DO EXERCÍCIO E ENSINO MEDICO NO BltAZIL PELO V D.0K C. A. MONCORYO DE FIGUEIREDO RIO DE JANEIRO Typographia Franco - Americana 18 — UUA DA AJUDA — 18 18 7 4 DO EXERCÍCIO E EXS1XO MEDICO XO BRAZ1L ADVERTÊNCIA 0 conteúdo do presente livro, havendo sido escripto com o intento de entregal-o á publicidade em uma das nossas folhas diarias, conserva o estylo particular a tal genero de publicações, que era impossivel alterar, sem desfigurar ou refazer o trabalho já completo. A extenção da matéria nelle desinvolvida não permittindo submettel-o ao orgão da imprensa previamente escolhido, jul- gamos acertado prevenir o leitor das condições em que foi concebido o nosso acanhado escripto. Rio de Janeiro, 3 de Março de 1874. Dr. Moncorvo. Illl EXEUCICIO E ENSINO MEDICO NO BRAZ1L A decadência moral, que tem invadido o sagrado exer- cício da mais nobre das profissões, attingiu entre nós uma phase tão critica, que se não deve de impugnar aquelles que, afTrontando os preconceitos do temor, ousarem apre- ciar os factos com toda a nudez da verdade, reclamando para elles prompto e benefico correctivo. Não nos parecem mui acceitaveis e plausíveis os fins a que propende hoje uma grande parte dessa communidade apostólica, que deve de levar o balsamo aos males do corpo; não se nos affiguram louváveis os meios a que ella recorre, para a obtenção de fins tão injustos: de outro lado, 8 errado caminho leva a sociedade dos nossos tempos, accudindo pressurosa a auxilial-a em empreza desappro- vada, com manifesto detrimento do galardão que delia esperam e que compete aos que, ainda felizmente em avultado numero, cooperam ao seu progresso moral e engrandecimento. Uma voz se faça ouvir, deplorando as nossas desven- turas, e ella não seja tolhida na vereda da mais secca ver- dade e da mais desinteressada franqueza: não nos increpem de audaz nem nos atirem o labéu da calumnia, que não distilla da nossa penna; justifiquem antes o empenho altivo de quem não trepida ante aquillo que se deva de di- zer claramente., embora, nesse louvável intento, possa ferir as prerogativas daquelles que se tinham na conta de invioláveis. A nossa linguagem será, pois, da mais inexorável since- ridade e do mais severo amor á verdade. Não nos peza o despeito, nem abraçamos esta pesada cruz em desafogo da descrença; muito ao inverso, sobram-nos esperanças de assistir algum dia á regeneração de tantos males, — temos fé desta conquista. Fique aqui assignalado um principio, aos verdadeiros sectários da medecina brazileira, aos que parecem ser os destinados a guardar a arca sancta das nossas tradicções, faremos inteira justiça, e seus nomes não deixarão de apparecer, quando houvermos de buscar a autoridade 9 delles para fundamentar as nossas fracas opiniões; pois que esses representantes da classe são os primeiros a re- conhecer, como teremos occasião de provar, a maior parte de tudo quanto se encontrar no que se vai seguir. 10 I These que ninguém contesta: o verdadeiro saber está hoje proscripto entre nós; acolhidas e ouvidas com vene- ração e respeito, as mais estreitas intelligencias, os bohemios da classe medica, são os únicos que conquistam facilmente os favores populares. Affrontando a ignorância dos que os cercam, não hesitam em ostentar afoutamente conhecimentos que jamais adquiriram, ganhando illicita- mente titulos de confiança, no conceito daquelles que tanto os barateiam. Consumindo na ociosidade os melhores dias de sua existência, aponctam as rugas traçadas pelos quotidianos prazeres como os sulcos impressos pelas vigílias e pro- fundas lucuhrações. Entregues ao empirismo o mais grosseiro; hospedes dos mais comesinhos preceitos scientificos; ignorantes do mais insignificante progresso em relação á sciencia que professam; a sua instrucção medica cada vez mais se consolida na leitura de catalogos de drogarias, ou se enriquece no curioso exame das prescripções amontoadas nos mostradores das pharmacias. 11 Trop de médecins, aussitôt qu’ils tiennent entre leurs mains le diplome tant souhaité, oubliant Papliorisme d’Hippocrate {pita brevis, ars longa), laissent de côté les livres, recherchent la clientèle, non pour y trouver un accroissement d’instruction solide et profitable, moins pour eatretenir la culture de Pesprit, que pour effacer leurs confrères et accroítre leur propre fortune. II faut, je le sais, que le médecin vive du malade, mais je sais aussi qu’il faut que le malade ne meure pas du médecin et n’ait pas à courir la chance de sa maladie et celle non moins redoutable de Vimpèrilie, de 1’inexpérience ou de la prècipitation de son médecin Deante de taes premissas supporão muitos completa utopia o mais simples successo. Formal engano ! Com ardimento invejável tudo vencem! Ouvil-os perorar nos centros de publicas reuniões, é ouvir torrentes de preciosas demonstrações de saber sem fim, de practica sem limites, é ouvir a narração espiri- tuosa mas eloquente, das multiplicadas conquistas alcan- çadas contra as garras cruéis da Parca; dos successos os mais esplendidos, que, ainda em menor escala, seriam suf- licientes para fazer a reputação de um sabio. Quando os mais eruditos e os mais versados na sciencia que culti- vam os Valladão, Vieira de Mattos, Almeida e Pereira 1 Daremberg. Histoíre cies Sciences Médícales. T. I, 1870, p. 100 12 Rego, Silva,T. Homem, Saboia, Catta Preta, Pertence, Ni- coláo Moreira, Ferreirade Abreu e tantos outros, quando practicos sérios e traquejados no lidar de longos annos lamentam, por vezes, a pouca afíluencia dos que recorrem aos conselhos da sua experiencia, esses palradores, com um sorriso que faria inveja a Robespierre, entoam hym- nos de gratidão á sorte, que aprouve roubar-lhes os mais urgentes momentos de repouso em favor dos infelizes sem numero, que encontrariam por certo a morte, si não fôra a pericia e o tino desses singulares hyppocrates, lançados neste mundo, para a felicidade da humanidade. Pode-se bem applicar-lhes as palavras de Pascal:— que ignoram até mesmo a sua nullidade. O que é facto, proh pudor, melhor fôra calar, é que os Dulcamaras, como parasitas, pretendem florescer no seio da classe, que a lei aponctou como apostolado da sciencia e da charidade ; podendo se dizer com Reveillé-Parise., na França de 1833: « Le charlatanisme spécule toutàson aise sur les faiblesses, les terreurs et la crédulité publi- ques. Rien ne l’entrave, rien ne 1’arrête; tout chevalier d’industrie de la médeeine, couvrant d’un diplome de docteur son pot de saleorviétan, est sur de Timpunité'. » Evidente é que não ha perante a lei delicto propriamente dicto, porque delia não ha que esperar entre nós, nem 1 Vide: Ga&ette Médicale, 1833. T. I.,pg-. 313. 13 louvores, nem penas. É triste de ver o medico, reputado instruído, sisudo, de bons costumes, usar de meios pouco convinhaveis á sua posição, a elle que cumpriria ser o philosopho pensador e o asisado defensor da modéstia e da virtude, roubado a todos os sentimentos nobres, cor- romper-se, ou melhor aviltar se perante aquelles que deveriam de admiral-o, respeital-o, e abençoal-o, e que vão, pelo contrario, denunciai o á opinião publica, como um especulador, nivelado, no seu conceito, aos mais vulgares bohemios não titulados ! È cruel vêr-se os progressos rápidos que vai fazendo o charlatanismo entre nós; elle ha disseminado por toda a parte o seu influxo deleterio, creando proselytos tão numerosos, que nada abonam os predicados de firmeza, de clareza de espirito do nosso povo. — Esta invasão é em grande parte devida, digamol-o sem rebuço, a *esses especuladores d’além mar, os ques com raras excepções, se tornam sectários do charlatanismo o mais impudente, que só mira o interesse pecuniário e nunca o da humanidade, porque a séde e a ambição do ouro tudo lhes faz esque- cer, na phrase do sr. conselheiro dr. P. Rego. Escrevendo, lia poucos dias, ao dr. Mello Moraes uma carta, em que pincta de um modo algum tanto invero- simel o estado da nossa sociedade actual, o sr. visconde de Bourgoin-d’Orli, inseriu, entre outros, o seguinte trecho que nos parece copia da verdade : « Le Bresil n est assu * 14 rement pas le sanctuaire des Sciences, des lettres et des arts. En effect, qu’un savant modeste, qu’un artiste eminent, épris des charmes de la nature, de la douceur du climat, vienne fixer sa demeure dans 1’empire, s’il n’a pas de fortuue personnelle, il aura en perspective un avé- nir bien sombre. Mais, en revanche, arrive,soit un charla- tan, un homme taré, un de ces individus qui tranchent ex-abrupto toutes les questions et ne doutent de rien, soit un sémi-docte enfin... ils seront accueillis, fètés, choyés, même dans les régions les plus élevées de la societé l. » Eis abi um testemunho insuspeito, porque é um es- trangeiro que falia, no qual se manifesta a reconhecida tendencia nossa a festejar, sem prévio exame, quantas pre- tendidas celebridades se transportam ás nossas plagas bospilateiras. O que é para admirar, ou antes para lamen- tar, é que os corypheus dessa crusada repugnante assumam, perante os sensatos e honestos (e para feliz compensação ainda formam volumosa cohorte), o acrimonioso papel de juizes para condemnar, inclementes, aquelles que os aban- donam nessa trilha de corrupção e os proíligam com justa severidade. Armados de sentimentos ignóbeis, trilhando a senda do 1 Vide : Republica de 22 de fevereiro de 1874. 15 erro, vão conquistando adeptos no seio da ignorância, roubando á credulidade publica titulos immerecidos. F. a degradação, a corrupção, a falta de critério ou melht r de instrucção vae por tal forma ganhando terreno entre nós, que não será para admirar que, em torno des.-es mendigos scientificos, ouçamos breve entoar a multidão statica, com Molière: Vivat, vivat, cem vezes vivat, Noster doctor qui tam beue parlat! Mille anuis et inanget et bibat! Quereis conhecer qual o resultado immediato dessa corrupção, dessa falta de critério, na apreciação daquelles que representam a verdadeira charidade, o tino, a pru- dência, o saber ? A. mais notável indifferença, ou o que é peior, a mais completa descrença entre os que se pejam de lutar contra os caprichos, contra a aberração do nosso povo, que, por uma tendencia desconhecida e singular, concorre quasi em massa, com todas as forças de sua credulidade, a satisfazer os planos ahjectos da mais sórdida especulação.—Não buscam, mais o verdadeiro apostolo, que lhes deve mitigar as dôres, em troco de uma remuneração poucas vezes com- pensadora ; procuram com soffreguidão e, o que é para admirar, com ostentação o miraculoso propinante das mais estupendas drogas, como attesta a nossa imprensa diaria, 16 nunca d’antes conhecidas e só por elles descobertas para allivio e salvação dos que sobrem ! Essa demonstração escandalosa de apreço à ignorância, de veneração ao eharlatanismo, esses pomposos votos de gratidão que se lêem, quotidianamente, nas folhas publicas, suífocando as mais nobres aspirações, embaciando os mais brilhantes talentos, trarão em conclusão a com- pleta perversão da moral, da educação e da probidade scientiíica. O desgosto profundo que lavra jà entre aquelles que não encontram nos incessantes labores, nas penosas e arduas lucubrações a recompensa compatível com os seus esforços, recompensa a que tem direito ás conquistas do proprio trabalho; as vantagens e immunidades, por outro lado, de que se ufanam aquelles que postergam todos os ele- mentos, de que se cercam os menos favorecidos da sorte, e que deveriam de ser os degraus da prosperidade e do bom conceito, demonstram cabalmente qual será o futuro da me- dicina no Brazil, si a regeneração do presente não prenun- ciar um horizonte mais bonançoso e feliz. Accidentes lamentáveis não se mostram raros hoje, nesta capital ; devidos a pouca sciencia ou á incúria de muitos que zelam pela vida de seus similhantes. Essas catastrophes, produzidas pela pouca solidez dos conhecimentos indispensáveis ao exercício da arte, averba o povo ignorante e crédulo, de fatal effeito dos decretos da Providencia ! Longe de increpar o responsável ligilimo dessas funes- tas sincas, cobrem-o antes de bênçãos, pelos esforços de que fez elle praça, pelos lanças que disse haver quebrado contra o dragão terrível da voraz infermidade, que, por fa- talidade, levou ao tumulo mais uma vida. Essa ofphã da opinião publica, esse pariá do bom cri- tério e da razão social, a reputação medica é cousa que não encontra justiça no tribunal da estima ou do juizo publico. É assim que vemos, magoados, avassalar os fóros de cele- bridade, que só competem ao saber sem limites, á illus- tração desmarcada, tantos Esculápios que por abi pullulam, sem direitos a taes titulos. A inópia scientifica parece ser, entre nós, o primeiro degrau para attingir-se os créditos e o bom conceito do publico. Sejamos ignorantes, ouvimos ainda ha bem poucos dias de uma das nossas esperanças medicas, votada ao ostra - cismo, sejamos ignorantes, e conferir-nos hão os titulos de illustradissimos e de clínicos recommendaveis. Si o governo quer conceder liberdades plenas, no que toca o exercício de tão nobre quão difficil profissão, que o faça em larga escála, sem limites; procure, porem imitar o salutar e prudente exemplo da Inglaterra, estabelecendo em todo o rigor de sua urgência—a responsabilidade me- 17 18 dica.—Praza a Deus que seja ella algum dia instituída enlre nós. Si já existisse isso em practica hoje, não se abririam por certo as portas das Escholas de Medicina a homens, cujas faculdades aberradas os tornaram visivelmente in- terinos. A indivíduos que não dispõem do pleno gòzo da razão, reconhecidamente imbecis, coníia-se a perigosa missão, de tão grande responsabilidade, tão perseguida de óbices, qual seja o sacerdócio da medicina! Que árras nos dão da sua imparcialidade e independên- cia, que exemplo edificante transmittem os juizes, que cooperam, por seu consenso, para a ruina de seus simi- lhantes, para as desgraças abertas aos que, ingenuamente e desprevinidos, confiarem a taes Ilyppocrates sua vida, seu futuro, sua bolsa! Similhantes abusos, similhanle postergação da dignidade medica, nos conduzem a lamentar vivamente a carência de uma lei sobre o exercício da medicina e sobre a policia medica; pois, como dizia Buchan, a ignorância é um crime quando se tracta da vida e da saude dos homens. Ileílictam os homens de critério, que a medicina é uma sciencia de effeitos extremados e oppostos: tanto bem póde causar quantos males acarretar. A liberdade absoluta do exercício da profissão medica, a ausência do mais simples élo que approxime os representantes de tão nobre corpo- ração, servindo-lhes de unieo fanal—a honra e a sciencia 19 —, taes são as fontes que avultam dessa desagregação de interesses, dessas baixas especulações, desse astucioso proceder, desses reprovados cálculos,que esmagam o saber modesto e laborioso. A consideração e respeito recíprocos são sentimentos que se ausentaram, pela maior parte, dos corações de hoje; os vinculos, que devem de unir uma classe tão respeitável, foram definitivamente rotos pela desidia, pelo egoismo, pelo abastardamento dos mais nobres dotes, que con- stituiriam o seu verdadeiro apanagio. Para ventura nossa, não raros são, entretanto, os vultos que perduram immaculados, gozando de um prestigio il- limitado e de uma bem justa veneração. Nós havemos attingido um periodo critico similhariteao que chegou a França, sob o governo de Luiz Felippe. E não podemos melhor descrever a nossa situação do que reproduzindo as reflexões suggeridas, naquella epocha, ao sabio Keveillé Parise, que assim se exprima: « Ce qui domine partout et surtout est le positivisme matériel, on s’en tientlà, on s’y cramponne; arriver à un chitfre quelconque pour son bien-être particulier, c’est là ce qu on appelle voir le fond des choses et le toucher. « 11 en résulte que le courage de résignation est assez commun, mais le courage d’action infmiment rare. «: On veut bien changer de masque, de couleur et de conscience, mais non brusquement eten étourdi. 