse anteriormente que, estudando-se ainda hoje a pathogenia desta mo- léstia, o raio de luz que se encontra é o emanado do talento de Paula Cândido. Devo, não obstante, declarar que pronunciando-me assim não emitto juizo algum (nem o poderia fazer aqui) sobre o mérito da theoria: não sei até que gráo é boa e verdadeira: não sei si, mais mecânica do que phy- siologica, pôde ser aceita no estado actual da sciencia; não sei si explica as duas fôrmas da lepra, comprehen- dendo assim a fôrma anesthesiea, que não determina a formação de tuberculos sobre a pelle; e nem sei si basta consignar o augmento da fibrina e da albumina sem indagar em primeiro logar o que dá logar a esse augmento; o que affirmo é que, qualquer que seja o mérito da doutrina, cabe a um medico brazileiro. Com relação aos estudos hematologicos dos Drs. Da- nielssen e Bceck, diz o professor Bazin « que, tendo elles - 237 -- analysado o sangue dos leprosos, julgaram ter desco- berto o segredo de todos os accidentes em uma dys- crasia albumino-fibrinosa do fluido sanguineo; que tomaram o effeito pela causa, como acontece em taes casos; e que, acreditando resolver, não fizeram mais do que recuar a questão. » (*) Depois de alludir aos mesmos estudos, accrescenta o professor Hardy (J): «Desde então se tem faltado em diminuição da parte serosa, e em augmento dos albu- minatose da fibrina. Uma analyse recente de Boutuny dá augmento enorme de gordura (5,064 p. 1.000) e da hematina (11,428 p. 1.000). Essas accumulações são, sem duvida alguma, devidas á supressão das secreções normaes da pelle. Na opinião de alguns autores o sangue, depois da formação dos tuberculos, se torna normal, o que carece ser esclarecido.» Ao que parece, o professor Hebra não liga grande importância á hematologia da lepra, assumpto de que não trata na sua notável obra, limitando-se a citar em uma nota, á pag. 540, ia opinião dos autores norue- guenses, como passo a mostrar: «OsDrs. Danielssen e Bceck ligam grande importância ás alterações anatô- micas locaes; e, baseando-se em analyses de sangue, consideram as modificações quantitativas da albumina como essenciaes nessa moléstia.» O prolessor Hebra accrescenta que Kjerulf havia já demonstrado que pouco valiam taes analyses. Seguindo as idéias de Hebra o Dr. Neumann ne- nhuma observação apresenta e nenhuma reflexão faz no seu livro sobre o exame do sangue dos morfeticos. Diz Lamblin: «A alteração do sangue se nos tem revelado por um ligeiro sopro anêmico na base do co- (i) Obr. cit., pag. 288. (2) Nouveau dictionnaire, art. lèpre— pag. 350, — 238 - ração ou nos vasos do pescoço. Por meio do micros- cópio temos verificado que os «glóbulos rubros » não apresentavam mudanças bem manifestas em sua fôrma nem na côr; todavia tem nos parecido que os «.glóbu- los brancos » são em maior quantidade do que no es- tado normal. (*) A' pag. 76 diz o mesmo autor: «Não ha nada de fixo sobre a dyscrasia sangüínea. E' evidente que uma moléstia, como a lepra, que repercute tão profunda- mente sobre o systema cutâneo, deverá embaraçar as funcções da pelle e modificar portanto a composição do fluido sangüíneo.» Em um dos períodos seguintes accrescenta Lamblin: « Acredito que a alteração do sangue é consecutiva á da pelle. Tem-se dito que ha augmento de albuini- natos, bem como reducção da parte serosa do sangue, e que ao excesso de albumina se deve attribuir as pro- ducções albuminosas que Danielssen e Bceck encon- traram nas meningeas, o que não me tem sido possí- vel observar. Pôde haver excesso de fibrina.» Na sua primeira observação diz Lamblin: «O sangue era de côr carregada e muito depressa se coagulava. « O microscópio permittiu ver os glóbulos sangüíneos debaixo de seu aspecto normal e notáveis apenas pela facilidade com que se tornavam adentados. Os gló- bulos brancos não eram em maior quantidade do que no estado normal; mas se encontrava no campo do microscópio depósitos de fibrina granulada, coagulada em grande quantidade, indicando plasticidade deste liquido.» Finalmente, ao encerrar a nona e ultima observação, o mesmo autor apresenta o resultado da analyse do (») Obr. cit., pag. 23. — 239 — sangue do leproso que serviu deassumpto, terminando por estas palavras : « Demonstram estas analyses que a densidade do sangue é mais elevada do que no estado normal, visto variar ella (a densidade do sangue do doente em questão foi de ÍOSD) entre 2,052 e 1057, e que se trata (o autor havia anteriormente declarado que nada havia de assentado sobre a dyscrasia sangüínea) de uma «verdadeira dyscrasia sangüínea caracterisada pelo augmento da fibrina e da albumina.» (*) Depois de citar as analyses de Danielssen e Bceck, observa o Dr. Cavaísi1: «Analyses mais recentes in- dicam que ha no sangue do leproso diminuição do soro, augmento de albuminatos e de fibrina, e finalmente enorme accrescimo de gordura (5,064 por 100) e de he- matina (11,42.8 por 100). A'suppressão das secreções normtes da pelle se deve attribuir taes accumulações de matérias proteicas.» «A composição do sangue, accrescenta o auçtor, varia conforme os períodos da moléstia. Na época dos accesios, seus elementos são ainda, mais abundantes; e si forem praticadas abundantes sangrias verificar- se-ha que os mesmos elementos diminuem á proporção que se fòr depositando a matéria tuberculosa. Mais tarde, poder-se-ha annunciar até nova febre de erupção si a tempo se fizer a analyse do sangue. » O professor Kaposi também não oecupou-se com o sangue dos morfeticos, e em seu livro apenas encontrei uma nota dos seus traductores, á qual já fiz referencia quando tratei das opiniões dos autores estrangeiros sobre a origem parasitaria da lepra. Não obstante repetirei as poucas palavras que podem ter applicação (l) Conforme se está vendo, os autores que seguiram-so ao Dr. Paula Cândido chegaram ao mesmo resultado, augmouto de lihrina o da albumina, a que este autor havia primeiro chegado. - 240 - ao presente objecto: «As preparações executadas em nosso laboratório por Baleser, com todas as pre- cauções necessárias, mostraram constantemente: Io a integridade dos glóbulos vermelhos e dos glóbulos brancos; 2.° granulações de contorno límpido, muito numerosas moveis (de momentos rápidos) etc.y) O Dr. Beirão (*) ao oppor algumas duvidas ao em- prego dos mercuriaes contra a « elephantiasis verdadei- ra » faz esta consideração : «---geralmente fadando o sangue destes doentes é tão diffluente epobre, ainda na presença de moléstias inflammatorias, que me parece que taes preparados devem ser applicados com sum- ma reserva e circumspecção.» Passo agora a expor os estudos feitos entre nós so- bre o sangue dos morfeticos. Já tive occasião de mencionar a opinião do Dr. Paula Cândido a este respeito. Para o notável pratico bra- zileiro semelhante alteração não erajuma circumstan- cia accessoria, porém o ponto capital, a base, a parte essencial das desordens pathologicas. Si as palavras deste pratico não fossem bastante ex- plicitas a tal respeito, como se pôde verificar na sua memória — Rcjlcxões sobre a morféa, bastaria para comprovar o que digo a reclamação por elle apresen- tada á Academia Imperial de Medicina em sessão de 10 de Abril de 1845. Eis o que se passou(2): «En- trando este relatório (3) em discussão, o Dr. Paula Cân- dido estranha que, tendo elle lido na Academia uma memória sobre a morféa, na qual manifestava a sua opinião de que esta moléstia « depende principalmente (i) Obr. cit., pag. 94. (2) Annaes de Medicina Braziliense. (3) 0 relatório aprosontado pelo Dr. Do-Simoni sobre as duas memórias do - 241 — de uma alteração do sangue», se não faça menção delia no Relatório.» Por ahi se vè quanta importância ligava o Dr. Paula Cândido á alteração do sangue consistente, na sua opi- nião, em augmento da fibrina, em albuminae de princí- pios corantes. No trabalho do Dr. De-Simoni, intitulado « Opinião dos médicos brazileiros acerca da elephantiasis dos gregos » e ao qual por vezes tenho-me referido, encon- tra-se esta passagem: « Na occasião da leitura da me- mória do Sr. Dr. Paula Cândido, o Dr. Paula Menezes perguntou a este si as experiências e observações relativas ao sangue dos morfeticos as fizera no princi- pio da moléstia ou depois de seu pleno desenvol- vimento. «O Dr. Paula Cândido respondeu que a fizera neste segundo caso. « Então o Dr. Paula Menezes fez sentir a duvida que havia, si a alteração do sangue por elle assi- gnalada era causa ou effeito. » No mesmo trabalho do Dr. De-Simoni encontra-se est' outra passagem: «.....e passando ( o Dr. Nunes Garcia na sessão de 26 de Agosto de 1841) á explicação desta sua theoria da elephantiasis, disse que, sendo o systema arterial primitivamente affectado, o nervoso não tarda também a sel-o, e suecessivamente o lym- phatico, e o cellular.—Admittia também uma dispo- sição particular do sangue como causa concurrente para a producção da morféa, sobretudo para a stase do sangue nos capillares e para a successiva formação dos endurecimentos. — Contestou também a idéia da passagem do sangue para os vasos lymphaticos. » Concluindo o seu trabalho, disse o Dr. De-Simoni: « Do acima exposto vê-se que a idéa dominante e quasi exclusiva dos médicos do Rio de Janeiro, até o appare* M. 31 — 242 — cimento da memória do Dr. Faivre, foi sempre a de considerar a morféa como uma affeccão dos capil- lares do systema vascular sangüíneo da pelle, e em geral como uma affeccão de natureza inflammatoria: que só o Sr. Dr. Silva e o Sr. Dr. Paula Menezes pro- fessam a opinião de que esta moléstia consiste princi- palmente na affeccão dos capillares lymphaticos. » O Dr. Aquino Fonseca (*) faz as seguintes referencias sobre a alteração do sangue morfetico: « Alguns der- matologistas crêem que a sede do mal está no tecido da pelle; outros querem que a pelle não seja sua verda- deira sede, á vista dos symptomas que fazem crer que a natureza do mal depende de uma alteração orgânica igual. Nós partilhamos a opinião destes últimos, a cuja frente se apresenta Pinei, e cremos que o mal depende da alteração do sangue, e que o estado da pelle não é senão um resultado dessa alteração. « Já os médicos antigos, como Aretêo, Galeno, Aetius, etc, pensavam que o mal dependia de uma alteração do sangue; por isso aconselhavam as sangrias abun- dantes desde o principio da moléstia; e nós temos tanto mais razão de crer que o mal depende de uma alteração, qualquer que ella seja, e que ainda não tem sido sufficientemente estudada, que notamos por vezes, antes que nenhuma alteração appareça na pelle, que os doentes têm movimentos febris, e languidez, etc. « No estado actual, sem uma analyse do sangue (2), não é possível dizer qual é essa alteração, nem talvez (i) Obr. cit. (2) As communicações feitas pelo professor Dumas ao Instituto do França de que é um dos membros mais distinctos, no dia Io do Julho ultimo, sobro a analyse dos glóbulos do sangue, o as investigações que promelte ainda fazer para poder formar seu juizo sobre a grande discussão quo desde muitos annos so agita entre Moss. Gay-Lussac e Magnus, do Berlim, nos deixam esperanças do quo os módicos tirarão vantagens immensas de um estudo profundo dos giobulos do sangue, e que da acção dos saes sobre ell«s resultarão indicações therapeuti- — 243 — a possamos dizer, mesmo depois de perfeitas e reite- radas analyses: mas podemos nós explicar todas as alterações pathologicas ? » Nada mais encontrei. Do exposto o que se infere é que a alteração do san- gue, na opinião dos que ligam importância a esse exame, consiste no augmento dos dous elementos, fibrina e albumina. Quanto aos glóbulos vermelhos, os que delles occuparam-se acharam-os no estado normal, e apenas Lamblin assignala a facilidade com que se encarquilham. Admira, com effeito, que os práticos estrangeiros, armados como estão dos mais seguros instrumentos de investigações, tenham modernamente ligado aos estu- dos hematologicos nos doentes de moléstia de pelle e sobretudo nos morfeticos, menos importância do que succedia com os antigos práticos. Seguramente procedem assim porque consideram o sangue o theatro das alterações secundarias, que não podem lhes servir de guia na solução de problemas pa- thologicos. Reconhecer o alcance dos estudos hematologicos nos morfeticos seria no conceito de Bazin « tomar o effeito pela causa, e com isto fazer recuar e não adiantar a solução da questão ». Si fosse permittido fundar sobre este conceito uma regra pathogenica, não se deveria ligar importância al- guma ao sangue anêmico, ao sangue escorbutico, etc. E quem nos affirma que por se não ter ligado impor- tância aos estudos hematologicos nas enfermidades da cas de alta importância. Com as observações do illustre professor da Escola de Medicina de Paris sobro a acção que exercem diversos agentes chlmicos sobre os glóbulos, ja se pôde até certo ponto explicar os phenomenos o máos effeitos pro- duzidos pelo abuso das carnes salgadas, quo predispõe ao oscorbuto o ás pro- priedades toxicologicas dos saes ammoniacaes. (Nota do Dr. Aquino Fonseca.) — 244 - pelle, não se tem feito « recuar e não adiantar a solução das respectivas questões » ? Sem querer entrar em questões de humorismo e de organicismo, pergunto: está acaso determinada a sede da morféa ? E' nos sólidos ou nos líquidos do orga- nismo ? E' nos tecidos ou no sangue ? Si não se sabe onde é a sede da moléstia, como con- demnar a priori o estudo das alterações de um liquido que, seja como fôr, representa no organismo humano o mais importante papel ? No capitulo que tem por titulo: Modiflcations de Vétat du sang dans les maladies, diz Bérard: « Entre essas modificações ha umas que são simples conco- mitancias do estado pathologico, mas não o constituem, são o corpus delicti; outros, pelo contrario, formam verdadeiramente a essência, a natureza do mal; são o ponto de partida das perturbações supervenientes nas funcções e dos symptomas que observamos. » (*) « No circulo das influencias reciprocas, diz Claude Bernard (-), que entretêm a vida, cumpre assignar "'a cada uma a parte que lhe toca : os tecidos encontram no sangue os materiaes para a sua nutrição, comtanto que possam haurir; a elles pertence o papel activo : o sangue é inteiramente passivo ; abandona o que se lhe toma, porém é preciso que os órgãos lh'o tomem. « Si bem que, dè accôrdo com as idéias de cada um sobre o papel do sangue nos phenomenos da nutrição, se não tenham levado sufficientemente em conta o pa- pel dos tecidos e a força do desenvolvimento em vir- tude do qual elles se entretêm por um mecanismo (*) Cours de Physiologie—tom. 3o, pag. 143. (2) Leçons sur les propriétès physiologijues et des alterations pathologiques des li' quides de 1'organisme—tom. Io, pag. ííJ. — 245 — idêntico ao de sua formação,1 é entretanto com muita razão que se tem collocado nas alterações do sangue a causa de grande numero de moléstias. » E' possível que na morféa o ponto de partida, a pri- meira peça desconcertada (permitta-se-me a expressão), não seja o sangue; porém desconhecer e desprezar as graves perturbações que pôde levar ao seio do orga- nismo o sangue profundamente alterado e capaz de por si alimentar essas graves perturbações, é o que não me parece muito prudente, nem muito razoável. Recuar a solução da questão ! Recuada tem ella andado, e recuada continua apezar das pesquizas histologicas de Ch. Robin, Lamblin, Virchow e outros. Os trabalhos de Charcot sobre as lesões traumáticas dos nervos causaram séria impressão, e como que fi- zeram renascer a esperança de algum proveito em be- neficio do tratamento da lepra. Qual o resultado ? A solução verdadeira, a anciosamente esperada, a que interessa no maior gráo á sciencia e á humanidade, ô certamente a da cura da morféa. Entretanto, nem uma indicação mais, nem uma idéia util. nem um passo para a therapeutica da lepra, depois de realizados os mais profundos estudos, por meio do microscópio, sobre os tecidos do organismo leproso ! E quem nos diz que não são estes os que mais afas- tados andam da solução da qaestão, e os que mais a farão recuar, occupados em esmiuçarem as alterações terminaes dos tecidos, secundarias, terciarias, quater- nárias ? Si a hematologia da morféa não operar o fiat, talvez consiga abrir á therapeutica desta enfermidade novos horizontes, novas indicações, encaminhando os esforços dos práticos em outro sentido menos estéril, inteira- — 246 — mente novo, não batido inutilmente, e não esgo- tado. Bem ou mal inspirado, devo dizer que, para satisfazer uma idéia que tive, careci obter esclarecimentos da hematologia da lepra, entregando-me ás necessárias pesquizas. Nesta tarefa fui auxiliado pelo Dr. Martins Costa, que foi o primeiro a sorprehender no sangue dos morfeticos uma alteração até aqui ignorada. Examinávamos um leproso, meu doente, de fôrma tuberculosa, quando o Dr. Martins Costa verificou que havia no sangue deste doente notável augmento de glóbulos vermelhos, chamando para o facto minha attenção, o que me permittiu verifical-o também. Passando a examinar, dias depois, outro doente também de formula tuberculosa (em pleno 2o periodo), este collega observou o mesmo facto. Para este exame servimo-nos do conta-globulos á câmara humida graduada de Mallassez, que o Dr. Martins Costa, havia pouco, trouxera de Paris. Como então me faltassem mais casos, o collega pediu permissão para examinar o sangue de leprosos re- colhidos ao hospital de Lasaros da Corte, permissão que lhe foi prompta e delicadamente concedida. Regressando do hospital, disse-me elle : « Não ha du- vida ; no sangue dos morfeticos encontra-se notável augmento de glóbulos vermelhos. » Ahi o exame fora praticado em doentes de fôrma tuberculosa e de fôrma anesthesiea, sendo o resultado o mesmo em uns e outros. Quanto ao alcance que eu ligava ao resultado de taes pesquizas, não é tempo ainda de o dizer. Tanta importância liguei ao facto que, reflectindo que tanto os meus doentes como os do hospital já estavam influenciados por varias medicações, resolvi proseguir no estudo, e para isso parti sem demora para a pro- — 247 — vincia de S. Paulo, tendo tido a felicidade de ser acom- panhado pelo Dr. Pedro Paulo. Alli examinámos seis doentes recolhidos ao hospital da capital (eram sete, mas um delles negou-se ao exame), e em todos encontrámos mais ou menos con- siderável augmento de glóbulos, porém sempre au- gmento. Seguimos para Campinas, em cujo hospital exami- námos 17 doentes, sendo acompanhados pelo Dr. Cân- dido Barata : sempre augmento de glóbulos ver- melhos. Em Campinas o Dr. Barata nos apresentou a um morfetico de fôrma tuberculosa, o qual, depois de inú- teis sacrificios para obter melhoras na França e na Allemanha, recolhêra-se ao seu domicilio, inteiramente desanimado. Neste doente, em começo do.3o periodo, encontrámos o numero de 12.750.000 glóbulos vermelhos ! Tão ex- traordinário nos pareceu este numero, que tomámos sangue de outro dedo, e, procedendo a novo exame, verificámos que havia 12.720.000 glóbulos vermelhos. Nunca observámos (inclusive o Dr. Martins Costa) tendência dos glóbulos para a deformação, e apenas em alguns doentes apresentavam-se menores que de cos- tume. Não obstante o Dr. Pedro Paulo e eu seguimos até Sorocaba, onde nos constava haver aldeias de morfe- ticos . Ha, effectivãmente, aos lados de Sorocaba duas aldeias, denominada uma; Arvore Grande e a outra Serrado. Na Arvore Grande onde estivemos, sendo acom- panhados pelo Dr. Lopes Monteiro, clinico em So- rocaba, examinámos 17 doentes dos 21 que ahi vivem alojados em miseráveis choças. - 248 — São creaturas que não resguardam-se do sol nem da chuva, comem de tudo e não raramente entre- gam-se ás bebidas alcoólicas. Desenganados como vivem da efficacia de qualquer tratamento, nada tentam e rendem-se á fatalidade. Por isso não admira que a lepra, encon- trando os mais favoráveis elementos, houvesse assu- mido nesses doentes as mais graves proporções. Alli observei as duas principaes fôrmas de modo o mais accentuado. Um dos doentes, homem de 28 annos de idade, ap- parentemente robusto, apresentava a fôrma tubercu- losa como nunca vi em outro doente, nem encontrei desenhada em estampas. Lamentei achar-me em condições de não ter podido obter o desenho desse doente. Os pontos de eleição eram a sede de tuberculos muito desenvolvidos, que lhe alteravam profunda- mente a physionomia. Quasi por todo o corpo deste doente havia grandes tuberculos, nos braços, nas costas, nas nádegas e nas pernas : o que ha de mais exagerado nesta fôrma. Da outra fôrma, a anesthesiea, encontrei também um caso curiosissimo : um doente de côr preta apre- sentava uma hemi-anesthesia completa, geométrica. Uma linha batida décima para baixo dividia o corpo em duas partes, uma direita perfeitamente sensível, outra esquerda completamente insensível. Dir-se-hia um homem meio são e meio morfetico. O doente apresentava muitas manchas pelo corpo, significativas da moléstia. Do lado que parecia são, além das manchas, notei os dedos da mão atilados e com a pelle enrugada, e alguma atrophia dos mús- culos da mão. Em um menino de 7 annos de idade, cuja mãi suc- cumbira alli mesmo, não havia muito tempo, á mesma - 249 — moléstia, notei o que já tenho observado em outros me- ninos nos quaes a morféa é evidentemente heredi- tária: antecipação do 3o periodo, isto é, precocidade dos phenomenos trophicos. Pelo exame do rosto hyperhemiado e vultuoso, e das orelhas cujos lobulos estavam bastante espes- sados, era-se induzido a acreditar que seria a tuber- culosa a fôrma da lepra naquelle pequeno. O 2o periodo não estava, pois, formado, e no em- tanto já havia, além da ozena leprosa, ulceras no braço esquerdo e nos dedos das mãos e dos pés. Já tive occasião de referir-me á anticipação do 3o pe- riodo nos meninos que tiveram a lepra em herança. Nos 17 doentes da Arvore Grande muitas outras circumstancias encontrei dignas de nota, bem como modalidades muito curiosas, que não me cabe indicar neste trabalho, que não tem caracter propriamente clinico. Aquelles morfeticos vivem em commum e cada um possue o seu cavallo em que ao sabbado transporta-se á cidade de Sorocaba, onde vae esmolar os meios de subsistência para a semana immediata. Lá os vi pelas ruas, esparsos, trazendo nas mãos um copo de Flandres no qual recebiam a esmola, que ao morfetico, como ao cego, não se nega. Entre elles havia um de fôrma anesthesiea em periodo adiantado, tendo já forte retracção digital, que nesse estado se havia casado, havia um mez, com uma morfetica tão ou mais enferma do que elle ! Porque casou, perguntei-lhe eu, em tal estado? « Para ter quem me ajudasse, respondeu-me o infeliz. » Estes individuos vivem em completo ócio, e não obstante não consta que sejam por alli offensivos a pessoa alguma. m. 32 — 250 - Apezar do que ha de profundamente triste em uma sociedade como aquella, em que todos assistem à marcha sempre crescente da moléstia e em que cada um é a cada momento advertido de sua fatal e miser- rima terminação; apezar d aquelle espectaculo indes- criptivel, não só (tal é a força do habito e o poder da resignação) estes doentes vivem conformados, como até procuram distrahir-se entregando-se periodica- mente a bailes. Nestas festas do minotauro os infe- lizes entregam-se a grandes libações e a danças cyni- camente desenfreadas. Com a nossa presença alli, os exames a que pro- cedemos, o modo como os tratámos, o interesse que julgaram encontrar em nós por sua situação, pareceu- nos que se haviam impressionado favoravelmente, e até que tinham sentido atravessar-lhes o espirito, aliás tão descrente, um raio de esperança. Pois bem, nos 17 doentes da Arvore Grande encon- trámos a mais completa confirmação do augmento considerável de glóbulos vermelhos. Tem sido tão constante este resultado nos doentes examinados, que não tenho o menor receio de affirmar o augmento de glóbulos vermelhos, considerando o facto como uma conquista de hoje em diante para a sciencia. Releva acccrescentar que as alterações apresentadas pelos morfeticos deforma tuberculosa são idênticas ás encontradas nos de fôrma anesthesiea, o que constitue mais um argumento em favor da identi- dade substancial das duas principaes fôrmas mor- feticas. Afim de fixar os limites do augmento dos glóbulos sangüíneos nos doentes em questão, tomo do livro em que o Dr. Martins Costa tem lançado o resultado de seus exames a seguinte nota : - 251 - Homem (*) —38 annos, três annos de mo- léstia— fôrma anesthesiea, com atro- phia dos músculos das mãos — re- tracção digital — (depauperado)....... 5,310,000 Mulher — 27 annos — 20 annos de mo- léstia, apresentando também elephan- tiasis dos árabes — (muito depaupe- rada)................................ 4,850,000 Homem — 52 annos — anno e meio de moléstia — Io periodo e já em começo de tuberculisação..............«..... 7,410,000 Homem — 36 annos — cinco annos, fôrma anesthesiea, com atrophia dos mús- culos da mão direita e retracção di- gital ..........................'....... 7,500,000 Menino—9 1/2 annos — dous annos de mo- léstia — fôrma tuberculosa........... 7,530,000 Mulher — anno e meio, Io periodo........ 8,450,000 Homem —18 annos — dous e meio annos de moléstia — fôrma tuberculosa..... 8,310,000 Homem — 35 annos — três annos de mo- léstia — fôrma tuberculosa........... 5,750,000 Menina — 11 annos — fôrma anesthesiea — atrophia dos músculos das mãos e retracção digital..................... 