1 WB É «MM? BIBLIOTHECA DO JBrAZIL-JVÍEDICO A Morphéa é contagiosa? PELO Dr. JOSÉ LOURENÇO DE ]V]AGALHAES hi Rio de Janeiro Typ. Besnard Frères - 124, Rua da Alfendega 1»93 A Morphéa é contagiosa? I Em duas publicações recentes (1), uma do Dr. Pedro Severiano de Magalhães, outra anonyma, aconselha-se, como meio preservativo contra o incremento da morphéa entre nós, a sequestração dos affectados. E' certo que a segunda publicação não se pronuncia explicitamente em favor do contagio; mas as razões, em que se funda, deixam ver que para evital-o aconselha esta medida. Sendo o nosso paiz um dos perseguidos pela lepra, e como tal immediatamente interessado na questão, não ó de estranhar que me apresente para discutil-a, firmado na opinião de clínicos illustres, e nas minhas investigações em proprios fòcos da terrível enfermidade. Antes de entrar em assumpto, careço deter-me nas seguintes proposições do_Dr. Pedro Severiano relativa- mente á cura da morphéa: A priori guiando me apenas pela natureza da mo- léstia e pelo pouco que sei não e sem grande desconfiança que ouço faliar de sua cura por tratamento medico e : (\) Jornal do Commercio de 11 e 14 de junho. 2 presentwmente a natureza parasitaria, bacillar, da mor- phea não padece dztviãa. Nas condições em que me acho, perraittirá o collega - um dos que mais respeito pelo talento e iliustração - que não deixe passar sem reparo essas proposições. Dous foram os fundamentos da sua grande descon- fiança da cura da morphéa por tratamento medico: a natureza parasitaria do mal, e o que d'elle sabe. Apreciemol-os. Os resultados diários da clinica parecem confirmar que não ha razão para duvidar-se da curabilidade das affecções de natureza bacillar. Tantas são as curas, por meios therapeuticos, da febre amarella, da typhoide, do cholera, etc., que tornam injustificável qualquer hesitação ou desconfiança a seme- lhante respeito; cumprindo notar que taes curas effectu- am-se em geral por meios extra-parasiticidas. Para maior realce das conquistas da therapeutica, em contrario á opinião do illustre collega, continúa o mallogro das tentativas contra as moléstias infecciosas por meio dos mais poderosos antisepticos, contrastando com o exito da medicação physiologica. O formal insuccesso, mesmo com a antisepsia directa ou local, como na febre typhoide e no cholera, e os assi- gnalados e frequentes triumphos da medicação physio- logica vão arraigando a condição do mão caminho ou erro da medicação essencialmente microbicida. Peter, apreciando no prefacio que redigiu para o formulário do Dr. Ferrand (1890) a attitude clinica nos casos de pneumonia e febre intermitente, não alterada depois do descobrimento ãopneumococco e do hematozoario de Laveran, conclue do seguinte modo: dUen nlest changb en mèdecine; il riy a que quelques nzicrobes de plus... A' consulta dirigida pelo redactor de La Semaine Médicale aos clinicos dos hospitaes de Pariz, relativa- 3 mente ao melhor tratamento da pneumonia aguda, respon- deram elles do modo que vem ao caso citar (1): O professor Cornil, bacteriologista, não cogitava da possibilidade de um tratamento especial da pneumonia; em sua opinião o conhecimento da causa nada adiantou à therapeutica: Dujardin Beaumetz intervem combatendo os syin- ptomas concomittantes, inclusive ornais importante - o estado do coração, - e para isso recorre á cafeina. Peter, entendendo desde 1869 que, òó hapneumonias, segue a tradição medica, sem motivo algum de arrepen- dimento. Bucquoy e Dumontpallier empregam a medicação symptomatica, e não admittem a especifica. Muselier condemna os meios perturbadores, condu- centes a diminuir a resistência organica: Vexpectation armée - é a sua formula : a de Troisier é - expectação e therapeutica symptomatica. Jaccoud insiste na medicação symptomatica, consi- derando que ha tantos tratamentos qaantas as pneumo- nias. Ferrand, confiando nos revulsivos, antimoniaes, etc., persiste na velha medicina: Outros clínicos recorrem a vários meios - -não parasiticidas. Proust, reconhecendo aliás a natureza parasitaria do mal, repelle a medicação systheinatica, satisfeito com as principaes indicações: ventosas, sangrias, vesicatórios, poção de Todd, etc. Huchard, pensando como Dujardin Beaumetz que o perigo vem do coração, emprega a cafeina como diurético, toiiico cardiaco e tonico geral. Em summa, em uma enfermidade reputada bacillar, (i) La Semaine Méãicale 11 de setembro de 1891. 4 os referidos clínicos deixam de parte a causa, e vão direito a os symptomas, isso em pleno dominio bacteriológico. O mesmo póde-se applicar ao tratamento do pleuriz agudo, porque, considerada affecção microbiana, não está a therapeutica actual subordinada,como devia,á noção etio- logica, conforme ve-se da Semaine Medicale de 20 de Janeiro do corrente anno, no artigo sobre a consulta igual- mente feita aos clínicos dos hospitaes de Paris. Mallograda a espectativa da theurapeutica etiologica, aliás seductora e até certo ponto racional, viram-se os theo- ristas decahidos das alturas a que guindaram-se, e obri- gados a attender nas prescripções clinicas ao outro factor da moléstia- o organismo humano - por elles momenta- neamente esquecido. E' que lhes assoberbava o espirito a consideração de que a causa não é a, moléstia. Mudaram de rumo, é certo, mas a contragosto, expli- cando a medicação a seu modo, em ordem a manter appa- rente coherencia. Assim, a medicação sudorífica - de caracter essencialmente physiologico, - o forte escalda- pés, com que o povo cura a febre amarella melhor do que os que julgam anachronica essa medicina, já figura como um recurso anti-microbiano, graças á larga superfiicie ex- cretoria, dizem elles, aberta á eliminação dos micro-orga- nismos, explicação que também estendem á medicação purgativa, diurética, etc. E' caso de repetir com Molière : mème avec le ciei il y a des accommodements. Não se supprimem impunemente as conquistas tra- dicionaes da sciencia, mesmo que partam do empirismo : a verdade, explicada ou não, é sempre a verdade: a cura das maisgraves enfermidades, por outros meios que não antisepticos, era facto tão ostensivo, que só a cegueira partidaria poderir recusar. Finalmente, ou felizmente, jà entram em linha de conta, no tratamento clinico, as alterações organicas, 5 em desaggravo da validade da concepção therapeutica de restituir á cellula organica, enfraquecida, perturbada ou abafada, a indispensável proeminência sobre os micro- organismos, em ordem a subjugal-os e inutilisal-os, á imi- tação do que dá-se em condições ordinárias do funcciona- mento organicò. Volta-se, pois, á doutrina hippocratica, baseada na força medicatriz da natureza, ou no seguinte aphorismo de Claude Bernard: Toute maladie a une fonction normale correspondante dont elle rfest qifune expression troublee, exagerée, amoindrie ou annullée. N'estas condições a qualidade de moléstia parasitaria, attribuidaa morphéa, não a colloca em posição inaccessi- vel aos recursos therapeuticos, por maior que seja o tra- balho do bacillo de Hansen na prodncção e desenvolvi- mento dos phenomenos morbidos correlativos. Demais, por maior1 que seja o pessimismo, são inne- gaveis os casos de paralisação da morphéa, incontesta- velmente casos de cura relativa, e os mencionados por auctores sizudos - de cura completa, espontânea ou não, desta enfermidade. Assim, é, que no Congresso de Dermatologia, reunido em Paris em 1889, o professor Leloir declarou achar-se menos pessimista relativamente ao prognostico da mor- phéa ; oDr. Zambaco-que o leproso, collocado, em boas condições hygienicas, podia melhorar ou curar-se ; o pro- fessor Una-que todos ou quasi todos os membros do Con- gresso acreditavam ser menos sombrio o prognostico da lepra, accrescentando: pour ma partie, f espere fermement qu'on finira pour óbtenir des meilleurs résultats. Em apoio da curabiladade da morphéa, vem ao caso mencionar a estatistica publicada no JournaldeHyg dos de Dezembro de 1888, de accordo com os dad s colhudné pelo Dr. Ecklund, norelatorio de Dr. Louios Gulherme 6 Dahl,d'onde vê-se que de 1856 a 1885,d'entre 72351eprosos existentes na Noruega, falleceram 5.613 e curaram-se 144. Logo, poderá a moléstia parecer incurável, não porque fatalmente o seja, mas por não ter a sciencia ainda desco- berto processos equivalentes aos da natureza, sempre com- passiva com o infortúnio. Tomemol-a, pois, por guia, para não desanimar- mos ante difficuldades, porque é nosso primeiro dever não fraquear nem medir sacrifícios na luta em prol da humani- dade, enaltecendo assim a missão da sciencia medica. Examinarei o segundo argumento do Dr. Pedro Seve- riauo contra a curabilidade da morphéa: o que sabe d'ella. Nos estreitos limites de uma publicação jorna- lística, não podia por certo o eximio collega desenvolver os conhecimentos que possue, para duvidar da cura da lepra por meios therapeuticos ; não será, porém, demasiada audacia minha prescurtar-lhe o pensamento, e concluir que se refere, além da causa parasitaria, ao pro- cesso morbido, consistente nas alterações organicas deter- minadas pela evolução pathologica. Desculpar-me-ha o collega a resolução audaciosa que tomei, impellido pela necessidade de apreciar os funda- mentos da sua desanimadora opinião, e de indagar quaes as rasões que a isso o levaram. Duas são as alterações principaes, fundamentaes e ca- traceristicas da morphéa : as da pelle e as do systema nervoso. As da pelle poderão auctorisar a opinião do illustre collega ? Opino francamente pela negativa ; manchas a prin- cipio e tubérculos depois-de modo nenhum. Antes de proseguir, cumpre-me firmai uma preliminar indispensável : para as minhas apreciações não tomo o 7 morphético no ultimo periodo, em qne é formal a degene- ração dos tecidos primitivamente atacados, invadindo ou estendendo-se aos orgãos essenciaes á vida: o vocábulo - curabilidade -deve ser acceito em accepçâo razoavel, nos limites da reintegração orgarica, applicavel á lepra como a outras enfermidades graves, reputadas curáveis. Curar, no caso vertente, não significaria/aòricar te- cidos, fornecel-os e adaptal-os ao organismo, mas restituir aos tecidos alterados pela moléstia as condições impre- scindíveis para o seu fnnçcionamento, nas raias do possivel. Explicado o meu pensamento, proseguirei. E' conhecida a alta importância da funcção da pelle, em sua dupla qualidade de regulador do calor interno e orgão eliminador ; por isso as alterações nella operadas repercutem no interior do organismo, perturbando-lhe mais ou menos o equilíbrio fnnccional. Cumpre, porém, observar que no leproso as alterações da pelle manifestam-se por meio de placas, occupando maior ou menor espaço, e deixando áreas intaçtas, onde a funcção persiste. Em verdade, o leproso não transpira nem súa no rosto e nas extremidades ; mas transpira e súa no tronco'e'na parte superior dos braços e das pernas, salvo caso extraor- dinário que aida não encontrei na clinica. Isso basta para mostrar que, ainda perturbada, a funcção da pelle presta ao organismo valioso concurso. Tenho visto morpheticos que, exceptuadas as regiões corporaes já referidas, suara copiosamente. Ora, concedida mesmo a impossibilidade do restabe- lecimento da funcção nos logares affectados, a parte res- tante prestaria ao organismo precioso subsidio, augmen- tado com o das fnncções intestinaes e renaes. Si se pode viver com um só pulmão, não ha razão para deixar de viver quem possue a metade, ou mais, da pelle, auxiliado por orgãos, que no primeiro caso nada 8 devem aproveitar, mas que no segundo auxilliam ou com- pensam. Quanto á alteração nervosa da pelle, consistindo em nevrite peripherica quasi sempre limitada aos pontos com- promettidos, não sei que possa constituir elemento de incurabilidade. E' escusado alongar-me. Para cortar pela base a questão, evidenciando que as alterações primitivas e até as consecutivas até certo grão não determinam a perda certa dos enfermos, bastam os notorios casos de longevidade de alguns morphéticos. O que os mata é, em estado adiantado do processso morbido, a invasão ou extensão aos orgãos internos, cujo compromettimento é incompativel com a vida. Do exposto conelue-se que as lesões organicas da lepra nãp são de ordem, que conduzir possam ao desanimo ou ao desespero. Entretanto, é possível que o Dr. Pedro Severiano, do modo como exprimiu-se, tivesse sómente por fim insinuar desconfianças do meu processo therapeutico, pronuncian- do-se indirectamente contra elle. II Publicando em 1885 o opusculo denominado - A curabilidade da morphea - assistia-me a certeza da temeridade do commetimento, cuja razão passo a expender. Ao iniciar a profissão medica, um dos meus primeios clientes era morphetico. O instincto de conservação n'este infeliz, crescendo com a progressão da enfermidade, manifestava-se no ardor com que luctava pelo prolongamento da vida. Achando-me ainda no periodo do ingénuo enthusi- asmo pela victoria dos medicamentos, encontrou na minha dedicação um renascimento de esperança, a despeito dos profundos estragos do mal no ultimo periodo. Um dia perguntou-me se concordava em inocular-lhe o veneno da cascavel. Tendo lido na descripção da desas- trosa e irracional experiencia aqui feita em Mariano José Machado a 3 de setembro de 1838, que os tubérculos haviam baixado, acreditou que conseguiria melhor resul- tado, realisada a experiencia racionalmente. Chegou a obter uma grande cascavel', e quando e«X já estava preparado para colher o veneno, o pegador de cobras, convidado para auxiliar-nos, desanimou, soltando 10 no aposento onde nos achavam os o reptil já irritado, dei- xando-nos expostos aos seus repetidos botes. Para livrarmo-nos foi necessário matal-o, mal logran- do-se assim a temeraria tentativa. Retirando-me da localidade, não mais pensei em morphéa. Em 1878 procurou-me aqui um moço, filho d'aquelle logar, pedindo-me agasalho na casa de saúde de N. S. da Ajuda, e recommendação para usar de duchas no estabe- lecimento do meu finado amigo Dr. Eiras. O caso despertou-me reminiscências, e, mais do que isso, aturada reflexão, em virtude da circumstancia da superveniencia do mal em uma localidade, onde não havia caso algum daquella especie; convindo notar que o enfermo era de vida desregrada, e dado á alimentação super-excitante, etc. De simples impressões passei ao estudo da moléstia, considerando o seu desapparecimento de localidades, onde haviam melhorado as condições hygienicas, e a notável circumstancia de conservar-se em paizes de climas oppos- tos, empenhando-me em descobrir a ligação dos extremos da extensissima cadeia. Depois de aturado trabalho, consegui formular uma theoria, que pareceu-me, bem ou mal, abranger os termos da questão. Faltavam-me porém, o essencial: a confirmação pra- tica. Como obtel-a ? Vencendo grandes reluctancias, resolvi procurar o Dr. Araújo da Cunha, juiz conservador do Hospital dé Lazaros d'esta capital, e manifestar-lhe o meu desejo de encarregar-me do tratamento de alguns enfermos sob condição de fazel-o sem apparato, do modo mais simples, e correr por minha conta toda a despeza com o A 11 Acceito gentilmente o offerecimento, ensaiei por alguns mezes a medicação adequada ás minhas idéas, de accordo com Dr. Ponte Ribeiro, medico do estabeleci- mento. Obrigado a suspender os meus estudos alli, ficaram-me como lembrança animadora os seguintes trechos da cor- respondência official do referido funccionario com a admi- nistração " Cabe-me ponderar a V. Ex. que muitos dos doentes estão submettidos a um tratamento experimental com o que têm tirado algum proveito, e é pena não con- tinuai- a ver se obtem feliz resultado-" ( cópia do officio dirigido ao Sr. Luiz Augusto de Magalhães, escrivão do Hospital dos Lazaros, em 16 de outubro de 1879) " para resolvermos sobre a conveniência ou inconveniência de continuarem a ser tratados por mim e pelo Dr. José Lourenço de Magalhães aquelles doentes - que têm sido por nós tratados e obtido algumas melhoras." ( Cópia do officio dirigido ao Dr. Manuel Araújo da Cunha, juiz conservador do Hospital dos Lazaros, em 18 de outubro de 1379). Reduzido a dous ou tres doentes de minha clinica particular, não desanimei, continuando com elles a obser- vação dos effeitos do tratamento que adoptára, e a estudar os documentos existentes sobre a morphêa em differentes pontos do Brasil. Em 1880 segui para o Estado de S. Paulo, em com- panhia do meu amigo Dr. Pedro Paulo, de saudosa memória, para continuar as investigações iniciadas no Hospital de Lazaros relativamente á composição sanguí- nea nos morpheticos, exame de urinas, etc Em 1882 publiquei o trabalho denominado - A mor- phéa no Brasil- cujo mérito unico foi apparecer, quando a questão parecia morta entre nós. Relativamente a essa publicação exprimiu-se o Dr. 12 Júlio de Moura, de saudosa memória, na União Medica de junho de 1883, do seguinte modo: A morphéa no Brasil estava carecendo, ha annos, de alguém que delia se occupasse com menos indifferença 9 com menos desalento. O livro do Dr. Josè Lourenço veiu, por csnseguinte, preencher entre nós esta triste e lamentável lacuna. Para assegurar a importância dos elementos de con- vicção de que dispunha, não hesitei consignar as seguintes linhas; " Se fossem ouvidas as vozes da sciencia e da humanidade, é mui provável, digo-o fundado em razões poderosas, se realise no Brasil um sonho de tantos séculos, - o tratamento curativo da lepra. Exprimindo-me assim, não havia da minha parte precipitação, enthusiasmo precoce e irreflectido, ou asso- mos de vaidade; era simplesmente a manifestação da segurança das minhas conclusões relativamente á especie. Seria illusão minha, apezar da calma com que sempre procedi? Póde ser; assim mesmo a illusão nobilita a intelli- gencia, e então é dever nosso illudir-se. Depois da referida publicação, alguns dignos collegas certos da sinceridade dos meus esforços, começaram a auxilial-os, encaminhando-me enfermos. Se, por nimia pobreza ou desfallecimento, alguns não eram assíduos, outros concorriam para fortificar cada vez mais a minha opinião, de não andar errado na trilha, que seguia. Animado pelo resultado, convidei alguns collegas para examinarem tres doentes novos, e acompanharem o seu tratamento. A 14 de junho de 1885 recebi o parecer assignado por aquelles collegas, de que transcrevo o ultimo periodo : " Attendendo á gravidade e extensão da moléstia em nosso paiz e o prognostico terrível que lhe assignala cara- cter de incurabilidade, julgamos auspiciosos os resultados 13 dos esforços conscienciosos e aturados do Dr. José Lou- renço, que já apresenta uma estatística de curas relativas muito mais eloquentes que os casos isolados e raros archi vados na sciencia, cujo valor e authenticidade nos seria impossível verificar." Os seis signatários do parecer, professores da Facul- dade de Medicina d'esta capital, seriam incapazes de um acto meramente gracioso em assumpto de alta responsa- bilidade, e eu de solicital-o por inútil e fallaz. A um dos doentes submettidos ao exame dos meus collegas, e por elles considerado um caso de cura relativo, acompanhei por alguns annos, porque visitava-me de tempos a tempos; nelle a cura foi completa. Outros casos poderia apresentar, se, em uma enfer- midade considerada infamante, não me c mprisse res- peitar deveres profissionaes. N'estas condições entendi adiantar o meu commetti- mento publicando o opusculo - A morplíèa e sua cura- bilidade - em que, propondo-me a demonstrar pratica- mentea minha idéa, pedia garantias para realisar o meu intento. "Como auxiliar da medicação da lepra, dizia eu á pag. 23, considero inprescindivel a hygiene, em cujo poder descubro a condição sine qua non de uma cura real e firme. Do modo como a comprehendo e admitto, insistia então, a hygiene não será sómente a conquistadora da cura, mas também a sua garantia." (1) Essas ponderações,T acompanhadas do necessário desenvolvimento, indicavam que eu não confiava exclu- sivamente na therapeutica, nem me julgava em condições completas de divulgar as minhas experiencias, arriscan- ÓV A morphéa, e sua curabilidade, pags. 23 e 24 14 do-me a uma prova clinica independentemente da minha direcção, conforme dei a entender. Por algum tempo, durante o ministério do fallecido senador Meira de Vasconcellos, acreditei que conseguiria meios de exhibir a demonstração do novo processo thera- peutico. Mallograda essa espectativa, tratei de fundar o meu instituto, não por interesse, mas sómente com intuitos clinicos, tendo em vista que Vart (Beveille-Parise) ne traite que Vindividu, ou como disse Torres Homem nas Lições de clinica sobre a febre amarella - "O medico pratico não trata de moléstias, mas sim de doentes ",- proposições correspondentes ao on soigne des malades et non des maladies, do Dr. Huchard e outros clinicos igualmente notáveis. Procedesse eu por interesse, não me faltariam meios de propaganda nos Estados mais affectados pela morphéa. Ao contrario nunca annunciei o meu instituto. (1) Meu nome só tem apparecido em trabalhos scienti- ficos, ou em honrosissimas referencias a estes feitos por collegas generosos e pela imprensa d'esta capital, de S. Paulo, Minas e outros Estados, em artigos animadores. Depois de tanto esforço e sacrifício, acho-me entre os que, imitando ao Dr. Pedro Severiano, mostram " grande repugnância era acreditar na curabilidade da morphéa por meios therapeuticos ", e os que consideram o assumpto de menos diflicil elucidação não encontrando motivo que justifiquem o meu silencio. Não é por minha culpa, que tenho retardado, não a simples divulgação da the»'apeutica que emprego, - o que, (1) O Almanack de Laemmert publicou a noticia do Instituto JoséLourenço, ministrado em minha ausência, por um empregado da casa de Saude de Nossa Senhora da Ajuda conjunctam ente comad'este estabelecimento. 15 por anti-scientifico não faria, mas a publicação de um volume com a exposição completa das minhas investi- gações relativamente á pathogenia, ás fôrmas clinicas da morphéa, ás complicações e aos accidentes peculiares a ella, á medicação applicada em condições de assegurar probabilidades de exito, etc. Quanto mais estudo e observo a morphéa, mais receio as incertezas da clinica, a negligencia e a inconstância dos enfermos, a variedade individual dos casos com as respectivas exigências, e - para que occultal-o ? - a pró- pria inexperiencia do observador. As condições individuaes variam tanto, que é raro começar o tratamento do mesmo modo. Demais, não ha enfermidade qne reclame de parte a parte tanta paciência, constância, dedicação e confiança: a morphéa não é para ser tratada commummente, e, quer hygienicamente - como mostrarei - quer clinicamente requer e obriga a cuidados especiaes. No terreno pouco seguro das convicções contrastando com a tradicional e desanimadora reputação de incura- bilidade, a menor facilidade, o primeiro insucesso, a de- mora do exito repercutirão desfavoravelmente na medi - cação, prejudicando-a talvez completamente. Verificada, porém, a demonstração clinica nas con- dições que reputo necessárias, com a experiencia adqui- rida, eo empenho de principal responsável, a idéa salvar- se-ha, se o resultado for satisfactorio, como espero, deso- brigando-me do encargo, que com a melhor vontade a mim proprio impuz em beneficio da humanidade. O que vier depois, por peioi' que seja, não abalará a evidencia dos factos. No meu instituto ser-me-hia impossível realisar a demonstração, que tanto desejo em vista da repugnância dos doentes a communicações estranhas. Ninguém avalia o que é soffrer semelhante moléstia: 16 o padecimento physico nada é comparativamente ao moral. O morphetico embora procure dissimular, percebe a todo o momento a má impressão que causa: isso augmen- ta-lhe a afflicção. A peior morphéa - se assim posso exprimir-me - é a do espirito. No instituto seria mister organisar um serviço reservado, para o qual, além de outros inconvenientes, faltaria espaço. Preoccupado com o meio de liquidar a questão, com- binei com o meu distincto collega e amigo o Dr. Valeriano Ramos, fundar nas immediações do Sanatorio luminense, em construcção em Cascadura, um serviço especial e independente para morpheticos, obtidos os recursos neces- sários. Para facilitar a verificação da efiicacia da minha therapeutica empregarei os meios ao meu alcance: mais do que isso é impossível fazer. Para terminar: quando o ex-imperador D. Pedro visitou espontaneamente o meu instituto, ao retirar-se, depois de ouvir-me em prolongada conversa, disse-me : "faz bem insistindo : são dignos de louvor os seus esforços e prudência." Quanto a esforços, só direi que significam o cumpri- mento do dever. Relativamente á prudência, hei de man- tel-a proporcional á minha responsabilidade, á gravidade da moléstia e á complexidade do problema therapeutico. Aos que julgarem exagerados os meus escrúpulos e cautela, responderei simplesmente; a moléstia e a morphea. III Depois da publicação do opusculo-A morphéa no Brazil,-em que dei á difficil e controvertida questão do contagio o desenvolvimento que pude, occupo-me de novo do assumpto. Sem elementos que autorisassem opinião individual, quando formulei o primeiro trabalho, soccorri-me da opi- nião de autores estrangeiros e nacionaes, limitando-me a algumas considerações de lavra própria, emittidas no capitulo denominado- Minhas reflexões. Não cabendo reproduzir aqui os elementos de convic- ção então colligidos, vem ao caso transcrever algumas d'aquellas considerações como ponto de partida para o actual estudo. " Facto notável 1 disse eu: durante séculos reinou a crença do contagio da lepra, crença alimentada pelo des- envolvimento progressivo da moléstia, e aggravada pela repugnância e pelo terror que a todos infundia. Ora, para que se operasse a revolução anti-contagio- nista depois de tudo isso e apezar de tudo; para que se 18 formasse a opinião quasi unanime dos "homens da sciencia em sentido francamente contrario ao contagio, havemos de convir que as provas em que elles se fundaram foram muitas e concludentes; foram provas que se impuzeram, revolvendo, expondo ao ar as raizes de uma crença se- cular. Pois bem, accrescentei, o inquérito longo, paciente, reflectido, desprevenido, scientifico, deu-nos-não è con- tagiosa a morphéa. O que admira no maior gráo, ponderei ainda, é qae os poucos contagionistas não tenham podido definir como e quando se opera o contagio da lepra (1) Lá se vão dez annos que assim discorri; n'este periodo muda-se a scena, nova corrente da opinião opera-se outra vez em favor do contagio; a lepra voltou ao que era no tempo de Moysés, na idade media, nos séculos do terror; depois de extincto o privilegio de contagiosa, readquire-o, e desta vez sem replica : "a contagiosidade acha-se comprovada por factos bem averiguados", affirma o illus- trado Dr. Pedro Severiano de Magalhães. A' tão categórica afiirmativa, caracteristica da mo- derna, da ultima opinião, contraporei que o: não contagio da morphéa está comprovado por numero incomparavel- mente maior de factos bem averiguados, e observados em todos os paizes, inclusive o Brazil. Opinião por opinião, faltando, porém, comparar os fundamentos de parte a parte, em ordem a decidir de que lado está a razão. Perdoe-me a audacia o Dr. Pedro Severiano: ainda não estou convencido da contagiosidade da lepra, apezar (1) A morphéa no Brazil, pag. 214: 1882. 19 dos factos bem averiguados a que se refere o distincto collega. Seja temeridade dizel-o, e também acreditar na cura- bilidade da morphéa, naturalmente por ser brazileiro, e sem a capacidade e os conhecimentos precisos para apro- fundar esta transcendente questão. Mesmo assim, o que fazer senão enunciar o que peuso, sinto e tenho observado ? Não cheguei ainda ao periodo de aperfeiçoamento, em que as opiniões amoldam-se ás circumstancias, por cautela e previdência; acho-me aquem, no atrazado, em que o espirito, funccionando desprevenidamente, expõe as operações intellectuaes ou traduz o resultado das observações com singeleza e verdade em ingénua despre- occupação. Reatemos a questão. Dominava a crença do não contagio da morphéa contra a secular do contagio, quando TIansen, em 1873, descobriu o bacillo da lepra. Dahi concluiu elle immedia- tamente em favor da contagiosidade. E' bacillar, logo é contagiosa, foi a decisão... Era, e é, caso, em que a ultima palavra deveria caber á clinica, unica competente para definil-o conforme os elementos colhidos nas localidades affcctadas pela mo- léstia. Que esses elementos auctorisavam a pensar contra- riamente ao contagio, evidencia-o a reacção operada, a despeito do terror que esse mal infundia e ainda infunde entre o povo. Pois bem: bastou um traço de theoria para cancellar todo esse trabalho, perdendo desde então em valor a opinião firmada no exame dos factos, na experiencia dos clinicos residentes por longos annos em localidades, onde a morphéa existe. 20 A experiencia affirmava:-não é contagiosa; surge a theoria e diz-é. Eis em poucas palavras definida a situação conse- cutiva á notável descoberta de Hansen. " A natureza parasitaria, bacillar da morphéa", como diz o Dr. Pedro Severiano, explica, pois, a ultima mu- dança de opinião, ou, em outros termos, a não contagio- sidade a étéfort ebranlée par la decouverte du bacille de la lepre, como asseguram no recente Traite de Medecine (1) os seus autores, inclusive o Dr. Bouchard -decidido apologista da doutrina bacillar, os quaes em ultima ins- tancia decidem que a questão da contagio sidade deve ser considerada como resolvida. Em medicina ha uma regra infallivel: surgindo uma idéa nova, os espíritos progressistas acceitam-na com ardor e convicção desprezando os erros do passado. Dest'arte o edifício quasi não adianta, porque os ar- chitectos encarregados pela successão dos tempos de con- tinuar a grande obra, começam demolindo precipitada- mente o que podem, na persuasão da insufiiciencia da existente, organisada muita vez com enorme dedicação e sacrifício. Não julgo a intenção, que em todos presume-se lou- vável e humanitaria; assignalo apenas o facto. Era impossível que a regra falhasse na questão do contagio da lepra, em vista do enthusiasmo provocado pela doutrina parasitaria, que, contando aliás algumas conquistas de incontestável valor, ê ainda deficiente para esclarecer e resolver vários pontos de clinica medica. Apezar disso, é mais prudente e seguro acceital-a em todas as suas deducções conhecidas e futuras, mesmo com sacrifício de opiniões, na previsão de dissiparem-se pouco (1) Traité de médecine, redigido pelos Drs. Charcot, Briss*u: tomo 2*, 1892. 