20 « Se mettre en avant est d’un fou ou d’un jeune hommer que Uexpérience corrigera. Un égoisme calculant sans cesse ce but, la fin et les moyens, est le guide qu’on ne perd jamais de vue. Ce n’est pas qu’on marche à décou- vert, au contraire, la philosophie de paroles, 1’hypocrisie sentimentale, 1’immoralité pateline et sournoise, couvrent lout d’un] manteau de prafhomme. » Seria bem para louvar, pois, se retemperassem nos sentimentos nobres e generosos, aquelles transviados de verdadeiro caminho aberto as aspirações justas e dignas. Uma nova direcção impressa á profissão viria, temos fé, resolver as mais gratas ambições,que devem de nascer das sociedades bem formadas. Além do desenvolvimento scientifico, uma das suas mais solidas garantias, um dos seus mais proximos effeilos, essa nova organisação profissional, vasadaem outros moldes perfeitos, purificada e firmada em outros princípios mais elevados, viria oppôr sérios diques ás suggestões da igno- rância e ás fascinações do chartalanismo. A conciliação dos interesses sociaes com a dignidade e as garantias de uma profissão tão magestosa, cumpriria convergissem os nossos communs exforços. Garantir ao medico a sua alta posição, a sua devida inde- pendência, pondo-o acoberto da concurrencia illegitima di s mercadores desse templo, onde só elle é sacerdote, eis um preceito capital a promulgar-se, a chave do pacto a fir- 21 mar-se. Como verdadeiro funccionario publico, legislador, administrador, magistrado, sacerdote da saude dos homens, ministro de uma religião sanctificada, o sublime papel do medico perante a sociedade, deve de collocal-o entre os mais altos e respeitáveis dos seus representantes, rodean- do-o de um prestigio, de uma veneração mesmo, justa- mente tributada. Uma boa organisação medica é, quiçá, uma utopia que so- nhamos, uma chimera que divisamos nos longínquos hori- zontes do nosso porvir. Nossos fervorosos votos são, entretanto, para que se con- verta ella algum dia em realidade, evitando o completo esphacelo de uma corporação, cujos brazões deveriam de conservar -se puros da mais leve macula. Em um paiz tão novo, cujos destinos se revelam esplen- didos em conquistas da intelligencia,amortalhai a tão prema- turamente com o gélido sudário da aurea ambição, votal-a tão cedo ao culto desenfreado da desmedida cubiça, gal- vanisal-a com o mais lethifero materialismo dos nossos dias, compromettendo-lhe o amplo e incessante desinvolvimento, é provocar a revolução retrograda dos espíritos, é cor- romper as mais solidas bazes de uma sociedade, menos estragada que na realidade parece. Certamente, essa infracção das leis mais respeitáveis da moral; essa ossificação do egoismo; esse precoce abas- tardamento dos mais delicados sentimentos, da pureza 22 de consciência, que se resumem, em uma palavra, na reli- gião do medico; é um symptoma ameaçador, que vae ga- nhando terreno, com grave detrimento de uma sociedade reservada a tão grandiosos e nobres fins! Atenual-o, ou melhor dissipal-o:—eis um grave proble- ma social a resolver! Extirpar as causas do mal, organisando de melhor modo essa tão nobre corporação, eis o alvo dos nossos patrióticos intentos, qual deve de ser ainda a de quantos a representam. A pouca confiança no presente, a nenhuma garantia do futuro; taes são os extremos, entre os quaes vacilla o repre- sentante modesto dessa apostólica communidade. Apoz uma longa carreira de sacrifícios, de paciência, de perseverante labor, o que aguarda o medico sizudo e despido dos sublimes adornos, que ataviam os favoritos da opinião publica? Ainda que se ponham ao abrigo das mais cruentas neces- sidades, á custa de mais ou menos mingoados recursos emanados de fonte diversa, não deixam de tragar o negro pão do esquecimento e da ingratidão nos derradeiros dias de tão laboriosa existência. Não se reproduzem mais hoje factos similhantes aos que vem citados nos Mélanges de Chirurgie de Lancerotte, como, por exemplo, o de um ecclesiastico, o qual, havendo sido poupado á operação do trépano por Nouvelle, legou 23 seu craneo ao seu bemfeitor, nada havendo encontrado de melhor para provar-lhe a sua gratidão. Não deixa de vir a proposito a transcripção do seguinte trecho, extrahido do tractado De Benficiis do philosopho Seneca. « — Acreditas só dever ao medico seu fraco salario,e, entretanto,nós lhe consagramos grandeaífeiçãoerespeito... « — Sem duvida,cousas ha que se diz valerem mais que a paga... Compra-se do medico uma cousa inapreciável, a vida e a saude ; e não se lhe paga o que isto vale, mas tão sómente o preço de suas fadigas e o tempo, que para nós rouha elle aos seus labores. —Mas porque deverei pagar mais que isso ao medico e nunca poderei ficar quite, pa- gando-lhe ? « — E porque tornou se o medico nosso amigo e não lhe devemos sómente a experiencia, que nos vendeu elle, mas ainda a sua dedicação e o seu affecto... Desde esse momento, não é mais ao medico que fico eu obrigado, mas ao amigo. — Non tanquciin medico, sed tanqnam amico. » Haverão hoje ainda muitos, que raciocinem por essa íorma? A falta de reconhecimento, de recompensa da parte do Governo é deplorável: ainda deve de estar bem fresca a memória de tantos actos de valor e de heroísmo, as prac- ticas de charidade, de dedicação, que em não pequeno 24 numero desinvolveram esses apostolos,que comprehendem a sua sublime missão. O que receberam até hoje,em troco dessa longa provança, em prémio dessa lucta ingente, em que se mostrou trium- phante a sciencia? Umas medalhas apenas com que, por gratidão, galardo- ou-lhes (áquelles que lhe foram uteis) tão subidos sacrifícios uma generosa associação protectora, dos desvalidos da fortuna! Dos poderes do Estado aguardam... o esquecimento, a indifferença, a ingratidão ! 25 IÍI Nós não temos eschola, não gozamos ainda de autono- mia scientifica : nós que nos orgulhamos, com justiça, de pertencer a um paiz tão prodigo de riquezas, que habita- mos, segundo é certo, uma riquíssima mina de inexhauri- veis thezouros, nos amesquinhamos, á medida que se engrandece a fama do nosso ouro. Foram, por certo, considerações desta ordem, que leva- ram um dos nossos poucos historiadores a proclamar uma das mais admiráveis verdades, que temos ouvido dos lá- bios de um brazileiro. — Que no Brazil tudo é grande, excepto o homem. Deixando o que por ahi vae de atrazo, em relação aos demais ramos dos conhecimentos humanos, não podemos occultar esta verdade, que o ensino medico no Brazil tem visivelmente retrogradado, pela indifferença e pouco zelo, em geral dos que assumiram a onerosa tarefa de derramar a instrucção deste ramo, como pela incúria do governo que lhes tem negado os meio*, e ainda pela nulla emulação, que é a alma de todo o progresso, o incentivo das conquis- tas scientificas. 26 Além destas causas, de ordem transcendente, muitas outras figuram em elevada escala, sobre as quaes cumpre seriamente reflectir. Á frente destas, figura a falta de liberdade de ensino, outra condição sem a qual a rotina, e portanto o atrazo, se mostrará infallivelmente. Uma vez que o professor não depender do auditorio, que o assiste •, uma vez que o critério dos discípulos fòr tolhido em suas mais justas manifestações ; soberano do seu di- reito, avassalando a liberdade de consciência, os direitos da intelligencia, não se inquietará elle com o successo do seu ensino. Si o tògo do enthusiasmo, por ventura, ani- mou-o ao incelar a carreira, cedo ou tarde elle se arrefe- cerá, dando lugar á mais completa apatbia, á indefferença condenanavel, que characterisa o ensino med>co entre nós. Entretanto, são os alumnos forçados aouvil o, quer lhes apraza ou não, quer aproveitem ou não essas longas horas, que gastam suspensos dos lábios de seus mestres, sinão em estado de morte apparente, quando o somno não resiste aosoporifero influxo de uma voz monotona, que reproduz, em linguagem pouco castiça, aquillo que muito deixa a de- sejar um compendio retrogrado. Obrigados por uma lei iniqua a gastar as preciosas horas desses rápidos dias de uma mocidade veloz no insulso curso de um professor sem dotes que o recommendem, sem illustração que o distinga, de um medico vulgar, ás 27 vezes, que o nepotismo escandaloso assentou em uma ca- deira, que o pundonor e o bom senso deveriam fazel-o re- cusar ; forçados, diziamos, a sacrificar os melhores annos da rapida existência ao fogo impuro da combustão desses troncos carcomidos, que ja morreram a mingoa de seiva, ou desses arbustos rachilicos, que o mais ligeiro sol lostou, para servir de pasto as chammas ; não encontra recurso a mocidade em favor de sua profícua instrucção, do seu aproveitamento intellectual. Nós falíamos em these. Graças à essa mesma lei iniqua, que melhor fora appel- lidar de barbara, não assiste ao estudante brazileiro o direito de buscar quem melhor lhe ensine aquillo, que aprender não poude com o mestre, que lhe impoz alei. Que exclusivismo retrogrado; que pèas ao engrandeci- mento de uma sciencia tão vasta, para cujo aperfeiçoa- mento a;nda é pouco o contingente de quantos concorram a cultival-a! Que lei civilisadora! Para cumulo d’este entorpecimento scientifico e moral, ainda se fecham as portas das faculdades áquelles que solicitam um amphitheatro, em que se faça ouvir á moci- dade lições de verdadeira sciencia, de medicina de nossos dias. Será porque as luzes, diffundidas pela boca dos es- tranhos a esse Areopago, possam algum dia obumbrar a aréola brilhante, que illumina a fronte dos eminentes vul- tos que o compoem ? 28 Pobre mocidade, si no meio desse naufragio, um ou outro intrépido nauta não se aventurasse, sobre as ondas, a salvar-te dessa morte da intelligencia, triste apanagio da nossa actual situação ! Uma ou outra estrella sorri-te ainda nesse firmamento, pejado de sombrias nuvens; um ou outro vento bonançoso sopra ainda alguma vez, impellindo a tua barca de re- dempção! Bem quizeramos, porem não ousamos, invocar neste momento, os nomes venerandos desses poucos e incansáveis campeões, cujaactividade, ligada aos mais admiráveis do- tes do professorado, os collocaram superiores a quantos encomios possam nossa humilde penna render -lhes. O que seria da medicina practica, que seria da huma- nidade soffredora em nossas plagas, si não fòra a dedica- ção daquelles que, supprindo e melhorando a educação incompleta, recehida por seus discípulos dos que deveram difundir-lhes as bases fundamentaes da divina arte, lhes ministrassem fonte real da solida e practica instrucção! Absorvam as faculdades todo o direito de ensino muito embora, mas crèe então o governo, como procede a Alle- manha, a classe numerosa dos professores extraordinários, e dos particulares, r,uja cifra varia segundo as exigências do ensino, concedendo plena liberdade, aos que estudam, da escolha de seus mestres, podendo d’esta arte multipli- 29 car 6 variar, com o maior provoito, as fontes de sua instruc- ção médica. Nós temos, nesse vicio, a chave dos máus eífeitos do nosso ensino medico: emquanto não gozar a mocidade dessa liberdade tão almejada e feraccissima; emquanto não se romperem as cadeias, que tolhem a franca e benefica disseminação das luzes desta grandiosa sciencia; jamais teremos uma eschola de aprendizagem, um vestíbulo do professorado official, onde se formem legítimos mestres da arte de curar. São precisas arduas provanças, longo e penoso tirocínio, que só podem conferir os predicados de verdadeiros professores aos que já tem dado árras de scien- cia e vocação. Constituído o corpo docente ofíicial por aquelles que já se illustraram em repetidas luctas dessa natureza, bri- lhantes não poderão deixar de ser os fructos produzidos. É por essa fórma que procedem os paizes que nos ser- vem de modelo em tudo. Querer professores sem noviciado, sem aprendizagem é querer o absurdo. É, de facto, hoje tão franco o accesso ao côrpo docente das faculdades de medicina do Império, que raro não é o ver-se um estudante, quando attinge o ultimo marco do seu tirocínio escholar, conceber, ainda mesmo sem ser medico, o grandioso e hardido projecto de associar se àquella corporação, apenas deixarem os bancos da facul- 30 dade; destinando-se tão prematuramente a ensinar uma sciencia cujos rudimentos ainda ignoram; propondo-se, sem preambulo, a um commettimento cujos espinhos nem siquer lobrigam! E bem descabida tão desmarcada ambição de pretender ensinar, quem tanto ainda tem a aprender. Eis como se explica o facto de se aventurarem, algumas vezes, a um concurso jovens, que mal aprenderam ligeiras noções de ossos, que nunca frequentaram um laboratorio de chimica, que nunca se aventuraram á classificação de um vegetal, que nunca assistiram á uma lição de physio- logia experimental, etc! É na verdade, o que póde haver de mais ridículo e de injustificável pretenção! E taes candidatos são muitas vezes admittidos, para a prosperidade e gloriada Faculdade, a qual se incorporam! Não fazemos allusões, falíamos de todos os tempos, nem escrevemos de má fé: se muitas destas censuras tem cabi- mento, o primeiro a acceital-as será o autor destas linhas. Aquellas ambições são muito justas, quando opportunas. 