6,380,000 Mulher — dous e meio de moléstia—fôrma tuberculosa.......................... 8,210,000 Mulher—19 annos—seis annos de moléstia (irmã daimmediatamente antecedente) com atrophia dos músculos das mãos e retracção dos dedos................ 6,110,000 (i) Por dever occulto sous nomes, que aliás constam do livro de observações. — 252 — Mulher—25—annos, seis annos de moléstia (a doente foi apresentada pelo Dr. Ga- bizo)................................. 4,540,000 Menino (M 10 annos (apresentado pelo Dr. Barbosa Romeu), dous annos de moléstia— fôrma tuberculosa....... 5,760,000 Por esta relação, que é a dos doentes submettidos aos meus cuidados, com excepcão de uma doente, se pôde avaliar quanto augmenta na lepra o numero de glóbulos vermelhos, cabendo-me accrescentar que temos observado este augmento no Io periodo, mesmo em estado adiantado, como era o do doente de Cam- pinas, que não figura (o de 12,750,000 glóbulos ver- melhos) nesta relação. Em uma de minhas doentes, porém, o Dr. Martins Costa encontrou apenas 2,980,000 glóbulos vermelhos. Soffria esta doente de lepra tuberculosa ha oito annos, e apresentava na occasião do exame o mais adiantado periodo da moléstia, mas já em estado cachetico, o que explica a reducção de glóbulos sangüíneos (2). (i) Filho de paraguaya. (2) Depois de ter chegado áquolle estado de cachoxia, a doente conseguiu re- habilitar as suas forças o recuporar todas as suas funcções. Do incapaz quo estava para praticar os movimentos reclamados pelo simples andar cm casa, que desafiavam tonleiras, tornou-se apta para a labutação domestica. Casada aos 17 annos do idade, conta agora 29 annos. Seu rosto apresentava a disformidado própria da moléstia cm viriude dos tuborculos que so formaram. Sobre o nariz havia um grande tuberculo o as orelhas eram disformes. Além da ozona morfctica, havia ulcora sobre o bordo nazal e sobro os lábios. Os dedos das mãos o os cotovelos lambem apresentavam ulceras que ora saravam, não todas, ora persistiam : estas ulceras datavam do cineo annos. Tinha desde algum tempo os pés edemaeiados. Do dias em dias apparoeiam-lho dores polas pomas, dores quo se aggravavam para a tardo, viado acompanhadas do fobro : então eu notava ao longo dos cordões lymphaticos uns pequenos nós, do distancia cm distancia, muito doridos. A crise mensal se lho tinha desappa- rocirlo havia tros annos. Tove ha ura anno o primeiro insulto do irido-choroydito morfetica, desde então so repetiram periodicamente os accessos da inílammacão ocular. A doente apresentava um phenomono próprio dos lisicos, ou antos próprio de quem chega atai extremo do miséria physiologica: o suor do somno : voz alguma dormia quo ao desporlar não carccosso mudar as roupas, o que fazia varias vozes durante a noito. Nolla as ulceras sararam do uma vez. Não tom mais insensibilidade como tinha em vários pontos do corpo, o sobretudo nas orelhas, do rosto o nas mãos. - 253 — Não é somente sobre os glóbulos sangüíneos que têm versado nossos exames; temo-nos igualmente occupado com o exame da hemoglobina, dos saes e gazes do sangue, do producto da respiração, e da secrecão urinaria. Estas investigações, algumas das quaes nunca, que me conste, foram tentadas, nos têm proporcionado re- sultados igualmente importantes, mas que, por es- tranhos ao assumpto, deixo de inserir no presente trabalho. Como resultado definitivo, perfeitamente averiguado, fica consignado o augmento considerável dos gló- bulos vermelhos do sangue dos morfeticos, visto ser esse mesmo resultado que me vai servir de termo de comparação com o obtido do exame do sangue syphilitico. Devido sem duvida á pouca importância que se tem ligado aos estudos hematologicos nas enfermidades diathesicas, nota-se que não andam muito adiantados iguaes estudos na diathese syphilitica. Além disto como a therapeutica acha-se de posse de recursos efficazes contra a syphilis, os investigadores têm alimentado quanto a esta moléstia menos preoc- cupações, certamente porque consideram, no que lhes reconheço razão, que a cura das moléstias é a suprema aspiração da medicina. A crise mensal so restabeleceu completamente. Cessaram os suores do somno actualmente o quo tem é franea transpiração cutânea ao exercício. Gozado actividade physica, passeia, o se alimenta bem. Faz em sua casa quasi todo o serviço doméstico. Tudo isto tem a doente conseguido cm sua própria casinha, quo era então a, rua da Ajuda, de onde múdou-sc não ha muitj para uma travessa que vai ter a essa mesma rua. As condições de pobres têm sempre impedido à doento o emprego do melhores cuidados hygienicos. INaquellas condições, si a hygiono não podo tudo, é um auxiliar imprescindível. Tem conhecimento desse facto 03 bem conhecidos clínicos Drs. Torres Homem, Barbosa Itomou, T. Brandão o .Martins Costa. — 254 — Sobre a hematologia da syphilis, o que encontrei de mais positivo foram os quadros confeccionados pelo Dr. Ricord, notável syphilographo, os quaes transcrevo em seguida. Para base do exame do sangue dos syphiliticos o Dr. Ricord (*) tomou o calculo de Becquerel e Rodier que dão como média dos glóbulos no homem 140,0. Io CANCRO Ia sangria 2a sangria após 30 dias de tratamento pelo iodureto do potássio Agua....., Fibrina... Albumina. Glóbulos.. 2o CANCRO 796,6 3,0 104,5 95,9 774,2 3,3 113,5 109,0 1000,0 1000,0 Ia sangria 2a sangria após 8 dias 3a sangria depois de pela mesma sub- 30 dias do mesmo stancia tratamento 797,0 794,6 784,0 Fibrina..... 3,0 3,5 3,5 Albumina.. 106,0 95,2 84,0 Glóbulos... 94,0 106,7 128,5 1000,0 1000,0 1000,0 (i) Leçons sur Io chancro, proícssées par Io Doctour Ricord ot rcdigéos ot publiecs par Fournier. * - 255 - 3o CANCRO 1» sangria Agua................. Fibrina............... Albumina.............. Glóbulos.............. 2;' ■ sangria após 20 dias de tratamento pelo iodureto de potássio 797,3 768,6 2,4 2,4 123,9 87,0 76,4 142,0 1000,0 1000,0 4o cancro duro; roseolas 1> sangria Agua...... Fibrina ... Albumina Glóbulos.. 2^ J sangria após 25 dias do tratamento pelo proto-ioduroto de mercúrio 769,7 765,0 2,6 3,5 102,6 106,0 125,1 125,5 1000,0 1000,0 5o cancro duro; syphilides Ia sangria Agua .... Fibrina... Albumina Glóbulos.. % i sangria depois de 8 dias do tratamonto pelo proto-ioduroto de morcurio 769,5 784,4 3,1 3,6 102,6 89,7 124,8 122,3 1000,0 1000,0 — 256 — 6o cancro duro Ia sangria 2a sangria depois de 19 3a sangria depois do dias de tratamento 28 dias de trata- pclo iodurcto de po- monto pela mesma tassio substancia Agua...... 789,5 Fibrina.... 4,7 Albumina.. 115,4 Glóbulos... 90,4 768,7 3,8 121,0 106,5 1000,0 1000,0 796,9 3,5 68,0 131,6 1000,0 Vê-se, pois, como diz o autor que citamos, a albu- mina augmentar e os glóbulos diminuírem. Esta diminuição pôde mesmo ser considerável, como provam os três exemplos seguintes: 7o cancro duro; roseolas Ia sangria Agua.............. Fibrina............ Albumina......... Glóbulos........... 8o cancro duro 2a sangria dopois de dias de tratamento 12 830,7 759,5 2,4 2,5 108,0 110,5 58,0 127,5 1000,0 Agua.--- Fibrina__ Albumina. Glóbulos.. 815,1 3 9 126,7 55,0 1000,0 - 257 — 9o cancro duro; syphilides maculosas Agua.............................. 821,2 Fibrina........................... 3,0 Albumina......................... 127,5 Glóbulos......................... 48,3 1000,0 Traduz-se a influencia do virus syphilitico por uma diminuição dos glóbulos e augmento na proporção da albumina; não ha alteração capital no sangue dos in- dividuos que se acham sob a influencia do virus vc- nereo. O Dr. Fournier observa que « os exemplos apon- tados somente referem-se ao começo da infecção, isto é, ao periodo em que a penetração do virus na eco- nomia e sua irradiação no organismo se revelam por phenomenos de <•] dor o-anemia e não aos estados mais adiantados, a menos que a moléstia tenha chegado ao seu periodo de cachexia. Esles resultados não são, pois, a expressão da constituição do sangue syphilitico em todos os períodos desta moléstia. Após o periodo da chloro-anemia o sangue volta à composição nor- mal. » Eis-ahi: na lepra se encontra augmento considerável dos glóbulos sangüíneos, ao passo que na sypliilis suecede o contrario. Na lepra se observa este augmento desde «o pri- meiro até o estado o mais adiantado do terceiro pe- riodo », e só ha reducção do corpo globular no estado cachetico (4° período de Bazinj quando a nutrição de- cahe em virtude das profundas alterações orgânicas, cavadas pela moléstia; notando-se, como é sabido, m. 33 — 258 — que esta anemia é peculiar do estado cachetico de todas as enfermidades diathesicas. Na syphilis, porém, ha diminuição de glóbulos san- güíneos emquanto dura a chloro-anemia syphilitica, própria do primeiro periodo, e somente depois de pas- sado este é que o numero de glóbulos torna ao « nivel normal»: no periodo ou estado cachetico sobrevem ainda a anemia, como é de regra. Conforme se vê, pois, em periodo algum da syphilis o numero de glóbulos vae além do normal, e pelo con- trario o que se observa é tendência para a diminuição. Eis-ahi o parallelo estabelecido: eis as tendências das duas enfermidades, a morféa e a syphilis, que não são congêneres, mas pertencem pela sua própria evolução a grupos differentes. Como se pôde admittir,, attentas as suas Índoles, que uma se funda na outra, que uma produza a outra, que uma degenere na outra, que uma seja a successora da outra ? Não o podendo admittir á vista das razões que pro- duzi, continuarei a acreditar que a syphilis é syphilis, e a morféa é morféa. Origem parasitaria.— Cabe entre nós ao Dr. Mar- tins Costa a precedência deste estudo. Foi, com effeito, o primeiro a examinar, que me conste, os parasitas porventura existentes no sangue dos morfeticos. Sobre este ponto transcrevo fielmente a communi- cação que me fez este medico investigador. « Recahiram as analyses sobre o sangue de três doentes, dos quaes dous soffriam de lepra tuberculosa e um da anesthesiea. « Para evitar erros tomamos as seguintes precau- ções : Io, examinamos previamente o sangue de indivi- duos sãos sob o ponto de vista da existência de parasi- tas análogos aos descriptos no exame dos leprosos, e — 259 - nada encontramos de semelhante; 2°, lavamos a lanceta de que nos servimos em álcool phenicado, e em seguida passamol-a sobre a chamma de uma lâmpada a álcool; 3o, as partes cutâneas, onde tivemos de fazer picadas, foram previamente lavadas com álcool phenicado e bem enxugadas; 4o, as lâminas porta-objecto, bem como as de cobrir, que serviram para as nossas prepa- rações, foram todas lavadas no álcool phenicado, e passadas pela chamma da lâmpada a álcool. « Em primeiro logar exporemos englobadamente, attenta a identidade dos resultados, o que encontramos no sangue dos doentes de lepra tuberculosa eem con- tinuação no do doente de lepra anesthesiea. « Lepra tuberculosa: sangue de tuberculos da face e da orelha.—O exame microscópico revelou-nos: Io, que havia integridade morphologica das hematias e leu- cocytos; 2o, a existência de num erosas granulações claras, punetiformes, de centro brilhante e contorno ligeiramente escuro, umas dotadas de movimentos rotatórios e de progressão muito rápidos e outras im- moveis ; 3o, numerosos bastonetes ou bacellos peque- nos, regulares, moveis, e bacellos irregulares, esga- lhados, immoveis. « Sangue da extremidade dos dedos.—Encontramos granulações claras, punetiformes, análogas às prece- dentes, porém em menor numero, e raras granulações moveis. Alguns bacellos esgalhados, tendo em uma ou outra extremidade adhercnte uma pequena granu- lação punetiforme. (.(Lepra anesthesiea.—O exame foi feito sobre o sangue retirado não só de picadas sobre as placas de anesthesia cutânea, como das extremidades digitaes. Eis o que observamos : Io, grande numero de granu- lações claras de contorno ligeiramente escuro, aná- logas ás encontradas na lepra tuberculosa, dotadas — 260 - de movimentos rápidos, ora rotatórios, ora de pro- jecção. « Disseminadamente cadeias de monadas justa-pos- tas em numero de duas a três no máximo. Bastonetes moveis pouco numerosos e alguns moveis. Hematias e leucocytos morphologicamente normaes. « Do exposto deduz-se que as nossas analyses confir- mam até certo ponto os exames anteriores do Sr. Ar- mauer Hansen, bem como os dos Srs. Hillairet e Gau- cher. Confirmam os exames do Sr. Armauer Hansen quanto á natureza dos parasitas e sua existência nos tuberculos dos leprosos, não concordando, porém, com as desse observador no tocante á existência dos mes- mos parasitas no sangue fresco dos leprosos, que elle nunca pôde descobrir. « Os resultados obtidos do exame do sangue dos nos- sos doentes de lepra tuberculosa são, sob o ponto de vista da analyse microscópica, análogos aos dos Srs. Hillairet e Gaucher, excepto o desenvolvimento e mul- tiplicação dos parasitas cuja cultura ainda não tenta- mos. « Ha, porém, um lado em nossos estudos que pare- ce-nos novo: é o do estudo comparativo da lepra tuber- culosa com a lepra anesthesiea, hematologicamente. « Nossas analyses revelaram nos doentes das duas fôrmas o seguinte: Io, a existência do mesmo parasita no sangue de um e de outro, o que faz acreditar na identidade da natureza morbigenea; 2o, o excesso de bacellos no sangue dos tuberculos, ao passo que en- contra-se pequena quantidade delles no extrahido das extremidades dos dedos e no da lepra anesthesiea, o que pôde fazer pensar que a quantidade de bacellos não é indifferente ás alterações cutâneas da moléstia. «Sobre este ponto. nada affirmamos, aguardando ulteriores investigações no mesmo sentido. » - 261 - Aqui termina a communicação do Dr. Martins Costa. O que poderei inferir de suas investigações ? Que concurso prestam para a elucidação da origem para- sitaria ? Por emquanto, penso, não esclarecem o assumpto. Com effeito, não se pôde ainda definir o papel dos parasitas encontrados, e nem se sabe em que qualidade alli estão, si de causa das modificações leprosas, si de effeito das profundas alterações do processo nu- tritivo. Em outros termos, não permittem descobrir, con- forme eu já disse, as relações pathogenicas entre os parasitas encontrados e a evolução da enfermidade. Infelizmente os estudos do Dr. Martins Costa reca- hiram somente em doentes já em estado adiantado, e nenhum pôde elle fazer em quem estivesse no pri- meiro periodo, á falta de pessoa que nos procurasse no começo da moléstia. Comquanto eu não propenda, devo confessar, para admittir a origem parasitaria da lepra, sobretudo de- pois do que me têm revelado outros exames, não abandonarei comtudo este elemento etiologico da mo- léstia, contando principalmente com a coadjuvação de tão estudioso e esforçado collega. Regimen alimentar.—Como os autores estran- geiros, os autores e médicos brazileiros entendem diversamente a influencia que possa ter na producção da morféa o regimen alimentar. Na opinião de uns esta influencia é tudo; na de outros figura simplesmente como causa predisponente; e na de alguns, finalmente, é nulla. Não me occuparei por emquanto da opinião dos pri- meiros, os que acreditam no poder que têm certos alimentos de produzir a morféa, e passarei a tomar em consideração as duas outras opiniões. — 262 - São a carne de porco e o peixe os principaes alimentos increpados, vindo em segundo plano o milho, os oleosos e as bebidas alcoólicas. Para simplificar a minha tarefa occupar-me-hei sobretudo da carne de porco e do peixe, si bem que conte, sempre que se me offerecer opportuni- dade, abranger nas minhas reflexões os demais ali- mentos. Os que contestam á carne de porco aquella influencia, fundam-se em duas razões : l.a Si esta carne gerasse a morféa, observam eiles, muito maior seria o numero de leprosos nas localidades onde a carne de porco constitue a base do regimen alimentar; 2.a A morféa é encontrada sob o caracter endêmico em logares onde se não faz uso de tal carne. A estas duas razões accrescentam uma 3a os que innocentam o regimen ichthyophago, e vem a ser: em alguns pontos onde o peixe constitue a base da ali- mentação, não se observa um só caso de morféa. Passo a tomar em consideração cada uma destas razões. Quanto á Ia razão: O valor deste argumento é mais apparente do que real. Os que condemnam a carne de porco, não affirmam que ella actue sobre o organismo humano á maneira de um virus. Ora, si a própria acção de um virus não é constante, não é certa, nem infallivel, porque ha organismos, e felizmente em grande numero, que furtam-se a ella, como exigir que sejam constantes os effeitos de um alimento considerado como causa de uma enfermi- dade? Do ataque em umas pessoas e da innocuidade em outras originou-se a ideia da «predisposição», palavra substituída actualmente pela de «receptibilidade», - 263 — Discutindo a predisposição, cita Baglivi « a circum- stancia mui importante de não serem acommettidos de manifestações da syphylis todos os que foram ter ao mesmo foco de infecção syphilitica ; cita ainda o não serem acommettidas de peste todas as pessoas que praticaram a caridade de assistir aos pestilentos ; e finalmente o facto comesinho de não soffrerem a pena da glutonaria todos os que estiveram assentados á mesa do deboche. » Appello para as epidemias e mesmo para as en- demias. Quando reina uma moléstia epidêmica, a presumpção é que todos os habitantes da localidade infeccionada acham-se sob a influencia do germen ou principio epidêmico; os organismos são como assal- tados pela mesma causa, e a susceptibilidade orgânica é n'esta conjunctura de súbito provocada, bruscamente, o que a expõe a exceder-se e a extraviar-se mais promptamente do que quando prepara-se ou tem folga para receber a impressão estranha, porém moderada, graduada. Pois bem, o que se observa então naquellas circumstancias ? Apezar da violência do ataque inopi- nado e brusco, muitos organismos, a maioria quasi sempre, contêm-se, dominam-se e incólumes atra- vessam a calamitosa quadra. Emquanto muitas pessoas succumbem, outras apre- sentam apenas ligeiras perturbações de seus orga- nismos, e muitas e muitas outras nada soffrem, não obstante estarem todas sob a acção da mesma causa epidêmica. Nas endemias, em que a causa mórbida é permanente, mas em que os organismos têm vagar para preparar elementos de resistência, ainda mais se accentua a immunidade que muitas pessoas apresentam. Carecerei recordar o que constantemente nos offerece á observação o miasma palustre ? Casos de febre in- — 264 - termittente aqui, casos de continua paludosa alli, casos de febre perniciosa acolá, d'entre uma população in- fluenciada pela mesma atmosphera palustre. « Desgraçadamente, diz Bouchut(1), não succede em medicina como nas sciencias physicas, em que se observa uma relação constante entre as causas e os effeitos. Na sciencia medica tal subordinação não existe, e por isso não se pôde concluir rigorosamente da existência de uma causa para um effeito determi- nado, porque o corpo, sendo parte activa na producção do phenomeno, pôde resistir à impressão mórbida de modo a impedir-lhe as manifestações habituaes. Entre a impressão de um agente physico facilimo de se verificar, como sejam o frio, o calor e o humido, e a moléstia que pôde ser o effeito, ha um intermediário; é o homem com a sua impressionabilidade, a sua força de resistência e de reacção particular, poderosíssimo intermediário que accrescenta um terceiro termo á relação philosophica entre as causas mórbidas e os effeitos, a modifica e torna duvidosa e contestável em virtude de sua variedade, um phenomeno cuja exis- tência é no emtanto manifesta. Em medicina, accres- centa o autor, as mesmas causas não produzem con- stantemente effeitos semelhantes, em razão daquelle intermediário vivo, cuja opportunidade de reacção não ô sempre a mesma. » Si os germens de infecção e si o próprio virus não tem effeito constante, como exigir que uma substancia destinada a ser assimilada pelo organismo, como é o alimento, determine com mais freqüência um effeito que não é o seu, não ô o próprio cie sua acção, e que> pois, não tem com esta relação alguma ? (') Nouveaux élémcnts do patliologie générale, etc, pag. 28. — 265 — Attendendo, portanto, ao que a experiência tem demonstrado ao ultimo gráo de evidencia, e aos prin- cípios scientificos que estão com aquella de perfeito accôrclo, julgo não estar em erro quando disse que era mais apparente do que real o valor da primeira razão. Quanto á 2a razão: apparecer a morféa onde a carne de porco não constitue a base cio regimen ali- mentar. Si a carne de porco fosse a única causa a que se tem attribuido a morféa, seria procedente esta segunda razão : ora, ô exactamente o contrario que succede: não ha um só autor que tenha considerado a carne de porco como a causa única da lepra; e desde que ha outras, não é de estranhar que a moléstia também se desenvolva onde funccionarem estas causas. Passo á 3a razão, a apresentada pelos que defendem o regimen ichthyophago. Reflectem elles: si o peixe é capaz de gerar a morféa, como explicar a não existência da moléstia em logares onde o peixe constitue a alimentação quasi exclu- siva ? Para que este argumento tivesse a força que á pri- meira vista inculca, seria necessário que primeiro se estabelecesse identidade entre as condições de todos estes logares. Pergunto eu: está por ventura bem averiguada a igualdade do regimen ichthyophago em umas e em outras localidades, onde existe a morféa e onde não existe ? Serão os hábitos dos habitantes de umas iguaes aos das outras i Estará estudada a composição de tantas variedades de peixes ? Os peixes usados nas localidades onde reina a morféa são da mesma qualidade dos usados nas em que não existe esta moléstia? Nos logares onde não apparecem m. 34 - 266 — casos de morféa o regimen será exclusivamente ichthyophago 1 Offereço desde já um exemplo: nas praias de Ser- gipe, comquanto os habitantes entreguem-se também a uma pequena cultura, a occupação geral é a pescaria, entrando o peixe por muito na alimentação de todos elles. Entretanto não se pôde dizer que a alimentação seja exclusivamente ichthyophaga: os habitantes re- servam parte de suas pescarias, preparam o peixe, le- vam-o ás feiras, e com o producto compram alguma carne secca, farinha e mais arranjos da vida. Além de sóbrios, e de usarem somente de peixe fresco e de varias qualidades, accresce que sua alimentação não é rigorosamente ichthyophaga. Por lá, com effeito, não ha morféa. Conforme eu já disse, firmado na longa experiência de um clinico conceituado, não ha morféa em toda a região percorrida pelo alto S. Francisco, onde aliás o peixe é grande factor da alimentação. Alli também recorrem á carne, á caça, etc. Serão estas as condições dos logares marítimos onde a lepra é endêmica ? No Baixo S. Francisco, si abunda o peixe, não falta a carne. Os habitantes preparam uma carne de vento, que tive occasião de ver em um mercado de Penedo. Com o producto da venda desta carne compram os artigos de que carecem. Será crivei que tendo elles este recurso, que tendo carne de gado, se alimentem exclusivamente de peixe ? Por alli não ha morféa. Apresento estes exemplos no intuito de mostrar que podem variar muito as condições dos logares maríti- mos. Dado mesmo que em todos os logares marítimos o regimen alimentar consistisse exclusivamente em - 267 — peixe, ainda assim a 3a razão não vale o que parece. Os peixes têm todos a mesma composição ? Indepen- dente de qualquer analyse póde-se responder com segurança: não têm. Que o diga o povo que das qualidades dos peixes tem melhor a experiência, do que nós os médicos o conhecimento. O povo de cada localidade indica um por um os peixes carregados e os que os doentes podem comer impunemente. A este respeito nós os médicos não vamos tão longe. Os peixes carregados são os que «bolem com os humores», epor isso defesos a quem soffrer de feridas, de syphilis, ou de qualquer moléstia de pelle. A esta classificação popular do peixe corresponde uma outra da carne. Na expressão popular ha também carnes carregadas, por exemplo a de porco. A de capivara, essa ô carregadissima. Em Agosto passado estava eu na fazenda de um amigo, para o lado de Cantagallo, quando alli se fez uma caçada de oito capi- varas. Desejando obter óleo desses animaes (*), em- preguei vários pretos na tarefa de o colher; e como eu notasse que a carne era de boa apparencia, per- guntei-lhes se a não comiam: «Não comemos, res- ponderam-me, porque a carne da capivara é muito carregada e faz apparecer moléstias na pelle. » No- te-se que é esta a voz geral a respeito da capi- vara, que, cumpre accrescentar, é muito rica de gor- dura. (•) Em alguns pontos do interior da provincia do Rio do Janeiro o óleo de capivara é muito procurado pelo povo, que o emprega nas moléstias pulmonaros chronicas. Contam dolle muitas virtudes. Creio quo esto oloo poderia substituir perfeitamente o óleo oofigado de bacalháo,o tal voz com mais vantagem.Em um moço tuberculoso, que achava-se recolhido á Casa do Saúde de N. S. da Ajuda, ao qual administrei o óleo de capivara, obsorvoi sua eflkaeia. De muito enfraquecido quo estava esto doente começou a readquirir forças que o habilitaram a abandonar o leito, onde permanecia diariamente, podendo rotirar-so para a provincia de S. Paulo, onde residia ura parente quo para alli o attrahiu. — 268 - Voltemos ao estudo do peixe. « Enganar-se-hia (*) quem acreditasse que os peixes têm uma construcção uniforme. O exame, mesmo superficial, de suas principaes particularidades ana- tômicas, nos