21 a pouco as trevas ficando então justificada a opportuna conversão e a fina penetração dos conversos. Seja como fôr, não satisfazendo, por absoluta, a pro- posição-é bacillar, logo é contagiosa-voltou-se a atten- ção para a observação clinica e a experimentação. Reconhecida a necessidade de provas justificadas do contagio, começou-se pela inoculação de tecidos ou sangue de morpheticos em animaes, variando a qualidade á me- dida dos insuccessos: rãs, coelhos, gatos, cães, macacos, todos á sorte. Desgraçadamente, diz um autor no auge da contra- riedade, falharam as tentativas. Desgraçadamente ! Feli- cidade seria, accrescento eu, se dessem resultado. Não estava, porém completamente perdida a espe- rança; faltava ainda experimentar a inoculação no homem; a syphilis, tão facilmente inoculavel n'elle, não falha nos outros animaes ? Porque não succederá o mesmo com a morphéa ? Este argumento de analogia entre essas duas affecções consolava os espíritos ávidos de provas. Infélizrnente inoculações voluntárias, ou accidentaes não deram melhor resultado, conforme referem vários autores. Foi n'esta conjunctura que surgio como um raio de luz a rapida diffusão da morphéa nas ilhas Sandwich, onde o Dr. Arming, ardente contagionista, conforme clas- sificou-o o Dr. Besnier, conseguiu inocular o virus em um condemnado á morte, e n'elle reproduzir pela primeira vez a morphéa. Antes de proseguir, notarei outro insuccesso. O Dr. Besnier reconhecendo no relatorio apresentado á Academia de Medicina de Paris, em 11 de Outubro de 1887, a necessidade de procurar, a partir do descobrimento de TIansen, o bacillo da lepra no sólo, no ar, nas aguas ou nos alimentos, diz que "im seul auteur, Arming, médecin 22 allemand qtfa étudié la lèpre aux iles Hawaii avec un admirable talent et une rare sagacité, a instituè ses recher- ches dans les meilleures conditions, en i>ays lepreux dans une region oú Velement lepreux, est en pleine prolificatiou; il a, examine dans cette direction Vair, lleau, les aliments, et toujours les resultats de ses examens multlpliés ont ete negatifs.11 O insucesso de pesquizas effectuadas em circumstan- cias tão excepcionalmente favoráveis, como reconhece o Dr. Besnier, e por pessoa da maior competência, é de con- sequências mais graves, do que a primeira vista parece, como mostrarei. Onde realmente encontrar tanta condição reunida, quanto ao experimentador e á localidade, para descobrir-se o bacillo da lepra no sólò, no ar, na agua e nos alimentos ? Perdida aquella opportunidade, é de receiar que outra não haja, não obstante as esperanças do Dr. Besnier, e que fique para sempre insolúvel essa modalidade do estudo etiologico da raorphéa. Prescindindo por emquanto do extraordinário aconte- cimento da diffusão da lepra nas ilhas Sandwich, e do auspicioso resultado da inoculação feita pelo Dr. Arming no condemnado á morte, cuja commutação não sei se foi para melhor ou peior, passarei a examinar o modo como se operaram algumas conversões á nova crença do con- tagio. Para não alongar demasiadamente este artigo, ter- mino aqui. IV Um dos dermatologistas mais empenhados nestes últimos annos no estudo da lepra, o Dr. Leloir, professor em Lille, publicou, além de outros trabalhos, uma impor- tante monographia, que será sempre consultada com pro- veito. Além das aturadas investigações a que se entregou no hospital de Saint Louis, onde o mal póde ser perfeita- mente estudado, como affirma o Dr. Besnier, clinico do mesmo hospital, julgou o Dr. Leloir conveniente visitar alguns paizes affectados por aquella enfermidade, alar- gando assim o campo das suas observações, para o que percorreu a Italia em 1878 e a Noruega em 1884, conse- guindo examinar cerca de 800 leprosos, voltando á Italia em 1885 e percorrendo o sul da França. De posse deste valioso contingente, o Dr. Leloir apresentou em 1885 uma interessante communicação á Academia de Sciencias de Pariz, sob o titulo de Estudes Cliniques sur la lêpre en Noruege. Abstrahindo de outros pontos aliás importantes deste trabalho, limitar-me-hei a apreciar a opinião do autor sobre o contagio da morphéa, 24 A semelhante respeito declarou o Dr. Leloir que "a maioria dos factos levam a acreditar que, se a lepra e contagiosa, (o griplio é nosso) é en tout cas à un degre très minime. Depois de notar o malogro das tentativas repetidas de innoculação feitas por um medico notável em si pro- prio e em vinte pessoas sãs, e de patentear o insuccesso das innoculações em animaes, declara entretanto, "possuir algumas observações que podem ser invocadas em apoio da natureza contagiosa da lepra*" Em seguida expõe como simples hypothese, (palavras textuaes) que a presença do bacillo nos productos leprosos não prova a contagiosidade do mal, podendo ser a lepra analoga á malaria, etc. Da combinação destes trechos o que inferir relativa- mente ao contagio da lepra ? Admittia-o o autor ou não ? A julgar pela analogia da morphéa com a malaria, moléstia aliás não contagiosa, e pela phrase dubitativa- se è contagiosa-deve-se racionalmente acreditar que não admittia. O auctor declara, é certo, conhecer alguns casos que podem ser invocados em favor do contagio: mas é obvio que os poucos casos não lhe abalavam a convicão, porque se assim não fosse, outro teria sido o seu modo de expri- mir-se, e então, em vez de duvidar affirmaria que a lepra é contagiosa, com o restrictivo-em grau minimo. Parece ser esta a deducção natural das expressões do conceituado professor. D'ahi segue-se que, depois das pesquizas feitas no hospital de Saint-Louis, em Paris, e das investigações aturadas na Italia, na Noruega e no sul da França, isto é: depois do que elle proprio viu, inqueriu e apurou em 800 ou mais doentes, a opinião do Dr. Leloir não propendia para o contagio, corroborada pelo insuc- 25 cesso, por elle citado, de numerosas innoculaçõos prati- cadas em homens e animaes. Poucos mezes depois publicou o Traite pratique et theorique de la lépre, obra considerada geralmente de grande folego, mas real mente apreciável antes como prova de illustração e actividade, do que como luz diffundida sobre os pontos obscuros da lepra. Neste trabalho serviu-se o Dr. Leloir justamente das peças de convicção da memória pouco antes apresentada á Academia das Sciencias, dos elementos collcccionados no serviço hospitalar e nas suas excursões scientificas. De novo lia apenas informações colhidas mediante um longo questionário por elle dirigido a médicos conhecedores da lepra em vários paizes, parecendo com isso não confiar sufficienteraente no resultado que por seu proprio esforço até então havia obtido (*) Em todo o caso é notável a mudança de opinião do Dr. Leloir quanto ao contagio da lepra: a principio elle duvida, depois affirma. Causa com effeito estranheza a rapidez da conversão. O que concorreria para isso? De certo não foi o resultado do que viu e observou nas apuradas pesquizas effectuadas no> paizes onde a mo- léstia existe, nos fócos onde estudou o mal com os recursos de seu talento e proficiência. Decididamente não foi porque se tivesse encontrado provas do contagio da lepra, que, a existirem, não escapa- riam por certo á sagacidade e penetração do Dr. Leloir, de outro modo se teria pronunciado na memória que pouco precedeu á publicação do seu ultimo trabalho. (*) Um exemplar do questionário foi-me entregue pelo Dr. Mayrink, encarregado pelo Dr. Leloir de transmittir-lhe informa- ções. Em satisfação ao gentil convite só pude offerecer o meu opúsculo-J. morphéa no Brazil. 26 A que attribuir a radical modificação ? As informações que colheu ? á influencia do parasi* tismo ? Quanto á primeira custa a crer, por ser difficil admit- tir que o il lustre professor mais confiasse em informações estranhas, por importantes que fossem, do que na sua própria observação, que mais lhe devia merecer; que des- prezasse o resultado da sua experiencia lentamente ad- quirida, para guiar-se pelo que os outros disseram ter observado. Quanto ao parasitismo é igualmente de reparar que se deixasse seduzir por uma simples theoria, não confir- mada praticamente. Se o Dr. Leloir tivesse limitado os seus estudos ao hospital Saint-Louis, comprehende-se a sua hesitação fun- damentada na insufficiencia das provas alli adquiridas ; mas realisar esses estudos em condições que auctorisavara juizo seguro sobre a questão do contagio, e não manifes- tal-o firme, oscillando entre o sim e o não, entre a duvida e a certeza, sem razões plausiveis, é realmente de admirar. Na memória a que alludi, exprimiu-se como já disse, do seguinte modo : Se a lepra e contagiosa 'e em gráu mínimo; no seu ultimo trabalho sustenta, entretanto, que a hereditariedade não explica a rapidez do desenvolvi- mento dessa enfermidade em alguns paizes, nem a rapidez com que tem percorrido o mundo, e que estas circumstan- cias bastam para demonstrar que a lepra foi e é moléstia contagiosa (o grifo é do autor); que fatalement, logique- ment Vetude précédente appuyée sur des/azís clúmiquesfje laisse de cote Vanatomie et le bacille) noas conduit á admet- tre qidun certain nombre de cas de lepre ne peuveut être expliques que par la coniamination, La lèpre est donc une maladic contagieuse. (*) (*) Obra citada pag. 298. 27 Não é com o fim de censurar que reparo na facilidade e promptidão com que uma notabilidade, como é o Dr. Leloir, tornou-se contagionista; mas sómente para mostrar que, para a elucidação deste importantíssimo assumpto' muito está concorrendo a influencia das idcas modernas, o o receio de não ser-se sufficientemente progressista : a theoria abafa a pratica. Na discussão, que ainda perdura na Academia de Medicina de Pariz, sobre o tratamento da pleurisia disse o professor Hardy que "para as medicações therapeuticas, á imitação do traje, ha uma moda, passando por excên- tricos e ridículos os que não a acompanham." Quanto á medicina póde o conceito ser ampliado á etiologia das moléstias e á sua natureza ; é com effeito moda descobrir moléstias parasitarias e contagiosas : a morphéa serve de exemplo. Outro facto, que vale a pena propalar, foi o anuo pas- sado denunciado pelo Dr. Zambaco na sua obra - Põyai/es chez les lepreux. O Dr. Zambaco ê um medico do Oriente, que ha nove annos occupa-se da morphéa, estudando-a em seus grandes fócos, para o que muito tem viajado, publicando regularmente o resultado de suas investigações. E' um dos que mais tem observado e dos poucos quo resistem á onda do modernismo, baseado em sua longa experiencia que ainda não proporcionou-lhe meios de ve- rificar um caso de contagio da lepra. Na ilha de Chypre consultou a ura medico sueco, o Dr. Heindestam, a quem muito elogia, por ter alli pro- movido a creação de um asylo para leprosos, dirigindo-o com proficiência e caridade. Questionado sobre o contagio, deu o Dr. Heindestam, informações duvidosas, porque se mencionou alguns casos tendentes a demonstral-o, entre os quaes o de um perú que perdeu os dedos no asylo, outros referiu em con- 28 trario; pelo que em uma communicação sob o titulo La lèpre en Turqaie, apresentada á Academia de Medicina de Pariz. na sessão de 13 de Agosto de 18S9, o Dr. Zam- baco não duvidou affirmar que le Doctcur Heindestam admet Vhereditè et reste indécis quant à la cqntagion, apres la lecture des nouveaux travaux sur la lépre. Grande foi, pois, a sorpreza do Dr. Zambaco depa- rando, no relatório pouco depois apresentado ao governo inglez pelo Dr. Heindestam, a declaração de que "a obser- vação dos dez últimos annos cada vez mais patentea o contagio da lepra." A' vista disso o Dr. Zambaco consignou na ultima pagina do seu livro - Voyages chez les lépreux -uma nota terminando assim : "Quant á moi, je regrette que ces tergiversations diminuent la valeur des travaux du Dr. Heindestam, si bien placé pour contribuer á 1'élucidation des problemes graves concernant la lèpre." Deste modo e por tal processo não faltarão sectários da doutrina do contagio da lepra, entre os que visitam os paizes onde ella existe, ou os que ahi residem e obser- vam-na com vontade de acertar. V Das provas activamente colligidas pelos contagio- nistas de 1873, a saber: depois de descoberto o bacillo da lepra, duas lia que a seu ver não deixam duvida-'0 rápido incremento nas ilhas Sandwich e o successo, ou antes a fe- licidade da innoculação praticada pelo Dr. Arning em um sentenciado á morte. O contagio da lepra nas ilhas Sandwich é evidente, dizem elles, porque só assim se explica o extraordinário desenvolvimento que tem tomado aquella infermidade, d'antes não existente, depois que alli aportou em 1848 um colono chinez. Não me demorarei na apreciação do phenomeno pa- thologico que se dá n'aquellas paragens, principalmente por não permittil-o a natureza deste trabalho: comtudo ponderarei que, a acreditar se nas descripções, póde-sc sem receio de errar dizer que a lepra nas ilhas Sandwich é extraordinária, única, como nunca existiu em parte alguma. Ante os innumeros factos de haver completamente filhado a transmissão da morphéa de individuo a indivi- 30 duo, a despeito da intima convivência dos enfermos com pessoas sãs, e de todas as provocações, e, ao mesmo tempo, da raridade dos casos citados em favor do contagio, os proprios contagionistas, não se dando por vencidos, são, entretanto, obrigados a reconhecer que a lepra é conta- giosa em gráu minimo. Na avidez, porém, de provas, apegam-se, como a um favor da sorte e por isso sem maior exame, ao caso das ilhas Sandwich, completamente em opposição á geral observação em todos os paizes onde ha focos leprosos, e á própria convicção dos contagionistas. Só depois da chegada do colono chinez teria a mor- phéa alli começado ? Eis a primeira, e a questão capital, ainda não resol- vida. Se a moléstia existe desde o principio deste século, conforme a citação tirada do Traite de Climatologie m'e- dicale de Lombard pelo Dr. Le Roy de Mericourt, quando em 1885 discutiu a contagiosidade da morphèa na Acade- mia de Medicina de Paris; se merecem fé as palavras de Quoy, lidas na mesma occasião pelo mesmo doutor e que por minha vez reproduzo: Lèpre. On rencontre encore ici la terrible lépre, moins commune et moins variee qtCaux iles Mariannes, mais non moins funeste à ceux qui en sont attaqués} se assim foi, ó manifesta a exaggeração dos que, fazendo datar de menor tempo a introducção da lepra nas ilhas Sandwich, só consideram o contagio, abstrahindo da successão ou transmissão hereditária, como meio de explicar o incre- mento alli tomado pela enfermidade. Existindo o mal desde o principio deste século, não é de admirar que devam-o á herança os 1.500 morpheticos em uma população de 40.000 almas, acceito o algarismo constante da memória apresentada, sob o titulo-Sur la 31 depopulation de VArchipél IlaioaienDr. Varigny no ultimo congresso de hygiene reunido em Pariz. Demais, o Dr. Varigny, que no trabalho - La lépre aux illes Hawai- publicado na Revue Scientifique de 16 de Julho de 1886, revela sérios estudos da pathologia daquelle archipélago, inclina-se a crer que muito antes da chegada do celebre Ahia, o colono chinez morphetico, já existia a lepra entre os Hawaianos. Entende elle qje "se a lepra não foi importada nas ilhas Hawai em 1779 quando Cook visitou-as, lá devia existir desde muito"; em apoio cita o missionário Stewart, que "em 1823 notou diversos casos pathologicos capitu- lados de lepra por alguns médicos", e também a opinião de Tormander nos seguintes termos: "a lepra polynesiana derivou directamente da lepra hindostanica: nasceu nas índias, onde a terrível moléstia ainda occupa importante foco." Em vista disto a antiguidade da lepra nas ilhas de Sandwich não suffraga a opinião dos contagionistas. Eu disse que o insuccesso das experiencias do Dr. Arning, no sentido de descobrir o bacillo no solo, no ar, na agua ou nos alimentos, era de mais sérias consequên- cias do que pareceria. De feito, a não reproduzir-se o bacillo da lepra em um ou mais desses campos de cultura, como está verificado com o mallogro daquellas experiencias; a ser sómente "o leproso que reproduz a lepra" (o que aliás é exacto), con- forme affirma o Dr. Besnier na communicação feita em 1889 á academia de medicina de Pariz a proposito do Traite de la lepre, do Dr. Leloir; falta explicar como se opera a reproducção nas ilhas Sandwich, isto ê: como o leproso é unico alli em transmittir tão frequentemente o mal, sendo tão rara a transmissão individual, conforme a própria confissão dos contagionistas, nos demais paizes. 32 Em um ponto estamos todos de accôrdo: é o leproso quem, com effeito, introduz e reproduz o mal, o que não quer dizer que o faça por contagio, como rão é por esse meio que o gottoso transmitte a gotta, etc. Verdadeira é a proposição do Dr. Besnier; a demons- tração, porém, é que parece não sel-o. Não ha com effeito observador imparcial que deixe de mencionar numerosos casos, em que a morphéa de um cônjuge não passa ao outro; em que os enfermeiros dos hospitaes, lavadeiras, em contacto durante vinte, trinta e maior numero de annos com doentes ou com roupas servi- das,não contrahiram a enfermidade; em que as leproserias- que deveriam constituir fòcos de contagio, são asylos im- munes de pessoas sãs, que là vivem longos annos. Segundo refere o Dr. Zambaco, permitte-se na lepro- seria de Scutari, perto de Constantinopla, o alojamento de familias pobres da visinhança, levando,crianças ou com- patriotas dos asylados, sendo continuas as relações entre ellas e os habitantes sãos. Enfin, diz aquelle doutor, la, promiscuitè entre les lèpreux, cie Vasile et la population de de la capitale s' accomplit sur une larcje èclielle, princi- pallement une fois par an. Tendo estado em Constantinopla, o Dr. Dujardin- Beaumetz declarou perante a Academia de Medicina de Pariz, "ter verificado de visu os principaes factos em que se apoia o Dr. Zambaco, para affirmar o não contagio da lepra ; que a ninguém é prohibida a entrada na leproseria de Scutari, havendo até a singular superstição de ser con- siderado presagio de felicidade gyrar com um leproso uma mò collocada no interior do estabelecimento-" Outre les personnes, accrescenta Dujardin-Beaumeiz, "qui penètrent dans cette leprozerie pour des pratiques supersticieuzes, des enfants y viennent aussi et y sejournent pendant des aíinées. Jamais aucun cas de contagiem n'a 33 étê observe soit chez les personnes venues da dehors, soit chez les personnes qui demeurent dans la léprozerie." Aqui mesmo, na Capital Federal, posto não haja termo de comparação entre as praticas seguidas no Asylo de Scutari, observa-se que por temor de contagio não se deixa de ir ao hospital dos lazaros ou á festa que alli se celebra annualmente. Fica, pois, sem explicação a. famosa lepra eminente- mente contagiosa das ilhas Sandwich, e como tal somente reconhecida e acceita em desespero de causa. O argumento derivado de semelhante occurrencia clinica assume taes proporções que... prova de mais. VI A importância da questão levantada pelo illustrado Dr. Pedro Severiano de Magalhães obriga-me a dar ao meu modesto trabalho mais amplitude do que 'pre- tendia. Existindo a morphéa no Brazil, e frequentemente em alguns Estados, como S. Paulo, Minas e Pará, muito in- teressa á hygiene prophylatica determinar a natureza, contagiosa ou não, desta enfermidade. Um dos médicos que a observaram em S. Paulo, o Dr. Lutz, propendendo em favor do contagio, denunciou a contaminação dos allemães alli residentes, circumstancia grave para nòs. Tendo eu examinado também alguns allemães mor- pheticos em S. Paulo, externarei em subsequente artigo a minha opinião quanto ás condições que concorreram para a manifestação do mal. Por emquanto occupar-me-hei de outros pontos rela- cionados com o esclarecimento da controvertida questão 36 do contagio, continuando a attender ao desenvolvimento attribuido á morphéa nas ilhas Sandwich, o que aos conta- gionistas tem constituído argumento poderoso em seu favor. No citado artigo- La lèpre, aux iles Hawai- affirma o Dr. Varigny dividirem-se as opiniões, mesmo alli, pro e contra o contagio ; invocando os não contagionistas em seu apoio numerosos casos de cohabitação entre leprosos e pessoas não affectadas, e de dentadas sem transmissão do mal ; e também a immunidade da lavadeira do hospital que, além de exercer esta profissão durante 17 anno», foi casada com dois morpheticosa Os contagionistas apresentam exemplos em contrario, versando sobre a transmissão por convivência, e casos de empregados da lepreseria de Malokai accomraettidos de morphéa, inclusive o padre Daniel, que veiu a soffrer de lepra, á qual succumbiu. O mesmo Dr. Varigny, aliás propenso ao contagio, considera exagerados os argumentos de parte a parte. Se nos proprios fócos, como vimos, o contagio não se impõe de modo a conciliar as opiniões, e um historiador desapaixonado reputa exagerados os exemplos produzidos, não é muito que aquelles que, como eu, não verificaram até aqui caso algum de contagio na longa pratica da mor- phéa, suspendam juizo quanto ás occurrencias das ilhas Sandwich. Demais, o que se sabe relativamente á depravação dos Hawaianos, que, não obstante a sua boa conformação, acham-se ameaçados de imminente extincção, deve con- stituir sobreaviso quanto á parte attribuida á lepra ness obra de extermínio. Pela estatística apresentada na memória do Dr. Va- rigny ao Congresso de Paris sobre o despovoamento do archipelago Hawaiano, devido priucipalmente á vida des- regrada e a excessos de toda a sorte, vê-se que a população, 37 sendo de 142.000 habitantes em 1823, havia descido a 40.014 em 1884 continuando a decrescer, segundo affirma o autor. La syphilis, diz elle, constitue la plaie par excellence cie la race hauoaienne. N'estas condições tão extraordinariamente excepcio- naes, em que, a par do completo aniquilamento das leis naturaes e da maior promiscuidade, avultam os excessos venereos de modo destructivo, como encontrar o fio do contagio naquella confusão e profusão de vicios ? Como estranhar o crescido numero de morpheticos, explicado por transmissão hereditária, provocada naquelle gráo ? O estudo da lepra nos logares em questão pede, como parece, inais cuidado e menos prevenção. Invocar este exemplo anomalo para justificar o prin- cipio que -se pretende firmar relativamente a uma affecção cuja marcha é mui diversa em outros paizes ; converter a excepção em regra, poderá ser um recurso em falta de outros elementos comprobatorios, mas seguramente in- admissível em boa hermeneutica. Em logar nenhum receiou-se ou receia-se, como nas ilhas Sandwich, que a morphéa constitua um dos princi- paes factores de aniquilamento da população, mesmo sendo esquecidas, como succede no estrangeiro e no Brazil, as providencias capazes de impedir o desenvolvimento deste mal. O Dr. Zambaco menciona na sua obra - Voyage chez les lépreuz, já por mim citada, vários logares onde é sensível o declínio da morphéa, não obstante a liberdade de communicações concedida aos affectados, conforme se observa entre nòs, como terei de mostrar. O Dr. Kermorgant, medico inspector das colonias, publicou em maio do corrente anno nos Archives cie Mê- decine Navale um artigo intitulado Contribution á la Géo- graphie Mèdicale, em que diz que a lepra tem decrescido 38 na Islandia, sendo de esperar o desapparecimento ante o o progresso da hygiene e a prosperidade dos indígenas. No XIV século, accrescenta o autor, em uma popu- lação de 40.000 almas havia 200 leprosos ; em 1875, con- forme dados ofiiciaes colligidos pelo clero por meio de re - censeamentos annuaes, era de 60 o numero de leprosos para 70.000 habitantes, numero que em 1890 tinha descido a 47, distribuídos em pequenos grupos. Diz o Dr. Kermorgant, completando a noticia, que alli a morphéa ê considerada hereditária e não contagiosa ; mencionando casos de cohabitação conjugal por 20 e 30 annos sem communicação do mal, e finalmente o facto de permanecerem vasias as leproserias. Do exposto vê se que o acontecimento pathologico das ilhas Sandwich, a cada passo dado como prova incon- cussa do contagio, não constitue caso julgado : é cedo ainda para invocal-o como prova sufliciente de contagio da mor- phéa. Para nada faltar á triste celebridade do archipelago hawaiano, foi alli, como é notorio, que pela primeira vez vingou a inoculação do virus leproso. Essa inoculação, cujo insuccesso contou-se sempre pelas tentativas feitas, por fatalidade vingou-se uma vez. Uma commissão adrede nomeada declarou, em pare- cer que corre impresso, que o paciente effectivamente apre- sentava os symptomas caracteristicos da lepra tuber- culosa. Considerada a inoculação uma das condições para que uma moléstia seja reputada microbiana e contagiosa, o exito obtido em 1884 pelo Dr. Arning em um condem- nado, cuja pena verdadeiramente não foi commutada mas permutada, não podia deixar de ser acolhido com satisfa- ção e enthusiasmo, pelos que procuravam na pratica a con- firmação da theoria. 39 Superado o ultimo reducto, foi estrondosa a victoria dos contagionistas. Dissiparam-se as duvidas e as hesitações ante aquella prova real, fulminante. A experiencia, diz o Dr. Arning, fez-se em um indi- viduo que " não soffria do mal nem pertencia a familia contaminada." Ilansen obteve uma vez o mesmo resultado, mas veri- ficou-se que o paciente já era leproso. Desta vez, porém, affirma-se que o condemnado estava são. Longe de mim duvidar da lealdade do experimenta- lista, mas assim como o Dr. Arning " fez estipular em contracto que o paciente continuaria em custodia por muitos annos, a fim de excluir-se a possibilidade da conta- minação accidental ulterior", parece que não andaria mal avisado, submettendo-o a exame em presença de outros médicos, para dissipar qualquer duvida relativamente a indicio de mal incipiente. Relativamente á circumstancia de não pertencer o inoculado á familia contaminada, não devia ser muito se- gura, quero crer, a convicção do Dr. Arning ; como não será por certo a de quem houver lidado com raorpheticos, os quaes, não por má fé, mas principalmente por ignorância, negam apenas questionados e sem reflectir a existência de parentes seus affectados de semelhante enfermidade. Empenhado em colher o resultado da experiencia, o Dr. Arning, segurou a mâo, implantando não só fragmen- tos de pelle leprosa en plusieurs parties du corps, como praticando varias inoculações com pus leproso, as quaes nada produziram, não succedendo o mesmo com o enxerto da pelle leprosa. De feito, segundo declara o Dr. Arning, sobrevieram na quarta semana dores rheumaticas subagudas, come- çando pelo cotovello esquerdo, do lado do braço onde 40 havia feito uma das implantações; as dores propagaram- se por outras articulações, persistindo durante quatro mezes. Em seguida appareceram, ao longo do nervo cubitaL as tumefacções caracteristicas, etc. O Dr. Arning praticou, pois, muitos traumatismos de uma vez, conseguindo provocai' as referidas manifestações dolorosas, que terminaram, segundo consta, pela completa caracterisação da fórma tuberculosa da morphéa. Não ê fóra de proposito referir as declarações de um dos meus primeiros doentes desta enfermidade. Disse-me que, havendo grande quantidade de ratos em uma das fabricas de tecidos em Petropolis, onde era empregado, um daquelles animaes roeu-lhe parte do dedo de um pé, e que ao acordar sentiu bastante dor no logar offendido, no qual sobreveio inflammação. Ao cabo de alguns dias cicatrisou a ferida, tornando- se insensivel o dedo e parte do pê; posteriormente esten- deu-se a insensibilidade aos dedos visinhos, e dahi aos do outro pé, manifestando-se também nos das mãos, etc. O doente, que apresentava a fórma mixta da morphéa, attri- buia o mal ao traumatismo resultante da mordedura do rato. Outro caso: na minha primeira visita ao hospital de Lazaros, em Campinas, encontrei um preto doente, que attribuia o seu soffrimento á picada de uma jararaca; de- clarando que havia sentido forte dor no logar offendido, do qual perdeu a sensibilidade, e que passado algum tempo augmentou-se a insensibilidade, transmittindo-se para o lado opposto, e dahi para outras partes do corpo, causando-lhe, accrescentava o doente, a moléstia, que era de fórma tuberculosa. Terceiro caso: na minha segunda visita ao referido hospital, ouvi de outro doente a mesma narrativa, mais ou menos, relativamente a si. 41 Quarto caso: respondendo a um questionário proposto pelo meu distincto amigo o Dr. Sérgio Meira, inspector de hygiene em S. Paulo, sobre a frequência da morphéa no Rio Claro, o Dr. França, delegado de hygiene naquelle município, refere-se a um enfermo de Itapetininga, que declarou-lhe ter sido mordido por uma jararaca de cauda branca, começando a moléstia por adormecimento, pas- sado algum tempo, em roda do logar da mordedura. Quinto caso: um dos meus doentes referiu-me ter re- cebido forte pancada nos dous nltimos dedos da mão esquerda, causando intensa dôr; passado o accidente notou nos mesmos dedos a insensibilidade, que dahi ramificou-se lentamente por outros pontos: era um leproso de fórma tuberculosa. Sexto caso: ultimarnente em Petropolis um leproso allemão, a quem interroguei cuidadosamente, interessado em saber do estrangeiro quaes as condições em q ie sobre- veiu-lhe a moléstia, disse-me que a attribuia á dentada de. uma cobra na mão esquerda. Declarou-me também ter soffrido grande dôr no logar offendido, que s bsequentemente tornou-se insensível. Julgava terminado o incidente, quando algum tempo depois appareceu-lhe dôr aguda ao longo do braço (ao longo do cubital) com o tempo outros pontos tornaram- se insensíveis, sobre vindo vermelhidão roxeada no rosto, tumefacção nas orelhas, etc. Consultando a vários médicos, entrou em tratamento sem resultado algum, pelo que deliberou consultar o vi- gário da freguezia que opinou pela suspensão dos remedios que em vez de bem, faziam-lhe mal. 11 O Sr. vigário, disse-me o homem, entende que o meu mal é resto do veneno da cobra, que ainda está no corpo, e nada mais"; e discorrendo sobre o assumpto procurou convencer-me disso. Perguntando-lhe se algum parente tinha soffrido da 42 pelle (sabem os doentes que isso equivale a indagar se soffrem de morphéa), respondeu-me agastado: "nenhum; demais eu já disse que não tenho mal de pelle; sahindo o resto do veneno da cobra ficarei bom." Nesta capital deu-se um caso que, não sendo de mor- phéa, serve, entretanto, para mostrar, que uma nevrite parcial pòde por impulso proprio ir muito além, compro- mettendo outros pontos do organismo: um distincto ci- rurgião soffreu uma picada anatómica em um dedo de uma das mãos, segundo referiu-me o meu prezado amigo Dr. Tobias Rabello Leite, seu contemporâneo; ao acci- dente seguiu-se uma nevrite, que, restricta a principio ao dedo offendido, estendeu-se aos outros dedos, passando aos da outra mão, e finalmente atacou os pés, inutilisando- o até agora para o ramo scientifico, que exercia proficien- temente. Com essas referencias não pretendo forçar analogias, e attribuir ao traumatismo causado pelo Dr. Arning no infeliz operado as lesões subsequentes, que terminaram pela caracterisação da morphéa; mas simplesmente enun- ciar que lesões physicas podem provocar esta enfermidade em indivíduos "dispostos à mclestia leprosa", conforme o modo de ver de Virchow, considerado por muitos como anachrouico, mas que ainda adopta como verdadeiro. Seja como fôr, o resultado obtido no infeliz condem- nado não é tão liquido como apregoam os contagionistas, mais realistas do que o rei. Não é meu intento empanar a verdade, nem diminuir o enthusiasmo dos que acclamavain a victoria da expe- riencia; mas simplesmente reduzir o facto ás suas verda- deiras proporções. Depois do insuccesso de tantas tentativas no homem e no animal, parece não ser prudente acceitar sem reser- vas o resultado obtido pelo Dr. Arning, por insinuante que seja a coincidência. 