0 mal é geral, e por isso se não deve obstar que uma voz, embora humilde, se erga a pedir a regeneração delia. Que alguém escape deste naufragio taes são os nossos fer- vorosos votos; que se regenere o ensino medico entre nós as nossas mais ardentes ambições. Duas condições indispensáveis nos parecem dever de 31 presidir á qualquer ideia de reforma: — liberdade de ensino a mais completa, — a creação de uma eschola practica que sirva de aprendizagem, de ensaios áquelles que se propu- zerem ao ensino oííicial. E mister que as nossas escholas medicas se ergam dessa fatal apathia que abate as melhores intenções e enerva os espíritos mais hardidos. Algumas vozes já se tem feito ouvir mesmo no seio das nossas facul- dades, clamando contra a sua organisação actual, e propondo algumas medidas de alto critério e muito acceitaveis, ten- dente a corrigir áquelles males que mais avultam, corrom- pendo profundamente o systema de ensino seguido. Haja animação e interesse da parte desses poucos coryphòus que anhelam pela prosperidade real das nossas escholas medicas; seja incessante a practica de acção tão louvável, o exercício de tão sagrado direito! Actividade necessária as exigências de um ensino pro- licuo, a animação tendente a manter a concurrencia legi- tima, professores devotados, cursos regulares e múltiplos: taes são os meios indispensáveis á favoravel e completa realisacão dos fins que devem de aspirar as faculdades. « Malheur,diz eloquentemente o sr. Jaccoud,aux facultes qui oublient ces conditions de vitalité pour s’abandonner V un dangéreux quiétisme. Une ruim infallible leur faira bientôt deplorer leur negligence. » As reformas de vital interesse, aquellas que reclamam, ao nosso ver, instante applicação, são as que propomos 32 abaixo, subordinadas á practica do livre ensino, e sobre as quaes insistiremos detalhadamente. Io Melhoramento do ensino de anatomia descriptiva. ‘•i0 Creação de uma cadeira de physiologia experimen- tal. 3o Separação difinitiva dos cursos de anatomia geral e pathologica. Creação de duas cadeiras distinctas. 4° Fundação de uma cadeira da historia da medicina. 5o Creação de uma clinica de partos. 6o Creação de clinicas complementares especiaes. 7o Creação de mais um curso de clinicas — medico e chirurgica—, alem das que já existem estabelecidas. 8o Fundação regular dos seguintes laboratorios e gabi- netes, abertos ao estudo praclico dos diííerentes ramos do ensino medico, facultado tanto aos mestres como aos dis- cípulos: Io Loboratorio de chimica mineral e organica. 2o Gabinete de chimica legal. 35 Laboratorio de pharmacia. A° Gabinete de physica. 5o Gabinete de botanica e zoologia. 6o Gabinete de anatomia discriptiva (museu anatomico). 7o Gabinete de anatomia pathologica (museu de anat. path). 8o Gabinete de histologia. 9o Gabinete de physiologia experimental. 33 10. Arsenal chirurgico, onde se deva achar colleccio- nado o instrumental reclamado pelo estudo practico de operações e da arte tocologica. 11. Creação de uma eschola de pharmacia. 12. Reorganisação do ensino da arte de partos para as parteiras. 34 III Melhoramento do ensino da anatomia descriptiva Pretender ser medico sem conhecimentos solidos de anatomia discriptiva, é querer limitar-se á mediocridade. A anatomia é a base da medicina e da chirurgia. Nenhum proveito poder-se ha tirar da pathologia, sem um estudo consciencioso e prévio daquelle ramo. Entre nós, é tão proveitoso estudo totalmente secundário, não havendo recebido dos governos e da direcção de nos- sas escliolas o impulso que reclama desde ha tanto. Sem dissecção impossível é saber-se anatomia, e sem amphitheatros adequados impossíveis se tornam por sua vez as dissecções. Cumpre, entretanto, reconhecer que os amphitheatros que possuímos se acham em petição de miséria, e tudo deixam a desejar, em relação ás condicções hygienicas e do ensino profícuo. O celebre professor Lauth dizia ser impossível tirar-se do ensino d anatomia ornais insignificante proveito, sem 35 consagrar-se ao menos duas horas consecutivas ás dissec- ções anatómicas. Sem guias, sem preceptores zelosos, que os dirijam em seus primeiros golpes, desanimará certamente o discípulo que se atira alentado ás practicas anatómicas. É o que testemunhamos no Rio de Janeiro, e peior ainda na Bahia: entregam-se os escalpellos áquelles que nunca assistiram a uma demonstração practica; abrem se-lhes as portas desses mephiticos e acanhados amphitheatros e se- lhes aponctam os cadaveres que elles devem de retalhar sem methodo, nem princípios. O que poderá desse estudo irregular nascer sinão o enfado, o desgosto, a aversão sem fim á matéria que não puderam aprender, por falta de uma dissecção methodica e convenietitemente dirigida!? Para obviar tão graves inconvenientes, forçoso será que os alumnos dos dous primeiros annos (únicos em que é tal disciplina estudada) pudessem assistir a cursos supplemen- tares feitos por prosectores sobre modelos de anatomia clastica. Sem esse estudo prévio, nada poderão conseguir os que se entregarem aos trabalhos anatómicos. « Eu tenho diariamente uma prova disto, diz o sr. dr. Fort, um dos mais adiantados professores livres da es- chola practica de Pariz, porque, em meus cursos, eu me sirvo das preparações artificiaes de M. Auzoux, e tenho a 36 pretenção de crer que meus discípulos aprendem anato- mia, quando assistem assiduamente ás minhas lições. » Assim pois, resumindo, a primeira medida util a adop- tar-se, em relação ao ensino da anatomia descriptiva, deve de ser a creação de cursos supplementares (theoricos e practicos), regidos por prosector s (para esse fim exclu- sivamente nomeados), sob ainspecção de um director dos trabalhos anatómicos, nomeado pela faculdade dentre os seus oppositores e por concurso. Alem da osteologia e dasyndesmologia quando muito, o que mais se aprende de anatomia descriptiva no Rio de Janeiro? Para quando ficará reservado o estudo importan- tíssimo, sem rival, da nevrologia e da esthesiologia ? Poder-se-ha fazer o menor progresso, quer em medicina, quer em cbirurgia, sem o conhecimento preciso deste tão precioso ramo dos estudos anatómicos? A adopção de líquidos que obstem a prompta decompo- sição cadavérica, se mostra de indeclinável necessidade entre nós, onde mal se conserva um cadaver por mais de vinte e quatro horas, em condições de prestar-se ás dissec- ções. As simples injecções empregadas para o estudo da angeiologia de nada valem aqui, pois a alteração rapida dos corpos impede o estudo detalhado e reílectido de um só tronco arterial e suas mais importantes ramificações. As dissecções, no Brazil, não passam de vans tentativas, 37 que nunca se realisam por carência de tempo e da rapida putrefação cadavérica. Nos climas temperados e frios, onde se effectua a con- servação dos corpos de modo tão manifesto, onde é possivel trabalhar-se por mais de um dia em um mesmo cadaver, lançam mão as facul Jades de injecções preventi- vas da facil putrefacção. Si se torna nesses paizes necessário o recurso desse meio, em proveito do ensino practico, do verdadeiro es- tudo anatomico, mais palpitante se mostrará, de ceito, em um paiz tropical como o nosso a admissão de medida tão profícua. É o que é, de facto, seguido com todo o rigor pela Eschola m, não podemos conciliar é de uma parte, reclamos apparentes em favor da vravtica tocologica (taes são os que figuram annualmente nos relatórios, e isso em estylo tão morno que con- frange) e, de outra, o obstáculo e os mysterios de que se cercam ou se cercavam, ha bem pouco tempo, as mais simples manobras obstétricas, executadas no antigo serviço clinico do hospital da Mizericordia : ou occuitando-se ao conhecimento dos estudantes as operações a practi- car-se ou, uma vez conhecidas, oppondo-se embargos á sua assistência. 54 Da creação de cursos complementares especiaes 0 primeiro, e talvez o uuico, que saibamos, tivesse- aventado a ideia da instituição de cursos complemen- tares especiaes, foi o Sr. Dr. Antonio Januario de Faria, quando, lente substituto da faculdade da Bahia, escreveu a memória histórica dos principaes acontecimentos da mesma faculdade, no anno de 1859. E não passou isto então de uma ideia atirada a tela da discussão, de uma interrogação, que espera até hoje pela solução. Si de objectos de mais vital interesse não cura o governo e mesmo em grande parte as faculdades, muito menos, se occupará daquillo que já se diz complemento de ma- térias capitaes. Não é mais possível aventar-se hoje um programma reformador, sem implicitamente tractar-se de medida deste quilate. Continuamos, sob este poncto de vista, a ser excepcionaes e aberrados da marcha geral da civilisação : pois, dir-se-ha ainda, no anno de 1874, que não nos acha- mos preparados para crear cursos especiaes, onde se for- mem as verdadeiras vocações, possam crear raizes os germens dos futuros especialistas, e então mais dignos de fé e mais convenientemente instruídos, que aquelles que vão beber taes noções em fontes de onde não brota lym- 55 pha capaz de saciar plenamente as nossas necessidades tropicaes ? A pathologia snl-americana tem certo cunho, certo cha- racter proprio que seria de conveniência attender, desde a origem dos nossos estudos médicos : é desta discordância de feições, desse amalgama de elementos lieterogeneos que resulta a falta lamentável de autonomia, de indepen- dência da medicina brazileira ; e apenas se diz brazileiro nos paizes de além mar o emprego da ipecacuanha por certo methodo. É, pois, de alta necessidade, entre outras idéas de uma reforma radical, a instituição de cursos com plementares das seguintes especialidades : Ophthalmologia. Moléstias das vias genito-urina rias. Moléstias das crianças. Moléstias dos velhos. Dermatologia e syphilographia. Moléstias mentáes. A primeira que já conta entre nós vultos, que fazem honra ao paiz a que pertencem, de nomeada européa, como tivemos a felicidade de conhecer fóra daqui, bem justifica a prioridade que lhe consagramos; pois, de certo, nenhum dos ramos das sciencias chirurgicas reclama mais aptidão, mais pericia e destreza que a oculistica ; e isso o prova o reduzido numero de brazileiros que se 56 hão dedicado a tão espinhosa tarefa. Para gloria nossa, esses poucos o fizeram, com • maior realce para o pro- gresso da arte e beneficio do nosso povo. Poucos serão os encomios tecidos áquelles que desem- penham assim tão sublime apostolado. Temos, pois, recursos de sobra, para elevar-se, no Brazil, a ophthalmologia ao seu maior apogêo, como o tem succe- dido nos paizes ainda menos prosperos que o nosso. Sem lembrar o Ophlhalmic hospital de Londres, as clinicas especiaes da Allemanha, etc., querendo antes argumentar com os paizes que se mostram ainda hoje mais atrasados que o nosso, obsevaremos que, na China, foi fun- dado em 1827 um hospital especial para as moléstias dos olhos por M. Golledge; sendo ainda, em octubro de 1833, um novo instituto ophthalmologico estabelecido Estamos convencido da frequência das aífecções ocu- lares no Brazil: si não fòraa insolação a que estamos ex- postos, particularmente nas phases mais callidas da nossa estação calmosa, o reflexo coruscaute do sol, sobretudo á beira mar, a luz excessiva que impressiona tão fortemente o orgão visual, outras muitas causas poderiam ser invocadas para explicar essa frequência,as quas seria inopportuno de- clinar neste momento. Este facto já era apreciado em ep<>- * Vide: Peter Paker. Sur 1’êtabUsseinent des hôp. dans la Ckine ; Paris. i8i6. 57 chas menos próximas de nós : reconhecendo, em 1840, o dr. J. A. d’Azevedo a írequencia das moléstias oculares no Rio de Janeiro, offereceu á Sociedade Litteraria da mesma cidade—um Manual das moléstias d >s olhos—, o primeiro e unico que viu a luz da imprensa na lingua portugueza, no Brazil, e, em 1844, escrevia Sigaud, em seu precioso livro — Da Climat et des mal alies da Bresil, o seguinte: « Les pathologistes qui ont décrit les maladies des pavs chauds ont négligé de parler des lésions de 1’appareil visuel, don- nant la préférence à celles des organes hépatogastriques, et de ce nombre sont Lind, Annesley, Jonhston, Boyle, tous praticiens anglais. M. Levacherdit qu’elles sont rares dans les colonies; mais les anciens mèdecins de ces mê- mes colonies déclaraient pourtant le contrairei Dazille les proclame fréquentes, et dit que tout homme de l’art dans les colonies doit indispensablemeut savoir faire 1’opération de la cataracte et celle de la fistule lacrymale. Mais adiante ainda assim se exprime sobre este as- sumpto: « On ne sauraitnier que dans les grandes villes du litto- rals on rencontre malheureusement une grande quantilé d’aveugles, de borgues et de vues maladies; ce spectacle douloureux remplace, dans les rues, celui des bossus et des rachitiques contrefaits, qui abondent en Europe, mais qui sont inconnus sons les tropiques. A 1’Académie im- 58 périale de médecine appartient Phonorable tàche de pro- a oquer la fondation d'un hospice ophthalmologique *. » Queira, assim, o governo fundar um curso de ophthalmo- logiae não faltarão professores idoneos, verdadeiras nota- bilidades. 4s moléstias das vias genilo-urinarias são, em todos os paizes cultos, objecto de multiplicados cursos especiaes, quer ofliciaes quer livres; e,depoisda ophtha!mologia, ne- nhum outro ramo da vasta sciencia medica tem sido tão apurado e seguido. Podemos assegurar ter sido, entre nós, a especialidade consagrada pelo pòvo, que convenceu-se, primeiro que o governo, reclamarem as moléstias das vias genito uri- narias certo tino particular, uma somma de conhecimen- tos practicos, diííicil e raramente possuídos por aquelles que exercem a medicina em geral. E os bons fructos desta recente especialidade, entre nós, já vão sendo colhidos em larga escala e proveito immenso para a humanidade. Quando nos referimos aos especialistas, temos sempre em mente aquelles que merecem de facto este titulo, os 1 Nessa epocha ainda se podia appellar para a Academia Imperial de Medicina, a qual gozava de tão grande prestigio que a seu reclamo se operaram os seguintes melhoramentos: fundação das faculdades de medicina, reformas dos hospitaes civis e militares, um cimiterio fóra da cidade, um hospício para phtliysicos, para alienados, etc. O que alcança ella hoje 7 59 quaes não são, realmente, tantos quantos proclama a imprensa. Tudo quanto foi dito acerca dos oculistas tem aqui in- teiro cabimento, em referencia ao curso que propomos agora, e então com muito maior vantagem, pois que, alem de mais numerosos os que poderiam professal-o, já contam as faculdades em seu seio alguns membros dis- tinctos e conhecidos nesta ramificação da arte. Não seria proficuamente incumbido um delles, da execução desta parte do novo programma? 