revela pelo contrario disposições tão variáveis como notáveis, entre as quaes ha algumas muito importantes debaixo do duplo ponto de vista da physiologia e da anatomia comparadas. « Devido a estas disposições, cujo estudo tem muitas vezes conduzido a resultados scientificos inteiramente inesperados, é que os naturalistas empenham-se em conhecer, anatômica e physiologicamente, os nume- rosos gêneros da classe dos peixes. A utilidade que muitos destes animaes prestam ao homem e o interesse geológico que se prende ao exame das espécies ex- tinctas, fazem também cia ichthyologia um ramo importante da zoologia. » A essa variedade dos peixes não corresponderão, não direi outros tantos effeitos, mas vários effeitos, quando empregados na alimentação do homem ? Parece que sim, e no emtanto a hygiene não entra em maiores indagações a este respeito, e por isso, englobando os peixes-alimentos, somente menciona á parte o peixe-veneno. Moysés, como já tive occasião de dizer, considerava immundos os peixes que não tivessem barbatanas, nem escamas, e prohibia que os Hebreus comessem de taes peixes, permittindo-lhes somente o uso dos que tivessem barbatanas e escamas, tanto os do mar como os dos rios e lagos. Deste modo os peixes de pelle lisa, vulgarmente chamados de couro, eram (') Zoologie medicale. hxposè methodique du règne animal base sur Vanatomie Vembryogenie et Ia paleontologie. Par M. M. Paul Gervais et P. I. Van Beneden Tom., 1°, pag. 224. — 269 — interdictos aos Hebreus, razão por que declarei que a prohibição hygienica de Moysés não se limitara á carne de porco, mas estendera-se aos peixes « sem escamas, nem barbatanas ». Hippocrates, que considerava os peixes um alimento brando, os dividia em peixes pesados o leves; pesados eram os de lagoa, os gordos e os de rio; e leves os do mar, emais ainda cozidos do que passados. De accôrdo com essa divisão o pai da medicina indica a pag. 549 (tom. 6o) os nomes dos peixes leves e os dos pesados. Considerava prejudiciaes e pesados para o corpo humano os peixes que se creavam e se nutriam de águas lodosas. Os peixes mucilaginosos eram, em sua opinião, humectantes e evacuantes (pag. 551); contra a terceiraphtysica aconselhava (tom. 7o pag. 199) os peixes cartilaginosos. Os hygienistas têm simplificado por demais a parte que representam os peixes na alimentação do homem: tudo, na sua opinião, se reduz a maior ou menor di- gestibilidade da sua substancia. A circumstancia ex- traordinária de causarem os peixes em uma localidade certa moléstia de pelle e em outros pontos differentes moléstias, bem como a de serem innocentes em muitos logares, não desafiaram ainda a. syndicancia das cir- cumstancias concernentes a resultados tão diversos, nem fizeram reconhecer a necessidade de um exame mais profundo das qualidades e da composição das muitas espécies de peixe. « Mais ce qui semble établi, diz Motard (*), par Vobservation de tous les climats habites par des ichthyophages, c'est Vextreme fréquence des maladies cutanées;la radesyge couvre dhilcères et de tubercules (') Traité d'hygiène yénêrale, tomo Io pag. 774. - 270 - le Norioegien et Groenlandais, tandis que le Syrien et le riverain de Ia mer Rouge' ont donné Ia lèpre á VEurope; aux Moluques, rien de si frequent que les maladies cutanées. » Depois de occupar-se, seguindo a tradição hippocra- tica, com os peixes de fácil e com os de difficil digestão, diz Michel Levy (Tratado de hygiene) que « a carne ou os músculos do peixe contêm, como os dos vertebrados, quantidade considerável de corpos gordos formados em proporção variável deoleina, margarina e stearina; que, além deste, ha um outro análogo á gordura cerebral que Fremy decompoz á maneira de sabão pelo ácido sulfurico em sulfato de soda e em um ácido mais pesado do que a agua (ácido oleophosphorico). Esta gordura, accrescenta, se acha espalhada em quasi todas as partes da organização animal, e augmenta nos músculos com o progresso da idade. » O Dr. Dujardin-Beaumetz, em suas L.eçons de clinique thérapeutique, diz á pag. 296: « Os peixes se dividem em três grupos: os de carne branca, que certa- mente são os mais digestiveis e os menos nutrientes; os de carne amarellada, que se digerem mais lenta- mente, mas que contêm mais principios nutritivos; e finalmente os de carne gorda, que são muito nutrientes, porém de uma digestão laboriosa, porquanto exigem a digestão intestinal. » Para que se avalie quanto interessa, tratando-se do regimen ichthyophago, saber alguma cousa mais do que a facilidade ou difficuldade da digestão dos peixes, bastará correr a vista sobre qualquer quadro onde venha indicada sua composição elementar, como o pu- blicado por Payen ou o que o Dr. Dujardin-Beaumetz inseriu em sua já citada obra. A' vista da desproporção em que nas varias quali- dades de peixe figuram os elementos alimentares, — 271 — azoto, carbono, etc, é obvio que não só os resultados alimentares obtidos com o regimen ichthyophago não serão sempre os mesmos, como também não o poderão ser as conseqüências hygienicas. Si a respeito dos resultados alimenticios ainda se encontram algumas noções, para bem dizer rudimen- tares, nos livros de hygiene, quanto aos resultados hygienicos sente-se absoluta carência de esclareci- mentos. O que a este ultimo respeito a observação apenas registra é que em uns logares os habitantes nada soffrem, apezar do seu regimen alimentar exclusiva- mente composto de peixe, ou cuja base é constituída pelo peixe, ao passo que em outras localidades pagam ao mesmo regimen o mais desgraçado tributo. Como aproveitariam pouco ao meu estudo as ana- lyses procedidas em peixes que habitam as águas de outros paizes, dispenso-me dellas, sob o pretexto de encontrar argumento applicavel ao assumpto que dis- cuto. Falta-me o essencial, faltando-me a analyse dos peixes do littoral do Brazil. Entre nós os peixes são apenas conhecidos pelos nomes, e pelo aspecto os peixes gordos: quanto á sua innocuidade ou nocividade sabemos, quando muito, o que nos transmitte a tradição popular. O que, porém, se nota é que entre nós vigora mais ou menos a classificação formulada por Moysés : os peixes de pelle, isto é, os que não têm escamas, pas- sam como nocivos por serem << carregados ». Vimos, por exemplo, o Dr. Aprigio de Menezes (cli- nico em Manáos) dizer: « Tenho ouvido a pessoas desta provincia attribuirem a morféa á alimentação conti- nuada dos peixes de pelle que nella abundam. São a pirahiba, o peixe-boi, a piráarára, o surubim, etc. » — 272 - O mesmo clinico, referindo-se á opinião do Sr. An- tônio L. Monteiro Baena, exarada no Ensaio Corogra- phico, transcreve deste uma reflexão, que também já mencionei, o que não obsta a que eu repita aqui; é esta : « Comtudo nem este nem outros são escamosos como elle, ninguém que tenha regimen dietetico se atreve a comel-os assiduamente, porque sabe que todos fazem espessos os humores, obstam a transpi- ração e causam a elephancia ou asquerosas e come- doras cròstas na pelle. » Vimos também a menção feita pelo Dr. Manoel Bernardino da Costa Vaes (Maranhão) cios peixes mandubé, curumatá, jeju e traíra, e a observação de reinar a morféa onde a alimentação consta de peixe de agua doce, sendo rarissima a moléstia « acima da cidade de Guimarães, onde se usa de peixe de agua salgada ». O Dr. Antônio Rodrigues Ferreira, fallando dos Indígenas das margens dos rios do Pará, diz que «da pesca é que em todo o anno se vive, e esta ou é de peixe ou de tartarugas. Para as mesas delicadas se pescam a pescada, o mandubé, o mapará e o uçara; e para a gente do trabalho os surubins, tucumarús, as rayas, as piratacas, pirauibas, piraurucú, peixe-boi e outros peixes... O piraurucú bem salgado e secco é o bacalháo do estado, assim como o peixe-boi de Moura imita o atum do Reino ». Em uma das cartas do Padre José de Anchieta, depois da descripção, por este feita, de Boi-marinho, se lê: « Os peixes são muito saudáveis nesta terra e podem-se comer todo o anno sem prejudicar a saúde, e até na moléstia, sem medo de sarna, que aqui não existe em parte alguma. » Com elementos tão deficientes não poderei responder com precisão aos que, apezar cie tudo, defendem o regimen ichthiophago; porém acredito que desappa- — 273 — recerá o enygma quando, estudadas as condições da vida de uns e de outros habitantes das localidades em que reinar a lepra e dos das localidades immunes, se souber também da composição dos vários peixes. Respondidas como pude, com os elementos que a sciencia ministra, as três objecções de que se servem os que não acreditam que a alimentação do peixe possa gerar a morféa, passo a encarar a questão por outra face. Examinarei agora uma questão de facto, e quanto a mim digna da maior attenção. Existe a morféa no norte e no sul do Império. Acompanhando-se com algum cuidado a distribuição desta moléstia por essas duas partes do paiz, depa- ra-se com o seguinte resultado: no norte só se observa a morféa endêmica nas localidades, isto é, no littoral, onde a base da alimentação é constituída pelo peixe- Fora do litoral apparecem casos, mas são casos dis- cretos, sporadicos. Outra consideração: no norte a carne de porco entra no regimen alimentar, uma ou outra vez, como simples variedade. Emquanto a sede da moléstia na parte norte é aquella, no sul nota-se que a morféa somente se en- tretêm enclemicamentc nas localidades onde a carne cie porco forma a base da alimentação, figurando nella também o milho. Onde a alimentação é mixta, é variada ; onde a carne chamada de açougue, a farinha, o pão de trigo, o car- neiro, a carne de porco, o peixe, as hervas, o milho, etc. entram promiscuamente no regimen alimentar, pre- dominando aquella carne e qualquer das farinhas, a de mandioca e a de trigo, não apparecem casos de morféa. Bem entendido, não levo em linha de conta um ou m. 35 — 274 — outro caso sporadico, e de cuja origem não tenho conhe- cimento, porque casos destes não depõem contra, nem favorecem a doutrina alguma. Como explicar aquelle facto notável que se descobre em duas circumstancias especialissimas ? Como ex- plicar a endemia da lepra somente nos logares onde predominam aquelles regimens alimentares ? Pela acção do clima ? Pelas condições telluricas ? Pela humidade ? Pelo contagio ? Pela syphillis ? Não, á vista do exposto. Pela origem parasitaria ? A origem parasitaria, com applicação á lepra, é o desconhecido, e o desconhecido, como não explica cousa alguma, nem dá nem tira razão. Pela herança ? Ainda não occupei-me da herança, que aliás admitto, desde já o declaro; mas sendo a he- rança da lepra quasi sempre fatal, torna-se inadmis- sível que se reduza tanto pelo interior, para expandir-se somente nas localidades do norte e do sul onde se come peixe e carne de porco. O facto existe e ha de ter alguma explicação; qual será ella ? Por exclusão, pelo menos, somos levados a admittir que a explicação do facto procede do regimen ali- mentar. Uma reflexão, todavia, açode apenas se tem conhe- cimento do facto, a que aliudo, e vem a ser : como podem determinar a morféa duas substancias alimen- tares tão dissemelhantes ? Eu lá chegarei; embreve examinarei a composição de todos os alimentos increpados de produzirem a lepra, e procurarei então descobrir em todos elles algum ponto de contacto; si o encontrar, ficará de nenhum effeito - 275 - aquella dissemelhança. Demais: o peixe e a carne, alimentos dissemelhantes, não dão o mesmo resultado alimentício ? Pois bem, si usados convenientemente elles nutrem, empregados inconvenientemente podem prejudicar: ecomo naquellas condições o resultado é um só — a nutrição —, msfoutro o resultado será também o mesmo — a moléstia. Proponho-me nas linhas que se seguem a averiguar o facto que, em resultado de minhas indagações, acabo de apresentar Lquanto a endemicidade da morféa no norte e no sul do Império. No Pará, onde se abusa da alimentação pelo peixe, a morféa é freqüente. No Maranhão só é endêmica onde se faz uso do mesmo regimen. No Piauhy, Ceará, Rio Grande do Norte (nesta os poucos casos se dão no littoral), Parahyba, onde o re- gimen geralmente adoptado é mixto, são isolados os casos de morféa: em nenhuma a lepra é ende- mica. Nas Alagoas o Dr. Espíndola encontra pretexto na circumstancia « de (são estas as suas expressões) não grassar a morféa consideravelmente (o grypho é meu) entre os povos que estacionam nas margens dos lagos, como nas cidades de Alagoas, Pilar e Villa de Santa Luiza do Norte » para contestar semelhante influencia do regimen ichthyophago. Não obstante a autoridade do Dr. Espíndola, e por isso que elle reside na provincia de Alagoas, ca- be-me perguntar: nesses logares, nessa provincia onde os alimentos são tão abundantes e de tão facil acquisição, nessa provincia riquíssima de substan- cias alimentares, será exclusivo o regimen alimentar constituído pelo peixe ? E' o que precisa ser esclare- cido. - 276 - Em Sergipe onde a alimentação é mixta, porque real- mente é uma provincia muito abundante de viveres, a morféa é rarissima. Na Bahia a morféa apparecia com freqüência na ilha de Itaparica, nas costas de Itapoan, localidades em que o peixe forma a base da alimentação. Durante a pesca de baleias, que eram desmanchadas nas armações de Itaparica e Itapoan, o povo aggravava aquelle regimen com o predomínio da carne gordurosa, como é sabido, deste cetáceo. Conforme vimos, o illustrado Dr. Pacifico, dando como diminuída de freqüência a lepra na Bahia, men- cionou a circumstancia de estar reduzida também a pesca da baleia, sem, comtudo, affirmar subordinação de um a outro facto; porquanto aquelle medico accres- centa que « é ponto que carece ainda de séria inves- tigação a parte que pôde ter a alimentação pela baleia na etiologia da morféa. E'certo, porém (efé este o remate do periodo), que a pesca da baleia, já não faz-se em tão larga escala aqui, e nas costas da provincia, como outríora. » Acatando, como devo, a reserva com que o Dr. Paci- fico procede a este respeito, não duvido todavia aven- turar que, tomada isoladamente esta coincidência por elle assignalada ou mencionada, é prudente aguardar um exame mais serio para se formar juizo seguro,; porém, attendendo que certos alimentos geram a mor- féa, entre os quaes o peixe occupa o primeiro plano, não é fora de razão attribuir a menor freqüência da lepra alli ao uso muito mais moderado da baleia. Em todo o caso não é para dispensar essa circumstancia que aqui deixo consignada ao lado desta outra : em todo o in- terior da provincia da Bahia são rarissimos os casos de morféa, e em sua extensa zona a alimentação se compõe quasi sempre de carne e farinha, isto é, de - 277 - carne de açougue fresca ou secca e farinha de man- dioca. Deste modo nota-se na provincia da Bahia estas coincidências : l.a A morféa foi endêmica no litoral onde a alimentação era ichthyophaga, aggravada pelo muito uso da baleia; 2.a No litoral os casos de morféa são menos freqüentes e a pesca da baleia se faz em menor escala; 3.a Em todo o interior, por outra, onde quer que a alimentação não seja aquella, rarissimos são os casos de moléstia. No Espirito Santo a lepra é rarissima, e os poucos factos que por lá apparecem estão explicados pela transmissão hereditária: não conheço nem tenho in- formações dos hábitos alimentares de seus habitantes. No sul do Império a zona occupada pela lepra « endê- mica » comprehende o sul da provincia de Minas Geraes e provincia de S. Paulo. Em Minas, na parte correspondente á Bahia, e onde a alimentação é idêntica á que se usa no interior desta provincia, a morféa é muito rara, senão desconhecida; na outra parte, porém, a correspondente a S. Paulo, onde se usa largamente da carne de porco e do milho, reina a morféa sob o caracter endêmico. De sorte que em uma extensissima zona, que com- prehende a maior parte da provincia da Bahia, e con- stitue grande parte da de Minas, por onde, porém, se faz uso de um regimen alimentar simples, e mais ou menos proporcionado ás exigências do organismo, a morféa é rarissima. Desde, porém, que o regimen em Minas Geraes muda de natureza, o resultado já não é o mesmo. Uma linha, pois, como que corta a provincia de Mi- nas dividindo-a em duas partes: aquém, ao norte, onde não entram a carne de porco e o milho no regimen alimentar de considerabilissimo numero de habitantes, - 278 - não se desenvolve a morféa; além, ao sul, onde a ali- mentação muda inteiramente de natureza, onde o regi- men alimentar já não se compõe de carne de boi e farinha de mandioca, porém sim de carne de porco e farinha de milho, a morféa é endêmica. O que é isto, o que quer isto dizer? Não terá esta occurrencia altíssima significação quanto á influencia do regimen alimentar na producção da morféa ? Creio que sim. Nas margens do rio Sapucahy (opinião já citada do Dr. Cornelio Pereira de Magalhães) abunda a lepra Alli os habitantes se nutrem de peixe, carne de porco, farinha de milho, de pinhão, e não dispensam o café nem a aguardente. Em S. Paulo, onde a alimentação é largamente supprida pela carne de porco, do milho, a morféa reina largamente. No Paraná, onde o regimen alimentar apresenta sérios inconvenientes, a morféa tende a augmentar, e de modo a assumir no futuro gravíssimas proporções si não houver modificação profunda nos hábitos hygie- nicos dos habitantes Não devo, entretanto, deixar passar desapercebido um facto que se verifica no Paraná. No relatório, que já tive occasião de citar, dizia o presidente Zacharias (o Conselheiro Zacharias de Góes e Vasconcellosj que lhe «informaram que para o lado de Tibagy a moléstia (a morféa) atacou alguns individuos e famílias». São decorridos 27 annos depois daquella informação, e, ao que parece, a morféa tem alli augmentado, porquanto na communicaçâo do Sr. Ricardo de Andrade lê-se uma referencia a esse logar, conforme já mostrei e agora repito: disse este senhor :« Nesta provincia é nafregue- zia de Tibagy onde se encontra maior numero de mor- feticos. Os habitantes dessa localidade, accrescenta o - 279 — Sr. Ricardo de Andrade, são dadosá «criação de por- cos, objecto de exportação para as provincias vizinhas.» Eis ahi: no Paraná a morféa é mais constante precisa- mente na localidade cujos habitantes mais são dados á criação de porcos, do que resulta abundância da carne destes animaes e seu uso mais freqüente, e talvez exclusivo, no regimen alimentar daquella gente. Em Santa Catharina, á proporção que o regimen foi deixando de ser exclusivo de certas substancias ali- mentares, a morféa tem declinado. No Rio Grande do Sul o regimen alimentar tem im- pedido o desenvolvimento da lepra. Não me constando que em Mato Grosso e em Goyaz usem os habitantes da alimentação increpada, também não sei que em ponto algum das duas provincias reine a lepra endemicamente. Em alguns dos doentes confiados aos meus cuidados, o que a mais cuidadosa investigação me revelou foi que a morféa se originou dos máos hábitos alimen- tares . Um delles é maranhense, e nasceu em localidade onde nunca se deu caso de morféa. E' pessoa de fa- mília, tem irmãos, mas elle somente soffre de seme- lhante moléstia. Verdade é que por um singular capricho do seu appetite foi o unico de seus parentes que contrahiu o habito de alimentar-se exclusivamente de peixe e camarões, ao almoço e ao jantar, durante annos. Alem disto comia diariamente farinha de milho tor- rada com banha de porco. Tendo-se esta pessoa retirado do Maranhão, por exigências da vida, manteve quanto lhe foi possível o mesmo regimen alimentar em outras provincias por onde andou. - 280 — Ha dous annos, porém, appareceram-lhe os pri- meiros indícios da morféa, que em menos de um anno estava perfeitamente caracterisada, revelando disposições muito graves, conforme o Dr. Martins Costa e eu observámos. Na minha doente, a que alludi á pag. 252 (nota), e cuja melhoria, attento o estado em que a encontrei, talvez seja o unico exemplo d'este gênero na historia da moléstia, não pude explicar a causa da enfermidade senão pelo regimen alimentar. Casada aos 17 annos de idade, foi morar para os lados do Jardim Botânico, e fundou o seu regimen alimentar, desde que sahiu da casa paterna, em cabeça de porco cozinhada com feijões, em peixe e camarões. Ao cabo de poucos annos appareceram as primeiras manchas, que se seguiram de outras mais extensas, e afinal da formação de grandes tuberculos. Tem duas irmãs, das quaes nenhuma apresenta indícios de tal moléstia. Seu pai vive ainda, e de suas declarações infere-se que não ha pretexto para desconfiar de germen hereditário. Nesta doente tudo leva a crer que a lepra manifes- tou-se espontaneamente, e que a causa foi o regimen alimentar. Em relação ás duas irmãs leprosas, confiadas aos meus cuidados, e das quaes occupei-me quando tratei do augmento de glóbulos vermelhos no sangue dos morfeticos, outro não é o meu modo de pensar. Das informações que forneceu-me a mãi colligi que o regimen alimentar, e não outra causa, determinou nellas a moléstia. Além do emprego freqüente da carne de porco e do peixe em sua alimentação usaram estas doentes durante annos de milho torrado com gordura, ao que chamam vulgarmente pipocas. O resultado foi sobrevirem as manchas, proseguindo a moléstia em marcha segura. - 281 — t Esteve aqui (na Corte) em tratamento e retirou-se consideravelmente melhorado (*) um meu doente de Óbidos, que Ia contrahiu a enfermidade. Esta pessoa não accusa antecedente algum syphili- tico, nem tem parente que soffresse de morféa. Quei- xa-se, porém, do uso exclusivo da comida de pira- rucu e de tartarugas mui gordas. A doente, que foi amamentada por uma ama bouba- tica, attribue a enfermidade ao regimen alimentar quasi sempre fundado em carne de porco e milho. Um moço, de 17 annos, affectado de lepra tubercu- losa, declarou-me ter sido o abuso da carne de porco e do milho a causa da sua enfermidade. A' excepcão de alguns casos, de que tenho conheci- mento, de lepra hereditária, não encontrei um só le- proso que não attribuisse o seu soffrimento ao re- gimen alimentar. Em vista do exposto, ser-me-hia possivel descrer da influencia generativa do regimen alimentar ex- clusivo — ou de carne de porco e milho, ou de peixe— em relação á morféa ? De modo nenhum. A' influencia da alimentação têm sido oppostas duas considerações: Ia, o desenvolvimento da morféa em paizes onde não predominam nem se combinam os mesmos regimens alimentares; 2a, oapparecimento da moléstia em pessoas que não viviam privadas de bons alimentos. Não me parece de grande consistência a argumen- tação, como passo a demonstrar. (i) Confrontado o retrato do doente, tirado quando aqui veiu para ser medi- cado, com o quo deixou ao retirar-se, dir-se-ha quo as duas photographias não são da mesma pessoa, tal é a sua disscmelhança. Em communicacão posterior, datada do 7 do Maio do corrente anno, o mesmo doente, quo aliás acha-se no logar ondo contrahiu a enfermidade, declara que con- tinua a melhorar, o accrescenta : espero quo em breve estarei com a minha saudo naturai. 36 — 282 — Em minha opinião de todas as causas a que se tem imputado a lepra, é o regimen alimentar, ou antes são justamente os alimentos a causa que pôde explicar a presença desta enfermidade em tantos paizes: nos fogões se forjam, quanto a mim, os elos da cadeia que liga e estreita todos os morfeticos do mundo. Muito mais extremados do que os alimentos são os climas, e também as condições telluricas; e entretanto não tem faltado, apezar d'isso, quem attribua aquelles e a estas o desenvolvimento da lepra em differentes paizes. Sim : reconheço que os regimens alimentares não são idênticos em toda a parte, eque não ha quem igno- re que os ricos passam como ricos e os pobres como pobres. Isto, porém, nada vale. Mudarão, porventura, de natureza os princípios alimentares ? Não — certamente : a composição elementar dos alimentos é a mesma em todos os paizes, e não muda nos manjares do rico, nem na parca refeição do pobre. O carbono e o azoto, por exemplo, que figuram como elementos na composição do pão negro e grosseiro com que se nutre o obscuro operário, são de tão bom qui- late como o carbono e o azoto cio mais fino e alvo pão usado na mesa dos ricos. O carbono, que constitue o elemento predominante no óleo rançoso que o Laponio e o Groenlandez sorvem a largos tragos como si bebessem agua da Carioca, é tão puro e tão perfeito como o carbono que predomina no mais saboroso lombo de porco, servido á mesa do fazendeiro de Minas Geraes ou do da provincia de S. Paulo. A questão dos regimens alimentares não é tão com- plicada como ao primeiro aspecto se afigura; pelo con- trario eu a tenho como questão simples, puramente de 283 — fôrma : o resultado nutritivo a que attingem os in- vocados regimens, por mais variados e differentes que sejam, ou os resultados mórbidos que procedem das alimentações viciosas, são em substancia rigorosa- mente os mesmos por toda a parte. E' certo que os ricos não se alimentam como os po- bres ; aquelles si não comem melhor, seguramente comem do melhor; seus alimentos - os dos ricos — são mais abundantes de elementos azotados, ao passo que os dos pobres são mais ricos de hydrocarbonados. E' esta a regra, e por isso raras vezes a gota, que é a lepra dos ricos, baterá á porta dos pobres. Em compensação a morféa, que é a gota dos po- bres, raras vezes, proporcionalmente, entrará em casa dos ricos, salva a condição de herança. Porém, si succeder que o pobre se alimente larga- mente de substancias quaternárias, e o rico se farte das ternarias, seja em que paiz fôr, e a despeito da delica- deza ou da grosseiria da cozinha, é de concluir que, assim como aquelle não será isento cia gota, também o rico não o estará da lepra. Sendo assim, como acredito que é, que importância têm no desenvolvimento da lepra os costumes alimen- tares dos povos e as posições sociaes dos individuos, si os resultados não podem mudar ? E si é um só o resultado physiologico por todo o mundo, a nutrição dos seres humanos, quaesquer que sejam os regimens alimentares adoptados ; porque duvidar que os máos hábitos alimentares dêm também idêntico resultado pathologico, a lepra por exemplo, embora variem os preparados culinários ? Uma coincidência muito curiosa, senão circumstan- cia notável e de grande peso, como antes parece, se nos apresenta ao espirito quando estudamos a natu- — 284 - reza das diversas substancias alimentares a que se tem, até aqui, attribuido a lepra. 