43 Dá-me razão o proprio operador, que, communicando o facto ao primeiro Congresso da sociedade allemã de dermatologia sob o titulo-Inoculação da lepra-ter- mina por estas palavras: "Je dois ccpendant observer que cette opération n'est pas une inoculation tout à fait à 1'abri de toute objection, puisque 1'individu a pu être trés predisposé dejà par sa race et a vécu dans un pays ou la lépre règne ; peut-être même que cette predispositiom climaterique et individuelle a une grande importauce pour le succés de 1'inoculation. Aussi je me garderai de for- mulei-, à propos de ce cas, des conclusions sur 1'inoculabi- lité de la lépre". Não obstante as restricções do Dr. Arning, o resul- tado da sua inoculação passa por decisivo, na opinião de auctores e de alguns médicos brazileiros. Depois deste facto, só tive noticia de outro, commu- nicado á Academia Nacional de Medicina, na sessão de 24 de Outubro de 1889, pelo distincto dermatologista Dr. Silva Araújo, por conhecimento que teve pela leitura de um jornal. Não admira que depois do primeiro resultado feliz da inoculação do virus leproso outros appareçam; o con- trario é que seria estranhavel: "pegando a moda não ha quem queira ser jarreta." O Dr. Pedro Severiano, decidido contagionista, não acceitará provavelmente as minhas reflexões, e apresentar- me-ha outras autoridades igualmente convencidas, que baseam a opinião contagionista em factos observados em outros logares. Não voltarei á carga, considerando que em matéria de interpretação as opiniões raramente se arregimentam. O illustrado collega citará casos era favor do contagio como o do Irlandez: accommettido de lepra por ter-se dei- tado na cama e servido da, roupa deum irmão, que depois 44 de longa ausência regressara á Irlanda com a enfermidade adquirida na índia. Como explicar o facto, a não serpeio contagio? Não fica-me mal confessar que não sei, como nós os médicos não sabemos explicar muitas outras occurrencias clinicas. Reflectindo-se sobre a intransmissibilidade da molés- tia, geralmente verificada, de um a outro cônjuge apezar de mais intima convivência na mesma casa, no mesmo quarto, no mesmo leito, por longos annos, e em um sem numero de vezes, custa-se a comprehender o caso do Ir- landez. Não é para menos. As inoculações, varias vezes feitas, de pús ou sangue leproso, a adaptação do proprio tubérculo em pelle sã, fa- lharam ; vingando somente, com a devida reserva do proprio inoculador, o caso do condemnado, cuja pelle quasi foi substituída pela do leproso; entretanto o simples dormir no leito e o vestir a roupa bastavam para determi- nar o contagio, sem que ao menos tenha-se demonstrado a existência do bacillo de Ilansen nos utensílios dos le- prosos ! Por ventura pude explicar como de um leproso nasceu um epiléptico, conforme referi no meu opusculo-A cura- biliclaele ela morphea? Como deste epiléptico nasceram sete filhos, tres dos quaes vieram a soffrer de lepra, moléstia do avô, e tres de epilepsia, moléstia do pai ? Porque causa uma menina de 7 annos apresentou-se morphetica, não havendo na familia, aliás muito conhecida nem no logar onde nasceu, um só caso de enfermidade, notando-se sómente entre seus ascendentes um louco e um canceroso ? Também não soube explicar. Tenho tido na minha clientela alguns leprosos, cuja enfermidade até aqui não foi-me possivel justificar, 45 apezar do minucioso cuidado que observo nas investi- gações. Agora mesmo acompanho um enfermo de trese annos, pertencente a familia extensa e conhecida na qual nunca houve caso algum de morphéa; accrescendo que o referido enfermo tem sido creado como se fosse uma menina, sem sahir de casa, e nunca se aproximou de morphetico algum. Como explicar o caso ? Pelo contagio ? mas de que modo ? Também não posso atinar como em uma das minhas doentes, unica na familia, cessaram as frequentes hemi- cranias, apenas declarou-se-lhe a lepra, e em outra desap- pareceram os accessos hystericos. Terá a morphéa causas múltiplas, como entende o professor Hardy ? Poderá ser o producto de dous temperamentos des- harmonicos ? Será moléstia autonoma, ou membro de alguma fa- milia mórbida ? Haverá alternação entre a lepra e alguma outra en- fermidade, como o professor Charcot e o Dr. Ebstein verificaram existir entre a gotta e a diabete ? Os doentes, nos quaes foi-me impossivel determinar a origem da moléstia, serão exemplos dessa alternação ? Questões ociosas, extravagantes, posto que dignas da mais seria attenção, do mais sollicito exame, são as que ficam consignadas, por mais que repugnem á crença da origem parasitaria e do contagio da morphéa. VII A communicação apresentada à Academia de Medi- cina de Paris, na sessão de 11 de Outubro de 1887, a proposito do Traité de la lépre do Dr. Leloir, uma das publicações mais interessantes que conheço sobre a mor- phéa, deu logar na douta corporação a notável discussão, que principal mente sobre a questão do contagio, man- teve-se activa, elevada, brilhante, terminando entretanto, sem vencidos e vencedores; porque se os anti-contagio- nistas não levaram a palma aos contendores, estes também não conseguirão victoria alguma. Cada um ficou com os seus argumentos e opiniões. Da communicação ou parecer do Dr. Besnier a parte menos consistente é, em minha opinião, a que trata da transmissão directa da lepra, da contagiosidade, susten- tada pelo autor com os recursos do seu talento, tirando das circumstancias e dos factos, interpretados com muita habilidade, as vantagens qne poude em apoio da opinião contagionista. 48 Entende que não é o solo de um paiz, nem as aguas, nem os alimentos que fazem o leproso: é o homem, o le- proso. O mais forte argumento dos contagionistas não de- riva de factos isolados, mas das epidemias, isto é: do rá- pido incremento da moléstia em algumas localidades, facto que a herança por si só não poderia sufficientemente explicar. ão podendo, pois, discorrem elles, ser a herança, sò o contagio poderá explicar este desenvolvimento. Mas (começam aqui as difficuldades) se o contagio póde de tal modo augmentar a propagação da moléstia, imprimindo-lhe caracter epidemico, segue-se que é fací- limo e frequente ; neste caso, como conciliar e compre - hender os contagionistas, que ora admittem o contagio como capaz de atear os fócos da moléstia, convertendo-a em epidemia, ora res mínima, como pensa o Dr. Leloir, ou difficil, como opina o Dr. Vidal, um dos mais decididos coripheus da contagiosidade da lepra ? Quando os anticontagionistas ponderam que em con- siderável numero de casos, e nas mais favoráveis condi- ções, no lar domestico entre cônjuges ou nos hospitaes, falha sempre o contagio, respondem-lhes os contagionistas: sim, mas isso explica-se ; o contagio da lepra é difficil; dá-se em gráo minimo. Tendo, porém, noticia de grande numero de lepro- sos em uma localidade, como affirma-se que é nas ilhas Sandwich, allegão que, sendo insufficiente a herança para explical-o, só o contagio póde fazel-o. Aqui-facil, alli-difficil; aqui-frequente, ali-mi- ni mo: um enygma, um mysterio o contagio da morphéa, conforme entendem os seus proselytos. Também a gotta já passou por contagiosa. Ebsttin, no seu livro sobre esta moléstia e seu trata- mento, cita a opinião de Boerhaave, favoravel ao contagio 49 baseada na observação de casos de senhoras de elevada gerarchia, que, desposando gottosos, foram contaminadas pelas moléstias dos maridos. Nota o autor que, a julgar pela afiirmativa de Mom- ber era muito seguida a opinião de Boerhaave. Cita também a observação de Seneca, notando que na decadência do império romano as mulheres entregavam-se a excessos de toda sorte e eram tão accessiveis ao mal da gotta como os homens. Rendu, no artigo Goutte do Diccionnaire encyclope- dique, pondera que, segundo muitos documentos, a gotta era mui frequente e diffundida pelas provincias do im- pério romano, e considerada-endemia em Inglaterra, Ilollanda e no Norte da França, onde são tradicionaes as refeições plantureuses et de la vie large. A que vem, perguntar-me-hão, a referencia á gotta, moléstia sem analogia com a morphéa ? Em resposta direi que talvez com mais razão do que ao primeiro aspecto signifique: quando descobrir-se a bactéria da gotta, o que não tardará muito, estes factos serão invocados, e recentes casos de contagio, confirmando os antigos, accusados pelos observadores modernos. Realmente não existe analogia entre as duas affe- cções; enorme distancia as separa, coi respondendo a co- lossal desproporção entre os afortunados e os necessi- tados. Que importa, porém, a quantidade? Descoberto o bacillo da gotta, verificado que os no- dulos gottosos são producto microbiano, recuperará a antiga classificação de moléstia contagiosa, em obediên- cia á doutrina parasitaria. O contagio, em qualquer hypothese, será rarissimo, como reduzidissimas serão as epidemias, contrastando com as da morphéa; porque, ao passo que a explosão da gotta depende de boa carne, bom vinho e boa ociosidade, isto é; 50 mesa lauta e vida larga, que poucos podem gosar; para a reproducção da morphéa basta muitas vezes a miséria e um pouco de azeite rançoso, como refere Zambaco na sua peregrinação pelos paizes leprosos. Argumentos, factos e partidários acudirão oppor- tunidade, confirmando e celebrando a nova conquista. Para não parecer intolerante com a liberdade de pen- samento e das opiniões contrarias, ou pretencioso relati- vamente á minha opinião, deixo o assumpto, continuando no exame dos argumentos produzidos em apoio do con- tagio da morphéa. O Dr. Besnier menciona no seu relatorio dous, que não podem passar despercebidos; um é quando julga co- lher em contradições os médicos da Noruega, que, apezar de anticontagionistas, tratam de aperfeiçoar o systema do isolamento dos morpheticos considerado pelo Dr. Besnier "o mais decidido dos anticontagionistas" e prepa- rando aliás com afan uma leproseria no Oriente. Esta objecção não está, a meu ver, na altura da ca- pacidade intellectual do insigne traductor e annotador da obra do professor Kaposi. A razão é intuitiva : os médicos norueguezes e o turco - em outros termos : todos os anticontagionistas consideram a herança o principal meio de propagação da morphéa; e para evital-a o meio unico é isolar o doente; é a leproseria a medida hygienica tanto contra a herança, como contra o contagio-na opinião dos que admittirem- no: neste particular, seguindo direcção opposta, chegam os contagionistas e os anticontagionistas á mesma e unica solução, que é o sequestro dos doentes : aquelles para impedir o contagio, estes para evitar a reproducção here- ditária. O outro argumento consiste na declaração do Dr. Lutz, clinico durante algum tempo na capital de S. Paulo, de haver verificado no Brazil, principalmente em relação 51 á lepra dos nervos, que "a primeira localisação dá-se quasi sempre nos tecidos descobertos, exposés aux piqures d'in~ sedes et autres traumatismes. Não duvidando da lealdade do Dr. Lutz, devo de- clarar que esta observação não confere com o resultado das minhas pesquizas. Sou talvez um dos médicos, principalmente dos bra- zileiros, que maior numero de morpheticos tem tido occasião de examinar, ou para melhor dizer-de estudar - por serem elles o livro que de preferencia consulto. Nas minhas investigações tenho sempre o cuidado de indagar onde manifestou-se o primeiro signal da moléstia, o seu primeiro symptoma; podendo affirmar que, em qualquer das formas clinicas da morphéa, a primeira mancha ou a primeira placa anesthesica declarou-se em um dos lados do pé, na perna, em uma nadega, nos braços, algumas vezes nas mãos, e raramente em um dos lobulos das orelhas. Dahi o mal estende-se a outros pontos; na forma anesthesica desenvolve-se principalmente nas mãos e nos pés e na tuberculosa no rosto; isso devido, não a picadas de insectos, mas a condições anatomo-physiologicas. Longe iria se examinasse a questão do contagio da morphéa, apresentando os argumentos produzidos e sus- tentados por anticontagionistas, ou casos da minha cli- nica; da memorável e ultima discussão na Academia de Medicina de Paris nenhum subsidio colhi, não obstante ter á mão a collecção dos Bulletins, de 1888. Limitando-me a generalidades, tive unicamente em mira mostrar que, se actualmente é maior o numero dos que, levados mais pela theoria do que pela observação dos factos, acceitam o contagio da morphéa, a questão não está resolvida, como pretende o Dr. Pedro Severiano de Magalhães. Poucos são certamente os anticontagionistas ; mas 52 esses poucos sustentam a sua opinião, independentemente de preoccupações ou theorias, mas pelo que veem e observam. De lado a lado não prevalecerá o desanimo: aguar- demos os acontecimentos, e não esqueçamos de que, se- gundo diz o rifão, o mundo dá muitas voltas, VIII Outra questão, que está entregue ás vicissitudes da do contagio, c a da hereditariedade da morphéa. Hansen, o dictador do contagio dessa enfermidade, decretou por igual não ser ella hereditária, uniformisando assim a sua doutrina quanto á contagiosidade, e mos- trando-se coherente com ella. Outr'ora era geral a crença da transmissão de paes a filhos ; actualmente dividem-se as opiniões em tres grupos: Os que continuam a adoptar a hereditariedade do mal ; Os que creem na herança e no contagio; Os que sò admittem o contagio, que em sua opinião tudo explica. Os primeiros são anti-contagionistas, os segundos-■ contagionistas prudentes, conciliáveis, que desejam viver em paz com o passado e o presente; os terceiros-conta- gionistas puritanos, intransigentes, irreconciliáveis, que 54 tudo sacrificam ao ideal da theoria, as exigências dou trinaes. Confesso francamente que a negação da heredita- riedade da morphéa \é uma das cousas de que mais me admiro: a adopção do contagio e admissível, > poique ha factos e circumstancias que mais ou menos autorisam essa crença: negar porém, a hereditariedade, parece cegueira, comparável somente á que impedisse a contemplação da luz tropical em pleno dia de estio. O contagio explica tudo ! Absolutamente não. A herança da morphéa, interpretem-na como quize- rem os doutrinários, é facto que impõe-se axiomatica- mente. Por vezes na minha clinica, ao -deparar casos perfei- tamente caracteristicos, acode-me a seguinte ponderação: e nega-se ajierança ! Em minha terra natal, onde cliniquei durante onze annos, deu-se o primeiro caso de morphéa em uma pessoa alli nascida. Caracterisado o mal, o infeliz separon-se da familia recolhendo se a uma casa isolada, onde era assiduamente procurado por um grupo de affeiçoados, que com elle conviviam. Tinha um irmão, com quem não se dava. Poucos annos decorridos (eu ainda lá estava) appa- receu outro caso, não em nenhuma das pessoas, que, fre- quentando quasi diariamente aquellej retiro, podiam sei- contaminadas;]'mas em nma que lá não ia, no irmão do infeliz affectado. Qual a causa da moléstia no primeiro enfermo ? O contagio? não; salvo se o germen transpoz o oceano, vindo do Norte ou do Sul. Qual a causa no segundo ? O contagio ? muito menos; porque o enfermo nunca 55 visitou o irmão, batendo entre elles rompimento de re- lações. Tempos depois, deu-se o terceiro caso; desta vez era a mãi dos dous a affectada Na opinião dos contagionis- tas a superveniencia da lepra em ascendente depois de descendente é prova de contagio. Admittil-o, porém, neste caso importaria reconhecer que o mal, poupando os que viviam em contacto com os dous primeiros enfermos, ca- prichosamente affectava a quem não estava nas mesmas condições. Ligadas as circumstancias, a unica conclusão é que os dous irmãos tinham predisposição hereditária, manifes- tando-se nelles o mal primeiro que no ascendente-a mãi, facto confirmado por outros iguaes, referidos por diversos autores. Descubramos a origem: Houve na mesma localidade um homem, casado, tendo do consorcio um filho, a quem conheci; alem desse teve uma filha adulterina. O chefe dessa familia morreu morphetico ha mnito tempo. A filha adulterina ê a progenitora dos dous mor- pheticos: a mesma que enfermou depois dos filhos. O filho legitimo era eczematoso; casando, teve um filho: o moço morphetico que, segundo referi, veio a esta capital procurar me: neto do primeiro morphetico, nasceu muitos annos depois do fallecimento deste. Posteriormente deu-se mais um caso de lepra era pessoa de outra familia. Averiguada a origem do mal, reconheceu-se ser o ultimo doente (uma moça) filho de um contaminado da familia precedente. São casos que, pela clandestinidade das relações ou pelo tempo da declaração do mal, excluem de todo a idéa do contagio, confirmando cabalmente a transmissão hereditária. A manifestação da morphéa no moço que aqui veio 56 e, quanto a origem hereditária, um caso da maior eviden- cia, visto não ter o pae (o eczematoso) soffrido desse mal, e nascei1 muitos annos depois do avô morphetico. Um dos filhos do primeiro morphetico, que, como disse, separou-se da familia vindo estudar nesta capital, em estabelecimento onde nunca houve caso de morphéa, foi por sua vez acommettido, e acha-se submettido aos meus cuidados. Se, pois, a lepra de familia resulta do contagio, como querem os contagionistas, apresento esses casos em que evidencia-se o erro da interpretação. Igual reflexão suscita o caso do pae epiléptico com filhos morpheticos. Quem contaminou o primeiro filho do epiléptico ? O avô morphetico não podia ser por ter fallecido muito antes do nascimento dos netos; o pae também não, por não soffrer de morphéa: neste caso de onde veio o mal ? Este e outros muitos da minha clinica só tem uma explicação: disposição para a moléstia leprosa. Demais, como admittir que os filhos não herdaram, mas foram contaminados pelos pais, considerada a immu- nidade do cônjuge são, aliás muito mais exposto á conta- minação ? Que contagio é este, que poupa a quem mais exposto está a recebel-o ? e que, alem de poupar a quem mais acha-se sob a sua influencia, não alcança o pessoal do serviço domestico ? Que contagio é este, pergunto ainda uma vez, très minime e difficile, que só deixa de sel-o para os filhos dos morpheticos ? Não pode ser: a preferencia e a frequência com que a lepra ataca os descendentes (só a estes) dos infelizes enfermos, quando não patenteassem outra origem-a he- 57 rança-, pelo menos deviam gerar suspeita no espirito do observador despreoccupado e imparcial. Assim não succede, e os contagionistas, ferteis em recursos para sustentar a sua opinião, fazem vista grossa a este e a outros factos, que a contrariam. Eu poderia mencionar outros da minha clinica, que não deixaram-me sombra de duvida relativamente á transmissão hereditária: não o faço, por entender que os já apresentados constituem prova cabal e irrecusável da hereditariedade da morphéa, limitando-me a acrescentar os factos, citados por vários autores, em que a moléstia saltou uma e mais gerações, havendo, portanto, interru- pção do contacto. O Dr. Vasigny, no artigo a que mais de uma vez referi-me, publicado na Revue Scientifique, cita o Dr. Murilo-que não crê na herança "pela frequente esteri- lidade das uniões entre leprosos ou entre estes e pessoas sãs, e quando são fecundos, os filhos nascem quasi sempre mortos"; entendendo o mesmo Dr. Murilo que o contagio pode ser sempre invocado nos casos de herança. E' este um argumento novo contra a herança e a favor do contagio, que merece ser tomado em conside- ração. Tem fnndo de verdade a opinião do Dr. Murilo ; mas enunciada como está, é falsa0 Não ha esterilidade entre o leproso e a pessoa sã, nem comprehendo semelhante asserção, contrariamente á eloquência dos factos. A esterilidade é certo, sobrevem, mas em periodo adiantado da moléstia, primeiro no ho- mem, depois na mulher. Tenho observado leprosas proliferas, como se nada sofEressem, entre as quaes uma que procreou, já em adian- tado estado de soffrimento, e com ulceras em vários pontos do corpo. 58 Tenho também visto filhos leprosos e sãos de mor- pheticos, com vigor physico apparente, e mesmo real. Carece, pois, de fundamento a opinião contraria á herança e favoravel ao contagio, baseada na esterilidade dos morpheticos em união com pessoas sãs, porque evi- dentemente estes podem procrear, diffundindo o mal por transmissão hereditária. O que realmente dá-se, ê o enfraquecimento progres- sivo da geração de procedência leprosa, enfraquecimento mais ou menos demorado, mas innegavel. E' um estudo por fazer o das gerações dos morphe- ticos.* as minhas observações não ultrapassam a terceira geração. Em alguns casos tenho notado que os filhos morrem, não ao nascer, como affirma o Dr. Murilo, mas com alguns annos de idade, uns de convulsões, outros de febres graves, etc.; a prole é então pouco resistente. Desses factos deriva uma conclusão de grande al- cance, pelo subsidio que pode prestar ao esclarecimento de certos phenomenos. A historia da lepra mostra que esta enfermidade, encarada de modo geral, tende a diminuir, desappare- cendo completamente em alguns paizes da Europa, onde a presença do morphetico é actualmente innoxia; que, depois de maior ou menor desenvolvimento, tende tam- bém a decrescer nos paizes onde existe. O Dr. Zambaco nota a diminuição da morphéa na Turquia, referindo-se também a Portugal e a Hespanha, onde dá-se igual phenomeno. O mesmo autor poderia também incluir o Brazil, como mostrarei, se, mencionando-o como paiz affectado pela lepra, não tivesse seguido as inveridicas informações do Dr. Ossian, que passando aqui algum tempo como ar- tista de modelo em figuras de cêra, retirou-se annunciando ter realisado estudos sobre a lepra em S. Paulo. Ignorando a verdade, o Dr. Zambaco publicou no 59 livro Voyage chez, les lépreuz casos como estes: Ze Brè- silien aime peu la propretè; et, chose remarquable ! dans le nord da Brésil ou la chatear est tropicale, puisque le thermométre monte audessus 40° centigrades á Vombre, il n'y a point la lepre, tandis qiCelle est très commune dans les provinces temperées. Quanta inexactidão commettida aliás em boa fé ! Prescindamos disso. O autor citado refere-se a ilhas e outras localidades onde a lepra, outr'ora frequente, tem gradativamente de- clinado, e o que mais é, sem a menor medida de repres- são, sò e exclusivamente com a melhoria das condições hygienicas e sociaes, a partir da substituição dos mise- ráveis regimens alimentares por uma alimentação sã, de accordo com o progresso da civilisação. Referindo-se ás ilhas de Metelin e Chio affirma que a diminuição sensível da morphéa alli ne peut être attribuée á la moindre prè- caution prise par le gouvernement ou par la societe dans ce but. Na Noruega, um dos paizes onde a morphéa tem provocado mais a attenção dos observadores, é patente a diminuição progressiva da enfermidade, facto attribuido pelos contagionistas as medidas de sequestração. E' indubitável a efficacia da sequestração, não sendo, porém, illusoria a medida. Na Noruega ha com effeito leproserias, ás quaes pre- tende-se, a fina força, attribuir a reducção do mal. O Dr. Leloir, que lá foi estudal-o, assim o pensa, econhecendo aliás (note-se bem) que todos os leprosos ,-não eram recolhidos aos asylos, que nesses asylos o isola- mento não era absoluto ; declarando também que "em 1884 existiam na Noruega 1.500 aproximadamente, 900 dos quaes viviam livremente"; e relativamente aos iso- lados que "elles saem e passeiam pela cidade." Quoiqu'il en soit, la lépre diminue en Noruège, diz o 60 mesmo autor griphando a expressão, e acrescentando "não estar provado que este resultado depende da instal- lação das leproserias, porque familias leprosas desappa- recem fatalmente ao cabo de algumas gerações (o gripho é meu) pela mortalidade, celibato, isolamento, etc." O Dr. Leloir conclue pelas seguintes palavras, expres- são de um facto realissimo, e que poderiam servir de epigraplie de alguma producção scientifica contra o con- tagio da lepra. La lèpre se tue elle-même. Eis a grande a lepra vai pouco apouco morrendo. Nasce, desenvolve-se, attinge a virilidade, descamba para a decrepitude, e desapparece. Dahi o inicio de um fóco leproso, o seu incremento, a maxima actividade, o decrescimento progressivo, inde- pendentemente de medidas de precaução, e a extincção, modalidades qus correspondem ás phases da moléstia na successão da descendencia. As denominadas epidemias são o reflexo, o espelho dessas phases. Desapparecendo de uma localidade, a mor- phéa nunca reapparecerá : nos paizes do sul da Europa, onde em outro tempo desenvolveu-se consideravelmente, não reinará mais : em Paris, onde apparecem leprosos de outros paizes, não se reproduz nem se reproduzirá, obstado pelo funccionamento orgânico sob a influencia dos regi- mens alimentares aperfeiçoados pela civilisação actual ; o que dar-se-ha também relativamente aos casos autoch- tones, que alli se manifestam, por serem productos hybri- dos, e por isso incapazes de reproducção, visto não cor- responderem a uma especie definida. Onde a morphéa tiver succumbido e a hygiene melho- rado, a immunidade dos habitantes relativamente a esta enfermidade ficará para sempre garantida. Nas cidades do Estado de S. Paulo, onde os casos foram frequentes e são actualmente raros, conforme ob- 61 servei e mais tarde demonstrarei, a morphéa não se re- produzirá mais, ainda mesmo que estas localidades conti- nuem a ser visitadas, como são, por doentes de fóra, que ali vão scmanalmente esmolar: estão preservadas para sempre. Não é este por certo o caracter das moléstias conta- giosas. A febre amarella, que desenvolve-se annualmente nesta capital, é o resultado das influencias extrínsecas sobre o sporo que fica : se desapparecer, como uma vez já succedeu, reapparecerá quando o germen fôr de novo im- portado : é a lei de todas as moléstias contagiosas. Concedido por hypothese que a sypliilis desappareça completamente de uma localidade, e os habitantes entrem no goso da immunidade ; a reentrada de um syphilitico alli fará reapparecer o mal. A historia não registra um só exemplo neste sentido relativamente á morphéa. A razão deste phenomeno acha-se corporisada pelo Dr. Leloir na felicíssima formula : la lèpre se tue elle-même, principio por sem duvida inapplicavel ás moléstias conta- giosas. Do exposto infiro que sómente a herança com as suas consequências degenerescentes poderá explicar a reprodu- ção, o incremento, a decadência e o desapparecimento da morphéa ; e que a contrario sensu essa evolução é incom- pativel com as leis do desenvolvimento e do reappareci- mento das moléstias contagiosas. Estas considerações arraigaram em mim tal convicção que, se para acceitar o contagio da lepra, fosse condição necessária e imprescindível regeitar a hereditariedade deste mal, eu seria para sempre anti-contagionista irre* conciliável. Se uma cousa exclue a outra, como pretendem os con- tagionistas do ultimo grupo ; se admittir o contagio signi- 62 fica excluir a hereditariedade ; eu, invertendo os termos da questão, asseveraria com profunda e inabalavel convic- ção "que a morphóa não é contagiosa." Restringindo-me até aqui a dados e considerações geraes, julgo opportuno, abstrahindo do que se pensa, diz e ensina no estrangeiro, concentrar a attenção sobre o que aqui se dá. Por maior que seja a proficiência dos que em outros paizes realisam as aturadas pesquizas reclamadas pelo es- tudo da morphéa, e a autoridade das suas opiniões, não será de desprezar a boa vontade e o contingente, por menor que seja, de quem não tem regateado esforços para estudar essa moléstia no Brazil, firme como se acha em não profe- rir proposições ou externai' juiso, sem collocar acima de tudo a verdade. No desenvolvimento das minhas idéas peço sómente desculpa dos erros de apreciação dimanados de origem, que não posso corrigir. IX Depois da publicação do meu trabalho - A morphéa no J3razil- em 1882, tão grande foi o impulso da dou- trina parasitaria, e a revolução operada nas theorias medi- cas da contagiosidade, prophylaxia e tratamento das mo- léstias microbianas, entre as quaes figura a morphéa desde o descobrimento do bacillo de Hansen ; que as opiniões relativamente a esta enfermidade não podiam resistir á torrente das idéas dominantes. Em medicina, aliás [sciencia experimental, como em tudo o mais, é irreflectido o enthusiasmo : qualquer idéa nova, mormente as promissoras de grande resultado como as admiráveis de Pasteur, provoca adhesões incondi- cionaes, significando muita vez esquecimento ingrato e injusto do passado em favor do futuro, horisonte de sorri- dentes esperanças. Nestas circumstancias poucas verdades resistem ao choque ouimpeto do momento : o passado é-todo trevas-, o futuro -todo aurora -. 64 Relativamente á morphéa - não é de admirar - aba- lavam-se as crenças : uns hesitavam ; outros, clinicamente anticontagionistas, tornaram-se theoricamente contagionis- tas, esperando a sancção mais ou menos próxima da experiencia ; poucos persistiram nas antigas idéas. Interessado na questão, pela parte que de alguns annos havia tomado no estudo da lepra, não podia por certo conservar-me indifferente, porque se as innovações não me seduziam, faltava-me comtudo o cabedal suffi- ciente para manter inabalavel a minha opinião, aliás pro- pensa ao contagio, ante a capitulação de tantas outras. Demais, eu entendia que, a ser a morphéa realmente contagiosa, só a pratica poderia evidencial-o ; nada va- lendo as affirmativas da theoria contra a negativa formal da experiencia. Assim pensando, entendi necessário ir pela terceira vez ao Estado de S. Paulo, estudar nos proprios fócos a questão do contagio, em ordem a liquidada por mim só ; convencido de que, reinando alli de longa data a morphéa, poderia encontrar provas, que me habilitassem a seguir um dos partidos, o dos conversos ou o dos resistentes. Informado do meu projecto o illustrado do Dr. Rocha Faria, ex-inspector de hygiene nesta capital, dirigiu a 2 de setembro de 1889 ao ministro do império um officio nos seguintes termos : " Sendo certo que o Dr. JoséLourenço de Magalhães, autor de varias obras sobre morphéa, pretende fazer, brevemente, uma excursão scientifica pela província de S. Paulo, e sendo do maior interesse á salu- bridade publica do Brazil, e especialmente das províncias onde essa moléstia grassa endemicamente, conhecer-se exactamente suas condições etiologicas e ulterior prophy- laxia, esta inspectoria toma a liberdade de representar a V. Ex. sobre a conveniência de ser commettida ao mesmo clinico a commissão gratuita, a que se presta, de encarre- 65 gar-se do indicado estudo, devendo apresentar relatorio circumstanciado de todos os factos observados e das me- didas sanitarias, que lhes forem attinentes." Seguidamente o Barão de Loreto, então ministro do império, expediu o aviso de 6 de setembro do mesmo anno, encarregando-me da commissão como propunha o Dr. Rocha Faria, Na capital de S. Paulo, onde cheguei a 8 do referido mez, tratei logo de colher informações sobre a frequência do mal e sua distribuição. Dados estatisticos que podessem esclarecer os domí- nios da morphéa e o seu incremento ou diminuição - nenhuns. A semelhante respeito dá-se alli o mesmo que em todo o Brazil: a estatística nada significa. Sendo teffifica a moléstia, parecia natural o interesse de avaliar a extensão dos seus estragos, não só como meio de acudir aos infelizes enfermos minorando-lhe o supplicio em que vivem, como de organisar a resistência contra a propagação do mal. Mas os Paulistas limitam-se apenas á caridade com os morpheticos, não lhes negando esmola. Dahi resulta que o morphetico não se julga sómente um enfermo, como um escrophuloso, o diabético, etc.; considera-se antes um mi- serável, e como tal merecedor da compaixão publica, á qual se acolhe até o fim da sua triste existência. Nestas condições é deplorável a sua situação : indif- ferença pela vida, hábitos viciosos, abuso de alcoolicos, um viver abjecto enfim, conforme testemunhei, completa- mente dissonante dos sentimentos humanitários dos pau- listas e da sua eivilisação. Os únicos dados estatisticos, aliás inúteis ao meu fim, que encontrei, constam do relatorio da commissão de esta*- tistica, importantíssimo trabalho publicado em 1'888. Ahip a fls. 232 depara-se o seguinte ; "Na população recenseada 66 (recenseamento de 1886) foram encontradas as seguintes quotas de enfermos sobre 10.000 habitantes. Alienados 9 Aleijados 41 Cegos 8 Morpheticos 6 Surdos-mudos 7 Quer isto dizer que ha na província : Alienados 1.099 Aleijados 2.564 Cegos 977 Morpheticos 732 Surdos-mudos 854.4 A porcentagem, pois, de 732 morpheticos é calculada em commum com outros estados morbidos accidentàes, não sujeitos a incremento por meio de reproducção, pelo menos no gráo a que a pode attingir ; nem a de- cresci mento, como esta enfermidade, melhorando as condi- ções hygienicas. Incertos como são estes dados -lemographicos, menos ainda podem servir de critério para avaliar-se as tendên- cias do mal. Concedida, porém, que na verdade existissem em S. Paulo 723 morpheticos em 1886, perguntarei : esse nu- mero foi maior ? tende a diminuir ? Nada se sabe. Em falta de outros meios, tratei de informar-me, de pessoas mais ou menos competentes, sobre a distribuição da morphéa, de modo a poder formular o programma da minha excursão. 