0 estudo das moléstias das crianças, —eis outro proble- ma vital, até hoje postergado por aquelles, a quem está confiada a direcção e o aperfeiçoamento do ensino medico, no Brazil. Pergunta-se, ainda não chegou o momento opportuno de prestar-se mais attençãoao ensino das affecções peculiares á infancia, que exigem por sua parte um estudo aturado e particular, um tino medicocreado napractica de hospitaes especiaes ? Oertamente, que entre as questões que mais se agitam na actualidade, figura esta em prime ra plana. « On peut être très bon médecin pour les adultes, et lort mauvais pour les enfants; car tout ne se borne pas ici, com- ine le croyent certaines personnes, à tédaire les doses ; la seméiotique est tout autre, la pathologie et la thérapeuti- 60 que présentent des modifications particulières, un carac- tere tout diflerent » lustas memoráveis palavras, autorisadas por cincoenta ânuos de uma practica illusfre, de um ensino laboriòsn e fecundo, poem em relevo a urgência de satisfazer, entre nós, essa palpitante necessidade, desde lia tanto procla- mada pelos mestres da sciencia. Desde 1705, em que appareceu o primeiro tractado de moléstias infantis2, até nossos dias, tem sido esta verdade confirmada pelos vultos mais proeminentes, taes como : Stail, Hoffmann, Andry, Armstrong, Rosen, Alex. Ha- milton, Chambon, Ilume, Heberden, Péraudin, Plenk, Herdmann, Forster, Capuron, Bras&ard, Ch. Réchier, Gibert, Astruc, Billard Underwood, Mauthner, Barbaune, Merei, West, Dénis, Meigs, Ricliard (de Nancy,) Berton, Bergeret, Legendre, Lebreton, Yalleix, Brachet, Blache, Guersant, Vanier, Giraldès, Rilliet, Bartbès, Bouchut, Bryant, Ilolmes, Fumagalli, Barrier, Fabre, Roger, Vogel; os quaes se comprometteram a demonstrar, em seus escriptos, a paciência, vocação e os conhecimentos es- peciaes que demanda o exercício da medicina infantil. Mas, o estudo e o ensino desta especialidade são abso- lulamen e subordinados ácreação de um hispital destinado ! Hufeland. Enchiridiou m°dícum, trad., de Jourdan. Paris. 1841, pag., 60á. * Sta 1, De morborum oetatis fundamentis. 61 ao tractamento exclusivo das moléstias da infancia. A ex- cepção de um acanhado serviço creado no grande hospital da Mizericordia,e isto devido á inexgoltavel charidade de tão piedosa instituição, nada mais possuímos, nesta primeira capital da America do Sul, que satisfaça um dos problemas de maior interesse actual, qual seja o de reduzir a morta- lidade da infancia. Além da Casa de expostos, onde são acolhidos e mantidos os desgraçados innocentes repudiados pela miséria, pelo vicio e pelo crime, e do Recolhimento de orphãs, ambos ainda instituídos pela charidosa erman- dade da Sancta Casa da Mizericordia, podendo este ultimo receber 140 meninas, quando muito, nenhum outro esta- belecimento contamos, onde seja recolhida outra grande parte da infancia desvalida, que não poude ser admittida nesses dous primeiros e únicos referidos. Si não quizes- semos ir mais longe, bastar-nos-hia observar os recursos de que dispõe a cidade de Lisboa a tal respeito ; por ahi ver-se-ha precisamente o gráu de atraso nosso, em relação a esta questão social e humanitaria. Aparte o estabeleci- mento da Sancta Casa de Mizericordia, no ediíicio de S. Roque, que preenche os mesmos fins que a nossa Roda de Expostos % a parte a Cas i Pia, que funcciona no extincto convento dos Jeronymos, e onde perto de 300 rapazes de 1 Segundo o Relatorio do anno economico de 1872 á 1873, tem este estabelecimento a seu cargo 13,370 expostos. 62 7 a 18 ânuos como 200 raparigas da mesma edade rece- bem, além de uma educação moral e religiosa, uma edu- cação pliysica methodica que muito abonam os créditos da sua intelligente administração, existem os seguintes asylos para a infanciaexposta aos rigores da miséria: Asijlo de Saneia Catharina, destinado ás orphans que perderam seus pais, por occasião da febre amarella. i\o palacio do Conde da Ponte,proximo á Junqueira,asylo de meninas abandonadas, protegido por EI Rei D. Luiz I. Asylo de infancia desvalida, creado no antigo palacio d’Ajuda, o qual, dirigido a principio pelas ermans decha- ridade, passou felizmente a ser administrado por uma commissão, de que é presidente o Visconde da Lançada. Asylos da infancia desvalida, organisados por uma com- missâo de piedosas senhoras lisboetas e distribuídos pela maneira seguinte: um na rua de S. Tliomé ; um na Direi- ta dos Anjos; um na rua Direita de Lapa; um na rua dos Calafates; um finalmente na rua de Sancta Quiteria. Asylo de S. João, em Buenos-Ayres, no bairro de Alcan- tara. A tendencia abem organisar este ramo de serviço clinico tem conquistado os mais brilhantes successos,e não existe hoje uma cidade de primeira ordem na Europa, que não possua, sinão um hospital exclusivo, ao menos servi- ços múltiplos, montados em condições de realisar esse desideratum. 63 A palhologia infantil creon sua autonomia, diz Giraldès, só depois que as moléstias das crianças entraram a ser estudadas em estabelecimentos especiaes. 1’ereorrendo, de feito, as cidades em que tem produzido fructos esta especialidade, veremos que em todas ellas existem hospitaes e casas de charidade,destinadas ao abri- go da infancia e á cura de seus males physicos. Km Londres, onde, lia 30 annos passados, notava se a confusão das edades nos bospitaes, sendo as crianças ainda tenras admittidas nas salas das mulheres e as de edade superior a oito annos enviadas indistinctamente ás infermarias dos homens, existe, desde 1851, um hospital destinado exclusivamente á infancia; sendo para notar que, em muitos outros hospitaes, se acham salas reservadas ás crianças doentes, particularmente ás que soffrem de affec- ções chirurgicas,nas quaes se mostra hoje muito adiantada a medicina ingleza. Além destes estabelecimentos, outros muitos se deve de archivar destinados a infancia ; sobre- saindo entre elles os seguintes: Found ing hospital, creado para receber crianças me- nores de doas mezes, sob previa declaração materna, e onde permanecem até a edade de 24 annos, os rapases, e de 21 annos, as raparigas. Este hospício, que pode conter para mais de 600 crianças, foi fundado em 1739 por Thompson Corsen, sob a protecção de duque de Bedfort. ('hr st hospital,instituído para o recolhimento de orphâos 64 de ambos os sexos, encerra hoje mais de 1,000 asylados. Henrique VIíl fez doação deste hospício á cidade de Londres, e Eduardo VII ainda o beneficiou com terras e rendas. Contiguo a este, acha-se o asylo de meninas, fundado em 1758 por umasubscripção popular. À cidade de Pariz, que possue o—Ilospice des enfants trouvés et des orphélins i éunis, grande numero de chrèches, e muitos outros estabelecimentos pios consagrados á infân- cia desvalida,cabe a gloria de ter sido a primeira cidade que fundou um hospital de crianças; é o actual—Hôpitaldes enfants malades, consideravelmente augmentado e melho- rado. A sua creação remonta a dacta de 18 floreai doanno X. Elle foi estabelecido no antigo Hospice des Orphélins, conhecido anteriormente ainda pelo nome de—Maison de VEnfant Jesus *. Este primeiro hospício foi creado em 1539 por Francisco I e sua erman, a rainha de Navarra, com o fim de recolher os filhos dos estrangeiros fallecidos no Hôtel-Dieu, recebendo mais tarde a denominação de Enfants rougcs. Nessa mesma epocha, foi instituído o hospicio das Orphans de Mizericordia ou das Cent filies *. 1 Vide: Description topographique de Vhôpital des enfants malades, publicada no: Jotirnal de mcd., chir. pharm. etc., de MM. Corvisart, Léroux, A. Boijer. Paris. 1805. 3 Vide: Recherches statistiques et historiques sar les établissemeats de bienfaisance chez les diverses nations et en France spédalement: par Watteville. Paris. 1851. 65 Conta-se ainda hoje, nesta capital, o grande e bem mon- tado Hôpital de Sainte Eogénie, fundado sob os auspícios da charidosa Imperatriz Eugenia. O primeiro hospital de crianças estabelecido na Alie- manha foi o Hospital deSanct’Anna, creado no anno de 1837 em Vienna (d’Austria) pelo dr. Luiz Guilherme Mau- thner. E, alem deste, ainda possue a cidade de Vienna um outro, Hospital deS. José, instituído em 1842. No anno seguinte, organisou-se também em Berlim um estabelecimento d’esta natureza, o Hospital d’Elisabeth, em 1844, o Hospital Luiza. Todos estes são tidos como estabelecimentos modelos na Europa. Em S. Petersburgo, alem do hospício de expostos, vasto e primoroso edifício, existe ainda um hospital consagrado especialmente á infancia, o Hospital de Maria, estabe- lecido em 1837. Na Escossia (Edimburgo), fundou-se em 1860 o Real hospital das crianças doentes ; na Irlanda (Dublin), esta- belecimento analogo existe desde 1835, sob a invocação de S. Vicente. A cidade de Moscou conta egualmente um hospital desta natureza, desde o anno de 1842; Francfort, desde 1844, fundado pelo dr. Theodoro Christ; Munich, desde 1846; Hambourg, desde 1840; sendo todos estes hospi- taes considerados da primeira ordem. Em Pesthna, Hungria, foi ainda instituído, em 1845, um 66 estabelecimento adequado ao tractamento medico-chirur- gico das crianças doentes. Na cidade de Briinn, fundou-se também, em 184G, um hospital de egual natureza e o mesmo aconteceu em Man- chester, em 1856. A Italia é um paiz, onde se encontra hoje maior numero de estabelecimentos pios, assignados tá infancia desprote- gida da fortuna; e rara é a cidade de primeira ordem que não encerre ahi um hospício ou hospital, consagrado a pri- meira e segunda infancia. Em Florença, conhecemos o flospital degli Innoc nti, fundado em 1500. O hospício dos recem-nas idos, em Nápoles, recebe an- ntialmente 2,500 crianças, das quaes 1,500 são criadas no estabelecimento. Em Roma, existem cerca de vinte e tan- tas instituições para orphãos, engeitados, velhos, viuvas e mulheres arrependidas, alem de 22 hospitaes geraes, que encerram serviços especiaes ás moléstias infantis, quer medicas, quer chirurgicas. Annexo ao Hospital da Charidade de Turim, existe um hospício para meninos pobres epara orphãos, onde, alem dos cuidados physicos, recebem uma instrucção litte- raria e artística. Encontra-se ainda, nesta cidade, o hospital de S. Luiz, consagrado a maternidade e orphãos. Em Milão, dependente do grande Hospital civil, (que pode conter cerca de 2,600 doentes (!) nota-se: o—Hospital da Maternal ade e dos Engeitados; Orfanotrofio, onde são 67 recolhidos os orphãos; o Stella, as orphans; e um sem numero de asylos da infanda desvalida, que celebrisam os créditos da philanthropia milanesa. Em Veneza, alem de muitos asylos para a infancia, con- ta-se o celebre Instiluto Muniu, onde orphãos de ambos os sexos e os abandonados por seus pais encontram abri- go, educação moral e religiosa. Em Palermo, nota-se também o Orfanotrofio degli Es- posti, proximo da Porta Felice. Em Copenhague (Dinamarca *), existe um hospital par- ticularmente consignado a infancia, desde 1845; e, em 1 A Dinamarca é um paiz geralmente pouco conhecido, e que en- tretanto merece mais estudo ; alem da sua Universidade, reputada das mais notáveis do norte da Europa, pode-se dizer modelo em relação ao pauperismo, que não existe ahi, por assim dizer. É um dos raros paizes que conta uma administração especial para os pobres e doentes, instituída pelo decreto de 9 de março de 179?. A esta administração compete a direcção dos hospicios, hospitaes e de todos os estabeleci, mentos pbilanthropicos em geral,e occorre com os seus proprios fundos ás despezas destes ullimos,quando são insufficientes os recursos delles. Ella não dispunha, entretanto, até 1815 de outros meios que o producto das collectas a que procedia e os legados e donativos feitos por pessoas charitativas. Mas cm 1815, foi reorganisada novamente, sendo as col- lectas substituídas por um imposto para os pobres, estabelecido sobre a propriedade territorial. A renda deste imposto,das collectas e dos dona- tivos e legados produzem, annualmente, a sornrna approximada de 1,300,000 frs. ou 180:000 § em nossa moeda. E note-se que a população de Copenhague não excede de 155.000 habitantes, que só Londres é mais populosa que toda a Dinamarca. 68 Stokholmo, consta-nos haver sido creado um estabeleci- mento analogo. Nos Estados-Unidos, não tem sido olvidado este impor- tante ramo de administração humanitaria e a cidade de Philadelphia já encerra um magnifico hospital de crianças, fundado em 1856. Do que fica dicto se conclue, pois, que o Brazil se acha, por assim dizer, em perfeita unidade, relativamente aos soccorros ministrados a infancia desprovida dos recursos da fortuna e assaltada pelo flagello das moléstias de toda a sorte! Quando se resolverá a nossa patria a se erguer ao nivel dos focos luminosos da civilisação hodierna, em questão da tanta magnitude ?! Os cuidados reclamados pela infancia no estado mor- bido, pelas crianças apoderadas pela moléstia,se mostram no mesmo gráu de interesse que os da infancia, durante o estado physiologico. A magna questão da hygiene da infancia já foi por nós trasida á luz das necessidades publicas; orgulhando-nos de haver sido o primeiro que tornou saliente, ainda em esboço, o quadro que contemplamos actualmente. — Temos fé de poder mui breve trazer ao lume da imprensa o proseguimento daquelle nosso primeiro escripto. Estamos plenamente convicto de que nossas humildes linhas não merecerão siquerum olhar distraído daquelles a quem são dirigidos os nossos fracos argumentos ; é isto 69 tão usual no Brazil que já passa sem reparo, mas aqui fica lavrado um appello expontâneo em prol do desinvol- vimento physico da infanda e da cura facil, e conveniente de suas moléstias e infermidades. No Brazil, apenas se cuida hoje daquillo que é moda, da instrucção publica primaria, e porque corre deste assumpto mostrar-se inte- ressado o nosso Imperador,procurando,portanto,distinguir- se nesse empenho muitos, cujos serviços só vizam recom- pensas honorificas. Patriotismo real, desinteresse pro- vado é sentimento tão raro, moeda tão escassa, que muito breve deixará de ter curso neste desditoso torrão. Sopezando desde oberço uma cruz, que se diz sancta, mas que melhor dever-se-hia dizer, do sancto martyrio, pa- rece estar tão luxuriante zôna do globo, vergada sob o pezo fatídico do menospreço, da resistência innata offerecida pelos nem sempre hábeis e presumidos administradores delia tudo quanto parece vir em auxilio desse penitente, desacoroçôado já pela pressão illimitada do lenho, que ainda não conseguio levar ao seu Calvario. A pasmosa ousadia, a immodestia, a pouca circumspec- ção com que se arrojam tantos dos nossos administradôres o direito de tudo conhecer, de tudo intender e de tudo reformar, sem consulta dos entendidos, é a origem da ca- rência injustificável de melhoramentos, dos quaes não prescindem os paizes menos avantajados em civilisação e mesmo, particularmente fallando, em instrucção. 70 Resulta dessa pueril centralisaç.