0 que então se observa é que na composição de todas ellas o elemento que predomina é o carbono. Si examino o seguinte quadro, onde vêm determina- dos os elementos constitutivos das carnes empregadas na alimentação do homem (*), noto que a carne de porco, sendo a mais pobre de principios azotados (ge- latina, fibrina e albumina), ê a mais abundante de gordura: Gelatina Fibrina Gordura Agua o albumina Vitella............. 7,5 9 16,5 62,5 Boi................. 7 8 20, 60 Carneiro............ 7 5,5 40 44 Porco.............. 5,5 4,5 50 33,5 Effectivamente, a carne de porco contém três vezes mais gordura do que a de vitella, e duas vezes e meia mais do que a de boi, o que quer dizer que aquella carne contém quantidade de carbono consideravel- mente maior que qualquer das duas outras carnes. Agora— os peixes.— Lamento, ainda uma vez de- claro, que não tenhamos o menor conhecimento da com- posição dos peixes do Brazil. Quão interessante seria conhecer o resultado da analyse do peixe-boi, riquís- simo de gordura, do pirarucu e de tantos outros que aliás constituem a alimentação quasi exclusiva de tanta gente ! Qual será a composição elementar dessa tartaruga tão rica de gordura e tão procurada no valle do Amazonas ? (») Traitê d'hygiene générale — Motard. - 285 - A' falta de taes elementos sou obrigado a recorrer a um quadro da analyse feita em peixes europeus. 0 publicado pelo Dr. Dujardin-Beaumetz (*) demonstra o seguinte : Azoto Carbono Gordura Agua Boi.................. 3 10 2 69 Enguia do mar...... ;! 12 5 79 Enguia de agua doce 2 30 23 62 Bacalháo salgado.... 5 16 1 47 Sardinhas em azeite.. 6 29 9 46 Pescada.............. 2 9 1 82 Cavalla.............. 3 19 6 68 Linguado............ 1 12 1 86 Salmão.............. 2 16 4 75 Tomada para termo de comparação, como mostra o quadro, a carne de boi, o que para logo se verifica é que, á excepcão da pescada (considerada pelo povo como peixe innocente), todos os demais peixes contêm maior quantidade de carbono do que aquella carne, figurando este elemento em alguns delles em pro- porções muito consideráveis. Salta aos olhos a diffe- rença entre a enguia do mar e a enguia d'agua doce, contendo esta muito maior quantidade de carbono e gordura, o que a tornará menos saudável. O peixe d'agua doce em geral é tido pelo povo como mais « carregado », mais « reimoso », e por isso menos adequado aos enfermos. Tomando-se a composição desses 'peixes debaixo de um ponto de vista geral, nota-se, é certo, que alguns delles não contêm carbono e gordura em quantidade sensivelmente maior do que a carne de boi; porém, si (') Lcçons de cliidjue tkèrapeutique, tomo Io pag. 33C, — 286 — attendermos a que taes peixes contêm menor quanti- dade de azoto do que esta carne, seremos levados á conclusão de que, guardadas as proporções entre o regimen pela carne e o regimen pelo peixe, far-se-ha por meio do ultimo gyrar no organismo maior quan- tidade de carbono. E' bem claro que não occupo-me aqui deste ou d'aquelle peixe, que cause a morféa, porque não os sei especialisar; trato, sim, da composição elementar de alguns peixes no intuito de demonstrar que na ali- mentação ichthyophaga predomina o elemento car- bono. E, seja dito, é tão variável a composição dos peixes, que se me afigura seria do maior alcance scientifico, em vez de andarmos á cata de peixes morfeticos, estudássemos a composição dos mais abundantes ou mais procurados pelos habitantes das localidades onde reina a morféa. Deste estudo, quero crer, resul- tariam maiores esclarecimentos sobre a influencia exercida pelo regimen ichthyophago na producção da lepra. E' sabido que o carbono é o elemento predominante nas substancias gordurosas e oleosas ; mas, não obstante, addicionoo quadro da composição elementar de algumas dessas substancias: (*) Azoto Carbono Gordura Agua Toucinho......... .. 1,18 71,14 Manteiga de vacca... 0,64 83,00 Óleo de oliveira (azei- te doce)............ traços 98,00 Chocolate............ 1,52 58,00 71,00 82,00 20,00 14,00 96,00 26,00 2,00 8,00 (U Payen — Substances alimentaires, pag. 304. - 287 - Além da carne do porco, do peixe, e das sub- stancias oleosas e gordurosas, tem-se reputado o milho, o amendoim, o pinhão, etc, como capazes de produ- zirem a lepra ou contribuírem para o seu desen- volvimento. Pois bem : vejamos qual a composição de alguns cereaes mais conhecidos e qual a dotação do milho em princípios hydrocarbonados e gordurosos. O se- guinte quadro é extrahido da obra de hygiene do Dr. Miguel Levy (tomo Io pag. 728) : Azoto Trigo rijo do Meiodia. 3,00 Trigo molle......... 1,81 Arroz................ 1,08 Milho................ 1,70 44,00 8,80 12,00 Dos cereaes é, pois, o milho o que contém maior somma de carbono, bem como o mais rico de gor- dura, o que ainda mais faz avultar a cifra daquelle elemento. Quanto ao amendoim os números seguintes bastarão para demonstrar sua riqueza em óleo, e portanto em carbono (*): EM CENTÉSIMOS I II III IV Médias Bagaço.... 54,833 51,667 51,590 52,380 52,618 Óleo...... 45,167 48,333 48,410 47,620 47,382 Carbono Gordura Agua 40,00 2,10 10,00 39,00 1,75 14,00 43,00 0,80 13,00 100,000 100,000 100,000 100,000 100,000 (i) Extrahido do — Estudo chimico das somontes do mondobi. Momoria offe- recida á Academia Boal das Scieucias do Lisboa por J. M. do Oliveira Pi- mentel. 288 - Deixo de indicar aqui a composição elementar do nosso pinhão, por não me constar que se lhe tenha feito a analyse, o que não me impede de acreditar que contém muito carbono, visto ser bastante oleoso. E' realmente notável que desde tempos immemo- riaes, muito antes de Moysés, se tenha attribuido a morféa a um regimen alimentar abundante de sub- stancias gordurosas em cuja composição predomina o carbono ; e que tenha essa tradição chegado até o presente, atravez de tantos séculos, uniforme e in- variável. Ou como factor da enfermidade, ou como causa auxiliar, o certo é que a semelhante regimen não se tem poupado accusações. A uma alimentação mixta, a um regimen variado, é que nunca se attri- buiu a lepra. Houve quem notasse, e eu já o mencionei, que esta moléstia se desenvolve nas localidades onde se não usa do pão de trigo. E' essa uma opinião ou uma observação individual, e, ao que parece, infundada, si a encararmos debaixo de certo ponto de vista. Explico-me : onde não se usar do pão de trigo, isto é — do feculento mais rico de azoto—, usar-se-ha cie outros feculentos mais abundantes de hydro-carbo- nados, porque o homem, mesmo selvagem, não dis- pensa a fecula em sua alimentação. Sendo assim, acredito que não será a falta de trigo a causa da mo- léstia em taes localidades —, si fòr essa a única falta a notar —, mas sim o emprego.de outro principio ali- mentar, cl'onde resulte um regimen afinal idêntico aquelle sobre o qual pesa a culpa de gerar a morféa, isto ô : um regimen mais abundante, do que convém, de hydro-carbonados. A respeito de regimens alimentares dá-se ainda uma circumstancia digna de ser assignalada, qual a de manter-se endêmica a morféa nos paizes de - 289 - clima frio, onde ha grande necessidade de alimentos respiratórios, e onde é mais factível o seu abuso ; ou nos paizes quentes, onde qualquer excesso nessa ali- mentação pôde damnificar a saúde. Nos paizes de clima temperado, e que actualmente passam como ívfractarios á lepra, já não se dá o mesmo. Primeiramente os habitantes destes paizes compor- tam melhor e até necessitam de maior somma de alimentos respiratórios na sua alimentação, do que os habitantes de paizes quentes. Em segundo logar o clima temperado não tem as exigências do clima frio : um francez, um inglez, nunca beberá óleo como succede ao laponio, etc. Já se vê que por este lado cs habitantes dos paizes temperados estão garantidos. Finalmente o regimen alimentar nos paizes tempe- rados tem sido, a partir da idade média, mais vigiado, mais estudado, e realmente é o mais approximado ou o mais conforme aos preceitos hygienicos, o que se deve ao adiantamento de sua civilisação. Si não levar- se cm linha de conta o abuso do álcool que por lá se commette, notar-se-ha que nos habitantes daquelles paizes os males alimentares (refiro-me aos alimentos sãos) podem resultar do excesso de fibrinosos, d'onde não deriva a morféa, ou então da insufficiencia dos princípios alimentares, o que pôde causar todos os males oriundos da miséria physiologica, mas não, mas nunca a morféa. Logo, pois, que nos paizes de clima temperado se respeitaram os conselhos da hygiene, c nos costumes dos povos se implantaram as boas praticas hygienicas, embora o clima temperado continuasse o mesmo, os resultados entretanto variaram: d'antes a morféa era alli endêmica, e o foi durante muitos séculos, não en-1 M. 37 - 290 - contrando no clima obstáculo algum; depois da reforma dos costumes succedeu o contrario: a morféa desap- pareceu, passando os habitantes a gozar a este res- peito de uma tranquillidade realmente invejável. Conforme se vê do exposto, o clima temperado tem sido e continua a ser um espectador mudo de todas estas operações pathologicas e sociaes; não faz nem desfaz ; aceita e recolhe os factos taes como se dão; é sempre o mesmo: si os habitantes accommodarem-se á sua índole, bem irá tudo; si não, não. « On ne triomphe de Ia nature, disse Bacon, qu'en lui obéissant (Novum organum).» Assim é: nesta máxima de Bacon se concretam e se fundem todos os preceitos da hygiene. Temos no Brazil a morféa, e temol-a não porque o nosso clima a gere, mas porque a geramos nós mesmos em virtude dos nossos desvios hygienicos, isto é — da infracção das leis naturaes. Os selvagens brazileiros, ora sóbrios ora glutões, in- termittentemente, conforme a abundância de viveres e a occasião; que comiam de tudo, peixes, porco do mato (menos abundante de gordura), aves, fructos, variando assim sua alimentação; e que, si fruiam longas horas de descanço, atiravam-se de momento aos actos da maior actividade corporea; esses sel- vagens nunca tiveram a morféa, porque as condições hygienicas em que viviam não permittiam que seme- lhante mal lhes penetrasse no corpo; ou essas con- dições hygienicas —para fallar em linguagem mais scientifica — não permittiam que a actividade func- cional de seus organismos fosse desviada das boas normas e degenerasse em actividade morfetica. Habitavam esses selvagens, é certo, em paiz quente; mas o que importa ? Logo que o clima, qualquer que seja, não gera a morféa, e que os nossos indigenas — 291 — mantinham em termos physiologicos os seus recursos hygienicos, nenhum motivo havia para temer o desen- volvimento de semelhante enfermidade. Com effeito, o que a observação demonstra é que entre nós a morféa não apparece nas localidades onde a alimentação é variada ou não é muito sobrecar- regada de princípios hydrocarbonados. Pouco importa, com referencia á moléstia de que occupo-me, que os alimentos sejam insufficientes. Não é nisto que está o perigo ou o damno: effectivãmente a morféa habita os logares do litoral onde a alimen- tação é monótona, sem variedade alguma, e quasi exclusivamente composta de peixe; ou então nas loca- lidades, como em uma parte de Minas Geraes, e em toda a provincia de S. Paulo, onde se usa de um re- gimen alimentar que seria excessivo mesmo na França ou na Inglaterra, e que quadraria bem aos ha- bitantes da Rússia. Como actuam estes regimens viciosos, como desvir- tuam as funcções orgânicas, é o que não me cabe es- tudar aqui. Nos simples apontamentos esparsos nessas paginas, e que talvez não sejam de todo inúteis a quem houver de proseguir no estudo da hygiene da morféa no Brazil, não tenho que envolver-me em questões de pathogenia e outras, as quaes somente caberão em tra- balhos propriamente clínicos. A hygiene, e éesta uma de suas altíssimas funcções, estuda as causas das mo- léstias e propõe e aconselha os meios de removel-as; a pathologia, porém, indaga e profunda o modo como destas causas se originam as moléstias, e indica os meios de subjugar os males existentes. Terminando esta parte do meu estudo, limitar-me-hei a accrescentar que, si não reconheço o clima como causa da morféa, nem as condições telluricas, nem a humidade, nem o contagio, nem a syphilis, diversa- - 292 - mente penso em relação a certos regimens alimentares, os quaes, no meu entender, são a única causa do «desenvolvimento espontâneo » desta enfermidade no meu paiz. Herança.—Pouco direi a respeito desta causa, que é a ultima de que tenho a tratar. Conheço, ê verdade, factos que me não deixam a menor duvida quanto á transmissão hereditária da lepra. Dizem respeito a filhos de morfeticos que em pequenos foram retirados da companhia de seus pais, que residiram onde não havia morfetico algum, e que não obstante vieram a soffrer da mesma moléstia. E' tal, porém, a concordância das opiniões dos médicos estrangeiros e dos nacionaes sobre este ponto, que julgo ocioso insistir nelle. O próprio povo, aliás propenso a admittir o contagio da moléstia, reconhece que é ella transmissível de pais a filhos, tão positivos e concludentes são entre nós os factos dessa trans- missão. A' vista do expendido dou por findo o meu estudo sobre as causas da morípa no Brazil. TI CONSELHOS HYGIENICOS Decorrem naturalmente das causas, que na minha opinião podem gerar a morféa, os conselhos hy- gienicos que me cabe apresentar. Sendo essas causas — certos regimens alimentares e a transmissão hereditária—, indicarei os meios de mo- dificar aquelles regimens de sorte que, em vez de nocivos á saúde, se tornem úteis ao homem ; e pro- porei as medidas que cumpre tomar para impedir a propagação da morféa hereditária, e que no meu con- ceito são as mais conformes aos preceitos da hygiene, aos deveres sociaes e aos sentimentos humanitários. Quanto aos regimens alimentares admitti um como causa da morféa no norte, e outro no sul do Império. Occupar-me-hei delles, como devo, separadamente. Ninguém que tenha noções de hygiene alimentar e conheça o que vai pelo norte, deixará por certo de lamentar os vícios hygienicos, a má qualidade de algumas substancias e a insufficiencia de outras, que por alli são utilisadas como alimentos, resultando de tão precária situação muitos damnos individuaes e grandes males á sociedade. — 294 - A carne fresca é ordinariamente má na capital da Bahia, no Recife, e, segundo sou informado, em geral péssima no Maranhão e no Pará. Em um interessantíssimo trabalho, que por ahi corre impresso 0), disse o seu autor: «São da maior im- portância as prescripções contidas nos regulamentos dados pelos alvarás de 22 de Janeiro de 1810 para os commissarios delegados de physico-mór e para o pro- vedor-mór da saúde da corte e do Estado do Brazil. Nem podemos deixar de lastimar que algumas dellas tenham inteiramente desapparecido da nossa legis- lação sanitária, occasionando prejuízos á saúde publica, que não se observavam outríora.» Destas prescripções uma das mais importantes, a meu ver, eram as pastagens de gado para consumo publico. E' concebida nestes termos : « E porquanto a falta de pastagens, que soffrem os gados que são conduzidos para esta capital, os atormenta de modo que, quando são cortados nos açougues, estão incapazes de servir de bom alimento ; Hei por bem que ao provedor-mór fique competindo o conhecimento e jurisdicção neces- sária para designar pastagens nos sitios proporcionados dos caminhos para onde passam as boiadas, nos quaes hajam de descansar os gados, até serem conduzidos aos matadouros da cidade.» Prescripção salutarissima é essa, e que cahiu em completo desuso, em criminoso abandono, depois de nossa independência. Em todo o norte do Brazil é incrível o que succede ás rezes destinadas ao sustento publico : ora sem des- canço algum após longa viagem, ora depois de perma- (t) Organização da hygiene administrativa, pelo Sr. Dr. L, R. Vieira Souto. — 295 - necerem dias sem alimento, são abatidas e distri- buídas pela população. Quando estive na Bahia ouvi sempre reclamações a este respeito. Entre outras cousas diziam que as rezes recolhidas ao matadouro, onde ás vezes eram conser- vadas por alguns dias ao relento, sem alimento e sem gotta d'agua, atiravam-se, roidas de fome e devoradas de sede, aos próprios resíduos seccos e á urina ! Pessoa fidedigna informa-me que no Maranhão o gado transportado á capital passa por verdadeiras torturas. Coincidência notável ! E' exactamente nas capitães das quatro provincias, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará, cujos habitantes alimentam-se de taes carnes, que o beriberi mais se tem desenvolvido. Acaso os alimentos de má qualidade ou insufficientes estarão contribuindo para o incremento dessa moléstia naquella zona do Império ? Fornecerá um sustento em condições requeridas a carne de rez abatida immediatamente ou pouco depois de longa jornada, durante a qual teve o animal de con- sumir uma parte, que á falta de pastagens era impos- sível reparar, dos seus princípios fibrinosos e salinos ? Conterá o sangue beriberico a quantidade normal de saes de soda e de saes de potassa ? Eis uma analyse que merece ser praticada, e, quem sabe? talvez com melhores resultados clínicos do que os colhidos com as pesquizas sobre o parasita do beri- beri. Não careço lembrar as experiências de Kemmerick, assaz conhecidas, por meio das quaes este observador tornou saliente o papel que os saes de potassa e de soda representam no movimento nutritivo. Forster, depois de descrever as profundas e graves alterações que o organismo apresenta, quando pri- — 296 - vado desses saes, observa: « E' importante notar que são os órgãos nervosos centraes que mais cedo e mais accentuadamente se resentem da suppressão dos prin- cípios salinos na alimentação. » (*) A experiência mostra, com effeito, que a fraqueza orgânica, o simples desequilíbrio das funcções nutri- tivas, como succede ás senhoras que entram em estado puerperal, são bastantes para precipitar a explosão do beriberi (2). Não pareça temeridade minha externar semelhante suspeita quanto á influencia que a alimentação dos nortistas está exercendo para a producção do beriberi. Práticos mui clistinctos, que têm-se devotado a seme- lhante estudo, attribuem á insufficiencia do regimen alimentar um papel importante no desenvolvimento dessa enfermidade, que vae assumindo entre nós pro- porções assustadoras. « Não é na etiologia banal (o autor allude a influen- cias meteorológicas, á accumulação de pessoas, ao ar confinado, á falta de exercicios corporaes, etc.) que se deve procurar a explicação do beriberi. Para uma moléstia tão especial é mister causa também especial, e por isso estamos dispostos, como o Dr. Franquet, a procural-a na alimentação própria dos índios. » (s) O Dr. Léon Collin classificou o beriberi entre as mo- léstias alimentares. A respeito da etiologia desta en- fermidade transcreverei as suas próprias palavras (*): « A opinião hoje dominante, sobretudo depois dos tra- iu Citado nos Nouveaux Eléments de Matière MèdkaU et de Thèrapeuthue—vor Nothnagcl o Rosbach. * r («) Aos quo observarem quo o onfraquocimcnto do organismo crêa uma immi- noncia mórbida para as onformidados infocciosas, o quo aliás não ignoro rospon- derei que também as erêa para as moléstias alementares. (3) Dr. Juleso Rochar, artigo « Boriberi > do Nouveau dictionaire. (4) Maladies Epidémiques, pag. 735. - 297 - balhos de Vinson, de Le Roi de Méricourt, de J. Rochard, é a da etiologia alimentar___ Quanto á ori- gem parasitaria do beriberi, acreditamos que as des- cobertas modernas sobre os hematozoarios devem attrahir as pesquizas nesta direcção, si bem que o papel etiologico destes parasitas nos pareça, no caso vertente, duvidoso. » Uma das maiores autoridades, o Dr. Le Roi de Méri- court, pronuncia-se a respeito nestes termos : «... no meio das opiniões numerosas e muitas vezes contradi- ctorias emittidas sobre este assumpto é impossível desconhecer o « papel capital» representado pela ali- mentação na producção desta moléstia. Eis porque nos esforçamos a principio em estabelecer por meio de fa- ctos que na grande maioria dos casos se tem podido demonstrar grande alteração no regimen alimentar dos beribericos. » (*) Em seguida o autor relata factos justificativos da sua opinião. Continuando, accrescenta o Dr. Le Roi de Méricourt: « Nossos collegas são unanimes em reconhecer que se tem podido obstar a moléstia apressando o desembar- que dos passageiros e aconselhando-lhes alimentação conveniente. Não só não se reproduzem os casos, porém até acontece que a maioria daquelles que tenham sido, antes do desembarque, atacados do beriberi entram facilmente em plena convalescença, quando seu estado não é demasiadamente grave. » Ainda : « A memória de Meyer contém grande nu- mero de factos em apoio da influencia de uma alimen- tação defeituosa sobre o desenvolvimento do beriberi nas colônias hollandezas. » (') Dictionaire encyclopédique, artigo Beriberi, *. 