67 Durante dons mezes approximadaniente procedi a minuciosas indagações sobre ' a questão do contagio, cuja elucidação importaria a solução do principal problema etiologico, manimè tendo eu já o encarado anteriormente sob a influencia dos regimens alimentares usuaes da popu- lação, como consta do meu trabalho - A morphèa no Jdrazil. Regressando a esta capital nos primeiros dias de no- vembro, occupei-me immediatamente do relatorio, que de- veria apresentar ao governo : escrevi a primeira parte, propriamente descriptiva da visita a varias localidades, e preparava-me para redigir a parte scicntifica, quando so- brevieram os acontecimentos politicos de 15 do mesmo mez, dominando a attenção publica, que até aqui não ponde ainda libertar-se da questão política. Interrompi o trabalho, e nisso ficaria, se o meu vene- rando amigo visconde de Sinimbú não interviesse mais uma vez com a sua generosa bondade para a realisação do desejo, quasi tão seu como meu, de proporcionar-me um serviço, onde eu pudesse mostrar os resultados da minha therapeutica contra a morphéa. Publicada a carta dirigida pelo Visconde de Sinimbú ao principal redactor do Jornal do Commercio, o illus- trado Dr. Josê Carlos Rodrigues, appareceram os dous communicados, a que referi-me no principio destes artigos o do Dr. Pedro Severiano de Magalhães e o anonymo. Cabendo-me responder-lhes, julgo opportuno apro- veitai as notas da minha excursão, extractando os topicos que de algum modo interessam á elucidação do contagio do lepra. Antes de fazel-o, devo consignar o meu reconheci- mento á imprensa de S. Paulo, principalmente na capital e da adiantada cidade de Campinas, pelo generoso acolhi- mento com que distinguiu-me, e também aos meus colle- gas, cujo nome terei de declinar, que, recebendo-me com 68 delicadissima gentileza, prestaram-me com a melhor von- tade o concurso da sua illustração e experiencia. Na capital de S. Paulo divergiam as indicações das localidades, onde a morphéa era frequente ; mesmo assim pude congregar elementos, que me habilitassem a apro- veitar quanto possivel as minhas pesquizas, que resumirei do seguinte modo : Capital. - Alli existem alguns doentes, conforme observei. Informou-me o Dr, Nicoláo Vergueiro, em presença do Dr. Sérgio Meira. haverem allemães também affectados. Indicando-me um sitio onde viviam retirados alguns, lá fomos ter, e nenhum encontramos affectado ; disseram-nos ter estado na localidade um doente, que ha tempo re- tirou-se. Como no interior, na própria capital os clínicos são poucas vezes consultados pelos morpheticos, os quaes, nada esperando da medicina, preferem não procural-os. No hospital dos Lazaros encontrámos vinte e nove enfermos, cuja naturalidade, sexo, profissão etc., constam dos seguintes quadros : Mappa do hospital de lazaros de s. paulo Cor branca 17 , " parda 1 l " preta 11 29 doentes. Sexo masc.. 24l Sexo fem... 5| Profissão De 12 a 25.. 10 De 26 a 40 .. 10 De 40 a 50.. 7* De 70 2 Bacharelem direito... 1 Chacareiro 1 Lavrador 18 Carpinteiro 2 Sapateiro 1 Artista 1 Serviço domestico 5 Idade 69 Naturalidade Estado .... [Solteiros 21 [Casados 8 Bragança 1 ; Pirassinunga 2 Itaquacetuba 1 Porto Feliz 1 Piracicaba.. 2 S. Paulo 5 Minas 3 Juguiry 2 /Maranhão 1 Jundiahy 1 Pamahyba 1 S. Bernardo 1 Sorocaba 1 Taubaté 1 S. Roque 1 Bananal 1 Atibaia 1 26 nacionacs ■ 3 estrangeiros Africana 1 Allemã 1 Portugueza 1 até 6 de Novembro de 1889. Encontrei o hospital em melhores condições, do que quando visitei a primeira vez com o Dr. Pedro Paulo ; todavia o serviço deixa muito a desejar. O enfermeiro, também administrador, passa dias sem lá ir, ou vai admi- nistrar medicamentos no caso de moléstia intercurrente. Os alimentos são mal preparados, e por isso, sempre que podem, os proprios enfermos cosinham para si. A reclusão é illusoria : os doentes entram e saem á vontade, e á noite passeiam pela cidade. Quando se abor- recem, alguns retiram-se e vão mendigar pelo interior, engrossando os grupos ambulantes ; ao cabo de algum tempo regressam em misero estado. Havia no hospital uma latrina com sumidouro, e ne- nhum banheiro, e por isso homens e mulheres nunca se banhavam. 70 O Dr. Lutz refere-se a allemães na capital ; na qua- lidade de clinico da mesma nacionalidade é natural fosse preferido pelos enfermos ; eu, comquanto diligenciasse, só vi um, o recolhido ao hospital. Braf/ímpa.-Geralmente apontada como um dos prin- cipaes fócos da moléstia. Dous dos clinicos, os Drs. Ho- norio Ribeiro e Guimarães, informaram estar o mal limi- tado a poucas familias antigas, e serem quasi todos de fóra os doentes qne apparecem semanalmente esmolando, em numero invariável, outr'ora cerca de cincoenta, e na occasião doze ou quinze. No domingo que lá passei, encontrei, com effeito, doze desses infelizes, sete dos quaes disseram-me residir para os lados do Campo Grande, e cinco no refugio dos infelizes peregrinos-o Ribeirão de Uberaba. No mesmo dia o Dr. Guimarães e cu fomos ao refe- rido sitio, onde existiam quatro Ínfimas choças, duas oc- cupadas por casaes morpheticos. Além dos cinco encon- tramos um misérrimo moço, ardendo em febre, em uma dessas casinhas, com janella na frente e porta de entrada nos fundos. Uma das morpheticas, descendente de pai affectado do mal, era casada pela terceira vez, sempre com mor- phetico. Nenhum delles era natural de Bragança. Segundo informações alli colhidas, o numero desses infelizes achava-se muito reduzido ; houve tempo em que elevou-se a trinta e mais, alojados também em barracas. Alimentam-se do que adquirem ; de cousa alguma resguardam-se : o dinheiro é todo empregado na pinga (aguardente). Vivem em completa ociosidade. Peiores condições hygienicas é impossível imaginar ; se a moléstia creasse fóco infecionante aquelle seria ter- rível. 71 Devido á falta absoluta de cuidados e ao viver da- quella gente, a moléstia marcha lentamente, apresentando os enfermos as mais graves desordens organicas. Pela segunda vez encontrei o symptoma clinico da metade do corpo completamente insensível, contrastando com a outra metade normal, ou antes-hyperesthesiada. Os doentes do Ribeirão de Uberaba pouco resistem ; vivem assim na orgia e em completo abandono. Passam a vida alegremente, graças a aguardente : não se lamentam, não desesperam. " Para que prolongar a vida? ponderou-me um delles; quanto mais curta a existência, tanto menor o soffri- mento." A v.m portuguez, antigo morador na localidade, dono de uma venda onde os morpheticos supprem-se, perguntei se não havia exemplo de passar a moléstia a pessoas sãs. " Qual ! senhor, respondeu-me ; este mal não pega." Interrogando-o sobre o caso, de que me haviam fal- lado, de uma mulher que alli vivera successivamente com tres morpheticos sem contrahir o mal, o Sr. Moreira (assim chamava-se o portuguez), disse-me : "Recolheu-se á uma das choças um morphetico ca- sado com uma mulher sã, fallecendo o doente ao cabo de alguns annos ; a viuva passou para a companhia de outro morphetico na mesma casinha : fallecendo este, ella re- tirou-se para alli perto, e, bem nutrida e de pelle limpa, vive ha 10 annos com um homem são; viveu, acrescentou, não com tres, mas com dons morpheticos." Maior conjuncto de circumstancias favoráveis ao con- tagio não é possivel. Em Bragança não consta caso algum de contaminação de um cônjuge por outro, sendo-me aliás indicados bas- tantes casos nessas circumstancias ; não succedendo, po- rém, o mesmo com os descendentes, dos quaes muitos vieram, a soffrer, 72 O Dr. Honoric Ribeiro, inteirado do meu empenho de estudar a morphéa em estrangeiros, proporcionou-me a opportunidade de examinar um italiano, Braz Schitine, mascate4 soffrcnd ) de lepra tuberculosa completamente caracterisada. Referiu-me ser obrigado pela sua vida ambulatória a comer o que encontrava em viagem, quasi sempre carne de porco, feijões com muita ou pouca gordura, torresmo (toucinho torrado) com farinha de milho, unico feculento de que usava. Entrava também pelos alcoolicos, ora para combater resfriamentos, ora para satisfazer pedidos. Perguntando o Dr. Honorio se em tantas viagens não succedeu-lhe dormir em casa de algum morphetico, accudiu logo : "que eu soubesse, não." Cumpre assignalar que da numerosíssima colonia ita- liana, geralmente frugal e temperante, foi esse o unico leproso que encontrei cm minha excursão* Sirva isto de resposta aos que, crendo no contagio, descobrem em al- guns casos de estrangeiros atacados do mal uma ameaça á immigração : o estrangeiro que vive em regulares con- dições hygienicas não deve temer a morphéa. Habitante de Bragança não vi um só morphetico. Devendo á muita obsequiosidade do conego Assis, vigário da freguezia, sacerdote tão respeitável, quão bon- doso, o relacionar-me com pessoas gradas c conhecedoras da cidade, pude informar-me com segurança de ser alli rara a morphéa, e isso mesmo em algumas das famílias antigas e contaminadas. Vc-se, pois, que a morphéa em Bragança, longe de aggravar-se por falta de repressão, está muito reduzida, sendo, ao contrario do que geralmente afiirma-se, relati- vamente rara. Campinas.-Eu sabia desde a minha primeira visita a esta cidade, que a morphéa não era alli frequente, facto agora confirmado pelos Drs. Oliveira Bueno, Guilherme da Silva, Pereira Lima e também pelo conego Scipião, vigário da parochia-um prototypo de bondade. O mais antigo clinico da localidade, o Dr. Pereira Lima, disse-me que o mal nunca passou de determinadas familias, e o Dr. Vieira Bueno, um dos mais illustrados de S. Paulo-que não passavam de quatro os casos exis- tentes, conforme colheu das informações, que procurou. A convite do Dr. Guilherme da Silva visitei uma sua cliente, leprosa anesthesica, que exigia, para acalmar as arthropathias, repetidas injecções de morphina : ponde- rando eu que prejudicavam-na, respondeu a morphoma- niaca que "aquelle torpor fazia-lhe esquecer a sua si- tuação." Nenhum dos referidos collegas tem conhecimento de caso algum de lepra imputável a contagio ; ao contrario 74 ahi deu-se um ostensivamente desfavorável : um moço rico, atacado do mal, separou o leito a conselho do pro- fessor Hardy, quando consultou-o em Paris, continuando, porem, a viver em familia. Assistiam-no dous criados, occupando noite e dia o mesmo quarto, quando o doente, já coberto de ulceras, dalli não se afastava : a cabo de algum tempo eram revesados, e assim até o final. Durou a enfermidade 14 ou 15 annos, sendo prolongadissimo o periodo das desordens trophicas, caracterisadas por ul- ceras, etc. A moléstia não se transmittiu a pessoa alguma. No hospital de Lazaros em Campinas havia 12 en- fermos. Occupando-me do caso da inoculação do virus leproso pelo Dr. Arning, referi-me a minha segunda visita áquelle hospital, e a um morphetico que attribuia o mal á dentada de cobra. Relativamente ao caso eis o que consta das mi- nhas notas : " Os doentes, quasi todos antigos trabalha- dores em fazendas de'café, attribuem em geral a moléstia a repetidos resfriamentos. Um, porem, assegurou-me que o mal proveio-lhé? da mordedura de uma jararaca de cauda' branca ■; acrescentando,' em resposta á contestação por mim feita, que no hospital existiram mais dous doentes nas mesmas condições quanto á causa do mal." Entre os enfermos existia um portuguez : foi nego- gociante e depois tropeiro. Molhava-se frequentemente, e não~mudava a roupa humedecida. Nas repetidas viagens que fazia alimentava-se com o que encontrava, quasi sempre com carne de porco, farinha de milho, feijão, etc.: usava mais de vinho do que da pinga. Nunca esteve com morphetico algum, e ignora como appareceu-lhe seme- lhante enfermidade ; mas aflirma não ter-lhe sido pegada. Os asylados passeiam pelas immediações, mas não chegam á cidade; á noite fecha-se o portão. Não ha separação de sexos. Da unica banheira exis- 75 tente no asylo nunca se servem os enfermos. A adminis- tração fornece-lhes uma gairafinha de aguardente por se- mana. Permittido o alcoolico, supprem-ae de maior porção a sua custa. Aborrecidos daquelle viver, os doentes compram ani- maes de montaria, fogem e vão mendigar: passado algum tempo regressam em misero estado, como succede em re- lação ao hospital da capital. Em 1885 o Diário de Campinas noticiou a fuga de alguns morpheticos "por não poderem supportar, quei- xam-se elles, a deficiente alimentação e o máo trato ". * Queixas taes, confesso, não ouvi ; mas que alli fal- tavam todos os requisitos da hygiene e da decencia, não ha negar. Abstenho-me de descrever o que tenho visto de des- asseio e falta'de agazalho no estabelecimento em questão, mesmo porque seguidamente a minha visita fui honrado com a do cidadão Luiz José Ferreira de Queiroz, zelador do hospital, o qual, reconhecendo as faltas existentes, mostrou-se disposto a suppril-as. E', por isso de esperar, seja outra a sorte dos infe- lizes que, recolhendo-se ao hospital de Lazaros em Cam- pinas, procuram abrigo na caridade publica. Termino a descripção da minha estada em Campinas com as seguintes palavras, que transcrevo das minhas notas: " Sou contrario ao regimen asylar para os morphe- ticos, e quanto mais observo, mais se me avigora a opi- nião ; mas, não havendo outro recurso, seja pelo menos conforme ás leis da humanidade e ao grão da nossa civr lisação Não sendo em tempo algum obrigatória a reclusão dos morpheticos em Campinas, nem por isso a moléstia alli diffundiu-se, havendo, ao contrario, raros casos. Amparo. - Os Drs. Aurélio Diniz, Veiga, Reraigio e 76 Ferraz informaram-me que a lepra alli se achava circum- scripta a poucas famílias. Encontrei cinco doentes, entre os quaes, affectada da forma tuberculosa, uma senhora pertencente a familia muito conhecida, na qual, segundo a declaração dos chefes, não havia exemplo do mal. A doente declarou-me que nunca tinha-se approximado de um morphetico • o pai soffria, desde moço e solteiro de osteite syphilitica em uma perna, e a mãi era eczematosa segundo verifiquei. Na mesma occasião apresentaram-me um irmão desta senhora, muito moço, cujo fácies vultuoso e parado des- pertava suspeita: soffria de ozena, cuja natureza não pude determinar. " A frequência das ozenas nesta província, diz o Dr. Tiburcio de Almeida (1), é tributaria da syphilis ou da lepra. Como o mais precoce symptoma da lepra hei obser- vado indivíduos que, affectados de coryza facilmente reincidente, apresentavam mais ou menos ulceras das fossas nasaes. Autorisado por outros factos analogos, julgo poder concluir que as ulceras das fossas nasaes muitas vezes concretisam o syndroma mais precoce da lepra". Citando as interessantes reflexões do Dr. Tiberio de Almeida, cabe-me acrescentar que, comquanto o ozena se declare nos morpheticos, nunca tive occasião de observal-o tão precoce ; acrescendo que no caso em questão, sendo syphilitico um dos ascendentes, eu não podia attribuir a ulcera nasal á manifestação do apenas suspeitado mal de Lazaro. Nas ruas mendigavam aos domingos cinco leprosos, entre os quaes um preto bastante alcoolisado, acompa- (1) Considerações sobre a lepra e sua influencia na pathogenia das moléstias das vias respiratórias-1888, Rio de Janeiro. União Medica. 77 nhado de uma moça branca, igualmente enferma, e que -no dizer do preto-" era mais pingueira do que elle ". O Dr. Ferraz, clinico no Amparo ha 20 annos, infor- mou-me que houve tempo em que era maior o numero de casos de lepra na localidade, e mesmo o de doentes vindos de fóra, do que ultimamete. O mesmo clinico admitte francamente a herança do mal, e contesta o contagio, por não conhecer caso algum que o justificasse. Não conhece caso algum em que um dos doentes contaminasse o outro, citando vários nessas con- dições. O ®r. Ferraz referiu-em um caso em que a morphéa declarou-se no ascendente depois do descendente. Os morpheticos que concorrem ao Amparo armam suas barracas perto do cemiterio ; quando lhes apraz le - vantam o acampamento e retiram-se. Mais um logar, pois, em que a morphéa diminue inde- pendentemente de medidas de repressão. Mogy-mirim.-A cidade de Mogy-mirim era uma das mais increpadas como fóco do mal, pelo que eu con- tava encontrar muitos enfermos. Apenas cheguei, entendi- me com os Drs. Castro, Matheus Chaves, Gonzaga e Ma- chado. O primeiro, natural desta capital, alli reside ha 24 annos, sendo um dos clinicos mais procurados. Eis as informações que ministrou-me : " A morphéa, disse elle, nunca foi aqui frequente ; na cidade poucos casos tem-se dado, e esses mesmo, em certas familias em que é hereditária ; são ordinariamente de fóra os doentes que, aqui vindo esmolar, armam ranchos nas immediações da ponte de Mogy-mirim, no sitio denominado Aguardente do Reino. Este nome é fa- tídico : quando algum rapaz apparece syphilitico, acodem- lhe os companheiros-Olha a Aguardente do Reino (1) (1) Essa ameaça exprime o preconceito popular da conversão da syphilis em morphéa. 78 A dous kilometros e meio de distancia, entre o Mogy- mirim e o Mogy-guassú, ha outro acampamento 'de mor- pheticos. E' variavel o numero dos que aqui esmolam : 10, 15 e ás vezes mais. " " A moléstia, accrescentou o Dr. Castro, não é con- tagiosa ; apezar de viverem os morpheticos nesses sitios sem o menor resguardo, nunca o mal passou-se a outra pessoa, snccedendo o mesmo na cidade onde elles vêm semanalmente e transitam livremente, percorrendo as ruas. Mulheres que nunca abandonaram a companhia de seus maridos, pondera o mesmo clinico, e vice-versa,foram poupados pela moléstia. " Continuando, referiu-me o Dr. Castro dous casos de lepra em irmãos de uma familia amplamente contaminada, manifestando-se em um depois de setenta annos de idade, e no outro aos oitenta, comprovando ainda uma vez, disse- me o illustre facultativo, que " nos typos específicos a duração da herança é'illimitada. " Deixando ambos des- cendentes, declarou se nelles mais cedo o mal. Um desem- bargador, oriundo da mesma familia, vendo-se accom- mettido, enlouqueceu, depois de haver tentado suicidar-se. Avistando eu na porta do hotel um rapaz morphetico, fiz-lhe signal para entrar : foi em vão ; apezar da minha insistência continuou do lado de fóra. O morphetico não toca em pessoa alguma ; no chapéo ou em algum prato de folha recebe a esmola ; notando-se que não é pela crença do contagio mas pela repulsão da própria moléstia que se estabelece o cordão sanitario. Temos, pois, conforme o testemunho de um antigo clinico, corroborado pelas declarações dos demais col- legas cujos nomes indiquei, que a morphêa não medra em Mogy-mirim apezar da liberdade concedida aos enfermos. 79 Penha do,Pio do Peixe.- Allj clinica um dos mais distinatos collegas de S. Paulo, o Dr. Leonel, de quem obtive as seguintes informaçõees : " Em differentes pontos do municipio,. disse elle, ha morpheticos, mas vivem iso- lados em suas habitações, não havendo bairro especial para,a vivenda delles, como succede em outras localidades. Limitando este municipio com uma parte pobre da pro- víncia de Minas, póde-se affirmar que dahi procede o maior numero, principalmente entre os que esmolam pelas ruas. Duas famílias, uma das quaes bem importante e co- nhecida, pagam pesado tributo ás manifestações da lepra. O medico ahi estuda com espanto a hereditariedade mór- bida, ,-vendo a moléstia desenvolver-se com uma fatalidade bridah- Os -doentes, pertencem em sua maioria a esses dous grandes grupos. Ainda que o povo acredite no contagio,' não tenho em minha!, clinieaj observa o Dr. Leonel, caso algum con- cludente ; só a herança tem sido o factor necessário para o desenvolvimento daunorphéai. " A alimentação da;classe abastada e do pobre com- punha-se até certo tempo exclusivamente de'carne de- porco e «farinhaí; graças, porém, á crusada* levantada contra a perniciosidade de semelhante regimen, abatia-se diariamente uma rez. Não obstante a frequência de morpheticos mendi- cantes, só havia na cidade dous enfermos. Mais uma vez verifica-se que independentemente de medidas de rigor, nunca alli empregadas, a morphéa não se propagava. Limeira.-O municipio da Limeira parece-me o mais poupado em S. Paulo. Na cidade não havia familia con- taminada, nem doente algum, conforme informaram-me os distinctos collegas Drs. Fabricio Vamprê e Theo- duretoi Nãò apparecem morpheticos ? sempre, mas . esmo- 80 lando, vindos de outros logares ; alli entram, trasitam pelas ruas, de casa em casa, e retiram-se levando o óbulo da caridade. O Reverendo conego Scipião, vigário da freguezia ha 10 annos, confirma nào haver alli familia alguma conta- minada, acrescentando ser com effeito a moléstia pouco frequente e só atacar a pessoas de campo. O regimen alimentar na cidade tem melhorado con- sideravelmente, como em todo o estado de S. Paulo ; dantes a carne de porco e a farinha de milho cònstituiam a base da alimentação geral. Semelhante regimen tem-se modificado muito á proporção do progresso, e isso talvez em parte devido á própria morphéa ; digo-o, porque alli é sabido que a carne de porco é propicia ao desenvolvimento desse mal, que todos temem. Os esmolares da Limeira costumam pousar no sitio Cruzinha, a pequena distancia, á margem do rio Patú. Alli pela primeira vez vi, em companhia do Dr. Vam- pré, um arranchamento de morpheticos ambulantes, a 5 de outubro. Havia 5 carroças de lona armadas : Pelo chão utensílios de cozinha esparsos : O chão muito húmido por ter chovido e continuar a hora (7 da manhã) em que lá estivemos. Uns colchões velhos e as mantas dos animaes esten didas eram os leitos : Compunha-se o lote de cinco ho- mens e tres mulheres, entr'elles um casal : Contavam esmolar dous dias, sabbado e domingo, e seguir : todos em estado adiantado da moléstia, disformes, mutilados, cobertos de chagas, em misero estado, vivem á discripção, comendo de tudo ; usam de alcoolicos, mas, disseram-nos, moderadamente. Perguntei-lhes porque não recolhiam-se a algum dos hospitaes de S. Paulo ? " Porque vivemos melhor assim, respondeu-nos um delles ; vivemos mais distrahidos. de logar em logar. " 81 No asylo, retorqui-lhes, encontram agasalho contra as intemperies e os meios de subsistência. " Preferimos este viver, è o nosso destino ", foi a resposta final. Cavallos, cães, gallinhas, completavam o séquito. Eis como no prospero estado de S. Paulo vivem os infelizes leprosos, desenrolando aos olhos de todos o su- dário de sua miséria. Ao lado da Cruzinha vivia em uma pequena casa um morphetico em periodo bastante adiantado ; era por- tuguez, natural da Povoa do Lenhoso, em Praga. Com elle residiam dons leprosos para ajudarem-no em uma pequena cultura. Ignora como contrahiu o mal, que disse não ser de familia por não constar caso algum em parente seu ; não o attribue a contagio, pois nunca esteve com um mor- phetico ; ouvira fallar em morphéa, mas nunca viu doente algum. Einquanto foi caixeiro nesta capital, acrescentou elle, usava de alimentação variada ; passando-se para Mi- nas, mudou completamente de regimen alimentar, que dahi em diante passou a ser de carne de porco, farinha de milho, feijões com muita gordura, etc. Decorridos seis mezes, começou a moléstia que tanto o tem infelicitado, terminou o misero com os olhos rasos de lagrimas. Na Limeira houve um caso de morphéa, que me foi assim referido pelo Dr. Vampré : " José Antonio da Vinha, natural do Porto, casado, falleceu de lepra aos 48 annos de idade. Habitava o Brazil ha muitos annos, gosando sempre saude. Não constava antecedente hereditário na familia Um dia ao retirar-se muito suado de uma olaria, onde estava queimando ou enformando tijolos, foi colhido por 82 violenta bátega, seguindo-se-lhe pouco depois os primeiros indicios do mal a que succumbiu. " A mulher e cinco filhos nada soffrem. O regimen ali- mentar deste indivíduo, informa o mesmo collega, com- punha-se habitualmente de carne de porco, hervas, farinha de ipilho, feijões, arroz, etc. Vê-se, pois, que na Limeira ou-antes-no município, apezar da incessante entrada e sahida de leprosos e da falta absoluta de repressão,,a iporphéa não se tem pro- paggdp. XI Jiló Claro.-Nesta cidade, aliás bem localisada, são frequentes os casos de morphéa, dando-se mesmo alguns erà estrangeiros, como informaram-me os Drs. Ladjsláo c França. Com estes e o Dr. Theodureto, que se dignou de acompanhar-me da Limeira até alli, visitei alguns doentes, sendo o primeiro uma allemã, com quarenta annos de resi- dência em S. Paulo, casada, a qual disse-me que "tem estado em varias localidades, e como não lhe abundassem recursos, alimentava-se com o que encontrava, princi- palmente do usual-carne de porco, farinha de milho, etc.; devido á sua pobreza viu-se obrigada a lavar roupa poucos dias depois de um parto, supportando naquella occasião um forte aguaceiro do qual proveio-lhe um resfriamento, e em seguida a suspensão do puerperio. Foi sempre muito sanguínea; mas depois da suspensão ficou com o rosto mais afogueado, e dahi começaram a desenvolver-se os symptomas da sua enfermidade." Asse- verou-nos nunca ter-se aproximado de um morphetico, o que foi confirmado pelo marido. Notei'de extraordinário nesta doente de fórma tuber- 84 culosa á côr trigueira, quasi preta, dos braços e mãos, contrastando com a alvura da cutis normal. Visitamos em seguida tres leprosos, um dos quaes era de Sorocaba. Em uma casa encontrámos quatro irmãos afEectados do mesmo mal, sendo uni rapaz e tres moças : além destes o mais velho soffria da moléstia o Bascdow e a mais nova, gentil rapariga de 17 annos, conservava côr viva, ainda incólume. Eram filhos de allemães, que tiveram no Rio Claro um pequeno hotel, onde era prohibido receber leprosos. A alimentação commum compunha-se principalmente de carne de porco, e sempre de farinha do milho conforme os hábitos e o gosto dos freguezes. Fechado o hotel por falta de concurrencia, seguiu-se para esta familia um periodo de verdadeiras privações durante dous aunos, sendo então que enfermaram tres destes infelizes. Uma das moças, a primeira pessoa que adoeceu, foi retirada da casa, ao manifestar-se a moléstia ; declarando- se, porém, nos irmãos, voltou á companhia materna. O pai, combatido por tantos dissabores, succumbiu de anemia; a pobre mãi, de quem ouvimos esta triste nar- rativa, recolheu os filhos ao mesmo domicilio, limitando-se a modificar o regimen alimentar, convencida, disse-nos, de que era-lhes nociva a carne de porco e a farinha de milho. Como explicar a lepra nesta familia ? Pelo contagio, não : a primeira doente vivia exclusivamente na casa pa- terna, um hotel, onde jamais entrou um só morphetico : o contagio não pode lambem explicar o segundo caso,visto como a familia apressou-se em separar das pessoas sãs a primeira doente, que sómente voltou á companhia com- mum, quando a mãi (o pai já era morto) convenceu-se da improficuidade da separação. Declarou-nos ella que igno- 85 rava se na sua familia ou na do marido tinha havido ante- ce dente em favor da lepra. Além desses o Dr. França e eu visitámos dous mor- pheticos em uma barraca miserável. A' entrada viam-se pedaços de colchão, e trapos espalhados, molhados pela chuva do dia anterior: do interior partiam gemidos : diri- gindo-nos para um lado encontrámos, estendido sobre uma esteira sem forro algum ou cobertura, um preto en- fermo, tendo sob a cabeça um pequeno rolo de farrapos, transido de dores rheumaticas aggravadas pela humidade da barraca, onde passava noite e dia ao sol e á chuva : frouxa luz de uma lamparina em um canto permittiu-nos comtenplar aquelle quadro da maior miséria. Affirmou-me o Dr. França haverem mais dous mor- pheticos, que não encontrámos, por andarem esmolando- Comquanto eu dissesse que no Rio Claro a morphéa era mais frequente do que na Limeira, cumpre observar que quasi todos estes leprosos, em numero de 12, eram de outra procedência, e que alli não ha familias contaminadas da disposição morphetica. Em conclusão, no Rio Claro, apezar de não haver me- dida alguma de isolamento, e de gozarem os doentes de plena liberdade, não se tem formado fóco leproso, porque como tal não se pôde comprehender os casos esparsos, occupados por leprosos de outras localidades. Piracicaba.