ão de conhecimentos practicos e theoricos-encyclopedicos os mais irrisórios- nas diversas administrações de estabeleci- mentos especiaes dos vários ramos de serviço pu- blico, etc. ; é noreíTeito desta causa, de uma excentrici- dade extra-britannica que vemos dirigido um conser- vatório de musica, uma eschola de bellas-artes, por um filho de hyppocrates aposentado pelos annos; que temos visto a frente da direcção da nossa primeira estrada de íerro um almirante (!); que temos visto ainda encarregado da compra de livros, instrumentos e demais objectos, exigi- dos para os gabinetes das duas escholas medicas brazilei- ras,... um... official de marinha (t), quando se achavam em Pariz, para onde havia sido dirigida a encommenda, nada menos de vinte médicos brazileiros, e entre elles um professor-oppositor de uma das faculdades. Re que modo se deva de interpretar factos de similhante natureza? Na verdade, revela-se desse modo mais atrazado o Brazil que o proprio Japão. Este paiz, que envia centenas de moços a estudarem, nos centros mais adiantados da Europa, todos os ramos de conhecimentos humanos e mui espe- cialmente a medicina, querendo fundar uma Univer- sidade, dirigiu enviados seus á Allemanha, com o fim de contractar os mais abalisados professores, que se dispu- zessem a plantar em tão longínquas plagas, ainda frou- xamente allumiadas pelo facho da civilisação, as bases de 71 uma organisação philosophica e altamente profícua do ensino superior. Em nossos aponctamentos de viagem pela Bélgica, ar- chivamos com profunda magoa as impressões que se seguem: « 0 Japão nos deixa a perder de vista, quando se tracla dos meios de levar ao maior gráu de perfeição a divina arte de Hyppocrates ! E hem para causar sorpreza ao brazileiro o numero avultado de estudantes japonezes, disseminados pelas mais celebres capitaes da Europa, mantidos pelo sea governo, onde foram com o vivo ardor do enthusiasmo beber as noções mais apuradas da scien- cia moderna. A faculdade de medicina de Bruxellas conta um grande numero de estudantes japonezes, que tivemos occasião de encontrar, e os quaes tem revelado os dotes mais admiráveis para o elevado mister a que se destinam.» Já que tocamos neste assumpto, prosigamos e voltemos de novo a velha Europa. O principado de Servia, cuja população total orça por 1,200,000 habitantes, dez vezes menor que a do Brazil, e que ainda é uma monarchia subordinada á Turquia, conta desde 1838 (!) uma univer- sidade na sua capital Belgrado, a qual, sendo uma cidade de 30,000 habitantes (/), envia annualmente a estudar no estrangeiro 40 e mais estudantes ! A cidade do Bio de Janeiro, capital do terceiro Império do mundo em gran- deza, do paiz que se apregoa livre por excellencia, que só 72 encontra pèas ao progresso em sua indole pyrrhonica, a cidade do Rio de Janeiro, cuja população se eleva appro- Kimadamente á cifra de 400,000 almas, ainda não conhece uma Universidade; devendo-se accrescentar angustiado que o Brazil, desde a épocha do seu descobrimento até hoje* enviou officialmente a Europa, com o fim de estudar o sys- tema de ensino adoptado nos diversos paizes delia ape- nas .. um medico!! E este mesmo foi, antes de termi- nada a sua commissão, mandado retirar-se por motivos economicos 1 A commissão que acabou de realisar o sr. Dr. Saboia, a segunda comtudo desse genero, não póde ser reunida a primeira, pois notorio é que foi ella puramente offíciosa; sendo portanto mais meritorio o nobre proceder de tão esperançoso chirurgião brazileiro *. Será preciso buscar ainda mais argumentos para de- monstrar o caminho erroneo que trilhamos ? Não decla- mamos, e sempre teremos em vista lembrar ao nosso paiz o gráu de progresso daquelles que julgamos inferiores a elle ; cremos desse modo frisar melhor o valôr dos asser- tos que avançamos. Todas as questões, entre nós, que se acham fóra da * Não poderemos olvidar de lembrar também um folheto, publicado «m 1863 pelo distincto Dr. À. Guimarães, sobre algumas reformas propostas por occasião da reorganisação das faculdades medicas bra- íileiras. 73 alçada eleitoral, são desde sua origem marcadas com o ferrete mortífero do desprezo! E este o prego mais entra- nhado que immobilisa a roda da civilisação e do progresso sul-americano. O que poderíamos esperar da iniciativa individual, esta por assim dizer, subordinada a maior ou menor probabili- dade das recompensas, de graças ofíiciaes, é finalmente o governo que mantém o fiel dessa balança, de quem afinal depende a realisação de medidas profícuas e de publica utilidade. Nada mais justo que o desejo da recom- pensa, pois é o movei de toda a actividade humana, mas sejam também estas justas e equitativas e não influen- ciadas pelo medonho nepotismo, que tudo invade e, como um perigoso dragão, tudo devora ! Promover o estudo das moléstias dos velhos, recolhel- os, quando desamparados pela sorte e avassalados pelas mais cruéis infermidades, em hospícios cuidosamente destinados a este humanitário mister, eis outra idéa gene- rosa que não tem ainda penetrado no pomposo program- ma do progresso brazileiro; eis outra lacuna culposa e que não deveria de ser aponctada, na capital do segundo estado do novo Continente. Criminosa indiflerença para com aquelles que,vergados sob o pezo dos annos,esterilisados pelas torturas da moléstia, se veem expostos a uma morte infame, cruel, desapiedada, esquecidos pelos que, ani- 74 mados de um sangue americano, tocados pelos ful- gidos raios de um sol tropical, acalentados pelas forças da saude e do vigor da juventude ou da madura edade, ati- ram-lhes um olhar descuidôso, sem lembrar-se talvez que os caprichos da fortuna, que a fatalidade, poderão expôl-os, algum dia a eguaes vicissitudes, a tão amargas provanças, as quaes não são mais apparentemente mi- tigadas pelo balsamo salutar da—esperança! Fòram-se então as crenças, a fé, o recurso ultimo do futuro; ficaram a realidade e a agonia das dôres, o cilicio inseparável e pungente que os torturam, alè extinguir-se o derradeiro lampejo de tão desgraçada existência! Que fazemos nós, que deixamos extorcer-se nas vascas angustiadas desse protheu, que aacommette de mil modos, a velhice desvallida. Não é para compungir o quadro que nós, sacerdotes da saude publica, contemplamos diaria- mente nesta vasta capital? Quantas vezes não somos for- temente impressionados pelas scenas as mais tocantes, que bradam aos charidosos corações a commiseração, o con- lrangimento, a piedade ! Que o governo se digne de atten- dcr á velhice desvalida, arruinada , anniquilada por toda a sorte de males physicos e moraes. Que os nossos philanthropos se amerceim desses infelizes sem numero, que vagueiam sem rumo, nem abrigo, onde possam dor- mir, tranquillos, os últimos dias desse arrastado viver tão penôso. 75 Si não fôra a piedosa indole dos brazileiros, a natural tendencia a soccorrer a miséria alheia, que seria feito, em uma populosa cidade como a nossa, dessa multidão de inválidos sem recurso, no ultimo quartel da vida, que outro abrigo não encontram para minorar tão enraigados males sinão o serviço unico, creado ainda pela munifi- cência e previdência dessa associação piedosa, que absor- veu, por assim dizer, toda a charidade, Concentrando-a em suas beneiicas mãos! E uma iufermaria, chamada — dos velhos, o unico refugio onde vai a velhice alquebrada de soffrimentos tão vários encontrar o balsamo da espe- rança e do conforto ! Para traçar o quadro fiel do nosso—Asylo de mendigos, utilisamono-nos da seguinte nota, que nos foi obsequiosa- mente confiada pelo nosso distincto collega e amigo, Dr. J. V. Fazenda, encarregado do serviço dos velhos, no hos- pital geral da Sancta Casa da Mizericordia. Ninguém se acha, pois, mais no caso de pinctar-nos ao vivo as tristes condições desses desgraçados a quem a miséria victimou. « Ha na cidade do Rio de Janeiro, escreve elle, um edifício destinado a recolher os infelizes que, desampa- rados da fortuna, vagueam pelas ruas da cidade a esmolar opão da charidade publica; esse edifício, que pelo seu aspecto, suas péssimas condições hygienicas, mais se assimelha a uma masmorra, tem o pomposo titulo de — Asylo de mendigos. Accumulados em um pequeno espaço 76 escuro, mal ventilado, onie o ar é rarefeito, trabalham, comem, dormem, e fazem as demais necessidades os des- graçados., que tèm a infelicidade de ser recolhidos a essa enxovia, onde, em vez do conforto e tranquillidade, encontram a brutalidade inaudita dos administradores que, para os chamar ao trabalho, lançam mão de meios enér- gicos e indignos de um pôvo civilisado. O tronco, o ver- galho, a suspenção da magra refeição, são os castigos im- postos aos que não terminam a tarefa quotidiana, a qual consiste em desfiar estopa. « Como condemnados,trabalham em silencio: éprohibido o fallar com os seus companheiros. Como fructo desse des- humano regimen, os asylados se distinguem por um fácies charateristico, por uma magreza exagerada, e por quasi todos os symptomas do idiotismo. m virtude, como já foi dicto, de um imposto decretado m favor dos pobres, contém numerosas casas pias, reser- adis ao tractamento dos velhos desfavorecidos da fortuna, expostos aos rigores da miséria. O hospital geral de Copenhague, fundado em 1765, e destinado pela maior parte a receber a velhice inferma, é tido como o mais importante do Reino. A Allemanha não se mostra inferior, em relação a tão piedosas e humanitarias instituições, sendo por demais longo entrar em minudencias sobre objecto já sufíiciente- mente discutido. As palavras de Ilufeland, acima citadas com o fim de tornar patente a necessidade de um estudo particular das moléstias infantis, poderiam ser perfeitamente applicadas ís das affecções próprias da velhice. A importância de um istudo especial das moléstias dos velhos, diz Charcot, ão poderá ser hoje contestada. Todos concordam, de nto, em reconhecer que si a pathologia da infancia se resta a considerações clinicas de uma ordem especial e íe se torna indispensável de conhecer sob o poncto de 86 visla practico, a pathologia senil apresenta, também, suas difficuldades, que só podem ser superadas por uma longa experiencia e um conhecimento aprofundado de seus cha- racleres particulares '. E Charcot não se acha isolado, pensando deste modo ; Floyer, Welsted, Fisclier, Pinei, Landré Beauvais, Ros- lan, Cruveilhier, Prus, Canstatt, Beau, Gilette, Durand Fardel, Geist, Mettenheismer, Day, que mais se lião dis- tinguido nesta especialidade, tiveram occasião cada um por seu turno de tornar bem patente a idéa que levamos demonstrada. É, pois, esta uma das medidas que reclamam, entre nós, prompta solução, e o ensino deste ramo muito menos deve de ser desprezado ou olvidado pelo nosso governo. E isto é tanto para attender, quanto é sabido ser no Brazil, em um clima tropical, muito precoce a ve- lhice, ficando portanto a pobreza desvalida prematura- mente privada dos recursos do trabalho, fonte unica de sua subsistência : com a velhice occorrem toda a sorte de achaques, delia inseparáveis, tornando pois ainda mais lastimáveis tão precarias condições. A incúria relativa á velhice inferma e desvalida é um triste attestado, que compromette os fóros altamente hu- manitários que, mercê de Deus, gozamos. Sigamos o exem- 1 Leçons sur les mal des vieillards. Paris, 1868, pag. 3. 87 pio edificante da Italia, onde cada Municipalidade dispõem de uma verba, em beneficio dos azylos consagrados aos infelizes, expostos aos rigores da miséria, no ultimo marco da vida. Dahi resulta que não ha cidade, nesse paiz, na qual deixe de encontrar abrigo a velhice inferma e preza dos mais terríveis males incuráveis. A dermatologia abriram uma nova era os profundos trabalhos de Alibert e Biett. Rasgou-se nova senda de investigações e de estudos, e já lá se foi o tempo, em que todas as alterações da pelle se resumiam em uma unica affecção — o dartro! As immensas conquistas operadas, neste interessante ramo dos conhecimentos médicos, pelos infatigáveis exfor- ços de Cazenave, Bizin, Ilardy, Wilson, Hebra, elevaram-a a um gráu tal de importância, que ninguém se animaria hoje a contestal-a. Durante muitos annos, diz o professor tfardy, foram as moléstias da pelle mal estudadas e mal conhecidas: acreditavam rebaixar-se os médicos occupan- do -se destas affecções, e o tractamento delias era abando- nado aos impiricos e aos medicastros, assim como deixamos hoje algumas affecções especiaes aos dentistas e pedicuras. Deste abandono injusto resultou uma ignorância completa • das moléstias da pelle. Pleuk, William, Bateman, seu discipulo foram, nos 88 fins do scculo passado, emprestando gradualmente mais precisão scientifica ás vagas e confusas noções até então adquiridas, acerca das affecções cutaneas, fazendo tocar o diagnostico delias um gráu approximado á perfeição. « Sob este impulso e graças ás observações, ás lições, ás publicações de Biett, de M. Gibert, Cazenave, Devergie, as differentes especies de moléstias cutaneas, sua marcha, sua séde habitual, em uma palavra, as minuciosidades graphicas dessas affecções, ficaram muito bem conhecidas,, e chegou-se, pelo estudo analytico das lesões elementares das erupções, a conhecer e a designar uma moléstia da pelle com tanta facilidade e com o mesmo processo, que um botânico chega a conhecer o nome de uma planta, in- quirindo o numero e a posição das pétalas e dos estames. » Taes hão sido, resumidamente, as phases que tem atravessa- do o ramo hoje elevado a altura de uma das mais interes- santes e estudadas especialidades, nos differentes paizes que marcham á frente da civilisação moderna. Todas as facul- dades adiantadas têm, á porfia, instituído clinicas especiaes, consagradas as affecções cutaneas, e os beneficos fructos colhidos collocaram-a acima das injustas arguições. Só um pessimismo retrogrado ousará pôr em duvida a urgência de ser creada, annexa ás nossas faculdades, uma cadeira de clinica] dermatológica. Acreditam muitos facílimo o dia- gnostico, sem nenhum valôr a therapeutica de táes molés- tias; entretanto, a mais patente ignorância de tal matéria é 89 mais que notoria, entre a maxima parte daquelles que se julgam ineyclopedistas. A. este respeito, não podemos deixar de abrir um pa- rentheses, para fazer sentir um vicio radical da nossa clas- se, por tal fórma saliente, que já vai sendo motivo de censura quasi geral: vem a ser a tendencia á absorpção de conhecimentos os mais variados da nossa arte, julgando-se peritos, autoridades respeitáveis, muitos confrades, em to- das as múltiplas ramificações da sciencia de curar. Cau- sa-nos realmente extranheza ouvir um mesmo indivíduo apregoar se: medico (propriamente dicto) oculista, gyneco- logista, anatomista, micrographo, chirurgião, parteiro, dentista,pharmaceutico,o tc.,o que seria longo ennumerar. Será muito embora vicio de apreciação nossa, mas cremos que qualquer dos generos da classe inteira já é matéria