38 - 298 - E mais : « Van Kappen observa que os obreiros chinezes das minas de Bankaque, que se nutriam bem, permaneciam ao abrigo do beriberi, que atacava, pelo contrario, cruelmente os que se achavam depaupe- rados. » Neste sentido o Dr. Le Roi de Méricourt apresenta mais argumentos : « Aos melhoramentos introduzidos, continua o mesmo autor, no regimen das tripulações européas e indígenas dos navios que estacionam no estreito de Banka seguiu-se uma diminuição sensível, senão um desapparecimento completo, dos casos de beriberi que anteriormente as disimavam. » Eu poderia mencionar outras opiniões no mesmo sentido, e até ir mesmo além, recorrendo não só aos artigos publicados pelo Dr. Pacifico Pereira, na Gazeta Medica da Bahia, onde encontro argumentos que robustecem aquella minha suspeita, mas ainda a opinião a mim communicada pelo Dr. Martins Costa, relativamente á espécie; como, porém, toco muito de passagem no assumpto, limito-me a apresentar essas poucas autoridades em que me apoio para de- monstrar que não é sem fundamento que provoco a attenção de quem competir para a influencia que a má alimentação dos nortistas pôde exercer ou está com effeito exercendo no desenvolvimento do beriberi. O que é certo é que esta moléstia traz em constante sobresalto toda a população do norte, onde se sabe que quem fôr affectado terá, ou de abandonar tudo e fugir, ou de pagar com a vida a permanência no logar. E' cruel a alternativa ! Si um filho apresenta sym- ptomas do beriberi e o pai não pôde de momento deixar a casa, a pobre mãi parte sem demora, le- vando comsigo o filho enfermo. Quantos e quão variados prejuizos está causando semelhante enfermidade! - 299 - Volto ao meu assumpto. No norte é excessivamente restricto o emprego da carne de carneiro no regimen alimentar. E' á carne prescripta aos convalescentes. Uma ou outra vez fi- gura na alimentação dos que gozam saúde. Não sei porque tanto no norte como no sul do Impé- rio a carne de carneiro ha de custar o duplo e mais da de boi. Como alimento, si é superior á carne de porco, é inferior á de boi, e por isso não merece nem pôde valer mais do que esta. Para explicar a carestia daquella carne só descubro uma explicação, a do abandono entre nós da creação do carneiro, que aliás reproduz-se com a maior faci- lidade. Seria, entretanto, de grande utilidade aos habitantes do norte explorar activamente esse elemento da in- dustria pastoril, e isso não só pelo lado econômico, como também pelo hygienico. Entre as substancias azotadas póde-se afrlrmar que a carne secca é a mais usada na alimentação dos nor- tistas. Sendo freqüente á mesa dos ricos, constitue também a base do regimen alimentar dos operários, dos pobres, etc. De boa ou má qualidade, bem ou mal preparada, magra ou gorda, de bom ou máo aspecto, o certo é que no norte não se passa, não se vive sem carne secca. Elevado o seu preço, começa para certas classes um periodo de diffículdades, de privações e até de misérias. Em relação á de boi (fresca) a carne secca apre- senta dous inconvenientes hygienicos: Io, é de maisdifficil digestão, por se tornarem duras as fibras da carne, 2o, é menos alimenticia por ter a carne perdido durante a preparação uma parte de seus — 300 - princípios salinos e dos elementos ' azotados solúveis. Deste modo, por melhor preparada que seja, será sempre inferior á boa carne fresca. A carne de vento, embora igualmente pesada aos es- tômagos, é mais nutritiva, porque no seu preparo apenas se perde a parte aquosa, ficando os elementos nutritivos ; e por isso o Dr. Couty tem razão quando a propõe em uma de suas Memórias para substituir a carne commummente chamada secca. A' margem do Baixo S. Francisco preparam a carne de conserva, a que já alludi. E' um bom preparado, muito saboroso, e que considero nutritivo ; mas é de pouca duração e por isso de applicação mui li- mitada . O que, pois, continuará a constituir a base do regi- men alimentar no norte, é a carne secca do Rio Grande do Sul ou a de Montevidéu. E' sabida a tentativa da introducção nos mercados europeus da carne secca por parte de uma commissão que graciosamente foi á Europa para isso, e para tornar conhecido o nosso matte; e agora é sabida a razão principal do mallogro da tentativa, depois que o Dr. Couty e os engenheiros Escragnolle TaunayeSilva Telles publicaram o relatório em que vêm consignadas as diffículdades com que tiveram de lutar, e mencio- nados os esforços e as diligencias que empregaram no intuito de obter melhor resultado. Essa razão vem mencionada á pag. 36 do relatório nos seguintes termos : « Cheguemos, pois, aos resul- tados dos ensaios ou melhor da apresentação do xar- que á commissão. « O producto foi rejeitado in limine e o Intendente Ge- ral Frèant e os outros membros se mostraram concor- des em affirmar que nunca seria aceito no exercito francez. Proferida por taes autoridades, a sentença é — 301 - sem appello e convém, para ser-se bem succedido, buscar conserva differente e melhor do que a carne secca. » Ora, ahi está bem explicado o que é e o que vale o principal alimento dos nortistas ! E' um « producto rejeitado » sem mais exame, sem discussão, in limine. Cone em, diz a commissão, para ser-se bem succe- dido, buscar conserva differente e melhor do que a carne secca. São cie tal importância e utilidade econômica e hy- gienica os estudos do Dr. Couty sobre o preparo da carne secca, exarados em sua primeira memória ; são tão interessantes as reflexões expendidas pelos mem- bros daquella commissão na memória ha pouco publi- cada, que, julgo eu, se taes estudos e reflexões podes- sem calar nas regiões do poder e desafiar as providen- cias suggeridas, muito lucraria com isto, não somente . o norte, mas o paiz inteiro. Com effeito se cumpre « buscar melhor conserva do que a carne secca » afim de que o producto brazileiro venha a ser aceito nos mercados europeus, pela mesma razão não devem os brazileiros continuar a se nutrir de um alimento que, preparado como é, fatiga os órgãos digestivos e não dá o producto nutritivo de que todos carecemos. Lá na Europa foi rejeitada a carne secca, essa mesma que faz a nossa salvação, e com isto nada ficaram os europeus soffrendo, porquanto repelliram um prepa- rado alimentar que Ibes seria de pouco proveito, senão prejudicial. A nosso respeito, cumpre attender, não suecede o mesmo: boa ou má, seja como for, sueceda o que suc- ceder, continua essa carne a ser o sustento da immensa maioria dos brazileiros, que, não podendo prescindir - 302 — delia e muito menos rejeital-a, carecem, entretanto, usar de alimentos sãos e completos, porque também carecem de forças e de saúde. Para tornar menos incompleto o quadro, infeliz- mente pouco animador, das substancias empregadas no regimen alimentar dos nortistas, passo a occupar- me do principal feculento dos mesmos — a farinha de mandioca. Si causa serio reparo a carne fresca de boi, si a carne secca é o que se sabe, o que direi eu do principal fecu- lento do regimen alimentar dos nortistas ? O que vale a farinha de mandioca ? Esta farinha é assim preparada: ralam a raiz da mandioca, espremem fortemente a massa, fazem sahir a maior parte da fecula, levam a massa ao forno quente, e torram-n'a, constituindo semelhante bagaço com algum resto da fecula a « farinha de man- dioca». Assim esta farinha, ao contrario do que succede com as demais, não encerra toda a fecula, que é aliás o principio alimentar da raiz da mandioca ! Com um zelo digno de melhor applicação guardamos esse documento do estado selvagem dos primeiros ha- bitantes do Brazil! A farinha de mandioca é, com effeito, um legado dos indigenas. Cumpre notar que elles tinham um processo para manter na farinha toda a fecula daquella raiz; ao passo que nós, no estado civilizado, usamos geralmen- te de um processo, o peior, isto é, o que elimina da fa- rinha a maior parte do elemento nutriente ! Convencido de que a questão do regimen alimentar é uma questão vital, e que de sua solução favorável de- pende em grande parte a felicidade de um povo; con- vencido da verdade do seguinte conceito de Moleschott: - 303 - « Para que o trabalho prospere, é preciso que primeiro prospere o trabalhador; uma nutrição insufficiente lhe tira as forças e o torna preguiçoso » ; convencido, final- mente, de que o regimen alimentar é uma das mais poderosas causas do atrazo que vai pelo norte do Im- pério, julgo conveniente dizer mais alguma cousaa respeito da farinha de mandioca. Antes de tudo é preciso não esquecer que o povo de- posita tanta confiança no poder alimenticio dessa fa- rinha, que chega a dizer: « é a farinha que cria. » No norte as mais, convencidas de que a farinha de mandio- ca é substancia succulenta, costumam alimentar quasi exclusivamente com ella os seus filhos. E quantas não os alimentam só com a farinha ! Fazem ou mandam fazer uma porção de escaldado de farinha (farinha, agua fervente e sal), estendem-n'o, para esfriar, em um prato, occultam no fundo deste um pedacinho de carne ou de peixe, uma isca com que so- licitam a criança a bater o prato de escaldado, e assim compõem uma refeição para seu filho. Interessante é ver a rapidez com que a criança, conseguindo por vezes illudir a vigilância da mãi, apanha o pedacinho da carne e o devora. Ali! quantas exprobrações por semelhante falta! Quantas vezes as mais não se queixam de que seu filho está ficando « vicioso », porque só quer comer carne e abandona o « emplastro » de farinha ! Com effeito, que grande esforço, que grande resis- tência, que proveitoso trabalho, se pôde esperar de homens que na idade de desenvolvimento do seu orga- nismo se nutriram tão desvantajosamente? Que quasi não comeram carne quando careceram crear mús- culos ? Si os tecidos do organismo, como diz Marvaud, são essencialmente constituidos por princípios azo- — 304 - tados, como se irão constituindo os tecidos desses meninos que quasi nenhuma substancia azotada re- cebem ? Si tudo o que vive, como diz Claude Bernard, é essen- cialmente caracterizado pela nutrição, quaes serão os caracteres dessas pobres crianças? Não estou divagando : pelo contrario diz-me a con- sciência que estou ferindo questões de grande alcance para o futuro de um paiz, como o Brazil, que carece de braços e de habitantes, mas que os não ha de ou deve ter válidos e robustos quando vierem do estrangeiro por empréstimo ou por encommenda, e que os poderá também ter iguaes na própria geração brazileira logo que todos, governo e particulares, se compenetrarem da necessidade de meditar e resolver sobre assumpto tão importante e vital, qual o do regimen alimentar, qual o da alimentação publica. Para que se forme juizo seguro sobre o valor da farinha geralmente usada entre nós, passo a apre- sentar um quadro onde, a par da composição de outros feculentos, se encontrará o da nossa man- dioca. Alimentos plásticos Alimentos res- piratórios 17,2 ................. 64,5 17,0 ................. 50,8 12,96 ................. 79,19 12,8 ................. 74,4 13,3 ................. 80,6 7,55 ................. 90,45 /Trigo (duro) [Avèa........ \Cevada..... (i\ l y ' jCenteio...... [Milho....... \Arroz....... (') Organizado de accôrdo com as analyses dos feculenlos, constantes do livro de hygiene do Dr. Molard, tom. Io, do pag. 687 a pag. 695. - 305 - Em 100 grammas: Mandioca suina.. 0,714................. 17,195 i Mata fome....... 0,660................. 26,010 iSaracura......... 0,630 — 0,322 o/0 de \ azoto........ 41,770 0) '.Morandy......... 0,594................ 16,347 JAypim.......... 0,570................ 33,700 [Branca ou doce... 0,560—0,309 % de I azoto....... 19,587 Assú............ 0,560................. 31,927 Da relação das espécies indicadas pelo Dr. Peckolt supprimi algumas, que são paupérrimas não só de principio azotado como cie hydrocarbonatos. Lançando-se os olhos sobre essas cifras, avaliar- sc-ha com effeito a grande inferioridade em que como alimento respiratório se acha a mandioca relativamente aos feculentos acima mencionados. Façamos ainda uma comparação, e seja esta com a batata; eis o resultado: Alimentos plásticos Alimentos respiratórios Batata (2)....... 1,4 19,3 Comparadas com a batata as nossas mandiocas, vè-se que nenhuma de suas espécies apresenta a quantidade de alimentos plásticos que a batata con- tém; e que, si algumas espécies encerram quanti- dade um pouco maior de hydrocarbonato do que a batata, outras ha que a contêm menor. Ha mesmo espécies de mandioca que não podem figurar legilimamente no quadro das substancias ('i Monographia. .Milho c mandioca, pags. 1G0 a U)i. (*) Motard, obr. cit. , pag. 609. m. 39 - 306 — alimentares, tão insignificantes são os seus elementos nutritivos. Para julgar si tenho ou não razão de assim pensar, basta percorrer o quadro publicado pelo Dr. Peckolt á pag. 162 do seu interessante trabalho, que ha pouco citei. Por conhecer quanto essa farinha é miserável de princípios azotados e quanto é pobre de princípios hy- drocarbonados, propoz Martins que não a usassem simples, mas associada ao trigo em fôrma de pão. « A fabricação do pão, diz Martius, feito com a fari- nha de mandioca, ou como a chamam vulgarmente farinha de páo, é de certo da maior importância, para um paiz, que cultiva pouco o trigo e o centeio, e que, por conseguinte, nesse ramo de industria depende da importação estrangeira.» (4) O pensamento de Martius é claro: si para obter melhor feculento do que a mandioca o paiz não dependesse do estrangeiro, elle não aconselharia certamente que se preparasse esse pão mixto, fabricado com as duas fa- rinhas, mas daria um conselho completo, de utilidade inteira, como o de se fabricar o pão com a farinha de trigo exclusivamente ; porém, attendendo que o trigo era pouco cultivado no paiz, que cumpria a todo custo melhorar neste ponto o regimen alimentar; e que se deveria aproveitar o feculento de que os habitantes já estavam de posse e com o qual achavam-se familiari- sados, o sábio naturalista, previdente, aconselhou aquella mistura das duas farinhas. « Falta á farinha de páo, diz elle, principalmente aquella parte das outras farinhas, dada nos principios azotados e no ácido phosphorico, e tão necessária não só para tornar o pão nutritivo como para fazer levedar (O Memória sobro a fundação o o coslcio do unia fazonda, polo Barão do Paty do Alforos. A torceira edição foi publicada om 1878. — 307 — a massa. Ha porém outra observação muito mais importante; é preciso fazer entrar na composição da massa os princípios azotados, que faltam inteiramente á farinha de mandioca ou nella se encontram em pro- porçõ e s m i n i m a s.» Em outro periodo repetiu o sábio naturalista: « Existem na farinha de mandioca os princípios azo- tados, mas em proporções mui pequenas. » Insistindo na sua ideia, nessa composição de pão preparado com as duas farinhas, diz mais Von Mar- tius: « Não posso deixar de aconselhar, instantemente, que se tentem taes ensaios, e por uma razão poderosa: que a força nutritiva do alimento mais geral e mais or- dinário carece de ser augmentada no mesmo gráo de augmento da população. E' preciso proporcionar aos homens brancos e aos homens de côr uma alimen- tação mais enérgica á medida que o numero de pretos diminue.» Si não são aceitáveis actualmente todas as razões apresentadas pelo Dr. Von Martins, é comtudo digna de maior attenção a principal deltas, a de tornar a farinha de mandioca mais nutriente, o que somente se conseguiria reunindo-a em partes iguaes á farinha de trigo. Adherindo a essa ideia, o Sr. Dr. M. A. de Macedo dirigiu de Stuttgart uma carta (*) ao Sr. Henrique Laemmert, na qual dizia: «Nas Antilhas fabricam o pão da «fecula» da mandioca misturada com a farinha de trigo. Sobre este pão, conhecido pelo nome indí- gena de conaque, não posso dar noticia alguma por me faltarem os dados. Entretanto direi que, ao passo que por outros paizes começam a fazer tentativa sobre (') A carta tom a data de 1868, o vem publicada no livro « Tundação de uma fazenda. > — 308 - a panificação da mandioca, nós brazileiros, que tantos esforços fazemos e tão avultada somma de dinheiro vemos empregar-se com o louvável fim de promo- ver-se uma torrente espontânea de immigrantes estran- geiros, não passamos de nossa farinha de mandioca, tão repugnante aos olhos e ao sabor do filho da Europa, criado com o pão e por elle sustentado desde sua infância. » A esse « tão repugnante aos olhos e ao sabor do filho da Europa » o Dr. Macedo devera ter accrescentado « e tão carecedora de princípios nutritivos ». A repu- gnância por si só seria o menos; poderiam superal-a a necessidade e o habito; o que aliás não succederia com a falta de princípios nutrientes, porque estes são indispensáveis ao exercício das funcções orgânicas, são essenciaes á vida. Termina oDr. Macedo a sua carta com este pe- riodo : « Sendo, pois, de tão alto interesse o projecto do Dr. Martius, que tem por fim a fabricação do pão cie man- dioca, não duvido que o Brazil lhe dará o acolhimento tão justamente merecido, e que esta sabia e racional theoria seja posta em pratica com toda a cautela e formalidade da sciencia para que o resultado possa ser proveitoso a um grande Império, que já tanto deve ao talento de tão distinctos naturalistas, em honra do qual ninguém negará ao novo producto o nome symbolico de Pão Martio. » As opiniões que acabo de citar em apoio das minhas reflexões quanto á pobreza do principal fecu- lento usado no norte do Império, dispensar-me-hiam, tão autorizadas são ellas, de insistir neste ponto; entretanto ordena-me a justiça que não prosiga sem render homenagem aos trabalhos de um estrangeiro amigo do Brazil, o Dr. Peckolt, o qual, entre varias - 309 — publicações úteis, consagrou ao milho e á mandioca um trabalho especial (*).» Neste opusculo, depois de algumas considerações, disse o autor: « Acho conveniente juntar ainda algumas expe- riências, a que o sábio chimico Payen procedeu; sendo consultado pelo ministro da marinha de França sobre a possibilidade de empregar a farinha de mandioca na fabricação do pão destinado aos condemnados das penitenciárias de Guyana, publicou as seguintes in- vestigações sobre a mandioca e seu valor alimentar.» Das observações de Payen, como das próprias do Dr. Peckolt, ai mi. do que foi por mim exposto, resulta que á farinha de mandioca faltam princípios azotados, e que por isso esse feculento só poderá constituir um alimento verdadeiramente util, sendo reunido a outro feculento melhor dotado de principios nutrientes. Demonstrado, pois, que a farinha de mandioca não reúne as qualidades de um feculento como o de que se carece na nutrição, cumpre indagar si ainda é hoje aceitável o recurso proposto por Martius. Nas condições actuaes do Brazil penso que não. Naquelle tempo seria muito util o conselho, porque, reconhecida a necessidade de figurar o trigo na alimen- tação dos brazileiros, ricos e pobres, era natural se des- envolvesse entre nós a cultura desta graminea de sorte que, tendo de augmentar a população, pudéssemos oceorrer com um producto nosso ao enorme consumo que haveria de trigo. Desde, porém, que a cultura, em vez de augmentar diminuiu, e somente agora vae merecendo alguma attenção, é claro que, si aceitássemos o conselho de (i) Já por mim citado. E' lamentável que o Dr. Peckolt haja suspendido a publieação de sous tão interessantes trabalhos sobro assumptos do Brazil. — 310 - Martius, ser-nos-hia necessário importar enormissima quantidade dessa farinha, cujo preço não seria acces- sivel a todas as classes sociaes. Com a farinha de trigo importada o Pão Martio cus- taria pouco menos, si custasse, que o preparado exclu- sivamente com ella, e entretanto ao preço não corres- ponderia o resultado nutritivo, metade inferior ao do pão de trigo. Sendo assim, julgo inaceitável, sem mesmo levar em linha de conta a extrema difficuldade, senão a inexequibilidade da empreza, o recurso proposto pelo sábio naturalista. Como então resolver o problema ? Partindo da necessidade de se obter um feculento nas condições de aproveitar á alimentação publica, de tornar satisfactorio o regimen alimentar ou de impedir que continue deficiente a alimentação dos nortistas, dous alvitres açodem ao espirito: Io, encontrar um pro- cesso de preparar a farinha de mandioca por meio do qual se conseguisse não perder, mas aproveitar todo o seu principio alimentar — a fecula; 2o, substituir a farinha de mandioca por outra que melhor con- viesse. Examinemos o Io alvitre: desde que o processo até aqui empregado prejudica o valor nutriente da farinha, é natural se procure um outro melhor. Este alvitre não resolve, infelizmente, a questão. Ad- mittido que pelo mais aperfeiçoado processo venha a farinha de mandioca a conter toda a fecula da raiz, ainda assim não satisfará as condições de um feculento bom. A razão é obvia: é que esta raiz, nulla, póde-se dizer, em princípios azotados, é pobre de princípios hydrocarbonados. Por mais, pois, que aproveitem-na, não conseguirão mais cio que ella contém, e o que ella, contém não satisfaz, — 311 — Si nós os brazileiros não carecemos de um regimen alimentar como si foramos habitantes de paiz tempe- rado, e menos ainda de paiz frio, temos comtudo necessidade de uma alimentação regular, sufficiente e completa sob o ponto de vista do nosso clima. A anemia que os nossos tecidos externam, a inércia de que somos accusados, não procedem no meu pensar do clima, mas, sem o sabermos, do nosso regimen alimentar, assumpto de que não fazemos grande ca- bedal, e a que pelo contrario pouca importância li- gamos. Não basta, com effeito, tomar alimentos, o essencial é tomal-os conforme reclamam as necessidades do nosso organismo; tomal-os de modo que reparem as perdas effectuadas nos nossos órgãos pelo incessante exercicio de suas funcções. Passo a examinar o 2o alvitre, o da substituição da farinha de mandioca por outra que melhor convenha. Antes, porém, do exame restabeleço a questão: na alimentação publica não pócle deixar de figurar um feculento bem dotado de princípios alimentares, sob pena de soffrer-se as conseqüências de uma alimentação insufficiente, conseqüências graves a vários respeitos. Ora, o feculento que temos, isto é, a farinha de man- dioca, por mais que a apurem c a aperfeiçoem, nunca satisfará aquelle desideratum, e neste caso qual a conclusão ? Substituir a farinha de mandioca, rejeital-a, adoptar outra farinha, outro feculento no regimen alimentar dos brazileiros. Substituir a farinha de mandioca ! ! exclamará uma tradição de perto de três séculos. Sem duvida alguma, substituir : é esta a lei do pro- gresso, que manda adoptar o que pôde servir, e re- jeitar o que não serve mais. - 312 - Quando se trata de combater um erro, o que menos importa é a sua idade: isso é secundário, é nada. 0 que mais admira, o que faz pasmar, não é certa- mente a minha « audácia » de atacar tão de frente um preconceito de três séculos de duração ; e sim que no estado actual da nossa civilisação façamos vista grossa ás mais fecundas leis econômicas e hygienicas, man- tendo ainda no nosso regimen alimentar o feculento que os selvagens descobriram para seu uso. Isto, sim, faz pasmar. « 0 que é certo, objectar-me-hão, é que os selvagens, que não tinham outro feculento (tinham o milho), eram robustos. » De accôrdo, e contra isto não articulo uma só pa- lavra; o que simplesmente respondo é que, si preten- dêssemos voltar ao estado selvagem, eu não ousaria propor semelhante substituição; nesta hypothese, aliás impossivel, a farinha de mandioca seria excellente feculento. Porém, no estado da nossa civilisação, attentas as legitimas aspirações cio nosso paiz, grande em tudo, e diante das leis physiologicas e hygienicas, a que se prendem leis econômicas e sociaes ; em outros termos, — por amor do futuro deste paiz, cumpre operar uma revolução nos nossos costumes hygienicos, revolução de paz, de progresso e de felicidade, a única que a hygiene sabe agitar, e com a qual tem realizado as mais importantes conquistas e obtido as mais esplen- didas annexações. Sim, é preciso substituir a farinha de mandioca. Mas, substituir por qual outro feculento ? Pelo milho, pelo arroz, pelo trigo ? Arredado, como estou, de meu principal objecto, não posso demorar-me nesta indagação: melhor é firmar o bom principio. - 313 - O melhor, o mais aceitável, o preferível dos ali- mentos feculentos não é o que contém na sua textura maior quantidade de princípios hydrocarbonados. Si assim não fosse, isto é, si o valor de um feculento estivesse na proporção desses princípios, seriamos obrigados a reconhecer que o milho e o arroz eram os melhores feculentos, contra o que protesta a historia alimentar de grande numero de povos. Outro absurdo seria este: que o trigo, tendo menos valor do que qualquer desses cereaes, valeria ainda menos que a cevada e o centeio ! Entretanto, assim não é, e nem careço demorar-me em demonstral-o. Desta tarefa encarregou-se a his- toria cia humanidade na parte concernente aos effeitos hygienicos do trigo, — dessa graminea que apresenta a mais feliz combinação de principios azotados e hydro- carbonados, de alimentos plásticos e respiratórios, sendo também a mais adequada á composição dos te- cidos humanos. Motard, estudando os cereaes, que, como elle o diz, são as substancias destinadas á « principal alimentação do homem », os compara, em vista da analogia de sua composição, ao leite, chegando a denominal-os « um leite solido ». Ha sem duvida muita propriedade nessa loculaçâo de Motard ; não obstante confesso que não a appli- caria aos cereaes, mas a reservaria, obedecendo ao rigor da analogia, para o trigo que — este sim — é um leite gerado e solidificado no próprio seio da na- tureza . E' precisamente a composição do trigo que o torna o cereal por excellencia, o cereal adequado ao organismo humano, qualquer que seja a idade, o sexo, a condição, a nacionalidade. Debaixo do mais rigoroso clima frio, ou sob um clima abrazador, onde quer que se careça ii. 40 — 314 — de um alimento innocente e completo, o trigo será bem acolhido com a sua funcção providencial. Pela quantidade, que encerra, de alimento plástico torna-se o mais poderoso auxiliar das substancias albu- minosas, e pela de alimento respiratório suppre vanta- josamente á necessidade do calor, do movimento, cio trabalho. No trigo não ha a temer a falta de um ele- mento nutritivo, nem os inconvenientes da exagerada predominância de um principio alimentar sobre outro. Debaixo de um volume determinado é de todos os cereaes o que encerra maior somma de substancia alibile; e como o seu tecido se dissolve facilmente nos suecos do estômago, é o trigo de facil digestão. Ora, pergunto eu: á vista do exposto, que feculento pôde melhor convir do que este, ou convir tanto como elle, á nutrição dos brazileiros ? Boa somma de principio azotado, o que constitue um poderoso auxiliar das substancias fibrinosas; conve- niente quantidade de principio hydrocarbonado, o que o torna perfeitamente adequado á Índole do nosso clima; nutriente sob pequeno volume, o que se compadece com a actividade digestiva sob a influencia do clima em que vivemos; e finalmente de facil digestão, eis o que é o trigo, e quaes serão as inapreciaveis vantagens a colher — si o introduzirmos no nosso regimen ali- mentar. Póde-se comparar com este cereal o feculento selva- gem que ha perto de três séculos mantemos religiosa- mente na nossa alimentação ? Não, decididamente não: eu pelo menos poupo-me ao desagrado de comparar, termo por termo, um ao outro. Entretanto, quão differentes os resultados ! Obter colheitas abundantes, fornecer o trigo por preço commodo e accessivel a todos os brazileiros, a - 315 - todos que trabalham , a todos que necessitam, aos homens, ás mais de famílias, ás crianças, seria cie alcance incalculável. Iniciar, promover, animar, conseguir este resultado — eis uma serie de actos do maior serviço á causa publica, do mais acrisolado patriotismo. E para isso o que nos falta? Terras apropriadas, clima, comprehensão das nossas mais vitaes neces- sidades ? Sempre que uma ideia assenta sobre a solida base de uma utilidade reconhecida, essa ideia, seja como fòr, custe o que custar, medra, prospera, fructifica. No Brazil a cultura do trigo já teve maior impulso que actualmente. Duas das nossas provincias, o Rio Grande do Sul e Paraná, já exportaram trigo, o que aliás já não succede. Quando a cultura devera ser constante e muito maior, porque a procura e o consu- mo augmentavam de dia a dia, pelo contrario estancou e retrocedeu. Os conselheiros Thomaz Coelho, Sinimbú e Buarque de Macedo, quando ministros, promoveram, que eu saiba, a distribuição de sementes. Não ha muito veiu á luz um aviso f1) do actual ministro da agricultura o conselheiro Alves de Araújo, no qual, a propósito da cultura da quina calysaia, S. Ex. mostra desejos de fomentar também a da baunilha, do trigo e da vinha. Comquanto sejam meramente platônicos muitos dos desejos manifestados pelos nossos ministros, fora com- tudo injustiça não respeitar a intenção do conselheiro Alves de Araújo na expedição do aviso a que alludo. (!) Aviso do 15 do Feveroiro de 1882. (0 Sr. conselheiro Alves de Araújo já não é ministro, o a questão ficou no mesmo péO — 316 — E' forçoso, porém, confessar que as providencias tomadas em tal sentido resentem-se de frouxidão. 