-Muito esperava eu da entrevista com o Dr. Tiberio de Almeida, conceituado clinico alli, e autor de artigos, a que já referi-me, a proposito da ozena como precursora da lepra, publicados em 1888 na União Medica nesta capital, nos quaes declarava-se franco sectário das idéas modernas, cuja base c o bacillo de Hansen, segundo infere-se dos seguintes trechos, que textualmente tran- screvo : " Com Vidal, escreve o distincto collega, eu sustento 86 o contagio da lepra por inoculação, baseando este asserto em factos de observação." Quaes são os factos ? Sem especifical-os, ou expor o resultado da observação pessoal em doentes' da sua clinica, o Dr. Tiberio de Al- meida passa a negar a espontaneidade da moléstia ; cita as ilhas Sandwich impressionado pela seguinte exageração de uma noticia da Gazette eles Ilopitaux : " Em 1864 havia já 250 leprosos, em 1876 mais de dous mil, " acres- centando : " Os médicos da ilha da Reunião e da ilha Mauricia acreditam no contagio ; é á idéa do contagio e á escação de asylos para leprosos que se deve a extincção da lepra em paizes, onde ella era outr'ora considerada como endé- mica. Assim é que na Noruega, em trinta annos, tem-se obtido uma diminuição da metade nos casos de lepra, de- vido a excellente prophylaxia que tem sido observada com a installação das leproserias. " Limitando-se a argumentos com observações inex- actas, como a estatística das ilhas Sandwich, e com a ex- cellente prophylaxia derivada da perfeita installação das leproserias, o Dr. Tiberio de Almeida julgou desnecessário 0 concurso aliás preciso da observação pessoal. Conhecer os casos da sua clinica que o autorisavam a adoptar o contagio da lepra, era, pois, grande empenho meu, tanto maior quanto pela primeira vez ia encontrar- me com um clinico que, praticando em fóco leproso, sus- tentava entre os de S. Paulo opinião contagionista. Qual o rezultado da nossa entrevista ? Pessoalmente o mais grato possível, porque recebi do illustre collega as mais delicadas manifestações de fraternidade profissional; quanto ao ponto principal eis o que passou-se : o Dr. Ti- berio de Almeida admitte os dous modos de transmissão -a herança e o contagio-, comprova-os pelo caso da transmissão da moléstia do marido para a mulher, cuja 87 familia, conforme as indagações a que procedeu, não re- gistrasse caso algum de morphóa. Contestando-o com as circumstancias de não haver o mal passado de um para outro cônjuge, e com a difficul- dade de verificar a existência desse mal nos ascendentes, relevando notar que a senhora em questão era natural de localidade onde a morphéa frequentemente atacava as famílias, o meu distincto collega não rebateu as minhas ponderações, confessando ao contrario "não se poder real- mente jurar na affirmativa nem admittir absolutamente o contagio." No meu livro de notas encontro em seguida esta ob- servação : "Inferi que as minhas observações calaram de algum modo em seu espirito. Era o caso unico de con- tagio 1 " Na opinião do Dr. Tiberio de Almeida a moléstia é frequente em Piracicaba, existindo cm algumas familias, e affectando as classes menos favorecidas. Ha alli um hospital de leprosos construído por Ma- noel Ferraz : referiram-me que esse homem, tendo perdido alguns filhos victimados pela lepra, mandara construil-o, cedendo a ura sentimento de piedade. Na proximidade do asylo encontrei alguns morphe- ticos esmolando. O estabelecimento tinha doze enfermos, dous dos quaes andavam esmolando á distancia. E'-lhcs também permittido fazel-o na estrada, ao lado do cemiterio, mas não pelas ruas da cidade : os que possuem cavalgadura pódem estender as excurções ao interior. A casa é espaçosa, arejada, tendo cinco ou seis quar- tos : não é ladrilhada : o chão estava esburacado pelas gallinhas, que os doentes criam dentro do proprio prédio : o administrador reside fóra : cada quarto é occupado por dous enfermos, excepto o menor que é de um : o alimento 88 & fornecido quinzenalmente, e preparado á parte pelos proprios doentes. Nos catres, que servem de cama, viam-se colchões velhos e immundos : sobre as camas velhos trapos e nada mais : não ha banheiro : os doentes não recebem alcoolicos, mas pódem adquiril-os a sua custa. Nesses infelizes, como em geral nos morpheticos men- dicantes em S. Paulo, impressiona o estado de deformação dos tecidos, as formas que tomam, em summa-o cunho de gravidade -, e por que occultal-o ? a hediondez não vista nos doentes que, ao contrario daquelles,. não se en- tregam ao mais completo abandono, ao mais profundo des- preso da hygiene, e á pratica desbragada de vicios, a co- meçar pelo alcoolismo. A transfiguração é tal que chega a não parecer a mesma enfermidade. Em minha clinica tenho observado doentes gravis- simos, apresentando as miis adiantadas desordens do ultimo periodo da lepra ; mas alterações como aquellas só nos mendigos e asylados de S. Paulo. Sim, é forçoso confessar : a morphóa alli horrorisa porque o paciente perde a forma humana, parecendo um monstro. Por mais affeito que o meu espirito esteja á presença dos morpheticos e das modalidades da cruel enfermidade, ainda não se achava sufficientemente preparado para a im- pressão produzida por aquelles entes, que reconhecemos nossos semelhantes por um resto medonho de forma hu- mana, e porque faliam. O que tenho presenciado relativamente á especie cada vez mais convence-me de que o morphetico é merecedor de maior cuidado. Aquelle abandono é horrível, mons- truoso. Não direi que a sociedade commetta esta falta por egoismo ou deshumanidade ; é antes por pusillanimidade ou medo, obedecendo ao preconceito tradicional, que faz 89 do morphetico um typo excepcional, exhibindo em seu corpo o estigma de uma culpa imaginaria. Este tempo já passou : actualmente a morphéa é con- siderada uma moléstia como qualquer outra-a escrophula, a gotta, a diabete etc. Não tem razão de ser a repugnância da appioximação do morphetico, de tocar-lhe no corpo, de entregar-lhe pes- soalmente a esmola. Prescindindo da descripção dos casos registrados nas minhas notas, volto á entrevista com o Dr. Tiberio de Almeida. Informando-me que existiam alguns allemães affectados da moléstia, convidou-me a visitar um chamado Martinho, leproso de fôrma tuberculosa, e com quarenta annos de residência no Brazil. Apenas sentiu-se affectado, construiu no quintal da sua casa um quarto, que passou a occupar, nunca mais entrando no edifício occupado pela esposa. Difticilmente conseguimos que se approximasse de nós, para interrogal-o. Attribue o mal a resfriamentos re- sultantes do habito que tinha de lavar o rosto, estando em suor ; em uma dessas occasiões sobreveio-lhe febre, appa- recendo-lhe em seguida manchas vermelhas, depois do que caracterisou-se a lepra. Para melhor instruir-me relativamente aos casos de allemães morpheticos, o meu distincto collega apresentou- me ao cidadão Carlos Nehring, antigo pharmaceutico desta nacionalidade, e residente na cidade, homem illustrado, o qual informou-me haverem alli quando muito, seis alle- mães atacados e um suisso. Perguntando eu, qual a causa plausível da moléstia dos seus compatriotas, opinou pelo contagio ; contestada por mim essa origem, em virtude da raridade dos casos reconhecida pelos proprios contagionistas, respondeu que outra causa não conhecia. Interrogado sobre os hábitos dos affectados, e abusos 90 que acaso houvessem praticado, declarou-me que a mo- léstia eftectivamente tem-se manifestado em allemães donos de taverna, onde matam-se porcos, e que, tendo essa carne em casa, naturalmente preferem á de vacca, além de tomarem mais livremente alcoolicos variados, tendo-os á mão. Relativamente ao seu compatriota Martinho, a quem eu e o Dr. Tiberio acabavamos de visitar, disse o cidadão Carlos Nehring que elle tivera uma taverna durante vinte annos, achando-se por isso nas condições indicadas. Cumpre ponderar a proposito da predileção pelos alle- mães manifestada pela lepra em S. Paulo, que entre os estrangeiros são justamente ellesos mais fáceis de adquirir os hábitos locaes, porque são glotões, intemperantes, e como taes affeitos a um regimen superixcitante e comple- tamente desproporcional ás exigências do clima. Concedido que os allemães houvessem adquirido a moléstia por contagio, a conclusão seria que esse contagio operou-se mysteriosamente, independentemente da pre- sença ou communicação com outros enfermos, sendo Pira- cicaba uma das localidades onde os morpheticos vivem mais retrahidos. O allemão Martinho, por exemplo, declarou-nos que nunca esteve perto de um só morphetico, nem consentia que nenhum entrasse na sua taverna. Não pude certificar-me do numero dos morpheticos existentes em Piracicaba, nem das declarações do esti- mável Dr. Tiberio de Almeida colligi, que houvessem outros além dos já mencionados. Sei de mais um, que tem-me consultado; por isso pre- sumo ser fóra da cidade que a moléstia é mais frequente : dentro, como vô-se, não ha fóco a temer, nem receio de incremento. Mesmo nas immediações do asylo, onde leprosos em misero estado de adiantamento desde muitos annos pos 91 tam-se diariamente para esmolar, não consta que a sua presença tenha determinado, cumprej salientar, um so caso em morador dalli. Capivary-Continuando na minha excursão, ahi pio- curei o Dr. Cezario da Motta, digno representante por S. Paulo no congresso federal, e conceituado clinico. Informou-me o illustrado collega que a morphea alli não tem passado de algumas familias. Não tem duvida de que a moléstia seja hereditária, e só theoricamente, em vista da descoberta do bacillo de Hansen, acceita o contagio, comquanto nenhum caso jus- tificativo tenha observado em sua clinica. Disse-me mais que em Porto Feliz, logar em que nasceu, existiam muitos rnorpheticos, installsdos prin- cipalmente em uma rua ; aconselhando-me por isso que não deixasse de lá ir ; mas as difficuldades de transporte e a falta de commodidade impediram-me de satisfazer a sua recommendação. O Dr. Cezario Motta, pai, antigo e intelligente cliuico, convidado pelo filho para instruir-me com o resultado da sua experiencia, confirmou a existência de muitos enfermos em Porto Feliz, onde clinicou por longo tempo. Crê, no contagio, em apoio do qual citou o caso de uma mulher, que contaminou alguns rapazes. Por colenda que seja a opinião do provecto clinico, não pude aceitar como liquido este resultado attribuido á lepra. Não é a primeira vez que a opinião em favor do conta- gio bazea-se era factos analagos, aliás imputáveis á syphilis. Em Capivary não havia um só leproso, o que foi-me confirmado pelo Dr. Costa Valente. No sitio denominado Raio param os leprosos, que es- molam na cidade; alli havia cinco de diversas procedências. Comquanto não seja prohibido o transito semanal desses enfermos pelas ruas de Capivary, não se formou alli fóco leproso. XII Itú.- Foi a cidade de Itú a pérola da minha excursão porque alli encontrei o que talvez não haja em outro ponto do Brazil, e raríssima vez succede no mundo: a pratica da verdadeira arais a virtude excelsa ! Occupando-me em meu trabalho- A Morphía no Brazil-do asylo de I*tú, eu disse que "quando a socie- dade retrae-se em presença da miséria, surgem em com- pensação uns entes providenciaes que na cidade de Itú tomaram os nomes de Antonio Pacheco e Silva e Bento Dias Pacheco, ambos sacerdotes e um delles herdeiro das virtudes e da missão do outro." e á mesma pagina accres- centei, a proposito do asyio de leprosos, que "aquelle edifício não era sómente um hospital, mas a matriz da caridade humana." O asylo não funccionava então por estar em reparos, em 1882. Decorridos tres annos dirigi-me por carta ao reve- rendo vigário de Itú pedindo para informar-me se o asylo já recebia doentes. Respondendo-me affirmativamente em carta de 8 de Novembro de 1885, disse-me o reverendo vigário entre 94 outras cousas o seguinte: "Um santo sacerdote é o capellão e dedica-se exclusivamente ao tratamento e allivio dos morpheticos, fazendo-lhes companhia perenne." O "Santo Sacerdote" a quem referio-se o vigário de Itú, ê o padre Bento Dias Pacheco, outro Francisco de ASSIS. Na tarde do dia da minha chegada á cidade o distin- ctissimo Dr. Cesario de Freitas convidou-me a visitar o asylo dos lazaros, apresentando-me ao padre Bento, como alli o tratam. Com a maior simplicidade recebeu-nos o santo ho- mem na casa que ha 21 annos habita, na mesma que é sempre franca aos morpheticos, aos quaes recebe na sua sala e faz sentar á sua meza. Durante esses 21 annos tem sido o padre Bento o unico enfermeiro; é elleque trata-lhes das chagas, toma-os nos braços, levanta-os ou condul-os ao leito ; ê delles o capellão, o confessor, o companheiro, o conforto, a conso- lação, o anjo tutelar. Nunca em minha vida tive tanta veneração, senti o espirito tão edificado como na presença desse homem simples, humilde e admiravel! A elle comparados como são infimos os maioraes da terra ! Foi alli que pude avaliai' que não ha grandeza como a da virtude, a da verdadeira caridade christã. Conversamos sobre o asylo e os enfermos. O asylo está bem collocado, é espaçoso, regularmente aceiado, e dispõe de terrenos para culturas. Não foi edificado em 1806, como por engano eu disse no citado trabalho citando a Revista Trimensal'. na fa- chada encontrei a data-1884 (da reparação) e por baixo em uma só linha, a seguinte inscripção: Re. A. e P. e 8. dedicou a umanidade soffredora em 1808. As iniciaes correspondem ao nome do padre Antonio Pacheco e Silva. 95 Naquelle tempo quem praticava uma acção de tão sublime quilate, levantava, como alli, dous templos, um ao lado do outro: um á religião e outro á miséria, occul- tando-se sob as iniciaes do nome. Hoje No asylo reside o administrador, homem cuidadoso. Haviam recolhidos quatro homens e duas enfermas, apezar de ser muito maior a lotação, e de serem os doentes bem alimentados e zelosamente tratados. Notando eu a pequena frequência, explicou-a o padre Bento como o resultado provável da privação da liber- dade visto ser-lhes apenas permittido chegar até a por- teira ou á sua casa, accrescentando: "Quando ao cabo de algum tempo se aborrecem retiram-se e vão esmolar ou antes vaguear; um delles, no deixar o asylo, declarou que por causa de uns feijões não havia de estar prezo." Alli não se fornece alcoolicos aos asylados nem se lhes permitte a acquisição. O padre Bento não acredita no contagio e sim na he- rança, citando em favor desta muitos factos occorridos em familias de seu conhecimento; acrescentando em apoio desta opinião que varias viuvas, apezar de não se terem separado dos maridos durante a moléstia, prestando-lhes, ao contrario, os mais assiduos cuidados até a morte, vi- veram muitos annos sem nunca terem sido affectadas. Entre os casos citou o de uma sua prima-irmã: "o marido, disse-nos, morreu podre de lazaro, e a mulher só por morte separou-se ; é viuva ha trinta annos e não soffre." Referio-nos também outro caso quasi idêntico ao de Bragança, n'estes termos: "Uma senhora era casada com uma pessoa que veio a soffrer de morphéa; apesar de ter o doente chegado ao lamentável estado de podridão, a mulher foi sempre carinhosa e nunca separou-se do ma- rido; fallecendo este ha mais de dez annos, a viuva passou 96 a segundas núpcias com um morphetico, com quem vive; está nutrida e forte e nenhum indicio da moléstia apre- senta." Enviuvando certa senhora, referiu-nos o padre Bento tal foi a sua amargura que atirou-se no banho que aca- bava de servir para o cadaver lazarento do marido, pre- tendendo cora isso também morrer de morphêa ; o que entretanto não obstou a que pouco tempo depois passasse a novas núpcias. Na manhã seguinte voltei á casa do padre Bento afim de solicitar uma photographia, que não obtive: "Nunca me photographei nem me photographarei", foi sua resposta, accrescentando: "não tenho de que deixar lembrança nesta vida." Com alguma astúcia, confesso, pude colher aqui e alli, sem que elle o percebesse, os seguintes dados biogra- phicos; nasceu a 11 de Outubro de 1819; amanhã, disse- me (estavamos a 10 de Outubro), inteiro 70 annos; é filho de Ignacio Dias Ferraz e D Anna Antonia do Amaral; só teve um irmão, fallecido ha cinco annos; na idade de um anuo perdeu o pae, e ha dez annos a mãi; recebeu ordens era 1843 no seminário da capital; a principio de- dicou-se á lavoura de canna, em uma fazenda servida por escravos; um dia abandonou tudo, libertou os escravos recolhendo-se ao sitio, onde mora ha 21 annos; co-proprie- tario da casa de sua moradia, desistio em favor do irmão da parte que possuia; o resto de bens, empregou na edi- ficação de tres cazinhas, doando-as* a um casal de liber- tos; ficou só vivendo de suas ordens. " Deus sabe, disse-me o padre Bento referindo-se aos escravisados, quantas injustiças pratiquei; vim para aqui, só, indifferente ao mundo, tratar de minha salvação." Raríssima vez vae á cidade; recebe a quem o procura, mas a ninguém visita; não acceita convite para acto reli- gioso fóra da capella dos lazaros; nega-se a assistir em 97 confissão aos que procuram-no ; não tem ingerência na administração do asylo; é simplesmente giatuito capellão dos lazaros, seu confessor e enfermeiro; cura-lhes a um tempo as chagas do espirito e do corpo: para o maior dos infortúnios a maior das dedicações. O padre Bento é de estatura pouco abaixo da me- diana, um tanto cheio do corpo, cabellos de cor castanho- escura, sem um fio branco não obstante os setenta annos de idade; rosto pequeno, arredondado, nariz pequeno, olhos regulares e tranquillos, e testa um pouco desenvol- vida : é intelligente, exprime-se facilmente, parecendo pouco illustrado. Não lê jornaes, ignora o que vae pèlo mundo; outro é o seu reino. Nelle ha inversão de funcções: o orgão pensante e o coração. Não tem pae, mãi, ou amigos; nada do que é terres- tre, do que é mundano, do que é social o prende á Vida; prende-o um laço desconhecido. Reza a tradição ser a morphéa uma moléstia de ori- gem sagrada; pois bem: ao lado dos morpheticos vive um apostolo divino. Ao despedir-se de mim, tirou da estante um livrinho - Pratica do amor a Jesus Christo, por Santo Affonso de Lignori-, e offereceu-me dizendo: "é um thesouro este livro." Para mim, respondi agradecendo, será duplo the- souro. " Seja, terminou elle; mas sinta no coração o que está no livro, que foi publicado por um sabio Bispo." Que se me releve estes detalhes, de algum modo extranhos ao assumpto principal deste escripto; referindo- os, tive somente em mira patentear o superior predominio que sobre um espirito gasto pelo attrito social ainda exerce a alma simples e pura do justo. 98 Se o padre Bento viesse a ser atacado da morphéa, exposto como vive ao contacto dos doentes, dir-se-ia;-eis demonstrado o contagio; é a repetição do caso do padre Damien, no asylo de Molokai - nas ilhas Sandwich. Pois bem, se tal infortúnio succedesse, outra podia ser a origem: na familia do padre Bento existe a disposi- ção leprosa. O Dr. Cezario de Freitas, clinico ha 16 annos em Itú, logar do seu nascimento, informou ser a moléstia alli frequente em famílias contaminadas. Ponderando-lhe eu que, á vista do que observara em varias localidades, a moléstia, restringindo-se a antigas famílias, respeitava a geração nova, respondeu-me aquelle collega que, com effeito, como que uma linha dividia as antigas famílias das, novas, limitando-se a aquellas. Em sua opinião não pode haver duvida quanto á he- rança; entendendo que, se a morphéa é contagiosa, o é muito difiicilmente; porque, tendo havido doentes impor- tantes, muito relacionados, etc., nunca succedeu passar-se a moléstia a estranhos. Lamentou a pouca conta em que é tida a hygiene, e o despreso votado pelas famílias aos conselhos da sciencia, não admirando por isso a reproducção da morphéa. Na cidade só tive conhecimento de um caso de lepra em pessoa da capital; em habitante do logar-nenhum. Os casos a que referiu-se o illustrado Dr. Cesario de Freitas são de pessoas residentes em fazendas, onde o atrazo dos costumes justifica a persistência do mal. Em conclusão, íoco creado pelos doentes propagando- se a morphéa aos sãos não ha em Itú. Mogy das Cruzes-Constando-me que aos domingos appareciam em Mogy das Cruzes alguns leprosos a esmo- lar, fui até alli acompanhado do Sr. João Rodrigues de Souza, zeloso secretario da Inspectoria de hygiene. Encontrei, cora effeito, nas ruas seis enfermos esmo- 99 lando, entre os quaes uma allemã, vinda do seu paiz na idade de sete annos para o Brazil, onde habita ha 32 annos. Disse-me ignorar o logar do nascimento, eter a prin- cipio estado no Paraná onde casou-se com um allemão, vindo depois para Piracicaba, e dahi para Campinas ; acrescentou que, desde que chegaram a S. Paulo, entregou- se ao regimen alimentar da carne de porco, farinha de milho, café com a mesma farinha, etc. O marido algum tempo depois tornou-se barbaro para com ella, batendo-a frequentemente: "de desgostos, disse a'infeliz. vivia eu sempre a chorar." Ha sete annos começou-lhe a moléstia pelos pés, tor- nando-os tão sensiveis que a impediam de trabalhar cal- çada na roça, com o que muito irritava-se o marido. Mesma exageração da sensibilidade manifestou-se depois nas mãos, apparecendo seguidamente manchas pardacentas pelo corpo, e depois outros symptomas até ficar no estado .em que encontrei-a, de lepra anesthesica com mutilações dos dedos das mãos, uns retrahidos, outros incomple- tos, etc. Assegurou-me nunca ter estado perto de morphetico, nem mesmo conhecer a moléstia antes do seu infortúnio. "Um dia, terminou a doente a sua narrativa, tal ameaça ouvi do meu marido que julguei conveniente fugir, retirando-me para Piracicaba, onde começou o meu triste fadario de pedir esmolas de logar em logar, de casa em casa." O Dr. Mello Freire, de quem o meu companheiro e eu recebemos as finezas que esse distinctissimo cavalheiro sabe dispensar as pessoas que vão a Mogy das Cruzes, o maior proprietário no logar e ahi residente, informou-me não se ter dado caso algum da moléstia na cidade apesar da frequência de leprosos ha muitos annos. Os que, com effeito, apparecem vem de outras loca- 100 lidades, retirando-se em seguida, para serem substituídos por outros. Em Mogy das Cruzes a morphéa não fez ainda sequer uma victima, não obstante a frequência semanal de mor- pheticos que por alli transitam, em todos os períodos da moléstia. Sorocaba. Era-me conhecida a salubre Sorocaba desde 1S81 quando lá estive com o meu infortunado amigo Dr. Pedro Paulo. No arrabalde-Arvore -onde então encontramos 21 enfermos, nenhum existia agora. O Dr. Monteiro, alli nascido e antigo clinico, confir- mou-me nesta visita o que havia de outra vez assegurado, isto é: pouca frequência da morphéa. " Evidentemente, disse-me elle, é moléstia pouco fre- quente aqui, onde poucos casos tem havido." Com effeito, só encontrei um antigo doente, pertencente a familia dis- tincta, cujo chefe morreu leproso. Na opinião do collega a morphéa não é contagiosa: "Não conheço caso algum, são suas textuaes palavras, explicável pelo contagio, conhecendo aliás vários casaes em que, apezar do tempo decorrido a moléstia de um dos cônjuges não transmittio-se ao outro." Havendo outro retiro-O Cerrado, onde constava existirem morpheticos, para ahi dirigi a minha attenção. Chegando a um grupo de casinhas, appareceu á porta de uma delias uma moça que, estranhando a minha reso- lução, ponderou-me: "somos doentes", querendo dizer- não approxime-se. Em São Paulo c tal a reserva que teme-se pronunciar a palavra condemnatoria-Morphéa-, e dahi aquella fór- mula-somos doentes',- ou então-fulano está com a massa do sangue desmanchada', ou simplesmente com o sangue desmanchado. E' singular essa denominação, desprezando-se o ex- terior, onde se localisam as inais imponentes alterações 101 para indicar o principal processo, cuja séde o povo colloca na massa sanguínea. Vendo baldada a intimação, a doente informou-me existirem alli quatorze leprosos,-oito homens e seis mu- lheres-, sendo dous de Itapitininga, um de Tutuhy, um do Campo Grande, outro de Pirassununga e os restantes das immediações de Sorocaba. Uns attribuiam o mal á herança; outros a successivos resfriamentos, a sarampo recolhido ; uma das doentes dava como causa a suspensão das regras, e outra-um parto recolhido. Uma parda, bastante gorda, em quem o mal trahia-se por placas anesthesicas, disse-me ignorar a causa da morphéa em um seu filho: "contagio não houve, affirmava ella; demais essa doença não pega atoa ; que para pegar é preciso haver calor e humidade." Entre os doentes havia um moço em estado muito adiantado, fallando difiicilmente por causa da laryngite leprosa, que muito afiligia-o; era filho de pais allemães, circumstancia para mim importante, attento o interesse que me despertava o exame dos morpheticos estrangeiros ou collocados, como este, em idênticas circumstancias. Jorge Libieis, era o seu nome; de 32 annos de idade, natural do Rio Claro, donde mudou-se para Pirassinunga, onde declarou-se-lhe o mal ha doze annos, na idade por- tanto de vinte annos. Nunca teve moléstia suspeita, nem podia ter, visto nunca se ter exposto até aquella idade. Tem quatro irmãos sãos; seus pais nunca soffreram de semelhante mal. Na casa paterna o regimen era igual para todos; carne de vacca, arroz, peixe, feijões com bas- tante gordura, frequentemente carne de porco, e sempre farinha de milho. Em companhia de outros rapazes bebia coguac, cerveja e outros alcoolicos, não raro ficando espi- ritualisado. Era habitualmente muito vermelho, no que differen- 102 çava-se dos irmãos; queixava-se constantemente de calor, causando isso reparo entre os seus. Nunca esteve com morphetico algum, sendo um dos que mais horror tinham á lepra. Deu por vezes esmolas a morpheticos, mas com a maior cautela, como geralmente se faz sem tocal-os. De muito alvo que era, foi-lhe a cor ficando amore- nada, passando por isso pelo unico moreno da familia: agora reconhece que a mudança da cor foi o começo da moléstia. Não attribue o mal à herança nem a contagio, e apenas suspeita de uma forte constipação (suppressão de suor): estando um dia muito suado a rachar lenha, foi chamado para jantar; largando o serviço, banhou a ca- beça e o rosto em agua fria, sentando-se em seguida á mesa. Passados alguns dias sobreveio-lhe forte dor de cabeça e febre, notando ao cabo de pouco tempo estar com as mãos e os pés arroxeados. Ponderando-lhe eu que muitas pessoas se constipam sem resultar dahi a moléstia, retorquio-me que a constipa- ção forte parece gerar a moléstia, e em apoio citou o caso de um allemão que subia uma ladeira guiando um carro carregado de lenha; não supportando os animaes a carga, entrou elle a diminuil-a sob um aguaceiro; desde então começou a soffrer, apresentando algum tempo depois tu- bérculos pelo rosto. Não conhece outra causa a que attribuir o seu estado. Depois de arroxearem-se os dedos, começou a sentir calor na testa e na região superciliar, seguido de queda de sobrancelhas, e das graves desordens da lepra mixta no ultimo periodo. Terminando, disse-me com a voz tremula: "Dos vinte aos trinta e dons annosde idade, isto ê: o melhor da minha mocidade, passei a vida sob o martyrio da moléstia que muito me aterrava. "• 103 Os antigos doentes da Arvore Grande e do Cerrado, que visitei, alli vivem de esmolas que vão receber nas rnas de Sorocaba. Pois bem, nem no interior da cidade, per- corrido semanalmente por enfermos em todos os periodos da moléstia, nem nas immediações dos sitios por elles ha- bitados, formou-se, não obstante os muitos annos decor- ridos durante os quaes têm-se succedido gerações e gera- ções de enfermos, fóco algum de morpliéa. Ao contrario, a moléstia já foi por alli mais frequente do que na actualidade. XIII Tatuhy. Aos domingos apparecem esmolando pelas ruas cerca de vinte morpheticos, uns vindo de fóra, outros das immediações da cidade, taes foram as informações de um dos mais estimáveis collegas o Dr. Salles Gomes, e o mais conceituado clinico, alli residente lia bastantes annos. Na cidade mostrou-me elle uma moça, em quem de- senhava-se a forma tuberculosa; alem dessa referio-me o caso de um rapaz que incorporou-se ao grupo dos pe- dintes. Os morpheticos occupam dous sitios, o Jioqueirão c o Alto de Santa Cruz. No primeiro o Dr. Salles e eu en- contramos cinco enfermos, sendo um delles um rapaz de Itapetininga, em quem a moléstia assumio rapidamente o peior caracter em virtude da vida que esse infeliz levava; outro apresentando lesões como nunca vi nem em dese- nhos dessa moléstia publicados em outros paizes. Mais uma vez lastimei fazer semelhante digressão desajudado de elementos que podessem tornal-a mais util. Era um homem baixo, de 45 annos de idade mais ou menos, doente ha vinte annos; a pelle do rosto era muito encarquilhada; ò nariz todo deformado, uma das orelhas 106 partida, o olho direito coberto por tubérculos; os dedos das mãos profundamente alterados, se é que posso chamar -dedos ; os pés eram dous aleijões-sem forma humana- Pena foi não me ter sido possivel copiar aquella fi- gura hedionda. No Alto da Santa Cruz havia dous velhos leprosos e uma doente já idosa. Se a lepra é pouco frequente ou mesmo rara na cidade, outro tanto não succede no campo, atacando de preferen- cia gs necessitados, segundo assevera o Dr. Salles. No Bairro dos Ferreiros, disse-me elle, existiam vários leprosos. Os habitantes da cidade usam de um regimen alimen- tar mixto: não abandonando de todo o antigo habito da carne de porco, do toucinho e da farinha de milho, recor- rem á de mandioca, ao pão de trigo e á carne de vacca, cujo supprimento é feito por tres açougues que funccio- nam diariamente. Nos sitios, isto é, no campo, o regimen compõe-se exclusivamente de carne de porco, farinha de milho e feijões afogados em gordura. O arroz não é primeiramente cosido para ser depois temperado com um pouco de gor- dura, ou-como melhor seria-simplesmente cosido em agua e sal; alli é outro o processo: cozinham logo o arroz na gordura, sem agua, e o mesmo fazem com o peixe, a gallinha, etc. A gorgurada é para aquella gente o ideal da perfeição da arte culinaria (*) O Dr. Salles Gomes não conhece caso algum justifi- cativo do contagio, mencionando, ao contrario, muitos casaes em que a moléstia, apezar de decorrido bastante tempo, não passou de um dos cônjuges. E', portanto, a cidade de Tatuhy mais um exemplo (*) A gordura para os usos domésticos é obtida de toucinho derretido; a banha de porco é applicada ao fabrico do sabão. 