de sobra para as mais aprofundadas investigações do espirito humano-, e não podemos conceber, a não tractar-se de um craneo maravilhoso, de algum Pico de la Mirandola, que se reúnam em o mesmo ente, solidamente adquiridos, conhecimentos tão latos e variados. Temos para nós que tal é, também, a origem de nos con- servarmos, indefmidamente, medíocres em matéria de sci- encia, nada produzindo de original aquelles que de tudo se occupam com apregoada proficiência. Querem uma prova do nosso asserto, têm-na bem depressa naquelles que, havendo sido fieis ao seu programma, naquelles que, 90 abraçando um ramo de estudo particular, hão conquistado* um lugar distinclo, uma posição invejável, um nome honroso para o seu paiz. Procurai os incyclopedistas, e encontrareis as mediocridades, que nada podem dar sinão uma—manta de retalhos. Uma das cousas quefére particularmente a attenção do vi- ajante brazileiro na Europa, é a franqueza com que tradu- zem publicamente a sua ignorância os vultos mais notáveis, em matéria fóra da orbita de seus estudos. Proponham a um medico uma questão chirurgica e ob- terão promptamente franca confissão de incompetência em tal assumpto; o inverso também é a regra: para melhor frisarmos as nossas proposições, ahi vai um exemplo de que fomos testemunha,no hospital Lariboissière, em Pariz. A- chava-nos em o serviço do professor Verneuil, lente de clinica chirurgica da faculdade de Pariz, e um dos chirur- giões de maior reputação européa; queixando-se um dos seus doentes, recentemente operado, de uma ponctada em um dos lados da thorax, acompanhada de alguma tosse, observou o illustre professor que alguma cousa soffria pro- vavelmente o doente para o lado do apparelho respiratório, e dirigindo-se ao numeroso concurso de médicos, que o se_ guiam durante a visita, solicitou a algum, dos que se jul- gassem habilitados,a escutar o doente, porque elle não sabia faze-lo, disso não entendia. Não ousamos acreditar que, de feito, ignorasse tão notável chirurgião os preceitos da 91 escuta, para delia tirar partido á cabeceira de um doente; mas, accusava-lhe a consciência a pouca experiencia, que não o autorisava, em tal matéria, a emittir aos seus ouvintes juizo seguro. Achava-se um collega nosso no hospital das clinicas da mesma cidade e no serviço destinado á clinica chirurgica de faculdade,dirigido então pelo muito habil e conhecido dr. Lannelongue, em substituição ao professor Broca, ausen- te. Pois bem, Lannelongue, geralmente tido na conta de um chirurgião consummado, achando nesse dia indicação, em um doente, para a administração de um preparado ar- senical, tentou em alta voz formular a prescripção; e depois de algumas hesitações, voltou-se muito sobranceira- mente para o pharmaceutico, que sempre acompanha a vi- sita, dizendo-lhe : tenha a bondade de formular uma poção com arsénico para este doente, pois que agora não sei faze-lo. Este facto, presenciado pelo collega que estu- dava comnosco em Pariz, foi-nos fielmente transmittido. Na Allemanha, os luzeiros da sciencia são egualmente modestos em demasia. Seria prolixo citar aqui outros mui- tos factos interessantes, que bem demonstram a tendencia a reduzir a somma de matérias a cultivar de uma sciencia tão vasta, que o correr dos séculos ainda não conseguiu tornar hem conhecida. Em 1844, escrevia Sigaud ser a syphilis a affecção predo- minante no Brazil, no dizer de todos os antigos practicos ; 92 e, occupando-se da questão da frequência das mÀestias syphililicas, no Rio de Janeiro, em seu interessante rela- tório de 1871, o illustre presidente da juncta de hygiene publica assim se exprime: «... annexo ao presente rela- tório, reunindo um total de 23,739 doentes, figuram como atacados de diversas moléstias syphiliticas 2,021, excluin- do muitos que estão contemplados em outras classes, por haverem entrado para os hospitaes, em virtude de doenças mais importantes do que as syphiliticas, primitivas ou secundarias, de que soffriam. « Estes resultados revelam claramente a generalisação que vai ganhando este flagello, constituindo-se talvez uma das grandes causas da phthysica pulmonar, que tantas vidas ceifa todos os annos na nossa mocidade, a qual entregando-se cedo e com ardor, em virtude da naturesa do clima e do desinvolvimento prematuro da pu- berdade, aos prazeres sexuaes, vai buscar nas espelun- cas de deboche e corrupção moral, hoje já bastante numerosas nesta cidade, os germens de destruição que a deve minar surdamente, deteriorando-lhe o organis- mo, e implantando-lhe, assim como em seus futuros des- cendentes, a funesta origem de uma morte prematura ou de uma saude sempre precaria. » O credito e as reflexões que despertam estas palavras, partidas de tão respeitável autoridade, comprovam, não ha negal-o, alem das medidas tomadas no sentido de refrear e regularisar a prostituição 93 entre nós, a necessidade de promover o estudo attento e profícuo, isto é practicamente, das moléstias syphiliticas, havendo, sinão como acontece em todos os centros da civilisação européa,um hospital especial, ao menos serviços destinados exclusivamente ás referidas moléstias, onde possa realisar-se com decidido proveito o estudo practico deste ramo clinico tão importante. Aos retrogados que julgarem vãos os nossos argumentos em prol desta ideia, responderemos com as palavras seguintes de um dos mais respeitáveis representantes da dermatologia moderna, ainda o professor Hardy, que, occupando-se deste objecto, por essa forma se expressa: «...onenrencontre fréquemment des exemples dans la pratique médicale,et malheureuse- menl beaucoup de médeeins, d’ailleiirs instruits elcapables, ne les connaissenl pas assez suffisamment. » E note-se que estas linhas foram escriptas em uma capital, como Pariz, que encerra dous hospitaes (Lourcine et du Midi), con- sagrados especialmente ao tractamento das moléstias syphiliticas e venéreas, alem de outro, reservado ao das moléstias da pelle, o Hospital de S. Luiz, onde funcciona o mesmo professor Hardy, e que foi o theatro dos successos dos celebres : Cazenave e Bazin. Esta pequena áreadoincommensuravel campo da scien- cia tem merecido ser roteada por vultos, que á ella consa- graram toda a sua vida, todas as suas lucubrações. E a syphilographia conta entre os seus mais notáveis 94 representantes, em todos os tempos, os nomes considerados de : Gibert, Baumès, Desruelles,Cazenave, Dévergie, Culle- rier (inenen e /?/s),Rattier,Bottex,Payan,Reynaud, Yvaren, Venot, Puche, Gouzi, Davasse, Maisonneuve, Montanier Leudet, Ph. Ricord, Bassereau, Biday, Melchior-Robert, Fournier, em França ; de : Carmichael, Babington, Acton, de Mérie, Deville, na Inglaterra; de: Ilermaniin, Muller, Sigmund, Simon, Acker, Mulder, Hebra, na Allemanha; de Hérion,Thiry, na Bélgica; de Damaria e A. Verga, naltalia; de: Sidney Doane, Bumstead, P. Goddard, Th. Botton e Lattimore, nos Estados-Unidos. Justo é, pois, que reclamemos do nosso governo esle appendice dos cursos geráes, ficando, segundo cremos, assaz averiguadas as condições precarias, em que nos achamos a este respeiio. Si attentar-se, todavia, para os reclamos da imprensa diaria, parecerão inteiramente descabidas as considerações em que acabamos de entrar; em razão do avultado numero de especialistas das moléstias syphiliticas, os quaes concorrem, em massa, á proclamar os seus específicos conhecimentos; parecendo ficar dest’arte provada a exhuberancia de entendidos na matéria que bem satisfazem as exigencia da clinica syphilographa. Mas, perguntamos nós, onde beberam noções tão apura- das, onde adquiriram practica tão especial, em que theatro foram buscal-a tantos que, pretendendo a todo o transe especialisar-se em alguma cousa, assim resolve- 95 ram arbitrariamente ! ? Emquanto não gozarmos de um systêma de ensino mais lato e livre, será impossível for- marem-se, no Brazil, especialistas de ramo algum das diciplinas medico-chirurgicas; pois, de outra forma não vemos o mais insignificante recurso, de que possam lançar mão os candidatos áquelle fim. Resta, demais, considerar-se que as manifestações desta moléstia revestem-se, entre nós, de characteres particula- res, que tornam, não raras vezes, embaraçado o seu reco- nhecimento exacto. E ainda um daquelles ponctos da pathologia tropical, que reclama um estudo acurado, pois, as simples noções obti- das nos livros d’alem mar não poderão fornecer o gráu de instrucção precisa, para com vantagem entregar-se o prac- tico ao tractamento daquella entidade mórbida neste paiz. Essa physionomia particular que offerece a syphilis, no Brazil, não é cousa moderna, já vem de longa dacta: de feito, já dizia Sigaud, em 1844, que apresentava a syphilis, na America, uma marcha menos franca, manifestando-se mais frequentemente por symptomas secundários e terciários. E, nas Antilhas, nossas vizinhas., havia em 1868 observado o dr. Saint-Vel que as erupções de fundo syphilitico offe- reciam um aspecto um pouco modificado, sendo isso algu- mas vezes devido, segundo elle, ao colorido da pelle. Sem estabelecimentos adequados ás differentes clinicas, 96 bem descriminados, nada se conseguirá, como tem até agora acontecido. Temos crença no futuro ; a força do tempo, que perpas- sa, ha de afinal perfurar a pedra, como a gotta d’agua que nella cahe sem cessar. A evidencia dos factos, o atrazo escandaloso fará, estamos certo, despertar algum dia o re- morso em os responsáveis do nosso progresso-papel. Não ha duvidal-o, as nossas medidas de progresso se resumem em programmas, mais ou menos adubados, que uma vez dados á estampa, julgam-se as consciências governistas livres de maior encargo. Diz se que se fará, e a medida é considerada realisada! E, por sem duvida, o Brazil o paiz, em que mais se estuda e menos se produz; podendo-se bem comparal-o a uma infeliz môça chlorótica, que aborta sempre que concebe! Vasto em concepções, arrojado em emprezas as mais seductoras e grandiosas, nunca consegue nossa excêntrica patria tocar o termo de tantas gestações! A creação de um — curso de moléstias mentaes—já se faz esperar desde ha muito neste paiz, onde a ignorância a lai respeito é supina, tornando-se lastimosa a carência absoluta de uma autoridade, em matéria de tão soberana importância. Não temos, neste ramo, uma unica fonte viva de consulta, particularmente em relação ás questões que se referem á alienação mental. Ninguém se ha dedi- 97 cado, no Brazil, ao estudo de matéria tão collossal, de as- sumpto que hoje interessa tão seriamente á sciencia e á administração publica. E este um claro, que sorprehenderá, por certo, a quem folhear, mais tarde, os nossos annáes médicos. Pretender demonstrar a necessidade de possuir-se no- ções sobre este difíicilissimo ramo das sciencias medicas, seria pretender demonstrar aquillo que está no espirito dos que tem deante dos olhos, diariamente, o triste espectaculo, offerecido por esses desgraçados privados do uso da razão. Os embaraços, em que se vêm tão de frequência os que practicam no Rio de Janeiro, e peior ainda nas províncias e interior, não só pela deficiência dos conhecimentos que possuem a tal respeito, como ainda pela carência absoluta de uma autoridade, á qual possam recorrer, tornam de sobra provada a justiça dos reclamos nossos, A alienação mental não é tão rara, como se poderá pen- sar, no Brazil; embora muito menos frequente que entre nossos visinhos do sul, onde fornecem ultimamente as estatísticas cifra assombrosa de loucos, ella se mostra em gráu ascendente, á medida que progride a torrente emi- gradôra e, portanto, também a nossa população. Ainda se acha por fazer, até hoje, uma estatística de loucos, no Brazil, e si, por ventura existe, delia não temos decididamente noticia; entretanto, está boje mais que provado acharem- 98 se implicitamente sobordinadas aos dados estatisticos a maior parte das questões relativas a alienação mental. Sendo a média da proporção relativa dos indivíduos privados da razão a de 4,44: 1,000, como calculamos das estatísticas realisadas na França, Bélgica, Escossia, Dinamarca, Norwega, Wurlemberg, Saxe, Baviera, Ilan- nover, Silesia (prussiana), Argovia, Lucerna e Estados- Unidos, e, querendo attribuir ao Brazil uma proporção ainda inferior, sendo a de 2 : 1,000, teremos, em uma população de 10,000,000 de almas como a delle, o total approximado de 20,000 loucos, idiotas e alienados, toma- dos englobadamente. Considerando quetenbamos uma po- pulação de 300,000habitantes na cidade do Rio de Janeiro, elevar se-ha a somma dos loucos nesta capital a 600. Podendo apenas conter pouco mais de 300 doentes o unico estabelecimento, que para esse fim exclusivo possui- mos, o Hospício de Pedro II, claro é que uma grande parcella fica desprovida dos recursos a que tem direito, perante a charidade social e administrativa. A excepção do hospício de S. João de Deus, na capital da Bahia, e do outro asylo analogo, na cidade de S. Paulo, estabelecimento nenhum mais conhecemos, destinado ex- clusivamente a este fim e montado segundo as condições exigidas pela sciencia moderna. Dando ainda de barato, o que não cremos, que offereçam estes dous últimos hospícios as mesmas proporções que o 99 de Pedro II, apenas 12,000 infelizes loucos, idiotas e alienados encontrarão abrigo e tractamento convinhavel ; licando desamparados e não sequestrados do seio das populações cerca de 8,000 desgraçados, em cujo craneo extinguiu-se o facho da razão. O proceder da França, sob este poncto de vista, é bem nobre e digno de imitar-se : segundo a lei promulgada neste paiz sobre os alienados, em 30 de junho de 1838, cada departamento é obrigado a ter um estabelecimento publico, especialmente destinado a receber os alienados ou atractar para esse fim com algum estabelecimento pu- blico ou privado, quer desse mesmo departamento, quer de outro. São ainda para admirar-se os esplendidos e immensos hospitaes de Londres, consagrados ao tractamento da lou- cura, taes como os: Bethlem’s hospital, Saint Luck hos- pital, Ilamicell asyle, modelos dignos de ser reproduzidos. A.té 1841, no Rio de Janeiro, era degradante o estado em que se achavam os infelizes loucos, encerrados em uma especie de enxovia ou em pequenas cellulas, estabe- lecidas em uma parte do edifício do antigo hospital da Mizericordia. Os meios postos então em vigôr para cural-os, as medidas absurdas de rigôr que lhes eram impostas pelos indivíduos encarregados deacompanhal-os e tractal-os alem dos cuidados do medico, mereceram as mais acres cen- 100 suras por parte da Sociedade de Medicina de então, como se póde deprehender do relatorio que a mesma fez pu - blicar no Semanario de Saude de 1831 ; censuras que foram mais tarde ainda reproduzidas em artigos insertos na Revista Medica Fluminense