0 que é preciso, o que se torna indispensável, é um plano assentado, bem combinado, largo, que passe de admi- nistração em administração como um legado de patrio- tismo, e que se estenda por todos os ângulos do paiz. Esperemos. Apparecem uns indicios de movimento; um começo de reacção se vai notando. Em Santa Catharina procura-se ampliar a cultura do trigo. Uma das gazetas de Pernambuco (*) publicou a este respeito as seguintes reflexões : « E' de lastimar que, possuindo o Brazil terrenos apropriados para essa cultura, sejam para importação desse cereal remettidas para o estrangeiro sommas fabulosas (2), que espalha- das no paiz augmentariam sua riqueza. « Não é só no sul do Império; nesta provincia (Per- nambuco) também pôde ser tentada com vantagem a cultura do trigo, pois temos zonas apropriadas para ella. « E' uma nova cultura que a par do cafeeiro e do ca- caoeiro, deve ser animada, e é nesse sentido que fa- zemos um appello aos nossos agricultores. » E' bom accrescentar que não só ha terrenos na pro- vincia de Pernambuco que se prestam ao plantio do trigo, como é lá que a sua cultura promette em breve tempo tomar grande desenvolvimento. (i) A Democracia n. do 27 de Julho de^l881. (2) Pude colhor da Alfândega da corte os seguintes dados: KILOS YALOK OIÍITS. DE CONS. 187:í — 76 35.112.499 2.808:999^990 2S0:S:)9.s999 1870 — 77 31.990.042 2.799:203,^011 279:920^330 1877 — 18 36.213.010 2.897:0'i()s8'i0 289:704S08i 1878—79 37.856.424 3.028:513*920 302851.O92 1879 — 80 33.702.361 2.895:598^500 289:559^850 Os direitos do consumo ainda estão sujeitos a mais 50 % de imposto (!) — 317 - Com effeito, já uma das gazetas da corte (!) publicou esta grata noticia : « A commissão pernambucana, en. carregada de agenciar productos destinados á exposição braziiico-allemã de Porto Alegre, disse na noticia que deu a respeito dos objectos expostos, entre outras cousas, o seguinte: « começada ha pouco a cultura do trigo vai tomando incremento, produzindo o vegetal abundantemente e offerecendo duas colheitas por anno.» Ainda mais: o Jornal do Commercio (2), sob a rubrica Agricultura em Pernambuco, noticiando os resultados colhidos pela agencia agricola, creada pela sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco para ini- ciar e propagar novas culturas, e activar as actuaes, expressa que: «Em Triumpho, Taquaretinga, Bom- Jardim, Villa Bella, Flores, Quipapá e em outras localidades a cultura do trigo pôde dizer-se accli- mada.» Ultimamente publicou o Jornal do Commercio (12 de Agosto de 1882) o seguinte: « Do irigo tem sido espa- lhada grande cópia de sementes entradas do Pacifico e da Europa, tendo a agencia (agencia agricula de Per- nambuco) introduzido, por conta de vários lavradores, machinas apropriadas á preparação do gênero. « No município do Triumpho tem-se desenvolvido esta nova cultura, a qual offerece no sertão de Per- nambuco excellentes condições de .adaptação. » Que sejam coroados de feliz resultado os esforços da benemérita Associação de Pernambuco, taes devem ser os votos de todo o brazileiro verdadeiramente interes- sado pela prosperidade de seu paiz. (i) Jornal do Commercio n. de 31 do Outubro de 1881. (t) N. do V de .Março do 1882. - 318 - O Cruzeiro (i), no intuito de tornar conhecida a im- portância que já teve no Brazil a lavoura do trigo, in- forma o seguinte : « A provincia de S. Pedro do Sul exportou, em outro tempo, as seguintes quantidades de alqueires : 1816....................... 226,981 1817....................... 109,446 1818....................... 55,2:J7 1819....................... 122,218 1820....................... 99,640 1821............'........... 118,762 1822...................... 37,362 O mesmo jornal accrescenta : « A producção decahiu por falta de substituição das sementes, pela errada re- petição da cultura na terra e principalmente pelo alto preço do gado, que fez abandonar a lavoura pela criação. Entretanto, este ramo dá de 15 a 20 alqueires por um de planta e não é portanto, dos menos vantajosos em nosso solo.» Sobre a cultura do triyo Xerez ou de Hespanha no Rio Grande do Sul o Sr. Dr. Nicoláo Moreira teve a bondade de prestar os seguintes esclarecimentos: « Esta sorte de trigo foi introduzida no Rio Grande do Sul em 1859. Produz de 60 a 70 grãos por um de se- mente; e cada alqueire pesa 16 kilogrammas. A fa- rinha que fornece é excellente, a debulha facil, a palha forte, a haste resistente aos ventos; não o ataca a fer- rugem : requer terra regular e estrumada e semèa-se em Junho, sendo a colheita em Dezembro. Em 200 bra- ças de solo preparado colhe-se no Rio Grande do Sul 10 alqueires. Antes da independência o Rio Grande do Sul exportou para mais de 400,000 alqueires de trigo.» (i) N. do 24 de Sotombro do 1881. — 319 - No mesmo manuscripto (') ha uma referencia;') igual cultura no Paraná, onde «um alqueire de trigo, 36,27 litros, fornece 100 kilos de farinha alva e 20 da escura ; e segundo a opinião de estrangeiros entendidos na matéria o trigo paranaense, si não excede, iguala em peso especifico o trigo europeu. » Nesta ultima provincia a cultura do trigo tem pas- sado por suas vicissiíudes : já esteve florescente, já de- cahiu e agora como que tenta erguer-se. Houve tempo em que a cultura de trigo foi tal que dava para consumo e exportação ; o que a fez baquear foi a animação que no Paraná ganhou a industria do matte depois que Francia trancou o porto do Paraguay ao commercio, e portanto impediu a exportação do matte, a cujo uso estavrmi avesados os povos nossos •vizinhos (2). Com effeito, depois desse acto do dictador do Para- guay, as vistas dos Orientaes e dos Argentinos lança- ram-se para o Paraná, onde havia abundância de her- va-matte, que rivalisava em qualidade com a daquella republica. Em breve foi conhecido o processo seguido no Para- guay para o fabrico do matte, e tal foi o jogo das circum- stancias que o Paraná começou a exportar matte a sabor das exigências do commercio. Do espirito do povo apoderou-se então uma febre de ganho, diz o Sr. Lustosa de Andrade em um manus- cripto sobre a planta do matte no Paraná (3); e cada individuo tornou-se um fabricante, sendo taes as van- (i) Pertencente ao Sr. Dr. Niroláo Moroira. (2) Não ha muito o Globo publicou a este respeito um intorossante artigo, a pro- pósito da cultura do matto no Rio Grande do Sul. (3) E3to manuscripto também iioó foi rcmettido. pelo Dr. Cassiano A. Tavares Bastos. — 320 - tagens da nova industria, que um trabalhador podia, em mato pequeno, ganhar em 15 dias de 150s a 200s. Nestas condições, não havendo industria que concor- resse com a do fabrico do matte, porque nenhuma offerecia tão seductoras vantagens, o trigo foi posto de lado, e a sua cultura decahiu completamente. Além dessa razão para o abandono da cultura do trigo, dá-se uma outra, que vem a ser, continua o mesmo Sr. Lustosa, a grande importação da farinha de trigo, que os Estados-Unidos e outros paizes nos fornecem « para o nosso pão diário ». Informa ainda o mesmo Sr. Lustosa de Andrade que elle próprio e o Sr. general Beaurepaire Rohan obtiveram a passagem de uma lei, creando uma seara normal, na 2a sessão da assembléa provincial, em 1855, lei que nunca foi posta em execução, com prejuízo de tão importante medida. Apezar disto o Sr. Lustosa não desanimou, e por vezes tem envidado esforços para obter sementes do trigo. Deixando de parte outras, embora interessantes, considerações offerecidas por este Senhor no manuscri- pto a que me referi, e do qual extractei o que fica dito, termino esta rápida e incompleta noticia sobre a cul- tura do trigo no Brazil (*) com as seguintes palavras do Sr. Lustosa de Andrade: « Achamos conveniente, diz elle, ampliar com mais algumas palavras as reflexões feitas pelo Sr. Dr. Sal- vador de Mendonça em sua obra —Trabalhadores Asia- (') Em Minas Goracs a assembléa provincial votou ha mais ou menos 20 annos um prêmio de alguns contis do réis (não soi quantos), afim de ser conferido ao agricultor quo colhesse 100 alqueires do trigo. Passados'alguns tempos apresentou- se com direito ao prêmio um agricultor do Campo Mvstico, pertencente ao termo de Pouso Alegro, mas.... não lho quizoram pagar. Sou informado do que em Jlinas Geraes se tem ensaiado cm vários pontos o plantio do trigo o obtido oxeellenle resultado, porque lia terrenos que o produ- zem optimamento. Apezar disto essa cultura não tem alli vingado. — 321 — ticos — em relação ao trigo.— Todos os lavradores que empregaram emigrantes chinezes na cultura do trigo na Califórnia, affirmam que estes são nesse ser- viço preferíveis a quaesquer outros trabalhadores. « Graças a esses emigrantes os lavradores têm con- seguido transformara Califórnia, de um Estado consu- midor que era, em productor eexportador de cereaes. As colheitas de trigo são agora presumptivamente mais valiosas para o Estado do que as de ouro : a. média dos últimos annos tem orçado por vinte milhões de dollars.» Continue a propaganda, activa e sem tropeço; venha o governo por todos os meios a seu alcance em auxilio da iniciativa particular; não arrefeçam em esforço os • particulares, immediatamente interessados na feliz solução de tão importante assumpto; organizem-se novos « Clubs da Lavoura », como o de Pernambuco e o de Campinas; e estou certo que do esforço commum, da experiência demonstrada em favor do trigo contra a farinha de mandioca, resultará o predomínio daquelle sobre esta, e afinal a substituição de um pelo outro, o que trará o vigor dos organismos, o desenvolvimento das forças a actividade, o augmento do trabalho e com este todos os bens que lhe são peculiares. Si apezar de tudo e contra tudo a revolução não se fizer; si continuar a farinha de mandioca a constituir o principal feculento no regimen alimentar dos nor- tistas, poder-se-ha então, mutatis mutandis, exclamar com Moleschott: « infeliz Irlanda, nunca poderás triumphar. Tua alimentação pôde despertar o deses- pero impotente, porém não o enthusiasmo, e só o enthusiasmo seria capaz de repellir o gigante que sente circularem suas veias um sangue rico e a força. « Ah ! não agradeças ao Novo Mundo o dom fatal que eternisa o teu infortúnio. » M. 41 — 322 — « Em uma palavra, diz Motard, o verdadeiro ele- mento da população de um paiz é a sua fertilidade; semeai cereaes onde quer que os produza, e vereis como nascem homens. » Será isto verdade? Será possível, será crivei que da abundância dos cereaes, isto é, da riqueza da alimen- tação brote a vida humana ? Dependerá porventura da fertilidade de um paiz, como affirma o sábio hygienista, o augmento da sua população ? Sendo assim, em que paiz do mundo a população se desenvolveria melhor e mais rapidamente do que no Brazil ? Onde encontrar maior fertilidade de terrenos, clima mais econômico e productor ? Si isto é verdade, que desgosto não deve ter o Brazi- leiro vendo o seu paiz importar milho, arroz, feijões, favas, trigo, cevada, centeio, etc, quando pôde ser tamanha a producção de todos estes cereaes, que, dando para o augmento da sua população, conforme o pensamento de Motard, servisse ainda para abas- tecer outros paizes ! Decididamente, ou a sciencia é falsa nos seus prin- cípios mais elementares, ou nós os Brazileiros andamos um tanto afastados da larga estrada que conduz ao desenvolvimento e á prosperidade. Importamos tudo ! Não admira, pois, que na actua- liclade a maior preoccupação seja descobrir o melhor meio de importar quem venha trabalhar : realmente é a única cousa de que. carecemos... Si o resultado da abundância dos cereaes é aquelle, qual será o da sua insufficiencia ? Exemplo : qual terá sido o resultado da grande deficiência do feculento usado na alimentação dos brazileiros ? A hygiene tem estudado mui cuidadosamente a in- - 323 — fluencia do regimen insufficiente sobre a freqüência das enfermidades, sobre o desenvolvimento physico, sobre a estatura, sobre os casamentos, sobre os nas- cimentos e sobre os óbitos: em relação a cada uni destes assumptos, qual terá sido a influencia da nossa insufficiente alimentação? E' impossivel responder. Por vezes, desde a celebre estatistica de Messange baseada em uma investigação de 90 annos, tem-se or- ganizado estatísticas para acompanhar e demonstrar não só os effeitos da penúria e da fome, como ainda os da simples carestia dos cereaes, e sobretudo do trigo. A simples carestia, com effeito, do trigo, ou antes a insufficiencia da alimentação, delia resultante, tem sido bastante para influir sensivelmente sobre os nas- cimentos, diminuindo-os, e sobre a mortalidade, au- gmentando-a. Ora, si um accidente como esse, aliás de caracter temporário, actúa tão intensamente sobre a vida social e sobre a vida orgânica; o que não será quando per- manente, como no norte do Império, a insufficiencia da alimentação ? Para que se aprecie o grande alcance destes estudos hygienicos, e se possa julgar da sua necessidade nos paizes organizados, invocarei, apenas deixando de lado outros documentos, os trabalhos de Benoiston, trabalhos que causaram grande impressão na França porque deixaram patente que a mortalidade dos me- ninos pobres é mais de dupla da dos ricos ; o que signi- fica que por sua insufficiente alimentação as crianças pobres resistem muito menos do que as alimentadas convenientemente, por isso que a estas não faltavam bons alimentos. Sem preoccupar-me agora com outras questões, aliás de grande vulto, que se prendem á alimentação pu- — 324 — blica, observarei apenas que para nós os brazileiros seria de máximo alcance conhecer ao certo o numero dos nascimentos e óbitos, tanto no norte como no sul do Império. Referindo-me ao norte e ao sul, não é meu intuito comparar-lhes a influencia, o que seria secundário; e sim externar a necessidade de tornar extensiva seme- lhante indagação a todo o Império. Que assumptò, em verdade, mais humanitário do que esse, e que ao mesmo tempo mais aproveite ao desenvolvimento do Brazil ? Quem ha que, obedecendo á mais rudimentar e tri- vial regra de economia, deixe de indagar o que lucra e o que perde ? Como desenvolver, prosperar, accumular, sem pro- ceder ao mais leve exame, ao mais ligeiro calculo ? E, entretanto, não tem ainda o paiz uma lei de re- gistro civil dos nascimentos e óbitos ! Não só lhe falta a lei, como até, ao que parece, re- ceia-se tocar no assumptò! Feliz ou infelizmente pôde-se hoje invocar um do- cumento , por meio de cuja publicação conseguiu o autor demonstrar a excessiva mortalidade das crianças entre nós e a necessidade do registro civil: alludo ao opusculo publicado em 1878 pelo Sr. Barão de Lavradio, então presidente da junta de hygiene publica, e intitulado « Apontamentos sobre a mor- talidade da cidade do Rio de Janeiro, particularmente das crianças ». Primeiro que tudo assignalarei que o illustrado pra- tico não tomou para objecto de suas investigações localidades do interior de qualquer das provincias, onde a ignorância e a pobreza de mãos ciadas conspi- ram sempre contra a vida das crianças; escolheu, pelo contrario, as freguezias urbanas do município neutro, — 325 — isto é, da capital do Império, onde se presume tenha a civilisação dado melhores fructos. Depois de considerar a actual « uma geração enfra- quecida e enervada » (pag. 35J, o Sr. Barão de Lavradio diz á pag. 65 do seu interessante trabalho: « Difficil é sem duvida apresentar um trabalho desta ordem que satisfaça as exigências reclamadas á resolução de tão importante problema, por melhor boa vontade e mais esforços empregados em sua confecção, principalmente quando faltam as fontes mais seguras de suas bases, como succede entre nós. » Ora, o autor, que á pag. 7 emittiu o seguinte princi- pio: « uma das primeiras causas do crescimento lento de uma população, de seu estado estacionario, ou de seu decrescimento, é incontestavelmente a escassez de nascimentos e a maior proporção na mortalidade daquelles que devem constituil-a », accrescentou á pag. 69 a seguinte reflexão: « Estes resultados são pouco lisongeiros relativamente ao augmento da po- pulação nacional, porque, além de mostrar que os nas- cimentos pouco têm augmentado, como é facil de veri- ficar, patentêa que a mortalidade não tem decrescido, antes parece ter augmentado nas primeiras idades, assim como que o numero dos nascidos mortos se tem avantajado, o que prova que causas physiologicas per- manentes e que vão em crescimento influem na pro- ducção deste fatal acontecimento. » Das conclusões que o autor pôde tirar de suas in- vestigações, as três ultimas são : « 2.a Que a média da mortalidade das crianças foi de 37,49 por 100 nos quatro primeiros annos da vida, ou 374,9 por 1.000; « 3.a Que foi de 40,54 por 100 até 7 annos ou 405,4 por 1.000, excluídos em ambos os casos os nascidos mortos; — 326 — « 4.a Que, com a inclusão destes, orçou em 45,8 por 100, ou 458 por 1.000, proporções sem duvida exa- geradas e que devem forçosamente por demorar « em extremo » o augmento da população nacional. » Eis ahi o ultimo resultado a que chegou o autor, pessoa muito competente, porquanto, além de suas habilitações profissionaes geralmente reconhecidas, exercia então as funcções de chefe do serviço sanitário no paiz! E resultado, bom é repetir, obtido de suas investigações nas freguezias urbanas da capital do Império ! Si aqui é tão desanimadora semelhante verificação, o que não succederá em todo o Brazil ? Como, porém, meditar sobre a matéria, julgar das circumstancías, acudir ás faltas com providencias adequadas, si andamos ás cegas em tal assumptò? E' dever meu não occultar que nesse mesmo trabalho o Sr. Barão de Lavradio alludiu á falta do registro civil dos nascimentos e óbitos. Em minha opinião este assumptò devera constituir o objecto do ultimo capitulo daquelle opusculo, ba- seando-o o autor nos importantes dados que colheu, e sustentando-o, não direi com mais convicção, mas com mais desenvolvimento e sobretudo com muito mais energia. Sem esse elemento, sem semelhante lei, não com- prehendo realmente como possa a junta de hygiene publica elevar-se á altura da sua melindrosa missão ! Temos, é certo, uma lei, uma espécie de registro de nascimentos e óbitos, porém lei parcial, exclusi- vamente relativa aos ingênuos: questões — do deve e haver. Lei completa, a indispensável lei de registro civil dos nascimentos e óbitos, lei de alcance incalculável, essa não possuimos, e Deus o sabe quando a teremos, - 327 — E' cedo ainda. Somos um povo novo, e não po- demos por isso metter-nos em muitas questões a um tempo. Cada objecto terá, com vagar e opportunidade, o seu logar — chronologicamente. Sendo a lei do progresso, como a dos líquidos, uma lei de nivel, trata-se com effeito de promover o des- envolvimento do paiz, para o que julga-se preferível facilitar a acquisição de braços estrangeiros a formar o braço nacional: depois, mais tarde, a seu tempo cuidar-se-ha da família brazileira. E como não interessa por emquanto saber o nu- mero dos que nascem e dos que morrem, não care- cemos também de confeccionar o orçamento da vida e da morte. Cingindo-me ao principal assumptò, do qual me desviei por força superior á minha vontade, passo a indicar os meios hygienicos que, no meu entender, podem impedir novas producções da morféa nas lo- calidades do litoral onde esta enfermidade é endêmica, localidades em que, como vimos, ô a alimentação ex- clusivamente composta de peixe. Para alcançar tal resultado a primeira condição, indispensável, essencial, é variar o regimen ali- mentar. Que o peixe continue a ser ahi um alimento, por- quanto seria demasiado exigir o contrario; porém que não seja o unico e exclusivo desde o primeiro até o ultimo dia do anno. Será este regimen, o ichthyophago, o mais com- modo, o mais facil, por isso que o peixe está á mão ; mas seguramente não é o mais proveitoso e pelo contrario pôde ser nocivo muitas vezes, como tem succedido. — 328 — Levado ao mercado vizinho ou onde melhor con- vier ao pescador, o peixe deixa um producto, com o qual poderá obter a carne fresca ou secca. Quasi sempre será preferível a carne secca pela circumstancia de se conservar em casa até que tenha de ser renovada. Embora a carne secca, geralmente usada entre nós, não seja da melhor, todavia será muito mais util incluil-a no regimen alimentar para varial-o, do que compôl-o exclusivamente de peixe. Demais em todas as praias ha mais ou menos o recurso da criação de algum gado, ou principal- mente do carneiro, cuja carne é saudável, podendo os praianos tirar delia muito proveito em sua ali- mentação. Ha ainda o recurso da criação de gallinhas, patos, perus, etc, além do grande auxilio que pôde prestar a cultura do aypim, do inhame, cio cará, dos feijões, da batata doce, da ervilha, etc Muito lucrariam os habitantes daquellas paragens si cultivassem abundantemente, na medida de suas forças, a ervilha e a colhessem madura e secca. Com ella (que temos somente importada) obteriam, quando quizessem, excellente sopa, snborosa e nutriente. Nota-se na alimentação dos nortistas em geral, e creio poder affirmar que na alimentação dos brazilei- ros, um grande defeito: o da falta de hortaliça em suas refeições. O professor Agassiz teve occasião de fazer este mesmo reparo, accrescentando: que como os bra- zileiros não usam de verdura, também não cultivam as hervas apropriadas, sendo por isso obrigados a im- portar vagens de feijões em lata, etc E' exacto: ainda hoje não se tem espalhado o uso de hortaliça como a chicória, o almeirão, o taraxaco, a serralha, a bella serralhinha do Pará, e outras que, empregadas na alimentação, fazem penetrar no sangue - 329 - alguns saes que cooperam para a regularisação das operações nutritivas. Os praianos não avaliam quanto lhes seria proveitoso cultivar, além da couve e do repolho, as hortaliças que acabo de apontar, e utilisar-se dellas em sua alimenta- ção. Não-estou phantasiando expedientes nem propondo meios inexequiveis: conheço, felizmente, a situação de algumas das nossas praias, e sei de que recursos podem dispor os seus habitantes. Com algum cuidado, esforço, e capricho, poderão elles ter, além do peixe, outras substancias com que variem o seu regimen alimentar. Nesses logares onde apparecem casos de morféa, dever-se-ha mesmo preferir na alimentação os peixes mais simples, menos gordurosos, ou os que são re- putados pelo povo menos carregados. Havendo cuidado na escolha de peixes innocentes, não fazendo delles seu alimento constante e exclusivo, e variando de alimentos conforme acabo de indicar, verão os habitantes do litoral que a morféa, reduzin- do-se a pouco e pouco, cessará de todo ao cabo de algum tempo. Foi exactamente o que succedeu nas ilhas Feroô. Compenetrando-se os habitantes daquellas ilhas, os quaes viviam da pesca e nutriam-se de peixe, que a morféa não os abandonava em virtude da sua indus- tria e alimentação, trataram de substituir a pescaria pela lavoura ecom esta mudança alcançaram completo triumpho contra a enfermidade que tanto os affligia e aterrava. Por que razão obtiveram elles tão completo resul- tado? Obtiveram-no, não só porque deixaram de se nutrir com uma substancia—o peixe—que lhes era nociva, M. 42 - 330 — como porque passaram a gozar de um regimen ali- mentar variado, conforme lhes proporcionavam os re- cursos, sempre abundantes, da agricultura. Deste modo e com aquella resolução, que certa- mente não foi tomada e levada a effeito sem grande sacrifício, conseguiram os habitantes das ilhas Feroé banir do seu seio uma enfermidade que lá estava ar- raigada havia muito tempo. Não abandonem os nossos praianos a sua industria da pescaria, não deixem absolutamente de comer peixe, nem arrisquem-se aos transtornos que mais ou menos acompanham a mudança completa de hábitos inveterados; porém não vivam exclusivamente da pesca e para a pesca, revezem o anzol e a enxada, e alternem a humidade que entibia o seu organismo com o mais salutar de todos os exercícios— o da lavoura: eis o que lhes aconselho na esperança e com a firme convicção de que terão o muito a lucrar, muito de que felicitar-se, si aceitarem e cumprirem os avisos da sciencia e da experiência. Cabe-me agora tomar em consideração o regimen alimentar que no sul é capaz de produzir a morféa. Este regimen é differente do das provincias do norte nas do sul do Império, principalmente em al- gumas destas. E' conhecido o bom regimen alimentar geralmente usado na provincia do Rio Grande do Sul. Em Santa Catharina julgo que não é anti-hygienica a alimentação dos seus habitantes. No regimen dos habitantes do Paraná entram as substancias gordurosas e oleosas, si não me engano, mais ~do que convém ; e, no emtanto, é esta uma das nossas provincias em que se pôde fruir todas as van- tagens de uma alimentação sadia e confortável. - 331 - Nada sei quanto aos hábitos alimentares dos habi- tantes de Mato Grosso, visto não ter coibido as infor- mações que solicitei. Em Goyaz, onde se poderia ter uma alimentação conveniente, succedeo contrario. Lá d'onde nos vem o gado para o consumo de mais de uma provincia, usa-se de pouca carne de boi. O que me consta, pelo menos, é que no interior da provincia a alimentação é paupérri- ma e muito balda de substancias