107 da impunidade com que ha muitos annos os morpheticos em todas as condições frequentam semanalmente as ruas, sem propagar o mal. Gruaratinguetá. Foi a ultima localidade que visitei no meu regresso para esta cidade. Graças á solicitude do então juiz de direito, o meu amigo-o senador Cassiano Tavares Bastos, entendi-me com o Dr. Julio Pourchet, clinico ha 12 annos, e que in- formou-me diminuir cada vez mais o numero de morphe- ticos, que apparecem esmolando, os quaes installam-se em casinhas sitas á estrada que vae á Capella de Nossa Se- nhora da Apparecida. Na cidade sempre houve poucos doentes; na occasião em que lá estive nenhum havia. Em Pindamonhangaba, accrescentou o mesmo col- lega, é pequeno o numero de affectados, e em Lorena-- ainda menor. Na Cachoeira não consta que haja, de sorte que na opinião do Dr. Pouchet a moléstia decresce no norte de S. Paulo. A alimentação tem melhorado consideravelmente, e comquanto nella ainda figure, pondera o mesmo Dr., a carne de porco, todavia usa-se de da vacca, de farinha de mandioca e pão de trigo; notando que, não se sustentando dantes uma só padaria, já se mantém tres funccionando regularmente. Da exposição feita pelo Dr. Pouchet infere-se que a morphéa não creou raizes profundas no norte de São Paulo, e ao contrario decresce em toda a linha do norte apezar de ter sido outr'ora muito frequente, e continuarem a mendigar pelas cidades os doentes restantes. Antes de terminar esta parte de meu trabalho, devo occupar-me de dous factos, principalmente um, da maior relevância. Eil-os : Achando-me na Capital, de volta de uma de minhas 108 excursões parciaes, encontrei-me em palacio (era presi- dente o brigadeiro Couto de Magalhães) com o ex-senador Leão Velloso e o ex-deputado Rodrigo Lobato. Sciente do objecto de minha visita á sua terra natal, o Dr. Rodrigo Lobato pronunciou-se largamente sobre a morphéa em Taubaté observando que alli já houvera sido muito mais frequente do que actualmente. A proposito referio-me que duas familias daquclla localidade eram affectadas de lepra, transmittida de gera- ção em geração; e que os descendentes últimos de uma dessas familias, netos e bisnetos, já não soffriam parecendo nelles extincto o germen do mal-citando vários nomes de descendentes immunes; "mas, accrescentou o Dr. Ro- drigo Lobato, vivem com muita cautela, isto e: usam de alimentação de que não fazem parte a carne de porco e o milho." Tratando-se de pessoa maior de toda a excepção, como o ex-deputado por São Paulo, julguei digna de attenção a referencia por elle feita a um facto de seu conhecimento, tanto mais que apresenta pontos de con- tacto com outro de minha observação pessoal, que por minha vez passo a narrar. Um meu distincto amigo da capital de S, Paulo, na occasião de minha partida para o interior, offereceu-me uma carta de recommendação para o Barão de... seu alliado politico, proporcionando-me assim meios de estu- dar a moléstia em uma das familias mais importantes, em que dizia-se ser o mal hereditário. Chegando á localidade e não encontrando a pessoa, entreguei a carta a um creado e retirei-me. Pouco depois recebia eu a honrosa visita do Barão de... acompanhado de outra pessoa, versando a conversação sobre generali- dades como succede em um encontro de mera etiqueta entre pessoas que não se conheciam. Retirando-me á tarde, por casualidade foi meu com- 109 panheiro do viagem o Barão, que, apenas avistou-mo, dirigiu-se a mim, sentando-se defronte. Cumpre notar que este cavalheiro apresenta um quer que seja de leproso na physionomia, dando logar a que a opinião anonyma o tenha como atacado da moléstia. Dessa familia não é o unico, como terei de referir, que apresenta o mesmo fácies. x Releva notar que o medico da familia, antes desse encontro, historiando os casos de morphéa, que termina- ram pela morte, ponderou-me que o Barão sempre teve aquella pelle do rosto como outros parentes seus, sem que em toda a sua vida sobreviesse qualquer outra alteração significativa de um processo morbido em evolução. " lia mais de vinte annos, disse-me, que conheço-o, sempre no mesmíssimo estado, sem peiorar." Em outros termos: aquelle estado era o normal dessas pessoas; paes idosos e filhos,-meninos, moços ou adultos, apresentam pois aquella desfiguração physiologica. Achando-me, como disse, em frente do Barão de... verifiquei o seguinte: a pelle do rosto era desigual, aspera, como que um pouco hypertrophiada ; o nariz, devido á hypertrophia das azas e consequente alargamento do dia- metro transverso, era estranhamente achatado; e as orelhas um tanto espessadas. O povo compara a pelle do rosto das pessoas, a que alludo, á casca de laranja da terra flaranja amarga), que, como é sabido, é desigual e aspera. Meu companheiro de viagem, que de certo não igno- rava o objecto de minha excursão, discorreu francamente sobre a grande infelicidade de sua familia victimada pela inexorável moléstia, condemnando o grave erro dos casa- mentos consanguíneos, por elle proprio commettido, mas nenhuma referencia fez ao seu estado, persuadido natural- mente de que nada soffria. Com effeito, das respostas a perguntas por mim feitas 110 com a necessária circunspecção, não transpareceu a menor desconfiança de soffrimento, colhendo eu apenas que havia o maior cuidado com a alimentação. Conveniências impedem-me de entrar em detalhes, limitando-me a affirmar que nesse estado ha tres familias do mesmo tronco, nas quaes nota-se essa especie de dege- neração da moléstia, isto é: ha tres irmãos e os descen- dentes de dous com o mesmo fácies desde o nascimento, sem alteração alguma ulterior que indique processo ou actividade mórbida. Lastimo ignorar a quantas gerações leprosas perten- cem os actuaes membros da antiga familia contaminada pela morphéa. Parando em uma cidade visinha, procurei no dia se- guinte um collega, natural dahi e clinico ha annos, afim de communicar-lhe a sorpreendente observação, e colher mais informações sobre o facto. Depois de ouvir-me, ministrou-me outros esclareci- mentos, dizendo ser o mesmo facto conhecido, e assegu- rando que desde o nascimento nota-se aquelle vicio da pelle do rosto; fez mais: convidou-me a ir a uma sala de quadros onde estavam dous retratos, em tamanho natural, de uma dessas pessoas e da filha pelos quaes verifiquei o mesmo phenomeno, clarissimamente figurado. Não ó caso de herança, já uão digo da moléstia, que os anticontagionistas não admittem, mas de disposição mórbida, visto não ser verosímil que houvesse tal dispo- sição em tantas pessoas sem evolver em alguma delias; o que ha, sim, é a herança do caracter anatomico da pelle, mantido em varias gerações. E' a herança, pois, de um accidente, de um vicio de confirmação, de uma alteração anatómica, por organismo em quem abastardou-se o principio morbido. Graças aos recursos dessa familia e ao regimen a que submetteram-se os seus membros, puderam os descendentes, a que refiro- 111 me, não só resistir a degeneração successiva, como é a regra, mas até modificar a construcção intima, viciosa leprosa, reduzindo a herança á essa pelle aspera, grosseira, hypertrophiada, dentro dos limites pliysiologicos, man- tendo-a assim desde o nascimento até idade avançada, conforme as informações que colhi de pessoas com razão de saber, e a minha própria observação. Não se trata de uma raridade ou excepção, mas sim de uma nova disposição adquirida por vários membros da mesma familia-oriunda de gerações morpheticas ; não sendo temeridade prever que, observados os preceitos hy- gienicos, entre os quaes deve figurar em primeiro logar o crusamento, aquelle vicio anatomico acabara por desappa- recer completamente. Como disse, se é importante o facto da extineção da transmissibilidade hereditária em uma familia, conforme narrou-me ura cavalheiro distincto,o Dr.Rodrigo Lobato - muito conhecido em São Paulo, facto ainda não mencio- nado por autor algum, extraordinário e importantíssimo é o que acabo de referir observado por alguns collegas e por mim, não me constando que haja caso idêntico sido por outrem observado em parte alguma. Em recentissima communicação (23 de Agosto ultimo) feita a Academia de Medicina de Paris, o Dr. Zambaco refere-se á lepra liquida, incompleta, attenuada, por elle observada na Bretanha e considerada uma sobrevivência da autiga lepra do 16° século: elle conserve, diz elle, par une hèreditè ancestrale, par atavisme. Assignala-se por um ou dous symptomas, acrescenta o Dr. Zambaco: é, em summa, frusta. Os casos que descrevi não pertencem aos mencionados pelo medico turco: nestes ha ou houve processo .morbido, trabalho evolutivo que esbarrou cedo ou paralysou; na- quelles, nos observados por mim, nunca houve trabalho algum morbido: o Barão de... bem como o irmão e uma 112 filha de cada uni delles nasceram com Njuella pelle e nunca apresentaram symptoma algum indicativo do pro- cesso leproso; a pelle das filhas é a mesma dos paes, e é a natural delias e delles. Vê-se, pois, que os meus casos são differentes dos do Dr. Zambaco. Eis o resultado da minha excursão pelo Estado de São Paulo, realisada com o fim unico de examinar por mim mesmo, não em um, mais em vários fócos, a questão do contagio, não encontrando nem verificando caso algum que autorise-me a admittil-o. Não duvido que se me attribua parcialidade e accom- modaçãodos factos, interpretando-os a meu modo, á minha crença do não contagio da morphéa. Não sei se valia apena deixar os meus trabalhos e familia, para emprehender viagens incommodas, presen- ciar situações desagradaveis, entregar-me a esforços e insano trabalho cora o unico fim de enganar-me a mim proprio. Não será por demais lembrar que não fui a logar algum, não visitei Ou examinei doentes fóra da presença de collegas, que, acompanhando-me, dispensaram-me at- tenções que nunca olvidarei. Sendo me alem disso ministrados pelos mesmos col- legas os esclarecimentos que colhi e consignei neste tra- balho, posso em synthese affirmar que ó delles a opinião anti-contagionista, e que a mim coube apenas traduzil-a do modo como fiz, e mais nada. Se discrepei uma linha da verdade; se faltei á leal- dade para com elles, emprestei-lhes opiniões que não ex- ternassem, ou fui infiel na exposição dos esclarecimentos que ministraram-me, é seu dever dizel-o publicamente, inflingindo pena merecida pela má comprehensão da pro- bidade profissional e abuso das finezas recebidas. Colloque-se o distincto collega Dr. Pedro Severiano 113 de Magalhães em meu logar ; figure ter visto o que vi, observado o que observei, e decida, á vista do resultado, se, como aflirmou "o contagio da morphêa é questão resol- vida." O professor Hardy, na discussão travada em 1888 no seio da Academia de Medicina de Paris a proposito da Memória do Dr. Besnier sobre a lepra, tratando da in- fluencia da raça e do clima sobre o desenvolvimento da moléstia, disse, depois de mencionar a immunidade dos parisienses-não obstante darem-se alguns casos de lepra em Paris,-si em outros paizes a lepra e contagiosa, não o êno nosso-, e termina por estas palavras: não temamos acolher os leprosos sem fazel-os passar pelas forcas caudi- nas da policia. Parodiando as palavras do notável dermatologista francez, cabe-me dizer com os factos em mão, e com provas inconcussas, que, se a morphéa é contagiosa, no Brazil não o é; será nas ilhas Sandwich, ou e entenderem de accordo com a theoria adoptada; aqui- não; ao contrario, a tendencia, como demonstram os factos em S. Paulo, Bahia e Pernambuco, é para decrescer, cir- cumstancia preciosa que serve ao mesmo tempo para evidenciar que o nosso clima e a nossa raça não favorecem ou alimentam o incremento da morphéa. Assim, não será temeridade aflirmar que semelhante mal desapparecerá dentre nós ou se reduzirá a raros casos se, como deve ser e é de esperar, com a prosperidade e a cultura intellectual attender-se aos conselhos hygienicos, que podem precipitar a terminação nas localidades onde com maior ou menor frequência existe a morphéa. XIV Passo a occupar-me da prophylaxia da morphéa, ana- lysando d'entre os meios hygienicos, adaptaveis ás nossas condições,os que podem auxiliar a diminuição da frequên- cia dessa enfermidade. Na opinião dos autores dos communicados, a que me tenho referido, publicados no Jornal do Commercio, a sequestração dos enfermos é a principal senão unica me- dida a empregar. O Dr. Pedro Severiano de Magalhães declara não aconselhar de uma vez rigores odiosos, mas entende con- veniente evitar a promiscuidade dos leprosos com os sãos, "causando-lhe muito serias apprehensões o espectaculo publico de morpheticos de todas as idades em intimo e prolongado commercio com crianças e adultos sãos." Por outro lado o autor (anonymo) do segundo com- municado entende que a segregação dos enfermos "é e fi- cará sendo o meio radical de restringir a sua dissemina- ção e já está sanccionado pela experiencia. Eis as duas opiniões que me servirão de guia nas con- siderações a fazer sobre tão delicado assumpto. 116 Começarei pelo exame dos elementos comprobatorios do incremento da morphêa nesta capital. A 20 de Maio ultimo o Jornal do Commercio, em uma das varias noticias, deu alarma do "augmento pro- gressivo, de anno para anno, da cruel enfermidade," fun- dando-se no movimento do hospital dos Lazaros nesta cidade, indicativo da successiva elevação do numero de asylados, e na maior concurrencia de consultantes á sala do banco. O mesmo jornal, publicando a 14 de Junho o commu- nicado anonymo, sob o titulo-A Morpliea - começa assim: "com relação a essa terrível moléstia, que se vai alastrando entre nós em proporções assustadoras, etc." Na carta dirigida pelo Visconde de Sinimbu ao re- dactor do Jornal do Commercio depara-se o seguinte trecho: "Do Dr. José Lourenço ouvi ou em alguns dos seus trabalhos li, que nesta capital esse mal é mais fre- quente do que geralmente se pensa, constituindo assim poderoso motivo para não se desprezar meios contra a sua propagação." Do exposto infere-se que foi o Jornal do Commercio quem, baseando-se no movimento do hospital dos Lazaros, affirmou o incremento da morphéa, expressando-o pelo "augmento progressivo" e o "vae alastrando em propor- ções assustadoras"; porquanto o meu amigo Visconde de Sinimbú limitou-se a dizer que das minhas palavras, lidas ou ouvidas, deduzira ser o mal O'amais frequente do que geralmente se pensava, não assegurando, portanto " aug- mento progressivo." Agora-a minha parte na questão1 no opusculo-A morphea e sua cnrabilidade- encontra-se a paginas 5, o seguinte: "Quando no trabalho-A Jdorp/téa no JBrazil, occupando-me com a distribuição pelas províncias, eu -disse-não posso determinar o grão de frequência da lepra pa corte por falta de dados estatísticos... mui longe -es- 117 tava de suppor que essa frequência é consideravelmente maior do que se me figurava então, etc." Dahi vê-se que eu não afiírmava augmento nem di- minuição; observava apenas que a moléstia era mais fre- quente do que eu suppunha em 1882. Accrescentei, porem, á mesma pagina "toda a pre- sumpção, para não dizer certeza, era favoravcl ao incre- mento", qualificando de "imprevidência" o abandono em que viviam os morpheticos, "porquanto, disse eu, não admittido o contagio no pensar da quasi totalidade dos médicos, ficam para proteger a progressão crescente o desenvolvimento espontâneo, animado pela reincidência nos vícios bygienicos, e mais ainda do que isso, a propa- gação hereditária, franca, libérrima." Faltando-me, com effeito, o unico critério para asse- gurar o desenvolvimento progressivo da morphéa aqui, -a estatística demographica-. devia presumir a propa- gação da moléstia pelas razões dadas, e principalmente - a transmissão hereditária. Não retrocederei: como então continúo a admittir os motivos para o mesmos fundado incremento, a saber: o desenvolvimento espontâneo e a herança, excluído o conta- gio,porque ainda'não o reconheço como causa da morphéa. Sublinhei as palavras acima, no entender de muitos anachronicas ou paradoxaes, para indicar que as repro- duzo intencionalmente e a ningnem parecer que sahiram- me da penna por distracção por mais que as idéas, que ellas representam, escandalizem os doutos. Releva ponderar que o movimento do hospital dos Lazaros, constituindo simples presumpção, não é prova do incremento da moléstia, visto não recolherem-se a esse asylo somente doentes desta cidade, mas também dos Estados. Em conclusão: prova cabal, inconcussa, da progressão da morphéa nesta capital não ha, visto ignorar-se, por 118 falta de estatísticas, qual tem sido a sua tendencia ou marcha; de positivo pode-se affirmar a sua frequência. Em todo o caso, para evitar a transmissão hereditária, propuz a creação da Villa para morpheticos, onde os doentes, fazendo em beneficio da collectividade o sacrifí- cio do isolamento, não abdicassem de todo as funcções de seu ser. Deste modo estancar-se-hia a principal origem do des- envolvimento da morphéa, attendidos e respeitados os direitos individuaes-; entendendo que a sociedade de modo algum pode arrogar-se o direito de encarcerar os morpheticos em asylos, fazendo de um doente um crimi- noso; não podendo também sob o fundamento de aperfei- çoar-se, que continuamente esquece, privar da liberdade a creaturas humanas, aliás dignas de commiseração, con- demnando-as a cárcere privado por toda a vida. Peça-se o sacrifício, mas suavise-se quanto possível a sorte do exilado. Tal como existe, o asylo para morpheticos é um pro- ducto da prepotência e da deshumanidade. O Dr. Pedro Severiano diz não aconselhar de uma vez rigores odiosos : nem de uma, nem de muitas vezes, per- mitta-me o collega ponderar-lhe, taes rigores podem ser aconselhados : não estamos na idade media, ou no tempo em que o governador da Bahia D. Rodrigo de Menezes mandava recolher os leprosos á fortaleza de Barbalho, encarcerando-os. Em relação aos morpheticos basta de injustiças e de iniquidade ; elles são nossos irmãos, e de mais a mais infelicíssimos, circumstancia valiosa para despertar todo o interesse por elles e impedir que os persigamos. Suavise-lhes o poder publico a sorte, e ao aftiicto não augmente a afilicção. Figure cada um o caso em si, e avalie se ha maior desespero na vida do que soffrer de uma moléstia consi- 119 derada inf amante, repeli ente, e alem disso ser perseguido pelo poder, do qual deveria esperar amparo e protecção. Convém notar que não se trata de isolamento provi- sorio, reclamado pela salubridade publica em relação a enfermidades de evolução rapida, infecto-contagiosa,como a febre amarella, ou contagiosa, como a variola ; mas da segregação perpetua em virtude de uma affecção cuja contagiosidade, é controvertida, ou cujo contagio, conce- dido por hypothese, é raro, minimo, difficil, na opinião dos que o admittem. Vou alem : quando morph&a no Brazil expendi- minhas idéas sobre o isolamento, e sem olvidar direitos indlviduaes defendi ou acautelei os do homem morphetico, por suave e humanitaria que fosse a medida por mim pro- posta, muitas vezes interroguei-me se mesmo assim não procedia injustamente ; se não obedecia também ao pre- conceito tradicional aconselhando a Villa, para mor* phcticos. Como justificar a medida de sequestração imposta pela sociedade a membros seus ? A necessidade de aperfeiçoar-se, é sua missão prin cipal. Sendo assim, como comprehender-se que a sociedade estremeça aterrada pelo morphetico, e' mantenha-se na maior tolerância e indifferença ante a tuberculose pul- monar ? Perigo por perigo, incomparavelmente maior é o se- gundo ; porque, emquanto nesta capital fallece annual- mente uma duzia, se tanto, de morpheticos, a tuberculose registra dous mil obitos a mais. Acresce que, emquanto os proprios contagionistas, confessando raro o contagio da lepra, andam as apalpa- dellas quanto ao modo como este se opera, qual seja a via de transmissão e o periodo da moléstia em que pode dar- se, limitando-se a meras conjecturas; não succede o mesmo 120 com o contagio da tuberculose, devido, como está de- monstrado, ao escarrho e desde o começo da moléstia. Entretanto, o que presenciamos ? Os tuberculosos são livres, andam por onde querem, escarram pelas ruas e pelos passeios, nos bonds, nos carros das vias ferreas, em suas casas, nas repartições publicas, nos quartéis, onde quer que estejam, sem obstáculo algum, sem o menor constrangimento ! Severidade então, crueldade mesmo, com o numero relativamente pequeno de mc rpheticos, tolerância e passi- vidade com o incomparavelmente maior dos tuberculosos ! E' esse o aperfeiçoamento ? Essa é a equidade social? Ha ou não preconceito na apreciação das circumstan. cias desfavoráveis, em relação ás duas enfermidades, no desenvolvimento e á prosperidade das familias ? E' inquestionável que, muito mais que os leprosos, concorrem os tuberculosos para a decadência da familia, para a degeneração da especie e o compromettimento da população. Se ha, entretanto, interesses a salvaguardar, seja a sociedade equitativa e justa ; proceda sem prevenções ou iniquidade. Demais (o argumento que passo a apresentar é irres- pondivel e de todo corta a questão), emquanto a tuber- culose cada vez mais se desenvolve, conforme evidencia o obituário, a tendencia da morphéa 6 para diminuir, como succede em algumas partes do Brazil, sem o emprego de medida alguma do constrangimento ou seqr.estração. A minha excursão por S. Paulo convenceu-me que a morphéa até decresce ; que nos centros populosos cada vez mais raros são os casos ; que onde a hygiene progride, operando a substituição dos antigos regimens alimentares, exclusivos e grosseiros por outros adequados ás necessi- dades do organismo, a moléstia limita-se a membros de famílias contaminadas ; iinalmente, uma linha 121 na expressiva "phrase do Dr. Cesario de Freitas-de Itú, separa a geração nova da antiga, libertando aquella de um mal que ainda afflige a segunda, linha equivalente a que separasse da verdade-o erro, do progresso-a igno- rância, da civil isação-o estado primitivo. Procurando exemplos alhures, citarei Pernambuco onde a moléstia decresce, segundo consta do seguinte periodo que transcrevemos d'yl morphèa no Brazil: " Do confronto das duas opiniões, emittidas por práticos antigos e muito conhecedores da província, uma das quaes é antiga, a do Dr. Aquino da Fonseca, a outra recente, a do Dr. Cosme, o que me parece se deve inferir é que na província de Pernambuco a raorphéa tem retrocedido, e já não se apresenta com a mesma frequência de outr'ora." Era relação á Bahia communicava-me o meu amigo Dr. Pacifico Pereira (A morphea no Brazil, pag. 29) que "Felizmente o numero de morpheticos dim-inue geralmente aqui na capital como em toda a província. Recentemente um dos nossos médicos mais intelli- gentes-o Dr. Nina Rodrigues, em uma nota apresentada ao Terceiro Congresso Medico Brazileiro, em 1891, sob o titulo A lepra no Estado da Bahia, declara que " A lepra na Bahia tem diminuído dos tempos coloniaes para os nossos dias", confirmando o seu dito na P conclusão, con- cebida nestes termos : " A lepra tende a desapparecer na Bahia, independente de medidas repressivas e provavel- mente cora a suppressão do trafico africano e com os pro- gressos da civilisação." (I) Diante de tantas e taes provas, reunidas neste tra- balho, para demonstrar que a lepra póde diminuir e com effeito decresce, ao menos em S. Paulo, Bahia e Pernam- buco, sem o emprego de medidas coercitivas, pergunto : ha motivo que justifique a odiosa excepção que se pre- tende estabelecer contra os morpheticos ? (1) Gazeta Medica da Bahia, Fevereiro de 1891. XV Pedindo moderação nas medidas hygienicas em rela- ção á morphéa não obedeço a preoccupações theoricas. Tenho, confesso, intima satisfação em haver sido um dos primeiros a pronunciar-me em favor dos leprosos a despeito dos preconceitos existentes. Bem sei que não é facil vencer repugnâncias secula- res, ou extirpar preconceitos populares. Não será tão cedo que a presença do morphetico deixe de inspirar repulsa ou temor. Ha pouco, entrando um desses doentes em um carro da estrada de ferro de São Paulo com destino á esta ca- pital, tal celeuma levantou que tornou-se necessário reco- Ihel-o a um compartimento isolado. Haverá maior humilhação e deshumanidade ? Semelhante facto não se daria aqui, onde o morphe- tico vai onde quer, seja em carro da estrada de ferro central, sentando-se ao lado de qualquer passageiro sem despertar, como tenho observado, constrangimento, seja em bond, sem que pessoa alguma commetta a impolidez 124 de levantar-se ou mudar de assento, e menos ainda a cruel- dade de exigir a retirada do passageiro enfermo. Graças ao estado de nossa eivilisação acredito que assim continuará a succeder, em que peze ao Dr. Pedro Severiano de Magalhães a quem causa "as mais sérias apprehensões o espectaculo publico de morpheticos de todas as idades em intimo e prolongado commercio com creanças e adultos sãos." Louvando o seu interesse pelo bem publico, eu faria votos para que o collega se esforçasse de preferencia em impedir a propagação da tuberculose, affecção incompa- ravelmente mais damnosa, posto que menos temida do que a morphéa, propondo, entretanto, recursòs mais hu- manos do que a sequestração, que é medida anticivili- sadora, própria dos tempos atrazados, odiosa aos verda- deiros sentimentos humanitários. Esses recursos, sabe o collega melhor do que eu, nol-os offerece a hygiene moderna. Tratando do contagio da lepra, o professor Hardy observou que numerosos enfermos procuram a França, Hespanha, Inglaterra e Allemanha, sem dahi resultar um só caso de transmissão, excepto o tal Irlandez, a que já referi-me, cuja veracidade o mesmo professor com razão prescinde de apurar. Dessa citação vê-se que nos paizes mencionados os morpheticos não inspiram temor, e que tal é a garantia assegurada pelos hábitos hygienicos, que nem mesmo a transmissão hereditária se receia: é, pois, ali completa, absoluta, a prophylaxia contra a lepra. Esta observação é tão formal e convincente que os proprios contagionistas modificaram o seu rigor, propondo e aconselhando medidas menos terroristas, mais scientifi- cas e humanitarias. O Dr. Vidal, contagionista intransigente, não consi- dera necessária nos tempos modernos a sequestração dos 125 enfermos, citando a Scandinavia onde, graças ao concurso ou emprego das medidas hggienicas, só apparecem casos de lepra hereditária, sendo alli quasi todos os doentes netos ou bisnetos de leprosos. Elle proprio, interrogando se mesmo adoptada a dou- trina do contagio deve-se approvar e reclamar as medidas de coacção, oufrora empregadas contra os morpheticos e ainda, hoje em vigor em paizes semibarbaros, responde: Non certes! Les mesures de prophylaxie doivent être propor cio nnées au degre de civilisation des peuples aux- quels elles sont destinées ? Hygiene é o que elle aconselha principalmente. Constantin Paul, no relatorio apresentado á Acade- mia de Paris sobre a Memória do Dr. Zambaco, diz que este preconisa acima de tudo a hygiene, e acrescenta que na Noruega, onde são primorosas as medidas hygienicas e os estabelecimentos hospitalares costeados com um zelo e luxo excepcionaes, e as salas dos hospitaes regorgitam de flores, a morphéa decresce rapidamente. Affirma-se no estrangeiro e aqui qne a diminuição da morphéa na Noruega provem do aperfeiçoamento das medidas de compressão; puro engano; ali, conforme des- creve testemunha insuspeita, o Dr. Leloir, contagionista declarado, nem todos os leprosos são recolhidos aos asy- los, e até os proprios asylados passeiam livremente. - Onde, pois, o rigor da sequestração ? O Dr. Besnier, igualmente contagionista, remata a sua interessantíssima Memória com este fecho de ouro: "a medicina, diz elle, pode oppor á morphéa uma prophy- laxia segura, baseada, nos progressos da hygiene e da sociologia geraes, e empregar medidas de protecção, ne- cessárias em determinadas condições, sem recorrer aos cruéis processos antigos, mantendo-se fiel aos princípios da liberdade e humanidade, que constituem a mais pura gloria de nossa epocha." 126 Eis como pronunciam-se quanto a medidas de rigor, não os adversos ao contagio, mas os acendrados conta - gionistas. Dito isto convém definir qual deva ser em relação á prophylaxia da morphéa a collocação do nosso paiz: se entre os civilisados onde a hygiene confere abrigo contra a propagação dessa enfermidade, ou os semi-barbaros onde vigoram ainda medidas draconianas. Não é de extranhar, pois, que pedindo ha dez annos commiseração para os leprosos, quando a sequestração passava ainda por unico e ultimo recurso, apresente-me agora defendendo com afinco e convicção os direitos dos morpheticos, não contra o interesse e bem- estar sociaes, que devo e me prezo de zelar, mas de conformidade com o progresso da sciencia, os ensinamentos da experiencia e as leis da natureza. Comprehende-se que a sociedade para garantir-se re- corresse á medida ultra-rigorosa de encarceramento dos leprozos em tempos mais atrazados, quando não eia co- nhecido outro preservativo do incremento da morphéa; mas, indicados e aconselhados outros recursos, entre os quaes não figura o barbaro sequestro, cessa o unico pre- texto da perseguição desses infelizes. Se a sociedade trata seriamente de precaver-se contra a morphéa, a tuberculose etc., use dos meios aconselhados neste sentido; mas por commodidade própria não pirve a infelizes doentes do unico consolo na vida -o gozo da liberdade. Não pareça, entretanto, que desisti da proposta da Villa de Morpheticos', ao contrario, insisto por ella, não pelo temor de perigo social, mas a bem dos enfermos, como o unico meio de auxilial-os efficazmente Em São Paulo, Minas e outros estados, é contristador e pouco decoroso o espectaculo exhibido pelos morphe- ticos publicamente; ali não morrem, pode-se dizer, da 127 moléstia, mas devorados pelo alcoolismo; o mal decresce, é certo, mas abjectamente. Reconheço com justiça que os Paulistas condoem-se da terrivel sorte dos leprosos, não negando-lhes a esmola, de que os doentes por ignorância, descrença ou desespero abusam. O morphetico pobre, homem ou mulher, ainda moço e relativamente robusto, contando com a facilidade da esmola, abandona qualquer outro meio de vida, para ex- plorar como vagabundo de localidade em localidade, de rua em rua, de casa em casa, de pessoa em pessoa, a cari- dade publica. Sem familia, sem laços sociaes, sem compromisso de ordem alguma, ignorante e descrente, procura dissimular a sua situação entregando-se á uma vida licenciosa e ao abuso dos alcoolicos; é isso o que cumpre cohibir. Nem perseguidos, nem abandonados. E' natural que os Paulistas desejem a extincção da lepra; urge mesmo que o consigam; mas por outros pro- cessos, de accordo com a sua civilisação e os sentimentos humanitários. Ha meios de conseguil-o: combinem-se as intendên- cias e prohibam formalmente a mendicidade dos morphe- ticos, lançando ao mesmo tempo um pequeno imposto applicavel ao custeio e á manutenção da Villa de Mor- pheticos. Obtenha-se uma fazenda mais de creação do que de plantação, installe-se ahi o asylo para os invalidados pela morphéa, e aos que não estiverem nesse estado dê-se occupação adequada ás condições physicas e ao estado morbido, Estancando-se a mendicidade, offerece-se em compen- sação aos enfermos meios regulares de subsistência ; mu- dando apenas de forma, a caridade tornar-se-ha mais digna de quem a pratica e mais util a quem a recebe. 128 Faça-se do morphetico um homem, e do homem um ser util a si proprio, restaurando-lhe o moral e convidan- do-o a aproveitar a sua actividade e as suas funcções. Fallando-se em melhorar-lhes a sorte por esse meio, notei que se reanimavam. Prohibidos de mendigar e encontrando collocação, occupação, distracções, interesses, protecção, abrigo, não hesitarão por muito tempo em procurar e preferir o novo estado como solução natural. O homem por ignorante que seja, não perde a noção da dignidade; despertado em tempo, abandonará a vida nómade por amor da perfectibilidade, que, latente ou ex- plicita, é o seu ideal, a sua principal missão na vida. Os vicios são quasi sempre o producto da infelicidade, o meio de attenual-a ou esquecel-a. E' difficil senão impossível ser-se infeliz por toda a vida: em tal situação abyssus abyssum i/wocat. Sustento, hoje, o que publiquei em 18S2 e repeti em 1885. Morplúa no Brazil esbocei a Villa para Mor- phetiços, e no opusculo a Morphea e sua curabilidade, reproduzindo a ideia, accrescentei: "Uma das mais bellas conquistas da medicina foi a realização da idéa de Pinei relativa á fundação de colonias agrícolas e á sua annexa- ção aos asylos de alienados. O resultado colhido em algumas colonias na Bélgica, na França, em outros paizes da Europa e nos Estados- Unidos ê altamente satisfactorio. Alli os loucos são doentes e homens; graças aos pro- cessos imitativos da natureza, elles dirigem-se á vontade, trabalham, jogam, conversam, distrahem-se, divertem-se, constituem-se em familia, em sociedade, sem contudo se aperceberem de que na atmosphera que os envolve paira o olhar da vigilância. Parecendo ao primeiro aspecto incapazes de qualquer 129 trabalho regular, perdidos de uma vez para o desempenho de seus deveres em virtude do desarranjo da intellectua- 1 idade, praticamente demonstram o desacerto dessa sup- posição, e aos que visitam suas colonias exhibem o sur- prehendente resultado de uma rehabilitação que, sem o regimen colonial, nunca teria logar. E porque o mesmo ou melhor não succederá com os morpheticos que não perdem a razão, por desesperadoras que sejam as suas circumstancias ?" Eis o que escrevi. Confronte-se esta situação com a dos morpheticos era São Paulo ou no Brazil, vagabundos, mendigos, maltra- pilhos, entregues a completo ocio, a vicios de toda ordem, principalmente ao abuso dos alccolicos nos antros em que se refugiam, explorando a caridade publica, e pergun- tarei: é licito a uma sociedade civilisada cerrar os olhos ao contraste conservando-se impassivel ante a abjecção dos leprosos, ou indifferente ao seu extermínio proveniente da pratica de vicios exterminadores ? Uma das nossas mais accentuadas vocações medicas, vulto de grande talento e coração, que poderia ter enri- quecido a medicina brazileira com maiores producções da sua intelligencia, do que fez, se outro fosse o meio e outras as circumstancias em que viveu, o Dr. Julio de Moura, tão cedo eliminado da existência, analysando A Mor- plica no Brazil-ao occupar-se da ideia da colonisação dos morpheticos, assim se exprime (*) "Por essa razão ninguém deixará de considerar uma medida de alto al- cance hygienico, humanitaria e feliz, alvitre que alem de tudo pode dar em resultado a delimitação e mesmo o des- apparecimento do mal, a ideia de fundarem-se estabele- cimentos especiaes, mantidos com a abundancia e os re- cursos que podem emanar da sciencia e da caridade e para (*) União Medica, Junho de 1883. 