de 1839. Essas reclamações, esses brados de indignação da in- telligente e zelosa imprensa medica de então encontraram echo nos corações humanitários dos membros da Praça do Commercio, que nomearam uma commissão com o fim de promover uma subscripção para a construcção de um ediíicio apropriado ao recolhimento e tractamento dos loucos. Foi, por essa occasião, que, desejando o nosso actual monarcha commemorar o dia 18 de julho de 1841, primeiro anniversario de sua maioridade, promulgou, nessa dacta, um decreto assignado pelo ministro Cândido José de Araújo Vianna, boje marquez de Sapucahy, e, no qual houve por bem fundar um hospício de alienados, sob a denominação de Hospício de Pedro II, annexo ao hospital da Mizericordia desta capital, sob sua protecção, ordenando que fosse desde logo aproveitado para a fundação delle o producto da já referida subscripção da Praça do Commer- cio, bem como da promovida pelo Provedor da Mi- zericordia e dos donativos particulares. Ao inexcedivel zêlo e actividade do Provedor José Clemente Pereira se deve a execução fiel da ideia, primeiramente agitada pela Sociedade de Medicina em 1831, mais tarde repro- 101 duzida pela Praça do Commercio e sanccionada pelo Imperador. O edifício que hoje possuimos sob aquelle titul *, for- çòsoé dizel-o, não poderá ser facilmente excedido em suas condições hygienicas, grandeza e luxo, pelos mais celebres que se houver de construir em toda a Europa. Aetualmenle rivalisa com os mais afamados do Velho Mundo. Entretanto, o mesmo não poderemos afíirmar acerca do systêma adoptado no tractamento das differentes especies de alienação mental; nada transpira desse estabelecimento, onde tudo parece morrer no retiro em que se acha. Nada sabemos em relação as causas productoras da alienação mais frequentes entre nós, qual das tres grandes classes de aberração da razão se mostram mais assiduamente aqui, quaes os resultados ob*idos dos recursos therapeuticos, qual o gráu de mortalidade proporcional ao numero dos alienados recolhidos, assim como, finalmenle, quaes as moléstias que de predominância complicam a alienação mental no Brazil. Que programma grandioso, quantas questões a resolver, no dominio deste ramo de serviço clinico! Que triste silencio nos cerca, quando delias inter- rogamos os nossos archivos médicos! Dous ou pouco mais facultativos apenas se acham in- cumbidos, nesta capital, do serviço medico de tão impor- tante e grandioso estabelecimento ; a esses poucos está 102 affecto o tractamento tão penoso dos 300 e tantos infelizes, sequestrados por tão horrível desgraça! É possível suppôr-se, por mais hábeis e diligentes que sejam esses isolados practicos, consigam elles realisar o dc- sideratum que constitue o verdadeiro fim de tão pia insti- tuição, o tractamento da loucura? Elles não terão a imprudência de negal-o ! Um edifício modelo, sem pessoal adequado ás exigências do serviço, de nada vale em relação ao marco real, que procuram altingir as instituições desta ordem. Uma reforma, pois, neste sentido não seria uma medida de complacência, mas de transcedente valòr e de urgente necessidade. A. instituição, portanto, de uma clinica, reservada ao en- sino desta difficil quão interessante especialidade, é uma das creações que mais demandam a attenção dos nossos actuaes administradores. 0 ensino da clinica medica e chirurgica tem sido ele- vado, no Rio de Janeiro, ao gráu de importância que merecem taes cadeiras. Desprezar o estudo das clinicas, seria desconceituar os créditos de que devem de arrogar-se as instituições consa- gradas ao ensino medico. Para felicidade da medicina brazileira, aos venerandos creadòres deste ensino seguiram-se novos apostolos dedi- 103 cados com fervor, repletos de instrucção, que hão sabido elevar, com os progressos da sciencia, o systèma seguido ao nivel do que é hoje abraçado nas mais acreditadas escholas. i Folgamos, assim, de dizer que poucos se interessam na Europa pelo aproveitamento dos seus discípulos, como os distinctos professores, aos quaes se acha confiada essa tão diíficultosa tarefa. Mas, si por um lado taes esforços são reaes, por outro notorio é que não podem seus effei- tos tornar-se extensivos a quantos procuram beber instruc- ção deste ramo. De feito, o numero dos que concorrem lioje a adquirir conhecimentos médicos, dos que affluem a tão nobre e humariilaria cruzada, exige de direito que se multipliquem os meios de tornar profícuas as lições practicas, que constituem o epilogo da sua tarefa escholar. A maneira porque é realisada essa parte complementar do ensino medico, no Brazil, muito deixa a desejar em relação aos óbices oppostos áquelles que, como deixamos dicto, se revelam animados de tão louváveis desejos. A somma dos concurrentes a esses dous únicos cursos excede o numero de leitos destinados aos serviços clíni- cos officiaes; os multiplicados trabalhos praclicos, as au- topsias repelidas, não podem ser, portanto, partilhados por todos quantos se agglomeram em torno de um unico professor, o qual por mais habil e mais expedicto que seja, ver-se-ha certamente vencido pelo crescido numero dos que delle exigem noções clinicas da arte de curar 104 Elle sò não poderá satisfazer as exigências de um ensino* tào compicado quanto vasto. E nós sabemos que os proprios recursos physicos são não raramente impotentes em condições similhantes: em um vasto amphitheatro repleto de ouvintes ávidos de ins~ trucção tão profícua, de tão rigorosa necessidade para a sca vida profissional, por mais vibrante que seja a voz do professor, muita preciosidade se perde que não chega a ser ouvida por grande parte daquelles mais afastados do leito, ou da tribuna. Certamente que, á cabeceira do leito, não poderá usar o professor de ton oratorio constantemente, todas as vezes que houver de expender alguma doctrina relativa ao caso vertente, de proceder a um interrogatório, de instituir uma therapeutica adequada, etc. O organismo o mais soli- damente construido ver-se-hia, mui cedo, alquebrado de fadiga, nenhuma profissão seria mais penosa de exercer. Si como, pois, fica dicto: as curtas liçõespracticas, á cabe- ceira dos doentes, são na maioria dos casos transmittidas a uma grande somma de alumnos por tradicção, vinda da- quelles que tiveram a felicidade de se approximar do pro- fessor durante a visita, de poncto cresce tão notável inconveniente na clinica chirurgica, onde a audição em nada será de certo util ao estudante, onde a inspecção ocularpelo menos deve de ser exercida na mais lata esphera de liberdade. 105 Não ha ninguém que não saiba serem, na Europa, estas cadeiras providas por dous e mais professores, de modo a tornar a todos accessivel a instrucção derramada por ellas. Na maior parte das faculdades, alem das varias clinicas ofliciaes, gozam os alumnos do privilegio de buscar, nos serviços que lhes convém, os conhecimentos practicos indis- pensáveis ao medico. E é esta uma das muitas garantias offerecidas pelo en- sino livre, unico capaz de realisar o ideal a que todos os povos cultos propendem. Si em algum paiz pode se concebera realisação proíicua do systema vigente, não é certamente no Brazil, e os mo- tivos que nos levam a exprimir-nos por essa fórma são fundados na pouca instrucção elementar, recebida pelos alumnos das nossas escholas nos cursos que precedem aos das clinicas, e, ainda mais, na maneira pouco conveniente porque se acha organisado o programma em relação ás mesmas. À pouca instrucção das bases primordiaes da medicina já foi em grande parte demonstrada em outro poncto deste nosso tosco escripto, mas, para frisar melhor esta nota, iremos buscar as palavras textuaes do actual lente de cli- nica medica do Rio de Janeiro, o qual, quando ainda cheíe da clinica, mais de uma vez reconheceu «que as lições do professor não podiam aproveitar a um certo numero de discípulos, pela falta absoluta que nelles havia de instruc- 106 ção elementar, indispensável a quem se inicia no estudo practico das moléstias internas. » Nomeado lente, em agosto de 1866, ainda assim se exprime o sr. dr. Torres Homem, em seu proveitoso livro: Elementos de clinica medica, pretendendo justificar a confecção deste mesmo livro: . ; « De então \ ara cá frequentemente tenho sentido os inconvenientes devidos a ausência de conhecimentos ge- raes elementares em alguns alumnos {melhor fôra dizer muitos), sobretudo do quinto anno, que por isso não po- dem bem obseriar doentes e colher a instrucção pracVca que a clinica fornece. Mais de uma vez, durante a visita da infermaria sou obrigado a entrar em alguns desinvolvi- mentos sobre o valôr semeiologico de certos symptomas, a esclarecer um ou outro problema de practica em rela- ção aos resultados fornecidos pelos meios de exploração, principal mente pela percussão e auscultação. « Facil é comprehender-se que, sem estes conheci mentos- preliminares, os meus ouvintes não podem accomp mhar- me na discussão de um diagnostico, nem conseguir formar umjuizo exacto sobre um doente, e muito menos apreciar a marcha que segue uma moléstia. » Temos nestas palavras stereotypado o ensino das ma- térias que concorrem a fornecer ao medico os elementos da practica , em a faculdade do Rio de Janeiro. 107 Não nos consta que melhor se proceda na faculdade bahiana. Vè-se arvorado o professor de clinica em professor re- sumido de quasi todas as matérias que compoem o curso medico. Por maior realce e interesse, maior somma de instruc- ção que derramasse o preclaro autôr dos Elementos de clinica medica, em seu conceituado livro ; por maior que fòsse o seu empenho em obviar lacunas tão graves, elle hade eomnosco convir que muito pouco conseguio ; seus intentos eram altaneiros, mas achava-se isolado, desam- parado ! Os seus exforços, devemos confessal-o, tem conquis- tado successos, tem inspirado vocações amortecidas, allumiado intelligencias obscurecidas, despertado o enthu- siasmo e a crença, sem a qual é impossível a medicina de consciência; tem, e por que não? creado uma ver- dadeira eschola, aberto um periodo de renascença para a medicina brazileira. E verdade que os que se calam não desconhecem ! Mas, por mais energicas que sejam as suas forças, por inais vivo que se mostre o seu ardor pelo magistério cons- ciencioso, licará muito aquem dos seus desejos, por effeito do excesso e desproporção do trabalho. Considerações de egual natureza podem ser applicadas a clinica chirurgica, onde cremos mais ardua ainda se 108 patenteia a missão. Forçado a emprestar a seu curso maior cunho praclico, não podendo dispensar a interven- ção manual dos seus ouvintes, exige por isso o professor de maior somma de tempo e mais redusido numero de discípulos. O numero dos que se agglomeram em torno de uma mesa de operações, em uma sala desprovida dos recursos de um amphitheatro adequado, amontoados uns sobre outros com detrimento de todos e vexame do ope- rador e seus ajudantes, tolhidos até em seus livres mo- vimentos, é manifestamente superior a capacidade do recinto, destinado a essas practicas como, aos recursos do professor por essa forma coagido Isto explica a razão pela qual retira-se um medico da faculdade, entre nós, sem haver, sinão por mero acaso, tomado uma só vez do bistouri para dilatar o menos peri- goso abcesso. Este vicio contrasta solemnemente com o que vimos pro- ceder-se até mesmo em um paiz, tido hoje por muitos como menos adiantado que o nosso, Portugal. Pois bem, grande foi a nossa sorpreza, quando chegados a esse paiz, liamos diariamente o numero de operações executadas nos ser- 1 Foi agota, ha muito poucos mezes, que o hospital da Mizericordia tez construir uin pequeno amphitheatro annexo ao serviço da clinica, chirurgica da faculdade. Oxalá que este primeiro melhoramento, devido a iniciativa particular desse hospital, consiga dar fructos; que o ensino se modifique favoravelmente com tão bom auxilio. 109 viços das clinicas ofliciaes pelos estudantes da Eschola medico-chirurgica de Li bôi, sob a direcção do intelli- gerite professor, o sr. dr. Vrnault. No resto da Europa é practica corrente, que todas as operações de menor impor- tância são confiadas aos alumnos, ordinariamente internos, sendo ainda por estes executadas, não raras vezes, opera- ções de alta chirurgia. Não foram poucas as amputações, que vimos practicar em Pariz os internos de hospitaes. Poderão responder-nos que possuem estes alumnos outra somma de conhecimentos que ignoram os nossos estudantes de medicina, mas poderemos responder que, si na verdade isto é real, procede tudo da maneira original, para não dizermos excêntrica, porque se acham dispostas as cadeiras de clinica, em relação aos demais ramos do ensino medico. Certamente, não poderão manobrar o bis- touri alumnos, que terminam o seu curso de clinica chi- rurgi a com ligeiras noções de | athologia externa, sem conhecimentos solidos de anatomia, nem haver assistido siquer á lições de anatomia topographica e de medicina operaloria. E, assim educados, muito dão de si os nossos com- patriotas, sendo para admirar que haja chirurgiões bra- zileiros, e muitos tão babeis, que se crearam exclusiva- mente com a instrucção medica, recebida em seu paiz natal. É mais uma prova dos subidos dotes intellectuaes, com 110 os quaes aprouve a Providencia ornar a fronte dos filhos deste Império, presciente de que seriam essas armas os únicos meios capazes de avassallar os domínios da sciencia, neste abençoado torrão. Porque ha de dispor de dous serviços de homens e de mulheres a clinica medica da faculdade do Rio, sem que o mesmo succeda com a clinica chirurgica! Esta nova lacuna, que por tanto tempo passou quasi desapercebida, foi ultimamente lembrada ao actual director da mesma eschola que tentou reparal-a. Em sua Memor a liisorica do anno de 1872, pag. 2, nos dá conta o sr. dr. Saboia desta facto, nos seguintes termos : « Nq interesse muito hem entendido de dar execução ao art. 200 do Regulamento complementar dos Estatutos, o exm. sr. Director dirigiu-se ao Provedor do hospital da Mizericordia para que este puzesse em tempo conveniente uma infermaria chirurgiea de mulheres á disposição do professor de clinica externa ; mas como de outras vezes os rxforços foram bildados, allegando-se que raros eram os casos de moléstias ch rurgicas especia s ás mui'teres e que podiam elles ser vistos por alumnos e professores. » S. S. não foi hem explicito sobre a procedência directa desta decisão, deixando-nos na duvida si partiu ella dos chirurgiões do hospital da Mizericordia, convocados pelo illustre Provedor, ou si foi essa opinião proferida exclusiva- 111 mente por S. Ex. A primeira hvpothese nos parece inve- rosímil, quando sabemos que muitos dos chirurgiões efíectivos daquelle hospital se dedicam especialmente