fibrinosas. Ali se cria o gado mais para a exportação do que para consumo. Não conheço os regimens usados na provincia do Espirito Santo. Na provincia do Rio de Janeiro é freqüente o uso da carne de porco, fubá de milho, gordura, feijão, etc, e entretanto a morféa não é alli freqüente. Explico-me: o regimen alimentar dos trabalhadores, escravos ou não, compõe-se em muitas fazendas de fubá de milho, feijões e gordura, com a addição, uma ou duas vezes na semana, de pedaços de carne secca. Este regimen, em que ha evidente carência de princí- pios azotados, pôde produzir anemia, como succede, mas nunca a morféa. As quantidades de hydro-car- bonados que nelle figuram, são todas consumidas durante o trabalho, são portanto desdobradas e apro- veitadas. Ainda assim, apezar dessa alimentação, propendo a acreditar que haverá antes falta do que excesso de hydro-carbonados, attenta a natureza e a duração do trabalho por dia. Em outras fazendas dá-se aos trabalhadores pedaços da mesma carne, mas duas vezes ao dia—ao almoço e ao jantar. Neste regimen a única mudança é no au- gmento da proporção das substancias fibrinosas, o que será de proveito á reparação dos tecidos orgânicos e portanto á extensão do trabalho, mas não exercerá influencia alguma para a etiologia da lepra. — 332 — Entre os próprios fazendeiros usa-se, é certo, da carne de porco e mesmo do fubá de milho; porém sem receio de errar posso accrescentar que os fazen- deiros da provincia do Rio de Janeiro não entregam-se cegamente a semelhante regimen; sua mesa é variada, o que lhes assegura a innocuidade da carne de porco e do milho, que fazem parte de seu regimen alimentar. Quanto á provincia de Minas Geraes já tive occasião de dizer que o regimen de uma grande extensão é diverso do regimen da outra parte. Da cidade de Cur- vello para o interior, para o norte, a alimentação consiste em carne de boi, farinha de mandioca, etc. Não affirmo que o regimen alimentar dos habitantes desta parte seja perfeito; porém o que julgo poder affirmar, baseado em documentos valiosos, é que não gera a morféa. Na outra parte da provincia, ao sul, bem como na provincia de S. Paulo, onde não careço dizer o que é a alimentação, ô freqüente a morféa. Os conselhos hygienicos que passo a indicar, e que não serão mui diversos dos já propostos em relação ao norte, terão, pois, applicação á zona morfetica, que comprehende uma parte da provincia de Minas Geraes e a provincia de S. Paulo. Já disse que o regimen alimentar, alli seguido, seria excessivo mesmo em paizes de clima temperado, e que só quadraria a habitantes de paiz frio. Assim penso. Não ha nada que justifique, nem o clima nem o tra- balho, semelhante exuberância de substancias gordu- rosas na alimentação de brazileiros. Em Santa Catha- rina e no Rio Grande do Sul, que são as nossas pro- vincias mais frescas, seus habitantes achar-se-hiam mal, pessimamente, com o regimen de uma parte da provincia de Minas e da de S. Paulo. - 333 — A verdadeira regra, o grande principio, a lei única, primordial, da hygiene alimentar é esta : em quanti- dade e em qualidade os alimentos devem ser inge- ridos proporcionalmente ás necessidades do organismo humano. Estas necessidades são : Ia, de alimentos para a re- paração das perdas que os tecidos soffrem no desem- penho de suas respectivas funcções; 2a, de alimentos productores do calor que por sua vez se desdobra em movimento, força e trabalho. A' primeira destas necessidades correspondem os alimentos azotados, e á segunda os hydrocarbonados e as substancias gordurosas. Em outros termos: para que o organismo possa func- cionar, carece de potência e acção; a potência é sup- prida pelos alimentos azotados, a acção pelos carbo- nados. Os alimentos azotados representam o artista, os carbonados representam a obra. Um delles é, na phrase popular, o braço direito do outro. « Para ser salubre, diz Payen, a primeira condição é que o regimen alimentar seja completo.» Ora, para ser completo não basta que se com- ponha das substancias azotadas e carbonadas, mas é essencial que estas substancias entrem em pro- porções ajustadas ás necessidades do organismo hu- mano conforme a idade, o sexo, a occupação, o clima, etc. D'ahi resulta que o regimen alimentar de um menino não pôde ser como o de um homem idoso ; o de uma senhora igual ao de um homem ; o de pessoas de let- tras ao do lavrador; o do russo como o do africano, etc. Em todos estes regimens, que- aliás devem ser compostos daquellas duas ordens de substancias, é de rigor que as proporções destas se accommodem ás necessidades dos organismos. — 334 - No Brazil o regimen alimentar do nortista será sempre differente do do sulista, e no próprio sul o re- gimen do habitante de Minas Geraes e de S. Paulo será diverso do de Santa Catharina e do Rio Grande do Sul. Não é tão grande a differença como a que se dá entre o regimen alimentar do habitante de paiz frio e o do habitante de paiz quente, porque a temperatura atmospherica, que é um dos reguladores do regimen alimentar, não varia tanto de Minas Geraes ao Rio Grande, como do Egypto á Rússia. De tudo isto infere-se que o regimen alimentar não pôde ser arbitrário, porquanto não depende da von- tade e capricho de cada um o alimentar-se. deste ou daquelle modo, mas das suas necessidades orgânicas. Sendo assim, não é indifferente usar mais de umas do que de outras substancias alimentares, porque cada uma destas tem o seu destino, a sua applicação, a que cumpre attender. Logo, si um homem, mesmo que não seja dado a grandes exercícios corporeos, se alimentar exagera- damente de substancias azotadas, ficará exposto aos accidentes resultantes do excesso de azoto no seu or- ganismo; e o mesmo succederá ao que abusar das substancias hydro-carbonadas e gordurosas no seu re- gimen alimentar. Do papel importantíssimo representado pela ali- mentação, da qual o homem depende muito mais do que á primeira vista parece, porque ao regimen ali- mentar estão ligadas todas as funcções, inclusive as intellectuaes; desse papel importantíssimo, dizia eu, resulta que os effeitos do regimen insufficiente diver- gem dos de um regimen normal, e ainda mais dos de um regimen exagerado. E' exactamente a este ponto que eu desejava chegar. - 335 - Si considerei insufficiente a alimentação dos nortis- tas em geral, mesmo attentas as condições climatolo- gicas em que se acham, tenho como exagerado o re- gimen alimentar dos habitantes da zona morfetica, de que estou tratando, e exagerada quanto ao empre- go de substancias hydrocarbonada e gordurosa. Desta exageração se origina, quanto a mim, a mor- féa alli endêmica. E accrescento: considero-o exagerado não só em absoluto, como no sentido relativo. Em absoluto, porque não é proporcional á Índole do nosso clima. INo sentido relativo, porque não guarda a propor- cionalidade recommendada pela hygiene entre a somma de elementos azotados e a de hydro-carbona- dos, que devem figurar e compor um regimen normal. Quem conhecer os hábitos alimentares de um , gallego e observar a sua força prodigiosa ; quem exa- minar as rações distribuídas aos soldados de alguns paizes da Europa, ou a indivíduos dados a trabalhos pesadíssimos, e comparar aquelles hábitos e estas ra- ções com o regimen alimentar usado em S. Paulo e em uma parte de Minas, reconhecerá o abuso deste regi- men e o perigo que delle pôde resultar. Neste ponto sinto estar em desaccôrdo com alguns collegas de Minas Geraes, os quaes não acreditam que a carne de porco e o milho possam gerar a morféa ; por- que, dizem elles, si assim fosse, seria esta moléstia alli muito mais freqüente. Comquanto eu já tivesse examinado esta questão, accrescentarei ainda : quanta gente não ha na Europa que abusa da alimentação azotada ? E, entretanto, uma maioria muito considerável não accusa soffrimento al- gum, que se possa com plausibilídade attribuir a semelhante regimen. Operam-se do modo o mais - 336 — completo, graças á actividade de suas funcções, os últimos desdobramentos das substancias azotada s, que são convenientemente eliminadas sob a fôrma de productos uricos. Pois bem: succederá o mesmo a toda aquella gente ? Não. A experiência, com effeito, demonstra que em outras pessoas, si bem que — cumpre notar — em menor numero, já não é o mesmo o poder reductor dos elementos azotados ; os desdobramentos ou as oxidações (porque a vida, representada pela nutrição, não é no fundo, como disse Claude Bernard, senão « a imagem de uma combustão ») não são completas ; a eliminação dos productos é deficiente ; o ácido urico entra em novas combinações e deposita-se aqui e alli, sobrevindo nestas pessoas profundas alterações em sua saúde* Poder-se-ha innocentar, á vista disto, o regimen ex- cessivamente azotado, somente porque todas as pessoas que o adoptam, ou muitas dellas, não accusam, nem apresentam symptomas gotosos ? Concedeu a natureza aos organismos humanos um privilegio inestimável, dotando-oscom a faculdade das compensações. Em virtude desta regalia podem os mesmos orga- nismos, como é sabido, sustentar o seu nivel thermico sob a influencia das temperaturas oppostas. Porque o mantém ? Será pela actividade funccional? Sem duvida que ô indispensável esta actividade, da qual aliás não depende unicamente aquelle resultado, mas também de uma certa elasticidade que em mo- mentos dados tomam algumas funcções do organismo humano, ao mesmo tempo que outras retrahem-se; sendo todas cilas guiadas nesse jogo ou nesses movi- mentos funccionaes por uma intelligencia silenciosa, previdente, da vida vegetativa, —o instincto, a que - 337 - Claude Bernard chamou «intelligencia innata», e que não é mais do que uma emanação dessa intelligencia da natureza, que se revela em todos os productos cia creação. Devido a essa extensão das funcções é que os orga- nismos podem também accommodar-se a vários re- gimens alimentares, nos quaes predominam ora as substancias albuminosas, ora as hydro-carbonadas e as gordurosas, sem quebra da harmonia funccional ou sem comprometimento da saúde. Esta extensão, porém, nem ôillimitada, nem pôde ser rigorosamente a mesma em todos os corpos humanos, o que é evidente. Sendo assim, não admira que alguns destes não re- sistam ao que outros resistiram; e que não com- portem, como outros, os excessos do regimen azotado, vindo aquelles a soffrer de insultos golosos ; bem como que uns cUentre muitos não comportem os excessos do regimen hydru-carbonado, vindo a soffrer de manifes- tações leprosas. Quer a alimentação exclusivamente composta de carne de porco e de milho produza, como creio, a lepra, quer seja, como outros entendem, uma causa apenas coadjuvante, o que para mim é fora de duvida é que cumpre moclifical-a a todo o custo. Seja como fòr, semelhante regimen alimentar não pôde ser innocente em localidade alguma do Brazil. Considero-o como anti-hygienico por qualquer lado que o encare. E' indispensável modifical-o na zona morfetica que comprehencle, repito, o sul de Minas Geraes e a pro- vincia de S. Paulo. Em vez da carne de porco é preciso recorrer á carne de boi fresca ou secca ; c, em vez do fubá de milho, a outro feculento. m. 43 — 338 - Dir-me-hão que é incomparavelmente mais simples propor medidas destas, attentatorias de hábitos in- veterados, do que pôl-as em execução. E' verdade, bem o sei; mas, si não obstante as proponho, é confiado nos impulsos cia razão humana, que manda adoptar o que pôde convir á nossa conser- vação e repellir o que a pôde prejudicar. Ou temos a faculdade pensante que nos inspira a comprehensão do nosso destino, que em nós cimenta a noção do bem, ou somente temos a razão do habito. Si temos aquella faculdade, como creio não se con- testará, a reacção será inevitável, e em substituição do máo, assentaremos, firmaremos o bom habito. Por que razão, ou antes por que condemnação, aquelles habitantes se hão de alimentar exclusiva- mente da carne de porco ? Por que principio lhes está interdicta a carne de boi, que aliás é a mais nutriente e a mais saudável das carnes que se prestam ao nosso sustento ? A razão da maior facilidade, ou da maior commo- didade, ou do habito, não é bastante para justificar uma pratica nociva. Demais, nem tudo que é facil é bom, nem tudo que é commodo é conveniente, e nem todos os hábitos são úteis. Certamente não tenho em mira condcmnar de uma vez a carne de porco como alimento, nem tão pouco repellir absolutamente o milho; o que condemno com a mais profunda convicção é aquelle regimen injustificável, irreflectido, pernicioso, visto ser com- posto de taes alimentos e exclusivo dos habitantes da zona morfetica, a que me refiro. Acaso haverá por alli «impossibilidade » de se obter gado para o consumo? Não se acreditará em tal. Si os habitantes estão avesados á criação de porcos, não abandonem sua industria: criem ; porém não en- - 339 - tendam que é de rigor alimentarem-se exclusivamente dessa carne, só porque a têm á mão. Explorem a sua industria; e, embora destinem algu- ma carne de porco para o seu sustento como variedade, procurem exportar banha e carne para outras provin- cias, onde uma e outra são importadas dos Estados- Unidos, ou então remettam para fora do Império. Quanto ao milho, é também inabalável a minha opinião. Sinto faltar-me autoridade, lamento não dispor de bastante influencia para gravar no espirito dos habi- tantes da zona morfetica esta convicção: o cereal que convém, o que mais vigora os organismos e de modo algum prejudicará a saúde, é o trigo. Si tendes necessidade de forças para o trabalho, si careceis de vigor orgânico, o cereal que melhor se pres- ta aos vossos intuitos e a vossas aspirações, é o trigo. Porque não o haveis de cultivar ? O que porventura vos falta ? Tendes o solo, o clima, a necessidade; tereis dessa cultura immenso proveito: o que vos falta então ? Res oi u ção ? Energia ? Infeliz do hon.eni, infeliz da sociedade que não é capaz de uma resolução dessa ordem, nem de leval-a a termo com a necessária energia. E'minha convicção profunda: si com um conjuncto de providencias, umas administrativas e outras indi- viduaes, se conseguir modificar o regimen alimentar no sul de Minas Geraes e na provincia de S. Paulo, sub- stituindo a carne de porco pela de boi, e o milho por outro cereal c principalmente pelo pão de trigo, a mor- féa (salva a condição da herança), que é alli endêmica, gradualmente diminuirá até desapparecer, porque lhe ha de faltar para a sua permanência e reproduccão aquelle infeliz e perigoso sustento. - 340 — Obtido este resultado, raiará, para aquellas provin- cias, sobre as quaes pesam o susto e o desgosto, uma época risonha de esperanças e de felicidade. Antes de proseguir, devo consagrar algumas palavras à hygiene dos filhos de pessoas morfeticas. Uma vez que a morféa se transmitte quasi fatalmen- te de pais a filhos ou de uns a outros parentes, seria de immenso proveito evitar nos descendentes a manifes- tação de semelhante enfermidade. E' preciso confessar que neste sentido tem havido falta de estudos e de observação. Os antigos, acreditando que a morféa se transmittia pela amamentação, recommendavam o maior cuidado com a escolha cias amas. A este respeito o Dr. Paula Cândido expressou-se nos seguintes termos: « Desgraçadamente a transmis- são hereditária, não é a única que arruina a população do Brazil: o leite e o prolongado contacto (*) das amas? especialmente morfeticas, africanas, si não igualam, excedem na rapidez da propagação. Nenhuma medid a policial embaraça: entretanto ha cobiça de vender (e bem caro) á desvalida innocencia o leite fatal, que mais tarde lhe vai apodrecer as entranhas! » O Dr. Neumann menciona as operações que na Is- lândia e na Escossia se praticam nos filhos dos morfe- ticos, em pequenos, afim de evitar a manifestação da enfermidade de seus pais. Diz o autor que na Escossia pratica-se a castração dos meninos. Alibert aconselhava «que se escolhesse para os filhos de morfeticos amas sadias e robustas » e que os fizes- - 341 — sem mudar de ar e de clima «procurando-se por uma conveniente applicação das regras de hygiene comba- ter a terrivel disposição que podem ter recebido dos que lhes deram nascimento.» O professor Hebra e outros autores citam factos de filhos de morfeticos, que não deixaram de vir a soffrer da enfermidade, apezar de se mudarem para paizes onde ella não se desenvolve. O Dr. Castro (do Pará) tem tido occasião de observar •que uma boa hygiene evita os effeitos cia transmissão hereditária. Eis o que encontrei e pude reunir a semelhante respeito. A' vista do exposto, o que a razão, a prudência e a experiência aconselham é que o filho de morfetico seja ornamentado por ama sadia. Será difficii encontrar ama que inspire plena confiança nas localidades onde a morféa é endêmica, porque, si ella não apresentar symptoma algum da moléstia, pôde pertencer á família em que algum membro tenha sido affectado, o que também cumpre evitar. Mais avisada e previdente será a mãi que procurar para seu filho uma ama que tenha residido em locali- dade isenta da morféa. Convém além disto que a ama de leite, no caso figu- rado, não use de um regimen alimentar composto de carne de porco e milho. Si no logar da residência dos pais não fôr possível assegurar á ama outro regimen, melhor será collocar a criança onde se possa evitar lão desastroso sustento. Comquanto pareça escusado declarar, accrescentarei comtudo que o filho do morfetico, em qualquer idade, deverá, quanto possível, evitar a carne de porco, o milho, o peixe, o uso de bebidas alcoólicas e o abuso do café. - 342 — Não opino pela mudança de residência, o que me parece inútil, comtanto que na sua localidade o filho do morfetico possa ter alimentação adequada ao seu organismo, como seja a carne de boi, fresca ou secca, a de carneiro, o pão de trigo ou mesmo a farinha de mandioca. Si a gymnastica é sempre util aos meninos pelo impulso que lhes dá ao organismo e pelos elementos de resistência com que o dota, muito mais proveitosa e necessária o será aos filhos dos morfeticos, em cujo organismo torna-se indispensável imprimir outras e salutares disposições, bem como modificar o mais profundamente possível o estado dos órgãos e o seu modo de funccionar. MEDIDAS HYGIENICAS CONTRA A TRANSMISSÃO HEREDITÁRIA Referem-se estas medidas ao casamento e ao isola- mento dos morfeticos. Na idade média um dos fins que se teve em vista com a sequestração desses doentes, foi impedir a propagação da moléstia pela herança. Em alguns paizes da Europa é prohibido ao morfetico contrahir laços conjugaes, e segundo diz Hebra « o di- vorcio tem sido algumas vezes proposto sob a allegacão cio estado leproso de um dos cônjuges. » No Brazil não ha lei alguma, civil ou canonica, que prohiba o casamento dos leprosos. Quando se discutiu o parecer do Dr. De-Simoni sobre as memórias do Dr. Faivre (sessão de 28 de Agosto de 1845), o acadêmico Dr. Reis mostrou-se contrario ao casamento dos leprosos: « o casamento, disse elle, - 343 — deveria ser prohibido aos morfeticos: assim não veríamos multiplicar-se tanto os morfeticos, como acontece. » Na mesma sessão o Dr. Tavares, apoiando as idéas do Dr. Reis sobre o seqüestro, accrescentou que « para o pôr em pratica não seria necessária nova lei, pois bastaria pôr em execução uma lei antiga que em caso de morféa «obriga os cônjuges a separarem-se ». Não me consta que haja semelhante lei applicavel ao Brazil, e nem sei de proposta alguma de divorcio no caso de soffrer de morféa um dos cônjuges. « Sendo a transmissão hereditária facto incontestável, diz o Dr. Paula Cândido (*), para evitar o perpetuar-se uma geração de infelizes, forçoso é não só embaraçar os laços conjugaes, como impedir o trafico sexual clandestino, etc. » Comquanto a hygiene condemne sob bons funda- mentos o casamento de pessoa accommettida de molés- tia hereditária, incurável, não julgo comtudo necessária entre nós a prohibição legal do casamento do morfetico. O impedimento subsiste na própria moléstia. Seria realmente iniquo o casamento nessas condições, e como tal merecedor da maior reprovação. Mas, quan- tos casos desta ordem se terão dado entre nós ? Raris- simos certamente. Eu citei um: entretanto, com quem casou o infeliz? Com uma companheira de infortúnio. Aos nossos olhos, habituados a verem no casamento o symbolo da felicidade humana, semelhante união parecerá super- lativamente repugnante, ao passo que por outro prisma a terão julgado os olhos daquelle par: foi um capricho da desgraça, que a pessoa alguma prejudic rá, attenta a incapacidade para a procreação. (i) Memória cit. - 344 - Fora disto, só creaturas insensatas poderão promover ou realizar um acto, do qual lhes provirão profundos dissabores ao contemplarem na prole a victima inno- cente de uma falta talvez irreparável. Si taes casamentos fossem repetidos, justo era se cortasse o abuso; rarissimos, porém, como são, não merecem nem justificam a promulgação de uma lei que expressamente os prohiba. Quanto á questão connexa do divorcio, o meu espirito inclina-se também á tolerância: não serei eu quem proponha que se crave esse punhal no mais fundo de affeições que se fundiram e purificaram no sanctuario da|familia. Ha casaes accidentalmente estéreis, como ha outros que o são pela idade dos cônjuges: como formular a lei? Somente para os que estiverem fora dessas con- dições ? Comquanto na Noruega seja praticado o isolamento dos morfeticos, todavia o código norueguez não estatue a separação dos cônjuges, caso a enfermidade se de- clare em um delles depois do consórcio, considerando que « devem soffrer com resignação sua enfermidade, como uma pena que lhes foi imposta ». Não é por essa razão que poupo o lar doméstico, fe- rido por semelhante acontecimento; mas porque, es- treitando a desgraça, mais do que a própria felicidade, as creaturas humanas entre si, seria realmente cruel separal-as quando mais do que nunca era intima a sua união. Demais confio que a hygiene, empregada convenien- temente, virá a ser utilissima aos filhos dos morfeticos, isto é « aos filhos de pais conhecidos ». Cumpre, porém, que estes não cruzem os braços, nem se tornem descrentes, entregando seus filhos á fatalidade do infortúnio. — 345 — Que a dôr que os acabrunha os não faça esmorecer de todo, e pelo contrario envidem os maiores esforços, afim de salvar os filhos, já que a responsabilidade dos pais é em tal conjunctura tanto maior, quanto foram os próprios a lançar no organismo dos filhos o germen da fatal enfermidade. Falta-me tratar do ultimo ponto do meu estudo—o isolamento dos doentes. Propositalmente não emprego o termo « seqüestro », aliás adoptado em linguagem clássica, por não me soar bem: o seqüestro envolve, uma intervenção odiosa, um que de absolutismo, que me repugna; por isso servir-me-hei antes do vocábulo « isolamento. » Não contesto á sociedade o direito de evitar em seu seio o incremento cie males irreparáveis, e antes con- sidero dever seu empregar acertadas medidas e os melhores esforços para o aperfeiçoamento corporeo, visto ser esta uma de suas aspirações. A morféa, emquanto a sciencia não tiver meios de a debellar, está justamente no caso dos males cujo incre- mento se deve evitar. Mas como fazel-o ? Somente pelo isolamento dos morfeticos ? Este isolamento será um dos meios, mas nunca o unico, por não ser a herança o unico modo de propa- gação da morféa. Sendo assim é evidente que, por mais rigorosamente que fosse executado, não attingiria o fim almejado. Temos no Brazil a lepra espontânea, oriunda quanto a mim de viciosos regimens alimentares, contra cuja pratica convém levantar bem combinadas medidas hygienicas. Entretanto sendo a transmissão hereditária talvez o modo mais freqüente de desenvolvimento da lepra ; e sendo o germen ordinariamente lançado ao acaso, como m. 44 — 346 — o vento faz com a semente, de modo a impossibilitar o emprego de meios preventivos cie qualquer outra es- pécie, tornar-se-ha com effeito necessário e util recorrer ao isolamento dos doentes, por ser este um dos modos de evitar a transmissão e de attenuar cs damnos cau- sados pela morféa. Zele a sociedade os seus legítimos interesses, mas de modo a suavisar o mais possível o sacrifício que porventura venha a impor a um ou alguns de seus membros. Obtenha dos morfeticos (já que a estes também não assiste o direito de transmittir a sua infelicidade) que não concorram para a propagação do mal, que se iso- lem ; porém, attenclendo ao enorme sacrifício destes pobres enfermos, suavise a sua posição, quanto fôr possível fazel-o. Meditemos um instante sobre este ponto: haverá maior crueldade do que enclaustrar essa família de infelizes ; cercal-os de muralhas que lhes impeçam a evasão; pôr-lhes á cabeceira um regulamento; e dar- lhes para respirar o ar da morte, tudo isso até o fim da vida, até que a morte, menos cruel e pelo contrario compassiva, venha estender seu manto negro sobre um corpo inanimado ? Sim, meditemos sobre a situarão miserrima a que fica reduzido o mcrfetico pela sociedade, mas medite- mos, não como quem não soffre dessa moléstia, mas como quem não'está delia isento; e certamente sen- tiremos confranger-nos o coração diante de um espe- ctaculo como aquelle. Qual a razão de semelhante dureza de procedimento? Unicamente a de serem morfeticos esses individuos? Mas o morfetico é um grande infeliz ; e uma infelici- dade, como a sua, o que implora e merece é uma grande condolência. — 347 — « Estabeleçam-se, pois, as