130 os quaes o autor do livro lembra com toda a propriedade o nome de "Villa dos Morpheticos." Julgo de todo o ponto acceitavel um projecto util como este." Mal sabia eu quando propuz a modificação do systema de isolamento dos morpheticos, supprimindo-se o asylo como medida de sequestração, recurso odioso e iniquo, prepotente e deshumano, salvo a intenção, e substituindo- o pela colonia agrícola, que em outra parte e em condi- ções que-a julgar pela geral noticia,- teria attenuantes o rigor das medidas coercitivas, já funccionava um esta- belecimento nessas condições; refiro-me ao hospital de Molokai, nas ilhas Sandwich. O Dr. Varigny, no artigo La lèpre aux illes Ilawaii {Levue Scientifique ) depois de mencionar um asylo es- pecial para os filhos dos leprosos, destinado, pondera o autor, a prestar grandes serviços, diz: " O Asylo Molokai a partir de 1866 tem recebido 3100 leprosos, oscillando o numero entre 700 a 800; a mor- talidade é de 150 por anno; os leprosos vivem como que- rem e têm terra para cultivar; assemelha-se ao asylo de alienados de Gheel, no sentido de viverem á vontade, em liberdade, em terreno muito extenso, pouco sentindo a mão da autoridade; occupa a totalidade da ilha-que temas dimensões de um departamento francez de medio tama- nho. Repare-se bem: ali onde tanta impressão desperta o incremento da morphéa, não supprimiram os doentes, não os sepultaram em vida, sob o pretexto egoista do bem pu- blico, no seio de uma população combatida por varias causas que ameaçam-na de extincção rapida; respeitaram no doente o ser humano, offerecendo-lhe, em compensação do seu sacrifício, espaço, liberdade, meios de distracção e interesses nos limites concedidos á actividade e ao exercí- cio das funcções da vida organica. Aqui, no Brazil, nada disso existe: ou o asylo ou o 131 antro; ou a prisão ou a vagabundagem; ou a perda de toda a esperança e o supplicio de horas, umas após outras, passadas em cruel monotonia, cedendo ao attractivo dos vicios e ao consolo do alcoolismo, ou aguardando o dia final da vida. Pensar-se-ha porventura que o morphetico não sente, não pensa? Quanto aos filhos desses miseráveis, vi que acompa- nham os progenitores no asylo, como em Piracicaba, ou na vida errante de localidade em localidade testemu- nhando e aprendendo o vicio, ou então na maior miséria que imaginar-se pode em uma barraca na cidade do Rio Claro. E' um dos quadros da nossa vida social, que deixo esboçado não por maledicência, mas como esperança de modificação salutar. XVI Tratarei das medidas hygienicas, varias vezes por mim alludidas, que cumpre empregar contra o desenvol- vimento da morphéa. Os meios são mais simples do que parecerão á pri- meira vista; na minha opinião resumem-se na escolha da alimentação, considerada não só em relação a adultos, como aos descendentes ou apparentados com os morphe- ticos. Deste assumpto occupei-me largamente n'JL Morphéa no Brazil quando tratei do regimen alimentar no norte e no sul do Brazil, e por isso limitar-me-hei a algumas con- siderações geraes,mas sufficientes para o esclarecimento do assumpto. Desde então, quanto mais observo e reflicto sobre as condições em que a morphéa se desenvolve, diminue de frequência ou desapparece, não só no estrangeiro, como ■entre nós, tanto mais me convenço de que tudo depende da alimentação, isto é: dos alimentos usuaes dos habitan- tes da localidade onde existe a lepra. 134 Suspendamos por momentos o nosso juizo, demos tre- goas ás controvérsias, e calmamente examinemos os factos. O que vemos ? Nota-se que invariavelmente a moléstia existe endé- mica onde ha defeitos de regimen alimentar, essencial- mente consistentes no exclusivismo da escolha das sub- stancias alimentares, predominando, seja onde for, os alimentos solidos gordos e os liquidos gordurosos. A corrupção dos alimentos, por exemplo-o peixe, o oleo, etc., á qual ligam alguns autores grande importância, não passa a meu ver de circumstancia secundaria, de sim- ples auxiliar da má nutrição ou do imperfeito resultado nutritivo. O essencial, quanto a mim, é o genero dos alimentos e não o seu estado. Em apoio do enunciado poderia invocar bastantes factos de data mais ou menos antiga, utilisando-me de alguns já mencionados no meu trabalho ; não o farei, porem, recorrendo nessa occasião a factos recentemente publicados ou conhecidos. Refere o Dr. Zambaco no livro Voyages chez les Vepreux que em varias localidades, onde era frequente a morphca, a prosperidade local e a subsequente melhoria da hygiene alimentar foram bastantes para diminuir no- tavelmente o mal sem a menor interferencia de medidas compressoras. No districto de Plomari, da ilha de Mételin, com- posto de dez povoações, a melhoria das condições hygie- nicas dos habitantes determinou a diminuição dos casos de lepra. Eh bien! ! exclama o autor par ce seul fait, la lépre tend á disparaitre chez eux. Para melhor patentear o contraste, menciona os po- voados Potamos, Pligia e Paleochoii, onde a moléstia continúa impavida em virtude das reiteradas infracções 135 da hygiene, ou, para citar as mesmas palavras do autor, Dont la population croupit tovjours dans la mente saletè etdans la meme qu'aupavant. Dos factos que expoz conclue o Dr. Zambaco: Donc la mauvaise hygiene contribue essentiellement à la multi- plication des lepreux. A proposito da ilha de Calgmnos, onde a lepra fez cruéis estragos, diminuindo successivamente nos últimos vinte annos, cita o Dr. Caravokyros, natural da mesma ilha e ahi clinico ha muitos annos, o qual attribue a dimi- nuição da moléstia ao estado material dos compatriotas. Dantes muita miséria, consistindo o sustento em pés- simo pão de cevada-que le peuple trampait dans Vhuile rance-, em peixe salgado, em caviar vermelho (ovas salgadas de solho), e, finalmente, em legumes prepa- rados no mesmo oleo rançoso. Tudo, porem, mudou, con- tinha o auctor, passando a fazer parte da alimentação- carne de vacca, leite, ovos, manteiga, e tornando-se saudá- veis as habitações. Na ilha de Telos habitantes immundos nutrem-se de substancias repugnantes, principalmente do azeite doce, que derramam sobre o pão negro, legumes seccos e cebo- las com oleo. Iguaria muito apreciada ali é a denominada pasparo, preparada com toucinho, farinha e figos. Reina a miséria e a immundicie, e com ellas a lepra causando grandes estragos era Telos, que contrasta com as ilhas visinhas onde melhoraram as condições hygienicas e o estado social. Era Sygmi e Paptinos, einquanto os habitantes usa- ram de raà alimentação, eram frequentes os casos de lepra; melhoradas as condições hygienicas, continha o autor ci- tado, a moléstia diminuio. Cumpre lembrar que em localidade alguma das men- cionadas pelo Dr. Zambaco pode-se attribuir a diminuição da frequência da morphca a medidas restrictivas, que 136 nunca foram empregadas; mas sitn á melhoria das cond ções hygienicas, particularmente do regimen alimentar, O professor Hardy, referindo se á immunidade dos franeezes quanto a lepra, a ponto de não haver receio algum da presença de leprosos em Paris, attribue o resul- tado principalmente a "raça e ao clima/' Não influio na opinião do eminente professor a grande frequência que ali houve da lepra depois das cru- zadas, importada da Palestina, nem a circumstancia de ainda existirem focos leprosos enl seu paiz; ao contrario invoca em seu apoio a quasi extincção da endemia e a actual immunidade dos franeezes, não attribuindo o des- apparecimento do mal á sequestração dos enfermos nas leproserias, por não ter sido absoluto o isolamento, mais parce que la lèpre rfest pas une maladie nostras. Entretanto, é geral attribuir a cessação da lepra que reinou na Europa durante os 11°, 12° e 13° séculos ás rigo- rosíssimas medidas de isolamento dos enfermos ! Ahi fica consignada a opinião de autoridade competente contes- tando o facto, sem de certo negar a parte que ás medidas de reclusão coube no alludido resultado. Quanto ao poder prophylatico attribuido por Hardy ao clima e a raça ouso pensar, sem quebra do meu pro- fundo respeito ao sabio dermatologista francez, que não parece procedente a explicação do desapparecimento da morphéa no seu paiz ; porque se o clima e a raça effectiva- mente gozassem de semelhante prerogativa, é indubitável que a moléstia não reinaria, como reinou, durante séculos, augmentando consideravelmente, mesmo admittido o con- tagio, que o professor Hardy aliás repelle, ou só concede em outros climas. Demais, alguns fócos ainda existentes na França, por menor que seja a importância que se lhes ligue, não abo- nam a poderosa influencia das duas mais poderosas causas, segundo a opinião do professor Hardy, o clima e a raça- 137 que continuam inalteráveis, contra a rebeldia dos mesmos focos. Si, pois, não se pode em rigor attribuir o desappareci- mento da lepra dentre os francezes e a actual immunidade - á raça e ao clima do paiz, raça e clima levados de ven- cida pela enfermidade durante séculos ; se a moléstia não cedeu, como aftirma o mesmo professor, a medidas de ri- goroso isolamento, que nunca houve, segue-se que a outras causas deve-se attribuir o facto historico, de que oc- cupo-me. Ora, as únicas para as quaes pòde-se com muita plau-' sibilidade appellar, conforme entendem outros autcres e confirma a experiencia em vários paizes, são as condiçoes hygienicas, - péssimas durante e depois do longo periodo convulsivo que tanto abalou a Europa, paiticularmente a França, e que corresponde ao reinado da lepra, e satisfac- torias posteriormente, graças á prosperidade nacicnal e subsequente melhoria das condições hygienicas, seguindo-se a immunidade de que gosam os francezes. Do mesmo modo pensa o Dr. Zambaco, que em re- cente trabalho exprimin-se nos seguintes termos : Spora- dique, disseminée, la lèpre existe qtartout en Eranceet dans toute VEurope. /Si on la cherchait, on la rencontrerait bien souvent, fen sais convaincu, tout au moins lêgère, dégê- nerèe ou fruste, gràce aux améliorations hygieniques et à la diminution de la misère publique. Não é com effeito a boa hygiene o mais poderoso re- curso que os proprios contagionistas hoje reconhecem e aconselham contra a propagação da morphéa ? Sendo assim nos tempos modernos, nenhum motivo ha para que deixasse de ser nos antigos. Estreitando o circulo destas considerações, observa- leijque durante as graves perturbações sociaes o lado mais compromettido da hygiene c incontestavelmente a alimen- tação publica. 138 Escriptores francezes descrevem a miséria com o sé- quito das grandes crises alimentares que opprimiram os povos europeus, durante aquella épocha da historia ; ao contrario, a par da prosperidade vem o bem-estar, melhora a alimentação publica e com esta a salubridade. Quem conhece os hábitos dos europeus, sabe quanto estão adiantados principalmente no sul da Europa os re- gimens alimentares, podendo-se ate afiirmar ser este da hygiene o ramo mais aperfeiçoado. Associados assim os acontecimentos, de um lado os sociaes e de outro os hygienicos, conclue-se per encadea- mento natural que a immunidade de alguns povos euro- peus contra a lepra, deriva da feliz combinação dos regi- mens alimentares e do progresso da civilisação. Estudem-se as condições hygienicas dos habitantes das localidades onde ha focos leprosos, em Nice na França; na Catalunha, Valença, Asturia, etc., na Hespanha ; em Ri viera di Ponente, Comacchio, na Italia, conforme os dados geographicos publicados pelo Dr. Leloir no Traitè de la lèpre, e ver-se-ha que nas mesmas localidades ha vicios de regimen alimentar quaesquer que sejam : a per- manência de taes focos não será explicada pelo clima, pela raça, pelas condições telluricas, pelo contagio, nem sufii- cieniemente pela transmissão hereditária, mas principal- mente, essencialmente, por infrações da boa hygiene ali- mentar. Basta considerar a posição geographica dos mencio- nados focos para suspeitar que não afasto-me da verdade propondo a verificação da causa real da lepra naquellas localidades. Certo ó que onde a alimentação não é sobrecarregada de gordurosos e, ao contrario, é variada c composta prin- cipalmente de carne de vacca, carneiro, pão, leite, ovos, etc., nunca houve nem haverá lepra endemica; o açougue 139 e a padaria são em synthese o melhor meio prophylatico contra a moléstia. Objectar-se-ha que nesta capital, onde ha muitas pa- darias e grande numero de açougues, c frequente a lepra em contrario a esta affirmativa. Sim, ha açougues e padarias, mas nem por isso perde de valor a proposição; explico-me: primeiramente, não se pode affirmar a existência aqui da lepra endemica, visto faltarem os meios de verificação, a começar pela carência de estatísticas; em segundo logar, manifestando-se em geral a morphéa em meninos ou moços não é temeridade affirmar que os casos dados nesta capital são principal- mente de origem hereditária; e finalmente aqui mesmo ha grandes vicios de regimen alimentar. Se, com effeito, em algumas classes sociacs nota-se critério na composição das refeições, pode se asseverar, presa-me dizel-o, que,em geral, nós os brazileiros cuidamos pouco da hygicne, desconhecendo os seus inestimáveis benefícios ou desprezando-os, como attesta o desaceio das casas e dependencias, e ainda menos zelosos somos da hygiene alimentar. Se a principal infraeção consiste na alimentação mal escolhida e defficiente, affectando de preferencia as crian- ças, cumpre notar que muitas pessoas abusam da carne de porco, peixe, mariscos, etc. Durante o anuo inteiro come-se carne de porco, seja fresca diariamente vendida nos açougues, seja salgada, de que se faz enorme consummo, procedente principal- mente de Minas. Ao passo que na Europa a carne de porco só è utili- sada em certa estação do anuo, aqui, onde a predominante temperatura elevada menos aconselharia o uso das sub- stancias gordurosas, não ha reserva em estação alguma. A verdade é esta: cada um alimenta-se, não com° 140 deve ou convém, mas como quer e entende, consultando principalmente o paladar. Convenho que muito concorre para isso a ignorância dos inconvenientes ou males resultantes dos abusos ali- mentares; poucos são os que sabem viver acommodando-se ás exigências do clima: quem pode, come de mais, quem não pode, come de menos: eis a regra. Não é só, porem, comer de mais ou de menos; é tam- bém não attender á composição das refeições, preferindo - o regimen exclusivo com predominância de gordurosos, em prejuiso das funcções digestivas e da nutrição geral. Como não ser assim si a tradicção é o regulador dos nossos hábitos ? Temos porventura cosinheiros que conheçam o con- veniente preparo das substancias alimentares? Não. Ensina-se o pedreiro, o carpinteiro, o sapateiro, etc.; só o cosinheiro, isto é, o que exerce uma funeção mais delicada e complexa, nasce sabendo. Ha o cosinheiro para o trivial, que vem a ser o que faz pouco mais alem de levar a panella ao fogo, e o de forno e fogão, o mais graduado e entendido, que prepara massas e doces. O primeiro era o commum; digo-era-porque,actual- mente este mesmo é vasqueiro ; o segundo era difticil encontrar, e primava mais pelo preparo de iguarias agra- daveis ao paladar, do que saudaveis: o cosinheiro fino sabe preparar muitos pratos, poi- pratica do officio, apren- dendo aqui e ali, mas sem o menor conhecimento das van- tagens reaes das combinações culinárias ; propriamente sabe variar os pratos, que é o ideal, o apuro do bom gosto; cabendo ao mais infeliz e resignado dos nossos orgãos-o estomago-dar destino a toda a carga. Relativamente a população brasileira, alem do erro imperdoável de muitas familias, poupando nos alimentos 141 para gastar etn cousas menos uteise até fúteis, a ignorân- cia é ainda maior. Onde mesmo aprender ? A cozinha nacional é roti- neira e atrazadissima; para melhoral-a não se faz propa- ganda, não se publicam conselhos hygienicos, indicando a composição das substancias alimentares, a sua melhor combinação, os regimens adoptados ás idades, aos sexos? ás profissões. Descurado e imperfeito é o sustento das crianças, umas alimentadas de menos, outras de mais, não sendo por isso de estranhar a má organização delias e as frequentes perturbações do estomago. Si se perguntar com que intervallo cumpre amamen- tar os filhinhos, ou qual a conducta a seguir á noite em ordem a obter que durmam tranquillamente, permittindo o precioso repouso a quem cria, raras mãis saberão res- ponder. Durante a adolescência os mesmos descuidos,a mesma ignorância. Da classica feijoada (prato dilecto e diário em muitas casas, frequentemente ás duas principaes re- feições) tanto usa a menina ou a moça de estomago deli- cado, quanto o carregador de fardos, dotado de estomago bem furnido de túnica muscular e abundantes secreções pepticas. O abuso deste alimento grosseiro e indigesto passa por uma das causas mais frequentes de dyspepsias, e tam- bém não sem razão de certa falta de elegancia nas jovens e senhoras brazileiras. Quando, ha poucos annos, o barão de Mamoró tratava de reformar a Junta de Hygiene, conferindo aos dele- gados, entre outras attribuições a do rocenceamento da população, recordo-me de haver publicado na Gazeta de Noticias um artigo atacando algumas disposições da projectada reforma, e mostrando a necessidade de alar- gar-se a esphera da hygiene publica, até então adstricta á providencias reclamadas pelos paroxismos da febre ama- 142 relia ; lembrei a conveniência da publicação de conselhos hygienicos sobre a alimentação, e até de premiar os me- lhores trabalhos sobre o assumpto. Nada se fez, e continuamos como dantes. Ila pouco li,no extracto de uma das sessões da Socie- dade de Ilygiene do Brazil, associação recentemente fun- dada pelo infatigável Dr. Carlos Costa, ter sido o Dr. Parga Nina, meu intelligentissirao collega, encarragado de " com urgência confeccionar artigos de propaganda, para serem impressos em jornaes e distribuídos era fo- lhetos pela população, sobre as substancias nutritivas, usadas em menor quantidade, o regimen alimentar mais physiologico e hygienico, etc." Será um serviço importante prestado aos habitantes desta capital. Assim, pois, apezar das padarias e dos açougues, são muitas as infracções na hygiene alimentar, aqui commet- tidas, prejudicando mais ou menos a saudedos habitantes. Estivéssemos menos atrazados, usássemos de ali- mentos convenientemente preparados e combinados, e a morphéa reduzir-se-hia a proporções mínimas ; porque, sendo o bom regimen alimentar a melhor garatia contra a manifestação desta enfermidade, é também o mais pode- roso recurso na minha opinião contra a tendencia leprosa, transmettida aos filhos pelos pais enfermos -, contra a herança do mal. XVII Voltemos para o nosso paiz: aqui existe a morphéa, aqui devemos estudal-a. Poderia offerecer mais amplos esclarecimentos, se tivesse estendido as minhas observações principalmente a Minas e Pará; infelizmente impediram-me de realizal-as alem de outras circumstancias os deveres profissionaes em um centro populoso como este: careceria de tempo, e de uma excursão com os meios necessários de investigações e e dos imprescindíveis auxiliares, o que excederia os meus recursos individuaes, únicos com que até o presente tenho contado. Acceitando uma commissão do governo para São Paulo, não será mesquinhez declarar que até as passagens pelas estradas de ferro correram por minha conta: foi commissão gratuita em todo o rigor da palavra. Occupemo-nos, porém, do essencial. O illustrado Dr. Silva Lima, muito conhecido clinico da Bahia, honrando o meu trabalho A Morphéa no Brazil com uma serie de artigos publicados em 1884 na Gazeta 144 Medica da Bahia, na parte eni que tratou da diminuição da morpliéa na Bahia, referida no meu trabalho conforme as informações ministradas pelo meu amigo o professor Dr. Pacifico Pereira, accrescentou o seguinte: "A ilha, e principalmente a Villa de Itaparica teve por muitos annos a má reputação de ser um fóeo de elephantiacos, e de fornecer ao nosso hospital de Lazaros um crescido contingente delles ; assim foi, com effeito, e por isso insistiu o autor em pedir ao Dr. Pacifico Pereira informa- ções especiaes sobre esta localidade: este collega manteve aquella affirmativa referente a toda a província, dizendo que na ilha os casos tendiam a diminuir. " A respeito de Itaparica, continha o Dr. Silva Lima, não é fora de proposito mencionar uma circumstancia: é que a frequência notável da elephantiase alli era attri- buida ao uso da carne de baleia como alimento da popu- lação pobre; ora, ha cerca de quinze annos que a pesca daquelle cetáceo tem diminuído progressivamente no nosso porto; e a respeito da actual frequência da moléstia na ilha em geral não podemos dar noticias exaetas, mas na Villa em particular, segundo o testemunho autorisado do respectivo vigário, venerável ancião de 80 annos, sabemos que existe actualmente apenas um doente de elephantiase, moléstia que, segundo aquelle sacerdote, foi por longos annos frequentíssima entre os seus parochianos, especial- mente os da classe menos favorecida da fortuna, que faziam uso habitual de peixe, e da carne da baleia parti- cularmente " Aos esclarecimentos colhidos pelo Dr. Silva Lima relativamente á marcha da inorphéa na ilha de Itaparica, addiciono o seguinte dado estatístico obsequiosamente ministrado pelo meu amigo o Dr. Antonio Barbosa de Almeida: - o administrador do hospital de Lazaros, cm informação ao comrnendador Manoel de Souza Campos provedor do Hospital de Lazaros, declara que antes de 145 1882 havia dous enfermos, cujos nomes declina, alli reco- lhidos, procedentes da ilha de Itaparica, e que daquelle anno até agora, isto é: nos dez últimos annos só houve uma entrada da mesma procedência Para corroborar o que fica dito, citarei o testemunho de um medico bahiano, exarado na these de doutoramento sustentada em 1871, nestes termos: "A ilha de Itaparica em nossa província, onde a população alimenta-se com baleia e peixe, é o maior importador de elephantiacos do nosso hospital, como tivemos occasião de verificar pela escripturação do mesmo." Julgo, pois, não haver duvida, á vista do exposto, de que aquella ilha foi um foco de morphéa, que está hoje extincto ou quasi extincto. Deste facto o que inferir quanto ao contagio da lepra? Que é prova cabal era contrario, maxime não sendo obrigatória a sequestração dos enfermos, que, pertencen- tes á classe mais descuidosa, viviam de mais a mais sem o menor resguardo hygienieo:-opportunidades para a transmissão de indivíduo a indivíduo de certo não falta- riam: mesmo assim, em vez de incrementar, o mal desap- parece. Outra illação: se este exemplo, pela nitidez com que se apresenta á observação, não demonstra a subordinação da morphéa á influencia exclusiva do regimen alimentar, reconheçamos e confessemos ser impossível a prova dessa origem etiologica da moléstia. Por mais que concentre a attenção sobre o desenvol- vimento e o desapparecimento da morphéa nessa ilha; que examine a questão por suas varias faces, e procure banir do meu espirito a idéa preconcebida da origem alimentar da lepra, não posso furtar-me á esta conclusão: ali, nada havendo que explique o desapparecimento do mal alem da modificação do regimen alimentar, só o regimen antigo 146 em que predominava a carne de baleia e o peixe, justifica a formação daquelle foco leproso. Parece, pois, incontestável ter sido de origem ali- mentar a morphóa que reinou na ilha de Itaparica, a saber: um prroducto do regimen vicioso e exclusivo. Na impossibilidade de negar o facto, objectar-se-ha que, sendo unico, isolado, não é clinicamente comproba- torio. Pois bem: em vez de um mencionarei muitos factos, cuja averiguação está ao alcance de qualquer observador, occorridos em São Paulo, onde, posso affirmal-o, a mor- phéa recua ante o progresso local e a transformação do regimen alimentar, conforme o resultado das minhas pes- quizas, não em um ponto, mas nas localidades que visitei, reputadas geralmente como as mais fustigadas pela mor- phéa. Effectivamente, seguindo de cidade em cidade, eu cabia de sorpresa em sorpresa, quando ao indagar do nu- mero dos doentes, era informado pelos clinicos, em con- trario á opinião geral, existirem poucos ou raros casos, dando-se esses mesmos em pessoas pertencentes a famílias contaminadas. Como, pois, explicar a opinião errónea da frequência do mal nestes logares ? Explica-se perfeitamente• desde que ali um indiví- duo pobre considera-se morphetico, qualquer que seja o estado de suas forças e por nova que seja a moléstia, de tal desanimo apodera-se que tudo abandona, e sae a esmo- lar, preferindo os logares onde é desconhecido, como quem diz: "estou perdido, sou um miserável, dae-me uma esmola." Para este acto de desespero, não ha negar, muito concorre a população sã, que considera a morphéa a maior das desgraças, a desgraça que infama e aterra. 147 O resultado é o observado em São Paulo: formarem- se grupos de enfermos, que, depois de estacionarem algum tempo em um ponto onde esmolam semanalmente, retiram- se para outro logar, e assim por diante. Ora, quem visita ou passa por uma cidade e encontra esparsos pelas ruas muitos morpheticos esmolando, conclue ser a moléstia ahi frequente, ignorando que taes indiví- duos são de varias procedências. Alem disso houve nas mesmas localidades real fre- quência da moléstia, e, emquanto os casos tenham succes- sivamente diminuido, a má reputação subsiste. Do desapparecimento da morphéa, não obstante a liberdade em que continuaram a viver os affectados, a única razão possivel é a modificação dos costumes: ou- trora o regimen alimentar geralmente usado compunha-se de carne de porco e farinha de milho; com a prosperidade local e o desenvolvimento intellectual semelhante pratica modificou-se profundamente, de sorte que hoje, conforme observei e já referi, onde não havia uma padaria onde não havia um açougue, ha vários, e onde não se encontrava uma padaria, funccionam varias. Não é caso isolado, mas tantos quantas as cidades que percorri, sem que se possa dizer que foram observados superficialmente ou com o bom desejo de accommodal-os á determinada idéa; ao contrario, é a pura realidade que leva-ma também a considerar que se a morphéa fosse entre nós moléstia contagiosa, não somente São Paulo mas o Brazil inteiro estaria perdido, attenta a antiguidade do mal e a falta de cuidados hygienicos que por toda a parte existe. Felizmente não é, mas apenas moléstia social, ligada aos hábitos da população, ou-antes-ao seu atraso, e pór isso diminue onde os costumes se aperfeiçoam, permane- cendo ou augmentando onde continuam rotineiros ou viciados. 148 No campo, onde a alimentação não se modificou em virtude da facilidade da carne de' porco e da deficiência ou difficuldade da de vacca, a morphéa persiste; é, na classe menos favorecida da fortuna, que ignorante e balda de recursos menos comprehende o perigo e menos pode evital-o, onde ella escolhe as suas victimas. O regimen alimentar dessa gente é, com effeito, atra- sadíssimo. Desertando das cidades, a morphéa Jocalisou-se no campo, entre os pouco afortunados, de civilisação rudi- mentar, que mantém os hábitos tradiccionaes em virtude dos quaes a carne e a gordura do porco formam a base do regimen alimentar, e com o porco a farinha de milho. Em São Paulo reproduzem-se, pois, factos idênticos aos observados pelo Dr. Zambaco na Turquia, com a diffe- rença unica dos gordurosos usados lá e aqui:-nas locali- dades onde o regimen continha máo, saturado de gordu- rosos, a moléstia desenvolve-se e perdura; modificada a vida local, melhorando a sorte dos habitantes e com isso o regimen alimentar dahi em diante variado, represen- tado pela carne de vacca, pão, leite, hervas, etc., a mor- phéa retrocede, definha, desapparece. Para tão auspicioso resultado basta isso, não havendo necessidade alguma de medidas de repressão, odiosas, brutaes, repugnantes à civilisação actual. E a herança ? Não conservará ella o germen do mal ? Sem duvida; mas a semente só germinará em terreno adequado, e um dos mais poderosos effeitos da hygiene é esterilisal-o. A hygiene alimentar gosa não da faculdade de evitar a manifestação espontânea da moléstia, como subtrahir á semente as condições de germinação. A não serem os casos de lepra nas pessoas desfavo- recidas, principalmente do campo, só ha em S, Paulo os 149 de membros de famílias antigas e contaminadas, que mais ou menos mantêm os hábitos. " Uma linha divisória, disse muito bem o Dr. Cesario de Freitas, separa a moderna geração da antiga", divisão essencialmente robustecida pelo regimen alimentar, atra- sado, exclusivamente composto de porco e milho, de que usavam e ainda usam famílias antigas, conforme exproba- lhes o collega cujo nome acabo de declinar. Outra circumstancia cumpre assignalar, ou antes outra prova apresentar em apoio da idéa que sustento: a manifestação da morphéa em estrangeiros. O Dr. Lutz, impressionado pelos casos de allemães na capital de S. Paulo, naturalmente por temer o futuro dos immigrantes daquella nacionalidade, invoca o contagio como o meio unico de explicar essa infelicidade. O Dr. Besnier por sua vez reproduz mais essa prova : a dos al- lemães da capital de S. Paulo. O facto merece, por sua importância, serio exame' tanto mais que á primeira vista a razão do contagio pa" rece explical-o. Cumpre antes do mais notar que é a capital de São Paulo onde menos contactos ha com morpheticos; até não se observa o espectaculo de mendicantes de casa em casa; os leprosos vivem recolhidos, não sei em que numero, pre- sumindo ser pequeno; pelas ruas da cidade nunca vi um morphetico; precisando vel-os, fui ao hospital; em con- sulta só me foi apresentada uma menina: a reserva por- tanto a esse respeito é a maior possível, ou por guardarem- na os enfermos, ou pelo seu numero reduzidissimo. De outro lado são conhecidas as opiniões dos conver- tidos e dos crentes contagionistas quanto ao grão de con- tagiosidade da moléstia. Apertados para explicar o sem numero de factos em que, havendo toda a opportunidade da transmissão da moléstia de indivíduo a indivíduo, por exemplo, entre cônjuges, e não podendo fazel-o, saem-se 150 com a evasiva de que o contagio é difficil ou très-mi- nime. Do mesmo modo apparecem casos em que a origem não ó facilmente sorprendida, ou se em alguma localidade a moléstia desenvolve-se menos lentamente, dizem logo -só o contagio é capaz de explicar taes situações ! O contagio passa então, a ser o que elles querem que seja: difficil ou facil conforme as circumstancias. O Dr. Lutz pensa assim em relação aos allemães mor- pheticos da capital de S. Paulo ; no seu entender elles contrahiram a moléstia por contagio, isto é: só o contagio explicou-lhe taes casos, equivalendo isso á seguinte pro- posição: onde a opportunidade e menor, os contactos menos frequentes, o contagio pode ser facílimo. Se os allemães da capital de S. Paulo contrahiram por contagio a lepra, segue-se, em vista do retrahimento em que vivem os muitos ou poucos morpheticos dalli, ser facilimo, carecendo de fundamento a opinião dos mais decididos contagionistas que o reputam difficil e pouco frequente; se, porém, admittir-se a opinião do contagio très minime, forçoso ó concluir que de outra parte provem a lepra naquelles allemães. Não ha fugir: ou o contagio da morphéa ó facil, e neste caso erram os propios adeptos da idéa contagionista; ou é difficil, e então o Dr. Lutz não pode attribuir á sua causa a moléstia dos seus doentes. Devendo ser outra a causa da morphéa nos allemães de S. Paulo, a unica applicada ao caso é o viciado regimen alimentar, resultante da má escolha dos alimentos com predominância dos gordurosos, de mais a mais usados fartamente e em flagrante infracção das leis de accli- mação. O mesmo succede, como já tive occasião de mostrar, aos allemães que no interior são accommettidos do mal, 151 inclusive os de Piracicaba, todos ou quasi todos taver- neiros e ao mesmo tempo açougueiros de porcos. Alli a carne desse animal não é vendida em açougues, facilitando-se assim aos proprietários o seu uso; quem tem o alimento em casa, mais barato e á mão, não carece pro- cural-o fora: a pratica de vender em taes logares tem força de postura municipal, e por isso as antigas camaras não trataram de extirpar o abuso, com que pactuam as actuaes intendências. Obrigados pelas exigências do clima natal a abun- dantes refeições, os allemães, emigrando para o Brazil. transportam e, o que é mais lamentável, mantêm os seus hábitos; não permittindo os escassos recursos melhor con- forto, atiram-se ao alimento de mais facil acquisição e commodo preço, dando largas ao appetite alem da medida razoavel e conveniente. A anti-hygienica, por superexcitante, alimentação, é aggravada pelo uso da cerveja e outros alcoolicos, que, não sendo excessivo em clima frio, torna-se perigoso no nosso clima. Duvido que o mesmo aconteça ao allemão de costumes mais adiantados e de melhores recursos, vivendo hygieni- camente, alimentando-se de substancias variadas, sem a predominância das substancias gordurosas, muito embora entre pelos alimentos mais largamente do que ê usual entre nós; a esse, affirmo, a morphéa respeitará, conforme a ex- periencia evidencia. Convençamo-nos de uma veidade : não se fica mor. phetico sem provocação, indistinctamente; mal de todos, nacionaes e estrangeiros, se assim não fosse, e se estivés- semos sujeitos a sem mais nem menos contrahir a moléstia no meio das ruas . A regra do abuso alimentar, a que acabo de referir- me, é applicavel aos estrangeiros que em paizes leprosos são accommettidos do mal: a lepra endemica ó entretida 152 pelos viciosos regimens alimentares, coadjuvados de algum modo pelas condições cósmicas entre os que adquirem os mãos hábitos locaes, creolisando-se - para servir-me de um dos neologismos em que são ferteis os autores fran- cezes. Incomparavelmente maior que a allemã ê a coíonia italiana; mas nesta raríssima é a morphéa. Porque ? Naturaes de um paiz cujo clima assemelha- se ao nosso, os italianos, frugaes por condição climatica, transportando-se para o Brazil, não carecera mudar de hábitos; continuam a aliraentar-se como devera e convém, contentando-se com o sufficiente para manter a vida e acudir ás exigências do trabalho. Alem de sobrios-temperantes, sustentando assim os hábitos de perfeito accôrdocom as condições da nova exis- tência em outro paiz, mantendo o equilíbrio nutritivo nos limites physiologicos, e proporcionando naturalmente, pelo regular funccionamento orgânico, a dcsassimilação á assi- milação, na Italia como no Brazil -onde continuam a viver sadios, robustos, uteis a si c ao paiz adoptado por patria Com o viver dos allemães em S. Paulo contrasta o dos italianos, resultando dos abusos por aquelles prati- cados na escolha dos alimentos a superveniencia da mor- phéa, e do comedimento dos segundos a quasi absoluta isenção do mal. Todos carecem de juizo, habitantes sob clima frio e habitantes sob clima quente, mais ainda estes que aquelles e mais que todos os que emigram do paiz frio para o paiz quente, por ser nelles delicado o processo de acclimação: u natureza humana acceita de melhor grado o que possa facilitar-lhe a expansão em vez de cercear-lhe o livre exercício. Modifiquem, pois, os allemães os hábitos em S. Paulo, não usando de um regimen alimentar mais excitante, quero 153 crer, do que o exigido pelo proprio clima de seu paiz, e verão que a raorphéa os respeitará, como respeita aos que vivem em convenientes e sensatas condições de liygiene, seja de que nacionalidade forem. XVIII A etiologia alimentar da.lepra é a mais antiga que se conhece, e vem dos mais remotos tempos. Prohibindo o uso do porco e dos peixes immundos, Moysés não fez mais do que consagrar em lei a tradicção condemnatoria desses alimentos entre os Hebreus. Desde então até o presente a mesma etiologia tem sempre acompanhado a distribuição da moléstia pelo mundo, ora acceita com ardor e convicção, ora repudiada como insufficiente para explicar a manifestação do mal e o seu desenvolvimento. Não podendo de todo negar a influencia que o regí- men alimentar exerce na producção da morphéa, o mais que lhe concedem os adeptos da theoria parasitaria ê o papel secundário de auxiliar a acção dos germens adu- bando-lhes o terreno de cultura. N'A Morphéa no Brazil, por exclusão das varias causas a que se tem imputado a moléstia e, pelo menos, pela coincidência de algumas circumstancias, propendi para admittir os regimens alimentares, em que predomi- navam os hydrocarbonados e gordurosos, como causa efflcieute da morphéa. Depois da publicação do meu trabalho, em mais vasto campo de observação tenho continuado a prestar o maior 156 cuidado á indagação da causa da lepra, confessando que, quanto mais examino e reflicto, mais me convenço, a des- peito das objecções, da superior influencia que na mani- festação da lepra exerce o regimen alimentar ; mais se arraiga no meu espirito a crença da etiologia alimentar. Acompanho a evolução da theoria parasitaria nas obras successivamente publicadas, estudo o encadeamento dos argumentos cm favor da origem parasitaria da lepra, mas com a lealdade devida ás nossas convicções, declaro que a origem parasitaria da lepra deixa-me no vago e no abstracto, porque não explica a reproducção da moléstia, regeitado o contagio, ao passo que a alimentar encontra nos proprios focos da morphéa por mim visitados e obser- vados a prova circumstancial da sua preponderância ou decisiva influencia sobre a marcha ou tendências do mal: sobe ou desce, incrementa ou diminue, conforme o impulso que recebe ou os obstáculos que encontra nos hábitos ali- mentares, na má ou boa hygiene. Apparecem ás vezes casos, é certo, de morphéa, cuja etiologia não se pode decifrar, tal é a sua obscuridade; são os de pessoas de hábitos regulares, que usavam de alimentação mais ou menos variada, e que não tinham, que constasse, antecedentes suspeitos. Eu os tenho observado na minha clinica, e em condi- ções tão difliceis que deixavam-me perplexo quanto a causa real da moléstia. Na opinião dos contagionistas a cousa explica-se fa- cilmente pelo contagio. Mas, como ? Pouco importa saber como se opera nesses casos o contagio ; basta admittil-o, o que é realmente commodo. Demais se os adeptos dessa theoria nunca explicaram um caso sequer de contagio ; se ignoram como, quando e em que condições uma pessoa é infeccionada pelo gertnen, não estranhar guardem a mesma conducta relativa' 157 mente aos factos, a que alludo, cuja causa é desconhecida, indecifrável. A respeito dos casos obscuros não vem fora de pro- posito as seguintes reflexões: desde remotos tempos até o presente passa a gotta por moléstia alimentar ; attri- buem-na a um conjuncto de circumstancias, sendo a prin- cipal a alimentação sobrecarregada de substancias azo- tadas: a partir dahi produz-se dyscrasia gottosa. Do processo morbido sabe-se que a oxydação das substancias ingeridas é incompleta, a julgar pelo excesso de acido urico, verificado quasi sempre no gottoso, e indi- cativo da não transformação terminal dos azotados. Posto que seja uma das ■ moléstias mais estudadas, ignora-se qual a funeção responsável pela defiiciencia do acto desassimilador, dando logar a que o professor Jac- coud declare que " se a etiologia fornece dados precisos, a pathogenia da gotta continha obscura1" E', porem, sempre clara a etiologia desse mal ? Vejamos. Ebstein, que define a gotta " uma perturba- ção da evolução nutritiva ", contesta em nome da clinica ser a dyscrasia urica unica e exclusivamente produzida pela accumulação das substancias azotadas, e fal -o nos seguintes termos : cette hypothèse ri*est pas confirmèe par Vej-périence clinique" Em apoio da contradicta apresenta a aflirmativa de Cohnhein de " terem soffrido dos mais sérios accessos de gotta pessoas que nenhum excesso commetteram no seu regimen de vida : havendo, ao contrario, outras que a despeito da molleza e das constâncias dos prazeres bra- vent la goutte." O mesmo autor cita a declaração de Virchow " de serem atacadas pela gotta mais frequentemente do que se pensa, pessoas indigentes." Partindo desses factos, Ebstein, depois de ponderar que - La disposition indeniable à lagoutte ne se manifeste 158 seulement comme innée, mais aussi hérhditaire, acrescenta as seguintes palavras-que merecem ser bem pesadas pelos que acreditam na observação clinica : Pour tcnttes les ma- ladies qui relèvent de dispositions soit innées, soit hérédi- taires, nous sommes contraints de nous tigurer que, dans la structure anatomique des tissus et des organes, il existe des anomalies qui sont la cause de fonctionnements de- fectueux et qui se manifestent tôt ou tard. Se existem anomalias anatómicas, innatas, que ori- ginam funccionamentos defeituosos, determinando a per- turbação do processo nutritivo-que conduz á gotta, que razão haverá para que, em circumstancias por emquanto desconhecidas, anomalias idênticas, mutatis mutandis, não produzam a morphéa ? Acredito mesmo que outra não será a razão dos casos autochtones desta moléstia, que dão-se em Paris, não im- putados a vicio alimentar, nem á herança, e muito menos ao contagio. Ora, apparecendo casos alli, não ha razão para deixar de dar-se em outros paizes, não havendo, pois, funda- mento algum na opinião dos contagionistas, que á falta de causa manifesta os attribuem ao contagio Eis o extremo a que os conduz a doutrina parasitaria. Perdoe-se-me a imprudência de duvidar : a lepra será, com effeito, parasitaria ? Seja qual for o juizo que se forme do meu critério e dos meus conhecimentos em bacteriologia, não hesitarei em responder : si se podo considerar moléstia parasitaria a que assignala-se pela presença de determinada especie de microorganismo, qualquer que seja o período em que este appareca, devemos reconhecer que a lepra o é, porque observadores estrangeiros e nacionaes verificaram o bacillo de Ilansen ; si, porem, é aquella cujo processo morbido liga-se ao germen, como o effeito á causa, por uma subor- dinação intima e fatal, então parece que não é ; porque 159 em relação ao bacillo da lepra o que se sabe até agora é que existe, ignorando-se tudo mais, isto ê : donde veio, como penetrou no organismo, o que ahi faz ou em que qualidade se acha, se de causa, se de effeito. Como parece a lepra vai sendo considerada moléstia animada em virtude da generalisação prematura, de que falia o Dr. Boucbard na introducção ao tratado de thera- peutica de Nothnagel e Rossbach, que conduz a attribuir aos microbios a infecção e a virulência. O Dr. Iluchard, no livro Maladies du coeur et des vaisseaux, 1889, depois de estranhar o açodamento dos que attribuem aos infinitamente pequenos umpapel muito preponderante, tornando-se mais pastoriano que o proprio Pasteur, compara o espirito humano a un homme ivre à cheval; quand on releve cote, il tombe de Vautre, e conclue por estas palavras: On connait à peine les mi- crobes de quelques maladies, et sans approfondir sont cause ou effect, on cherche frapper par des sub- stances microbicides un ennemi que Vonne connait pas. Vê-se, pois, que não é tão heretica, como parecerá ao primeiro aspecto, a minha pergunta sobre o microbio da lepra. Demais, o que se sabe a semelhante respeito ? O professor Cornil declarou na sessão da Academia de Medicina de Paris de 18 de Junho de 1888 que " quasi nada se sabe da biologia dos parasitas da lepra ; e que sobre a biologia dos bacillos da lepra poucos dados se possue para serem invocados a favor de seu contagio ; e, finalmente, que é difiicilimo estabelecer este contagio por faltarem provas directas e irrefragaveis." Consultando a obra Les L>act'eries - <\.os professores Cornil e Babes (2- edição, 1889), encontrámos a confissão de "não se conhecer a origem e o modo de contagio da lepra." Os mesmos autores mencionam o insuccesso das ino- 160 culações praticadas no homem pelo professor Propheta, expõem os resultados de iguaes tentativas em diversas es- pecies de animaes, terminando por declararem que não tem dado resultados concludentes. Quanto ás experiencias do professor Propheta, o re- sultado é ainda mais notável, conforme vê-se dos seguintes trechos que El Siglo Medico transcreveu da Revista Medico-Quirúrgica, de 23 de Agosto de 188G: " G. Pro- pheta, no meio dos enthusiasmos parasitarios geralmente manifestados, affirma que se encontra bacillos nos corpos dos leprosos, mas não em todos, nem em todos os períodos da moléstia, declarando não acceitar a etiologia parasitaria da lepra. O autor prova experimentalmente a falta de con- tagio, asseverando que foram sempre negativos os resul- tados quer nas tentativas das inoculações praticadas em 1878, quer nas repetidas em 1883 ". D'ahi vê-se que se algumas experiencias são antigas (as de 1878) e como taes consideradas de somenos valor pelos professores Cornil e Babes, o mesmo não se pode dizer das ultimas, de 1883. O Dr. Zambaco na ultima communicação, a que re- feri-me, á Academia Medicina de Paris, declara em res- posta ao Dr. Vidal, a proposito de pesquizas bactereolo- gicas, o seguinte : Je lai ferai remarquer, du reste, que la présence de bacille Eest pas constante chez les lépreux, e não foi contestado. Como quer que seja, é de notar que, não tendo um experimentador da competência do professor Propheta encontrado bacillos em todos os leprosos ( o que como acabamos de ver, foi contirinado por Zambaco) nem em todos os períodos da moléstia, outros observadores, longe de dirigir para esse lado importantíssimo a attenção, só se empenhassem em descobrir bacillos em tecidos orgânicos, onde os seus antecessores não os haviam visto. Não seria muito mais vantajoso saber se no começo 161 da moléstia ha bacillos, do que descobrir em que periodo adiantado os ha em abundancia aqui e alli ? No começo de meus estudos sobre a morphéa obtive do meu infeliz amigo e poderoso auxiliar Dr. Martins Costa alguns exames microscopicos, cujos resultados pu- bliquei em 1882, os exames, conforme declarei então, foram realizados em doentes já adiantados em soffrimento, esperando eu em occasião opportuna effectuar iguaes in- dagações no primeiro periodo da moléstia. Não tardou que, com o desenvolvimento da minha clinica, fosse eu consultado por morpheticos em satisfacto- rias condições para esse fim ; mas infelizmente nunca con- segui esclarecimento a respeito, pela impossibilidade de taes exames por parte do collega, a principio na Europa, e após o seu regresso-sobrecarregado de deveres profis- sionaes, como professor e clinico, além dos trabalhos de gabinete, e por não encontrar quem auxiliasse-me em uma investigação a que eu não podia entregar-me por impedi- mento pessoal. Se não fossem a falta de auxilio e o meu defeito idio- syncrasico, teríamos aqui resolvido a questão de saber (tantas foram as occasiões favoraraveis para isso) si no principio da morphéa encontrara-se ou não bacillos, solu- ção interessantíssima á etiologia e pathogenia da enfer- midade. Subsiste, pois, a controvérsia entre contagionistas e anti-contagionistas; aquelles, attribuindo a lepra ao para- sita descoberto, contam que dos successivos triurnphos da bacteriologia resultará a demonstração cabal da contagio- sidade do mal; das provas fraquíssimas até aqui colhidas em apoio da crença appellam para o futuro; estes, os anti contagionistas, amparados por uma tradição muitas vezes secular a favor da etiologia alimentar, tradição reforçada pelo exame dos factos nos focos leprosos, não cedem da sua opinião, julgando encontrar entre as circumstancias 162 em que a lepra desenvolve-se, a constância com que se apresentam, as profundas desordens organicas que podem causar, e o processo leproso uma correlação imprescin divel. Haverá, entretanto, esperança de congraçamento entre duas opiniões diametralmente oppostas ? A sciencia no seu progredió virá a explicar porque é que certos regimens alimentares mantêm a endemia le- prosa, cedendo esta á proporção que a hygiene melhora e avança; e porque nos morplieticos pelo menos em periodo adiantado apparecem os bacillos de Hansen ? Concorrerão aquelles vicios alimentares para a pro ducção dos micro-organismos ? Concorrerão ambos para o mesmo resultado, factores do mesmo mal, preparando o primeiro o terreno para a cultura do segundo ? Não pareçam aereas ou infundadas estas interroga- ções, considerando que agora mesmo em Paris o professor Peter, em uma lição de clinica, aventura a idéa da trans- formação do bacterium coli em bacillo virgula para ex- plicar o cholera, phenomeno imitativo do transformismo realizado pelo Sr. Charrin no bacillo pyocyanico; expli- cando-se deste modo como circumstancias metereologicas, a miséria e outras ccndições, podem concorrer para a pro- ducção das epidemias e suas aggravações. Admittida a possibilidade de transformação, force est bien alors, pondera aquelle professor, t?'admettre le spetre, honni des microbiens " de la spontanéité mcrbide." Si vingar a interpretação; si o que por emquanto não passa de hypothese se converter em realidade, é de es. perar que encurte ou desappareça a distancia que em re- lação á lepra actualmente separa os anti-contagionistas, dos contagionistas, evidenciada a paite que cabe á má e viciada alimentação na genese da moléstia ou na transfor- mação de algum germen em bacillo de Hansen. 163 Certo é que tanto os propugnadores do contagio da morphéa, como os que contestam, reconhecem na hygiene o supremo poder de extinguir o mal, havendo, pois, entre as opiniões contradictorias esse ponto de congraçamcnto: a etiologia affasta-as, a hygiene une-as. Será possivel que ante o progresso da bactereologia caiam um por um os argumentos extremados e oppostos, reconhecendo-se então que a controvérsia era antes appa- rente do que real, e que os factos considerados coutra- dictorios não passavam de preparo ou grão evolutivo da manifestação leprosa ? Se assim succeder, convir-se-ha que assiste aos máos regimens alimentares a principal responsabilidade, como na tuberculose, pela precedencia na evolução etiologica, precedencia implicitamente admittida ao aconselharem contagionistas e adversários, a hygiene individual como o mais poderoso e efficaz recurso prophylatico contra a producção e o desenvolvimento da morphéa. CONCLUSÃO A morphéa foi em parte importada por colonos por- tuguezes, e na maior parte é producto do trafico de africanos. Acredita-se no estrangeiro ser muito frequente este mal entre nós, e houve autor que afiirmasse ser o Brazil o paiz em que ha maior numero de morpheticos. No mappa appenso ao Traità de la lèprey do Dr. Le- loir, onde vem representada a distribuição geographica deste mal, figura o Brazil com pasmosa exaggeração : a julgar pelas linhas demographicas (as róseas indicando os pequenos focos, as vermelhas os mais intensos) cerca da metade do território brazileiro ê dominado pela lepra mais ou menos cruelmente. Na opinião'do" autor até no Paraná e no Matto Grosso ha grandes e pequenos focos, conforme indicam as linhas vermelhas e róseas, estampadas no mappa ! De nós nunca se diz pouco, o que seria um consolo, se ao numero de vezes em que se diz bem não excedesse q das manifestações em contrario. 166 Ao clima do Brazil pretende-se imputai- o desenvol- vimento da morphéa, sendo aliás certo que, espalhad a como foi a semente ha séculos, e renovada constantemente a sementeira com a successiva introducção de africanos, extraordinário ou mesmo incalculável seria hoje o numero de enfermos si o clima effectivamente contribuisse para o incremento do mal. Ao contrario a morphêa declina independentemente de medidas coercivas em vários Estados conforme mostrei, o que certamente não succederia se o clima a favorecesse e entretivesse. No da Bahia testemunho recente confirma a retro- gradação do mal, ha 10 annos observado pelo Dr. Pacifico Pereira. Em Pernambuco, a julgar por uma recente estatística comprehendendo os últimos cinco annos do movimento do hospital de Lazaros, poucos casos se dão annualmente ; demais, de uma carta que ha pouco recebi do provecto clinico Dr. Cosine de Sá Pereira, sei que não ê desde muito consultado por morphetico algum e só tem conheci- mento de um existente no interior. No Maranhão o foco conhecido ou mais importante ó o descripto pelo Dr. Nina Rodrigues em um opusculo pu- blicado em 1886, o da Anajatuba, onde então existiam 42 morpheticos. Excepto o Pará e Minas, Estados em que a lepra passa por frequente, sem comtudo se poder avaliar por falta de estudos e estatísticas se alli aggrava-se ou dimi- nue, pode-se affirmar que nos demais Estados apparecem casos isolados, mas nenhum foco grande ou pequeno. Nesta capital também não ha foco algum : os casos são esparsos. Em .Cabo Frio informa o distincto collega Dr. Tei- xeira de Souza haver um pequeno foco leproso, que ainda não pude visitar. 167 Não mencionei S. Paulo, onde ê notorio o desenvol- vimento da morphéa, por ter já dito sufficientemente para justificar a diminuição por mim observada da moléstia nesse Estado. Si ha, pois, clima directamente favoravel ou desfavo- rável á diffusão da lepra, em favor do Brazil poder-se-ha invocar em vista do exposto a iramunidade reconhecida no da França pelo professor Hardy. Em S. Paulo o que retardará o desapparecimento da moléstia são os costumes atrazadissimos da população campestre, porque vicios inveterados não se modificam ou se extirpam repentinamente, maxime sendo entretidos por condições locaes. O povo, entretanto, desconfia da carne de porco, da qual priva-se o morphetico ao primeiro indicio da enfer- midade : ensinemo-lhe, pois, que mais vale privar-se do mesmo alimento em saude para prevenir o mal, do que tarde sem grande proveito depois de declarado. Abandone-se o pernicioso costume de tomar café com farinha de milho, como alli se faz, e preparar o arroz, os feijões, a gallinha, etc., afogados em gordura de porco. Para que esta alimentação estimulante e inadequada ao clima de S. Paulo, que não é igual ao do norte da Europa ? Faça-se em favor da substituição deste regimen ali- mentar por outro mais saudavel uma propaganda activa, para a qual muito poderão contribuir os vigários nas suas freguezias ; será uma obra de caridade a que por certo não se negarão. Não sendo pratico nem razoavel privar o povo do alimento azotado (carne de porco), cuja acquisição ê-lhe mais facil e commoda, sem generalisar o mais conveniente promova-se, em favor dos que residem longe das locali- dades em que ha açougues, o supprimento de carne de 168 vacca conservada pelo melhor processo, como ó costume em idênticas circumstancias. Além disto plante-se trigo, muito trigo, o mais que for possivel. O trigo é o feculento providencialmente adaptado a todos os organismos, em todas as idades, em todos os paizes, e em qualquer estação do anno. Não ha povo que, alimentando-se de milho, não soffra de alguma das duas enfermidades - pellagra ou morphéa. Demais, a substituição do regimen alimentar em São Paulo não é somente aconselhada como medida de grande alcance relativamente á morphéa, mas também como uma necessidade imposta pela transformação do trabalho e pela concurrencia de immigrantes. Prohiba-se a mendicidade por meio de posturas mu- nicipaes, como indiquei, adoptadas a um tempo pelas in- tendências ; não ha razão alguma para que o morphetico pobre seja ipso facto um mendigo ; a esmola, que o mor- phetico actualmente applica ao vicio alcoolico, dê-se em outra moeda, obtida igualmente por meio de posturas municipaes contribuitivas, e applicadas de outro modo aos mesmos infelizes sem humilhal-os, e ao contrario em seu proveito, como manisfestação verdadeira do mutuo auxilio e da solidariedade social. E' indecoroso, cumpre reconhecer, o espectaculo dos morpheticos esmoleres que, a sós ou em grupos, vagueiam de localidade em localidade, patenteando aos olhos dos traseuntes o sudário de suas misérias: indecoroso, deshu- mano e improprio em um Estado prospero e adiantado, como o de S. Paulo. Impedida energica e systhematicamente a mendici- dade, sigam os morpheticos convidados ou attrahidos para um local, sob a denominação de Villa. de Morpheticos ou outra qualquer, onde vivam como criaturas humanas, dis- 169 trahidos de seu estado morbido pelo trabalho que puderem realizar. Não ha moléstia que tanto entorpeça os tecidos, en- fraqueça-lhes o funccionamento coitu a morphéa; é assim que vai pouco a pouco amortecendo o organismo até ani- niquilal-o de uma vez. Ora, o trabalho faz o contrario : estimula os e activa- Ihts as funcções. Ergo, dirmehão, o trabalho cura : contraria contra- riis curantur. Sim, póde curar ou pelo menos auxiliar a cura. Exemplo de restabelecimento houve um no Perú. : refere-se que alli um morphetico empregado no serviço do guano, curou-se : o facto soou, attribuindo-se o feliz resultado ao uso do mesmo guano. Chegando-nos a noticia, o governo consultou em 1847 sobre a efficacia daquella substancia contra a morphéa a Imperial Academia de Medicina (Academia Nacional de Medicina), que propoz fosse experimentada em en- fermos recolhidos no hospital de Lazaros, sendo, como devia ser nullo o resultado, desde que faltou o principal factor da cura-o trabalho. Um dos meus actuaes doentes usou durante oito annos pílulas de guano. Alguns dos meus doentes nunca interromperam as habituaes occupações, e aos desanimados que abando- naram o trabalho, aconselho e insto para que voltem a elle como condição de exito do tratamento ; assim pro- cedendo, realizo duas indicações, uma physiologica e outra moral. O morphetico póde trabalhar perfeitamente conforme o periodo da moléstia. Quando pela primeira vez visitei o hospital de Lazaros da capital de S. Paulo, encontrei dois doentes, um preto e outro pardo, que alugavam-se diaria* 170 mente a jornal ; sahiam pela manhã para o trabalho e á noite se recolhiam ao hospital. Só em periodo adiantado o morphetico torna-se in- valido, e para este ha o recurso do asylo annexo á Villa de Morpheticos. Antes de declarar-se a invalidez perde-se muito tempo que poderia ser aproveitado se não fosse,de um lado o des- animo que cedo apodera-se do infeliz considerando-se irre- missivelmente perdido, e de outro o maldito preconceito social que faz da morphéa uma moléstia infamante, e do morphetico um ser, não direi despresivel, mas repellente, banido da collectividade humana. Que o infeliz succumba á dor moral, comprehende-se, por ser o seu estado o unico na vida em que a moléstia constitue opprobio. Todos os infortúnios despertam compaixão menos o do morphetico pela razão unica do terror que não dá tempo, nem deixa legar a um sentimento generoso. O que é, entretanto a morphéa ? Uma enfermidade como outra qualquer I Voltando á medidas hygienicas, cumpre acrescentar que não é só aos adultos que interessa moderar o uso da carne de porco, do milho e da excessiva gordura nos ali- mentos ; a mesma cautela deve havei* com as crianças. Consultado por algum morphetico sobre o regimen alimentar, nunca deixo de aconselhar instantemente o que melhor convém adoptar principalmente em relação aos filhos ; certo é que até o presente ainda não observei uma só manifestação da moléstia em filho de doente meu. En- tender-se-ha que, sendo prolongadissima a incubação do_ mal, não ha razão de attribuir aos meus conselhos a isen ção dos descendentes, nem é sufficiente o tempo decorrido para a garantia de immunidade. E' exacto, mas nem por isso deve-se desprezar esta circumstancia, não sendo insignificante o numero de casos, 171 nem raro declarar-se a moléstia nos primeiros periodos da vida. Mãi morphetica em especie amamentar sob pena de prejudicar o filho, ministrando-lhe leite im* perfeito, como é o fornecido por um organismo cuja nu- trição acha-se profundamente compromettida ; a si, por- que, não aproveitando-lhe o regimen tonico, toda a fonte de esgotamento é-lhe, entretanto, prejudicial, e o aleita- mento é uma delias. O recurso é a amamentação artificial por ama em condições hygienicas, ou com leite de vacca ou cabra. O Dr. Silva Lima reparou não ter eu lembrado o leite condensado, entendendo ser um recurso aproveitável. De accôrdo, porque, para tirar á morphetica todo o pretexto de criar o filho amamentando-o, todos os re- cursos inclusive o leite condensado são bons ; confesso, porem, não depositar grande confiança nos productos in- dustriaes, offerecidos ao consumo sob os titulos de leite condensado e farinha lactea. Haverá, quero crer, alguma marca de confiança, não olvidando que toda a tendencia do industrial é tirar o maior proveito possivel do seu producto, e a addição de maior quantidade de feculento é nesse sentido convi- dativa, alem de não comprometter a apparencia nem pelo simples aspecto denunciar a fraude. O que é que não se sophisma ? Tenho visto crianças, alimentadas com leite conden- sado, gordinhas, mas de uma pallidez tiansparente, indi- cando não haver no seu sustento a requerida proporção entre as substancias azotadas e os feculentos, mas sim excesso destes ; as crianças nutrem-se. é certo, mas deffi- cientemente. De outras vezes dão-se serias desordens intestinaes e não raro mortes precipitadas no dominio da raais flores? 172 cente apparencia do menino, sem se atinar com a verda- deira causa. Coincidência ou não, sou dos menos confiantes no recurso aliás commodo destes productos mercantes. Não encontrando ama nas condições requeridas, nem leite de vacca, cabra ou carneira, recorra-se ao leite con- densado, comtanto que em 'caso algum amamente o filho a mãi morphetica. Eis em summa os conselhos hygienicos que julguei conveniente repetir nesta occasião, como fal-o-hei sempre que outra se me offereça, relativamente á hygiene ali- mentar, ao regimen obrigatorio dos habitantes recem-nas- cidos, meninos e adultos, das localidades onde houver foco morphetico ou casos mesmo isolados de lepra. "Contra o parasita da morphéa, perguntar-se-me-ha, nada propõe ? " E' verdade, esquecia-me delle, mas não me arrependo e a razão é por entender que, não existindo no ar, na terra, n'agua, nos alimentos, em parte alguma ; não en- contrando-se em todos os morpheticos, nem sabendo-se ao certo em que periodo da moléstia apparece ; ignorando-se o que faz elle, que parte toma no processo morbido, onde se reproduz e como se transporta ao organismo humano, onde surge mysteriosamente ; o unico alvitre rasoavel é encaral-o como não existindo. Admittem os bacteriologistas que os microbios são a causa unica das moléstias que se lhes attribue, et le pro- blème, diz Flugge, pas de chercher a leur developpe- ment une cause unique et constante, mais bien d'analyser les divers èlèments de leur étioloyie. Ora, o conceito contido no trecho que acabo de citar, perfeitamente applicavel á tuberculose, ao beri-beri, etc., ê do mesmo modo á morphéa. Attendamos, portanto, aos diversos elementos etiolo- gicos do mal, e não limitemos a attenção ao lãe fallado 173 microbio, testemunha-quem sabe ?-talvez innocente das graves alterações que lenta e progressivamente apoderam- se de todos os tecidos do organismo enfermo, compromet- tendo-lhes a substancia e a funcção ; deixemos de parte o famoso e pacholento bacillo, e com mais afinco estu- demos antes os outros elementos que concorrem para a producção da morphéa, denunciados, como na sua co-irmã -a gotta, pelas circumstaucias precedentes ao processo morbido, visto caber-lhes, segundo creio, a parte essencial na elaboração da cruel enfermidade. Terminando, deixo por emquanto as fileiras dos anti- contagionistas, onde occupo modestíssimo posto, para penetrar nos arraiaes dos nossos contendores, de cujas mãos recebo sem vexame e antes com a maxima satifação, para a bandeira que deixo hasteada, o lemma seguinte : para impedir o desenvolvimento da morphéa-em paiz culto-bastam medidas hygienicas, suaves e humanitarias. «Mm» PELO BB. JOSÉ 10CBEW BE MABAIBAES