prescripções, disse eu em uma das primeiras paginas do presente trabalho, a que terão cie sujeitar-se os morfeticos, comtanto que sejam formuladas em sentido mais persuasivo do que obrigatório, e acima cie tudo modeladas pelas leis na- turaes. Ars, imitatio naturec. » E' chegada a occasião de desenvolver este meu pen- samento. Além do proveito social, conseguido com o isola- mento dos morfeticos, deve-se ter em mira com esta pratica dous grandes interess ^s: um — dos próprios doentes, outro — da sciencia. Isolando-os, poupa-se aos enfermos a magoa que a cada momento lh s causa o constrangimento desper- tado por sua presença. Não tem razão de ser este constrangimento, bem o sei; porém, o facto não deixa por isso de ser real. Demais, sendo convenientemente collocados, encon- trarão recursos que de outro modo só obterão á custa dos maiores sacrificios e humilhações. Accresce que poderão occupar-se em alguns mys- teres, o que muito concorrerá para distrahir-lhes o espirito e minorar-lhes o soffrimento. E finalmente, e acima cie tudo, collocar-se-hão nas únicas condições em que a natureza tem já operado curas reaes, como nol-o certifica a scien- cia. O interesse desta, o interesse scientifico é do mais elevado alcance. Ha porventura um motivo, uma razão, um funda- mento para que a morféa seja scientifícamente repu- tada incurável? Depois de tão longa pratica, cie tantos estudos, de tantas investigações hístologicas, sorprendeu-se acaso a existência de uma alteração orgânica de ordem a - 348 - tornar impossível o restabelecimento do doente, a sua cura ? Não sorprendeu, e por isso não sabe dizer por- que é que a morféa ô incurável. Tem a medicina obtido que sejam os morfeticos col- locados em condições favoráveis a acção dos agentes therapeuticos ? De que modo se tem até o presente ensaiado medi- cações contra a morféa? Quasi sempre nas peiores condições hygienicas e nas mais difficeis de resultado, ou algumas vezes em condições que não são as melhores. Quasi sempre dentro dos hospitaes, onde, além de outras razões desfavoráveis, a completa descrença da maioria dos doentes mata ao nascer a esperança de um ou outro companheiro, é que se tem tentado alguns estudos therapeuticos. « Deixa-te disto, dizem alguns lázaros dos reco- lhidos ao hospital da Corte ao companheiro que sub- mette-se a tratamento; deixa-te disto: teu fim, como o nosso, como o de quantos se têm aqui querido tratar, é (apontando para o cemitério do Caju) naquelle logar, é alli. » Grave moléstia como tem sido com razão conside- rada, a morféa reclama por isso mesmo o emprego de recursos therapeuticos, cercados das circumstancías as mais favoráveis ao seu resultado. Pois não é assim que se procede com relação a outras enfermidades? Si interrogássemos o registro das enfermarias do hospital da Santa Casa da Misericórdia nesta cidade, estou certo de que poucos doentes, dos muitos tuber- culosos que alli se têm abrigado, encontraríamos com a nota de—alta—e em condições de viverem algum tempo mais, não obstante as experimentadas indicações the- rapeuticas e os cuidados hospitalares que receberam. — 349 — Emquanto é esse o resultado alli ou em qualquer outro hospital, o que observamos cá por fora ? Tuber- culosos que, retirando-se para Palmeiras, Friburgo} Campos do Jordão e outras localidades da provincia de S. Paulo, Barbacena ou outros pontos de Minas Geraes, cá para o sul; e os de todas as provincias do norte, que recolhem-se a pontos convenientes, regressam, muitos delles, ao cabo de algum tempo em condições admiráveis de saúde. Não exagero : de factos taes podem dar testemunho todos os clínicos do Império. Com a chloro-anemia o que se nota ? A sabida para o campo, uma melhor collocação hygienica, resolve com felicidade o que não se tinha obtido com as me- dicações anteriormente instituídas. Por ventura careço especificar o que succede ordina- riamente com os escrophulosos ? Quantas vezes uma dyspepsia não se torna rebelde á melhor combinação cios eupepticos, e cede como por encanto quando o doente se colloca, em outra parte, em melhores condições hygienicas ? Si a hygiene tem esse poder miraculoso, que muitas vezes exerce do modo o mais favorável á solução de casos mórbidos desesperados; si esta sciencia é o maior auxiliar que na mais renhida lucta contra as enfermidades a therapeutica encontra a seu lado; como esquecer, como dispensar a hygiene, quando se ensaiam medicações contra a morféa ? Sem o auxilio da hygiene cr»no obter-se que as funcções profundamente abaladas, entorpecidas, do organismo do morfetico se reanimem, se harmonisem, resistam, coadjuvem, reajam, imperem? Como? Somente pela acção de meios therapeuticos de que se tem lançado mão, achando-se os doentes noshospi- — 350 - taes, onde respiram o ar do desalento, da profunda descrença, o ar da morte ? Absolutamente — não. Lagitation repelêe de toute les corps, disse Barthez, dans un exercice convenable et les impressions renou- velées d'un air libre excitent les forces radicales du príncipe de Ia vie. Si para obter-se a cura da morféa não bastará so- mente activar estas forças, porque não é na sua inacti- vidade que consiste só e essencialmente a moléstia ; si não bastará, pois, este elemento hygienico, tornar- se-ha comtudo necessário o seu concurso, isto é, a in- tervenção physiologica, sem o que o organismo sitiado ha de, qualquer que seja o auxilio da therapeutica, manter-se incapaz de um esforço heróico, do qual lhe resultem a sustentação da lueta, a victoria, e o gozo permanente dos seus benefícios. Ora, em uma enfermidade diathesica, principalmente na de que me oecupo, que penetra no mais intimo do organismo e quanto a mim na própria vida cellular; ataca todos os tecidos, e perturba todas as funcções; em uma enfermidade, em sumiria, que revela a tendência a mais accentuada para invalidar as forças radicaes do organismo, a tal ponto que outro não parece ser o seu principal objectivo, todo o esforço therapeutico, por melhor que seja o plano, esbarrará na inércia do organismo, ou si chegar a conseguir algum resultado, « nunca será duradouro. » Para que, pois, o organismo, sustentado por uma in- dicação conveniente, reaja com toda a vantagem contra as tendências e os accidentes da moléstia, e possa su- peral-a e dominar, carece primeiro que tudo recuperar as suas forças, que são as suas armas. Sem estas, coitado !, o organismo recuará sempre, perderá terreno de dia em dia, indefeso, incapaz, mi- — 351 — seravel, até o momento em que o cruel inimigo, farto de tanto ludibrio, lhe extinga o ultimo indicio de vida. Si é dever social altender ao aperfeiçoamento das gerações que se vão sucedendo, bem como ir cm soc- corro dos que cabem em infelicidade, e tanto maior dever quanto maior fòr esta ; o si o impulso da scien- cia, no desempenho da sua generosíssima tarefa, é romper por entre o desengano, a descrença e as trevas até deparar com o raio de luz que a guie na sua tarefa sublimada, cumpre forçosamente mudar de roteiro cn relação aos morfeticos, collocando-os em um theatro mais digno dos sentimentos de um corpo social bem inspirado, mais propicio á situação desses infelizes, e mais adequado aos arrojados intuitos da sciencia medica, para a qual as diffículdades são incentivos e não obstáculos. Não careço manifestar de novo o meu modo de *pensar quanto aos hospitaes de lázaros entre nós. Semelhante ser vi 70 não aproveita á sociedade, por- que a maior parte dos morfeticos continuam a vagar pelo paiz; não aproveita aos enfermos que o procuram, porque o fazem sem esperança de melhora e em ultimo gráo de desespero; e, finalmente, nada adianta á sciencia, por encontrar naquelles recintos depri- mentes as mais desfavoráveis condições para o cum- primento de suas leis. Si não fora o receio de ser injusto, eu diria que taes hospitaes não passam de mera e inútil formalidade, constituindo, quando muito, o recinto exclusivamente destinado, permittnm-me Mizel-o, á «hygiene» da morte. Dominado desta convicção, passo a esboçar um estabelecimento destinado ao serviço dos morfeticos, acreditando que, si o meu plano fòr adoptado, serão os sacrificios sobejamente compensados. — 352 — Comquanto o modelo seja exclusivamente reservado á provincia de S. Paulo, que é a mais carecedora, po- derá todavia ser applicado, feitas as convenientes modificações, ás demais provincias do Império. Não proporei que se levante na capital da provincia ou em outra cidade um edifício com a decoração pró- pria das grandes ostentações. Não farei isso: assen- tará sobre a base única da utilidade o meu plano, e nelle tudo mais será dispensado. Entendo que se deve obter em algum ponto da provincia de S. Paulo, mais para o norte, onde a tem- peratura atmospherica é menos exigente do que para o sul, um local amplo e sufficientemente servido de agua. O terreno terá mais espaço para a criação do que mesmo para a cultura. Os morfeticos recolhidos a este local, que tomará o nome de Villa para morfeticos, ou outro que melhor assente, occupar-se-hão com a criação de vaccas e de ovelhas para o seu sustento. A corne desses animaes e a de gallinha assegurarão todo ou quasi todo o sus- tento fibrinoso. Entregando-se apequena cultura, se abastecerão dos feculentos necessários. Si o terreno se prestar á cultura do trigo, será este o feculento preferido como mais adequado ao regimen alimentar dos morfeticos. No caso contrario convirá plantar mandioca, cuja farinha,—reunida á do trigo, ministrará, sob a fôrma de pão, o alimento respiratório. Na cultura entrarão o inhame, o cará, o aypim, o mangarito, o guando, a batata ingleza, a doce, o feijão, as favas, as ervilhas e o mais que lhes poder apro- veitar. Cultivarão também o algodoeiro, o mamoneiro e o fumo, todos de utilidade intuitiva. — 353 — A horta compor-se-ha de chicória, almeirão, tara- xaco, serralha, bertalha, xuxú, abóbora d'agua, as- pargo, etc Occupar-se-hão na abertura de estradas que faci- litem as communicações de um a outro ponto da «Villa -para morfeticos», na conservação das mesmas estradas e bem assim na das cercas que fecham o pasto. 0 asseio das estribarias das vaccas e das ovelhas, o cuidado com a estrumeira, o amanho da terra, a plan- tação, a colheita, serão outras tantas occupações mais ou menos úteis aos morfeticos. Bom será que d'entreelles alguns aprendam oofficio de pedreiro, e disponham de uma officina de carpin- teiro. Si o numero de pessoas, como é de esperar, avultar muito, poderão ainda entregar-se a outras industrias agrícolas que lhes dêem até rendimento. Perguntar-me-hão: tudo isto feito por morfeticos ? Perfeitamente, por elles sós. São doentes, é verdade, mas são em condições de poderem trabalhar com muito proveito para si. Si na invasão da moléstia apparecem nelles algumas indisposições, como sejam mollcza do corpo, tendência ao repouso, inaptidâo para trabalhos intellectuaes, é certo que, passado este periodo, os morfeticos entram no subsequente, cuja duração é ás vezes de annos, durante o qual pouco soffrem, tão insidiosa prosegue nelles a enfermidade. A prostração e a inaptidâo só voltam em periodo adiantado, quando se perturbam profundamente as funcções orgânicas, ecom ellas os actos nutritivos. Certamente não quero dizer que sejam tão robustos como as pessoas sãs que habitam o campo; porém o que affirmo é que o serão bastante para entregar-se M. 45 — 354 - com prudência e regularidade aos serviços que acabo de indicar. Em todo o caso a distribuição do serviço será feita conforme o estado e as forças de cada um. Affirmo-0 sem o menor receio de cahir em falta, por estar baseado em factos que o demonstram cabalmente. Em vez de os prejudicar, essas occupações, o exercício, o trabalho, acti varão, pelo contrario, o seu organismo, reanimarão as suas funcções, provocarão as secreções, facilitarão a circulação sangüínea, as ope- rações nutritivas, a rehabilitaçâo das forças, o vigor orgânico. E o que é mais: emquanto elles, semeando a terra, colhem os meios de subsistência e os elementos de energia, a hygiene, semeando o campo, prepara para a therapeutica abundantes messes. Além de ser o mais efficaz antídoto do vicio, o traba- lho concorrerá também para erguer o espirito tão amo- tinado dos morfeticos, e distrahil-os de um estado que os traz profundamente amargurados. Servirá não só de poderoso tônico para o corpo, como também de remédio efficaz para o espirito. O homem que tem amor ao trabalho, e com effeito trabalha assiduamente, só cuida do bem, e por isso póde-se affirmar que a officina do trabalho é a escola da virtude. Si muito aproveitará ao organismo dos morfeticos o trabalho, que é o mais valioso auxiliar da therapeu- tica, visto ser o mais poderoso de todos os recursos da hygiene, não será, pois, menos proveitoso ao con- forto do espirito. A vida que os morfeticos por ahi passam mendigan- do ou reclusos nos hospitaes, essa, sim, é que é tris- temente, indignamente miserável. Quando a razão não é assaz disciplinada e forte, o homem infeliz procura muitas vezes adormecer os seus — 355 — soffrimentos entregando-se á practica de actos vi- ciosos. Si o infeliz cahe ou é forçado á ociosidade, então este desenlace é fatal. O vicio attrahe, com effeito, o infortúnio, e por isso não admira a pequena distancia que os separa, nem a facilidade com que è transposta, até que um chegue ao alcance do outro, e se liguem. Da escolha do terreno e das suas proporções de- penderá o poderem ou não os morfeticos, ao cabo de algum tempo, prover com o próprio trabalho ás suas necessidades. Passarão a ser úteis a si, em vez de pesados, como são, á sociedade. E, quem sabe ? talvez possam até ser restituidos á mesma sociedade. Para a instrucção e a edificação dos costumes — o ensino primário e a religião. O mestre,— que poderá ser um dos morfeticos que para isso tenha habilitações, e o sacerdote serão indispensáveis na « Villa para mor- feticos ». Não proponho se procure algum prédio espaçoso, onde funccionem enfermarias. Um edifício qualquer que sirva para a primeira installação, é o que basta. O essencial é que se vão construindo casinhas de as- pecto agradável, com pequeno intervallo entre uma e outra, arruadas ou formando um quadrilátero, areja- das, hygienicas, caiadas de branco sobretudo no inte- rior, tendo cada uma seu jardimzinho. Que aquelle sitio não represente um hospital, um deposito ou refugio de infelizes, mas seja o núcleo de emigrantes que vem chegando, é que no próprio solo da pátria vão plantar a vida, regando-a com o suor do tra- balho, entre as scenas variadas e alegres da natureza. Quanto ao enxoval, será facilimo obtel-o da caridade das paulistas, que não duvidarão tomar parte nesse - 356 - emprehendimento, formando sociedades afim de soc- orrerem aos habitantes da « Villa para morfeticos » com a' roupa necessária, embora alguma já ser- vida. Haverá sem duvida trabalho e despeza com a orga- nização de semelhante serviço. O trabalho, creio eu, será largamente compensado, e a despeza irá sempre em diminuição. Entretanto, que differença! Nos hospitaes —a inacção, a apathia, a indolência, a ociosidade, o tédio, o vicio, o desalento, a reclusão, a tristeza! No campo—a occupação, o movimento, o exercício, a actividade, a animação, a variedade, a alegria, a natureza, a esperança. Alli se está a cada instante lembrando aos morfeti- cos sua enfermidade, aqui procura-se convencer os doentes de que são homens. Entre todas estas vantagens, que resultarão do novo serviço e da nova installação, sobresahirá a possibili- dade de se obter de tão favoráveis condições hygie- nicas a maior cooperação para o triumpho da thera- peutica. Schilling exprime-se a este respeito em termos que não podem passar desapercebidos e, pelo contrario, são dignos da mais séria reflexão; eis)suas palavras: « Não só nos livros sagrados, mas também entre os escri- ptores profanos, se mencionam factos de cura da morféa. Si examinarmos cuidadosamente e estu- darmos com mais attenção as circumstancias que acompanham taes casos, convencer-nos-hemos de que estes doentes obtiveram a cura mais pelos beneficios da natureza do que pela intervenção da arte. Ora, comquanto estes exemplos não adiantem á therapeutica da enfermidade, são comtudo utilissimos, 357 — porque servem para demonstrar que a cura da mor- féa não é absolutamente impossível (*).» E' mais um argumento que invoco em favor da opinião que sustento ou da ideia que apresento. Ao argumento não se contestará o seu máximo valor. Si a hygiene, cujo poder se deriva principalmente das leis da natureza, effectuou, como nol-o affirma Schilling, a cura de morfeticos, é de todo o ponto irracional, senão cruel, encerrar os enfermos entre qua- tro paredes, onde não consta se realizasse jamais um só caso de restabelecimento destes infelizes. Que importa que aquellas curas não constituíssem a regra? Qual tem sido até o presente o resultado obtido com a pratica da reclusão, adversa a todas as leis da natureza ? Ainda mais: si a hygiene revelou ha tantos séculos o poder de debellar a morféa, não é de esperar ,que, demonstrada a sua curabilidade, possamos hoje, arma- dos de todos os progressos da physiologia, da patholo- gia e da therapeutica modernas, e com tão importantes instrumentos de investigação, dar um passo mais, adiantar uma ideia, alargar o circulo, e obter mais conquistas, convertendo aquella excepcão, realizada pela hygiene, em regra — firmada pela hygiene e pela therapeutica ? Como? Será justificável que nem ao menos se recorra nos tempos modernos, em que tanto se confia na acção cooperativa da hygiene, ao unico elemento que em tempos passados operou a cura de morfe- ticos ? (>) Danielssen o Bceck, obr. cit, - 358 - Não, este procedimento é injustificável e deshumano: si a luz da hygiene brilhou para alguns, não devemos apagar essa luz, porém sim augmentar quanto estiver ao nosso alcance o seu foco afim de que brilhe com máxima intensidade para todos os morfeticos. Termina aqui o meu estudo. Sou o primeiro a reconhecer as lacunas deste tra- balho. Alguns dos assumptos, de que occupei-me, merecem mais desenvolvimento, que não lhes pude dar. Nas minhas reflexões, cingi-me quanto pude aos sãos princípios scientificos, dos quaes, diz-me a con- sciência, não andei muito arredado. Si o meu paiz quizer dar mais um passo na estrada do progresso, e entender que deve desempenhar-se de um precioso dever social, não hesite em adoptar o alvitre por mim lembrado: será o primeiro paiz que haja revivido a questão da morféa collocando-a em puro terreno scientifico. Tudo quanto Saint-Vel disse com relação ás Anti- lhas, é applicavel ao Brazil: entre nós a morféa não segue tão desastrosa marcha, como succede nos paizes de clima frio. E' sem duvida a mesma enfermidade, apresenta os mesmos períodos, e causa as mesmas alterações orgâ- nicas ; porém não se desenvolve com a impetuosidade que alli se observa. Sendo-nos, pois, menos adverso o clima, mais cen- surável se torna o descuido e mais condemnavel o indifferentismo. Era gráo desenvolvido possuímos a intuição do bem, e não podemos, attenta a doçura dos nossos costumes, regatear recursos a quem delles tanto carece. - 359 - Que me seja relevada a ousadia desta convicção, por mais temerária que seja ou pareça: — si forem ouvidas as vozes da sciencia e da humanidade, de que neste momento constitui-me o echo, é mui provável, digo-o firmado em razões ponderosas, se realize no Brazil um sonho de tantos séculos,— o tratamento curativo da morféa. ÍNDICE Pags. A morféa..................................................... 5 Distribuição da morféa pelas provincias do Brazil............ 13 Amazonas........................................... 17 Pará................................................ 18 Maranhão........................................... 19 Piauhy............................................ 20 Ceará............................................... 20 Rio Grande do Norte............................... 22 Parahyba................... ....................... 25 Pernambuco........................................ 25 Alagoas............................................. 27 Sergipe............................................. 28 Bahia............................................... 29 Espirito Santo...................................... 32 Município Neutro................................... 32 Rio de Janeiro..................................... 33 Goyaz............................«................. 35 Matto Grosso....................................... 39 RioGrande doSul.................................. 40 Santa Catharina.................................... 40 Paraná.............................................. 42 S. Paulo........................................... 44 II Pags. Hospitaes para morfeticos.................................... 53 Hospital do Pará.......•............................ 59 » de Pernambuco............................ 61 » da Bahia.................................. 63 da Corte.................................. 65 » de Minas Geraes........................••• 67 » da Capital de S. Paulo.................... 69 » da cidade de Itú........................... 71 » de morfeticos da capital do Maranhão..... 74 . » de Matto Grosso............. 75 » » de Piracicaba............... 75 » » de Campinas................ 76 Os Indígenas do Brazil e a morféa........................... 79 Existia a morféa entre os indígenas do Brazil antes de seu descobrimento?........................... 88 Existe actualmente a morféa entre os indígenas do Brazil ainda não mesclados?.................... 97 Causas da morféa............................................ 103 Opiniões dos autores estrangeiros................... 106 » sobre os climas........................... 106 » » condições telluricas e humidade..... 112 » » desenvolvimento espontâneo......... 114 » » contagio............................. 115 » i syphilis.............................. 122 » » origem parasitaria.................. 124 » i regimen alimentar.................. 131 » » herança............................ 141 » dos médicos brazileiros...............— 147 » sobre clima............................... 147 » » condições telluricas e humidade..... 148 » » desenvolvimento espontâneo........ 150 » » contagio............................ 152 » » syphilis............................. 158 » » origem parasitaria.................. 168 b » alimentação......................... 169 » » herança.............................. 189 Minhas reflexões.................................... 195 Sobre climas....................................... 195 » condições telluricas e humidade............. 208 » contagio..................................... 213 III Pags. Sobre desenvolvimento espontâneo................ 217 » syphilis..................................... 219 » orgieni parasitaria.......................... 258 » regimen alimentar........................... 261 » herança..................................... 292 Conselhos hygienicos......................................... 293 Conselhos hygienicos reclamados pelo regimen ali- rifentar....................•...................... 293 Conselhos hygienicos reclamados no Norte do Brazil 327 » » » no Sul do Brazil.. 330 Hygiene dos filhos de pessoas morfeticas........... 340 Medidas hygienicas contra a transmissão heredi- tária.............................................. 342 • k TRABALHOS DO MESMO AUTOR Do descloamonto da rotina. (Gazeta Medica da Bahia.) Bibliographia. Étude ophthalmoseopiquo sur les altérations du nerf optique par loDr. Galozowski. (G. X. da Bania.) Do l'intoxication produito par 1'instillation dans l'oeil du collyro d'atropino. (Gazette des Hopitaux do Paris.) Do 1'épilation des cils dans le traitoment de Ia blofarito ciliaire. (Gazette des Hopitaux de Paris.) Da diplopia monocular. (G. M« da Bahia. Du koratoconus et de son traitoment par le procede de Graefo. (Journal d'ophthalmologie de Paris.) Ophthalmia sympathica. Memória apresentada á Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro. Da operação da cataracta. (G. M. da Bahia.) Estudo sobre as affecções glaucomatosas. (G. >I. da Bahia o Opusculo.) Aporçu historiquc du beriberi au Brésil. Memória apresentada á Société Médieale d'Emnlation. Ouelques considerations sur 1'opération de Ia cataiacte. Memória apresentada á Société de Chirurgio do Paris o publicada no Recucil d»ophthal- mologie. Des aflections oculairos qui résultcnt du beriberi. (Recucil d'ophthal- mologie.j Da febre palustro em Sergipe Opusculo. Da kistitomia o dos resultados obtidos com o meu kistitomo. Opusculo. Do 1'ainaurosc déterminée par le venin d'un sorpent. írtecueil d'oph- thalmologic.) Novo processo da operação do symblefaro. (G. >l« da Bahia.) Du nouveau traitement des maladies oculaires au moyen d'un appareil appclé vapo- risateur. Apresentado com o apparolho á Academia do Medicina do Paris e publicado no Journal d'ophth.almologio de Paris. De Ia kystitomie et d'nne nouvello pinco kystitome. (Journal d»oph- thalmologic.) D'une pinco nouvelle pour l'agrandisscment do Ia commiísuro palpebrale externe. Apresentado com o instrumento á Academia de Medicina de Paris o publicado no Journal d'ophthalmologie. Da ophthalmia dos reecmnasridos. Parecer sobre os cemitérios do S. João Baptista c S. Francisco Xavier (da Corte). *j rw ^^v; fl^U '>■&. • jM ,A • /^^«íWlvTt ÍÍSfi *'V*%1 ^ Si ! &a 4 / ^í •**»&& Rí ihíí? ^ ISPi A Aftf ~^W ^»K iS--5^v >.* -:n .>« >í $-JÍ NLM001018892