á chirurgia do sexo fraco. Portanto, é mais provável que fosse essa decisão emanada directamente do sr. conselheiro *• Provedor. Nesta hvpothese, o que dizer sohre o caso? Que o cul- pado é o governo, que não possuindo hospitaes civis, ainda não se lembrou de mandar construir um hospital de clinicas, annexo ás Escholas de medicina e subor- dinado á direcçâo destes estabelecimentos. Si desta sorte houvesse a mais tempo procedido, não aprenderia o Director da Faculdade de medicina do Rio de Janeiro mais esta noção complementar da sua instrucçâo praclica : que rros são os cisos de moléstias chirurgkas especiaes ás mulheres. Que diriam, si de tal soubessem : Churchill, M. Sims, Demarquay, e tantos outros que andavam até agora embuidos de opinião tão falsa ! Sem a creação de um hospital de clinicas, subordinado ás Escholas de medicina, onde sejam instituídos serviços variados e múltiplos, providos de todos os recursos indis- pensáveis, consagrados ao ensino completo e livre da practica medica e chirurgica, poucos progressos pode- remos almejar, apezar dos inexcediveis exforços, illus- 112 tração e desinteresse dos dous únicos e actuaes profes- sores. A maior franqueza e livre accesso deve de existir entre o professor e o alumno: coagido este pela aspereza da- quelle, obrigado a certas continências que nada tradu- zem, evita elle a presença do mestre, com quem cumpria conviver na distancia do respeito e da deferencia, na estrei- lesa porém da amizade e da sympathia. Sem querer offender o character jovial, o tracto franco e delicado dosactuaes pro- fessores de clinica, não podemos occultar a má impressão que nos deve de a todos causar o contraste saliente entre os nossos professores e os dos paizes cultos em geral, relativamente ao tractamento com que acolhem os seus dis- cípulos. Entre nós, procura occullar-se o estudante ás vis- tas dos seus professores, como fazem os criminosos á alçada da justiça; a aspereza com a qual ordinariamente são recebidos, quando timidos se approximam dos seus jul- gados inimigos, quebram decididamente, no Brazil, os laços que seria para desejar estreitassem o mestre e o discípulo, nascendo desse contacto franco e não submisso a transmis- são mais facil e prompta dos conhecimentos, originando-se ao mesmo tempo a liberdade de discussão, franca e inde- pendente, que é o symbolo mais charecteristico e precioso da liberdade do ensino. Não fallaremos de Pam, Londres, Berlim, Yienna, Bruxellas, onde goza, desde ha tanto tempo, a eivilisação 113 de mais esta preciosa conquista, onde são bem manifes- tas as garantias usufruídas pelos estudantes, como pro- verbial o cavalheirismo e attenções que dispensam os professores aos seus discípulos, procedendo dahi essa inti- midade respeitosa e amena, que suavisa tão beneficamente a missão de um e os deveres de outro ; lembraremos ape- nas que a Italia, menos victoriada por taes predicados, goza hoje destas vantagens em mui larga escala. Ouçamos o que escreveu em seu recente relatorio o sr. dr. Saboia *: « Os professores tem um cuidado extremo na edu- cação medica dos alnmnos. « Entre uns e outros existe a maior intimidade de relações, de modo que os alumnos nas aulas e amphi- theatros de hospitaes conservam os seus chapéos na cabeça, o que se procura de preferencia é tornar o en- sino proveitoso e chega se a esse resultado graças á dedi- cação e a facilidade de p> ocural-os.y> Que taes expressões incisivas encontrem éclio entre nós ; que tal procedimento tão honroso e liberal seja imi- tado por aquelles dos nossos professores que mais re- quintam de menospreço e coriezia para com seus dis - cipulos. Mas tudo isso ha de vir com o ensino livre. 1 item. hist. 1871, pg. 19. 114 Que as nossas faculdades se acham desprovidas dos ga- binetes indispensáveis ás demonstrações praclicas das dif- íerentes disciplinas que compoem o ensino medico, é cousa por demais firmada em quantas memórias temos lido das duas escholas, tanto fluminense como bahiana. Em seus relatórios pareiáes, não cessam os diversos professores de reclamar da administração superior serias providencias, afim de serem suppridos os gabinetes e laboratorios que ainda permanecem embryonarios e pela maior parte des- falcados do mais essencial, sendo que muitos ainda não foram mesmo creados, com bem manifesto prejuizo do ensi- no regular e complecto. E esta uma das reformas que mais imploram a attenção dos governos, hoje que a medicina experimental vae ope- rando conquistas incommensuraveis, que os estudos prac- ticos adquiriram,de direito,um lugar proeminente nas ope- rações do espirito humano. Sem o reactivo,o escalpelloe o microscopio,não se adianta hoje um passo nas menos interessantes questões do dominio da medicina; sem estas tres alavancas, só colheremos no futuro o staccionamento, o regresso, o obscurantismo scientifico; sem esses elementos vitáes, só encontraremos a morte das nossas instituições medicas, que nos tornarão eternamente desconhecidos entre as nações mais cultas; sem essas bases indispensáveis do experimento e da obser- vação, ver-nos-heinos condemnados para sempre á mais atai mediocridade. 115 A epocha é dos descobrimentos e das explorações; a cor- rente desse caudaloso rio que nasce alem do llheno vae arrastando os espíritos os mais obcecados nas aguas dessa reacção gigantesca, que veiu mudar inteiramente a face do mundo medico scienliíico. As seductoras e profundas doctrinas germânicas vão com avanço esmagando as velhas crenças nascidas do erro, da falsa experiencia, ou das theoriasarguciosas. A luz se projecta hoje tão brilhante sobre os factos escla- recidos pelas sabias e serias investigações sem limites, que negar a supremacia dessa eschola, fora negar a luz do sói. Sirva-nos de norma esse paiz tão pequeno na extensão, quanto grande nas concepções arrojadas que engrandecem o século. Nenhum outro mais que elle poder-nos-ha em- prestar dados de progresso em matéria deste quilate, sendo hoje reputados os mais aperfeiçoados do mundo os seus arsenáes de investigações scientificas. 1'aizes que respeitamos, como modelos mais ou menos apurados em matéria de instrucçãopractica, curvam ainda a cerviz deante dos esplendidos e opulentos mananciaes,de que dispõe a Allemanha, orgulhosa e sobranceira. Ouçamos, em demonstração deste asserto, as palavras escriptas por um dos vultos mais distinclos da medicina franceza., Béhier, na sua introducção á obra de Niemeyer (Path. int.) em 1808 : 11 faut 1’avouer, en France, les moyens maté- 116 riels d’étude sont loin d’être complets. Des récits presque ofíiciels nous ont appris ce que sont les laboratoires alle- mands, et quand nous regardons ce que l’on appelle nos laboratoires et que nous comparons, nous gémissons de la diííerence. Bien installés, pourvus même avec un luxe empressé de tous les instruments nécessaires, les profes- seurs de Berlin, de Vienne, de Munich, de Wurlzbourg, de Heidelberg, ont en outre autour d’eux des aides nom- breux et dévoués. Ici, presque rien en fait d’instruments, et comme aides, un pauvre chef de clinique ou un pauvre prosecteur auxquels on marchande un traitement déri- soire. » Si a França fallava assim pela bocca de um dos seus proeminentes representantes, em 1868, o que pode- remos nós dizer da nossa situação actual, mil vezes maís triste, no extremo da decadência ? ! É certo que o governo fez uma grande encommenda de instrumentos e utensílios necessários para a organisação dos gabinetes e laboratorios das nossas escholas ; parece também certo que esta commissão não está finda; mas perguntamos o que se póde esperar delia, confiada á igno- rância profissional de um official de marinha, portanto incapaz de realisal-a satisfactoria e conveniente mente ? ! Ouvimos dizer, em Pariz, que elle se havia acercado dos conselhos do barão J. Cloquet, o decano dos ehirurgiôes francezes •, oxalá que seja isso real, que o bom senso o conduza a ouvir a opinião de sábios como o anatomista 117 citado. Entretanto, arredado dos estudos recentes, alque- brado pela edade que lhe permitte mui curta aetividade, não cremos que, além da escolha do instrumental chi- rurgico, muito possa auxiliar aquelle ancião o marítimo commissario. E quando fosse Cloquet prestimoso e jovem, não era certamente o mais apto a organisar um gabinete de medicina experimental, um laboratorio de chimica, de toxicologia, etc. Muito terá, pois, que viajar com- missario brazileiro, para encontrar em cada ramo um assessor que o instrua nessa laboriosa tarefa, impossivei de bòa execução. Seja qual fòr o resultado, alguma cousa em summa vir-nos-ha, e quando muito teremos um simulacro de laboratorios e gabinetes. Estes não podem deixar de ser os seguintes : Gabinete de physica. Dicto de historia natural. Laboratorio de chimica mineral e organica. Laboratorio de chimica legal. Laboratorio de pharmacia. Gabinete de anatomia descriptiva. Gabinete de phvsiologia experimental. Gabinete de anatomia e hystologia pathologica. Arsenal chirurgico, onde se achem colleccionados e expostos os instrumentos empregados nas operações chi- rurgicas e tocologica S. 118 Estes gabinetes e laboratorios devem de ser dirigidos por indivíduos profissionaes, auxiliados por um pessoal compatível com as exigências do serviço. Elles devem ainda de ser franqueados tanto aos alum- nos como aos professores, sendo ministrados aos primei- ros peloç directores dos respectivos laboratorios e gabi- netes lições practicas dessas differentes matérias, que farão o objecto de pequenos cursos, annexos aos do pro- gramma escholar. Esses cursos cumpriria fossem exclu- sivamente practicos e completamente livres. Seria muito para desejar, pois, que todos os alumnos indistinctamente, e não por concurso, como se procede em França, fossem admittidos ás manipulações experi- mentáes e exercícios practicos sobre todos os ramos do ensino medico, da mesma sorte que ás manobras ope- ratórias e ás dissecções anatómicas. Desinvolver-se-hia, por essa forma,o gosto pelos estudos sérios e applicados, ainda tão pouco pronunciado entre nós. Não se deva tomar este programma como utopia; já dispomos de elementos que nos garantem a exequibili- dade de medidas uteis,como as que propomos. Não temos o espirito de novidade, nem a pretenção de reformador, mas julgamo-nos com o direito de advogar os interesses de uma sciencia, ainda tão pouco e indifferentemente cultivada entre nós. 119 A creação de escholas de pharmacia, distinctas, des- ligadas das faculdades de Medicina, eis mais uma reforma de máximo alcance, que ainda não foi, que o saibamos, discutida. A maneira associada por que é, no Brazil, ministrada a instrucção medica e pharmaceutica,em um mesmo estabe- lecimento pelos mesmos professores,se verdade, ao bom exito de um e outro destes ensinos. Si até certo poncto os conhecimentos pbarmaceuticos, particularmente os theoricos, são exactamente aquelles que devem de obter também os médicos, não havendo, pois, inconveniente sejam simultaneamente apprehen- didos, o mesmo não succede, por certo, em relação a outras noções theoricas e sobretudo de ordem practica, as quaes, melhor emais apuradamente do que o medico, devem de possuir os pharmaceuticos. E tanto é isso verdade que os paizes, pelos quaes deve- mos modelar-nos, julgaram acertado descriminar o ensino da pharmacia do da medicina propriamente dieta. Essa practica tem produzido os mais salutares resul- tados, não só quanto aos conhecimentos adquiridos pelos pharmaceuticos assim constituídos, como ainda pela autonomia que emprestou-lhes, garantindo-lhes uma posi- ção scientifica de ordem superior. Finalmente, a conces- são de um gráu scientifico para os que pretenderem obtêl-o 120 foi mais um incentivo creado para elevar essa classe ao nivei das demais, tão nobres como ella 1. Digamos com sinceridade a verdade : o pharmaceutico que se desliga das nossas faculdades de medicina, com os conhecimentos de sua profissão, fornecidos exclusivamente pelas mesmas faculdades, não se acha, por certo, apto a exercer com consciência e proveito o seu mister; elle deve necessariamente de reconhecer-se desprovido de todos os recursos practicos pelo menos, sem os quaes é impossível o exercício de tal arte. Desde o momento em que entra em acção, vê se com magoa desfalcado daquel- jes princípios mais comesinhos, que elle encontra vulga- risados pelo menos hábeis practicantes de pharmacia. E um leigo, muitas vezes um ignorante, vai constituir- se o seu assessor, ministrando-lhe, com decidido vexame para elle, os mais simples elementos da preparação dos medicamentos. Elles não são, em verdade, responsáveis por essa tão grave lacuna, que embaraça-lhes seriamente os primeiros 1 Ha muitos annos, o decano dos pliarmaceuticos brazileiros, o ve- nerando Ezequiel Corrêa dos Sanctos, levado do amor que consagrava a esta arte que sempre cultivou com tanto brilho e gloria para o seupaiz, organisou sabiamente as bases de um curso de pharmacia, precedido de outro de sciencias naturáes. Os resultados das lucubrações deste infatigável lidador scienlifico, como os de seus congenercs, foram totalmente olvidados e desattendidos pelos nossos patèrnáes governos. 121 passos do seu novo tirocínio; é delia origem capital o systêma actualmente adoptado. A pharmacia é uma sciencia que ainda não obteve, no Brazil, o seu lugar de honra, exercida por Gregos e Troyanos, por sábios e profanos, graduados e leigos, ella se ostenta com brilho aqui, para embaciar-se mais adiante na ignorância deplorável, na especulação condem- navel ! A grave responsabilidade que peza por sobre uma classe tão importante, essa indispensável companheira do medico, que o auxilia e completa em seus triumphos, essa grave responsabilidade, dizíamos, não é unifor- memente partilhada, como cumpria ser, por quantos se atiram á tão melindrosa quão espinhosa tarefa. Um máu pharmaceutico é mil vezes peior que um medico negligente e ruim ; não raras vezes á intelligencia e zêlo daquelle deve o medico a integridade de sua repu- tação, susceptivel de macular-se em um momento de desattenção. Sem a diligente e cuidosa cooperação do primeiro , nem sempre consegue este o desejado exito de seus exforços ; cumpre, pois, entrarem ambos com armas eguaes nessa lição humanitaria. Mas, não ó isso o que se realisa ainda hoje em nosso paiz, o que sobretudo pre- senceamos nesta sua capital. Abrindo margem para aquelles que nobilitam a classe, que prezam o titulo possuído, punge-nos dizer : vae defi- nhando a pharmacia neste paiz; somem-se os pharma- 122 ceuticos para surgirem os mercadores, desapparece a arte para vir a drogaria. Imbuídos de idéas puramente mercantis, pela maior parte, se resumem os nossos phar- maceuticos em importadores de drogas exóticas, muitas das quaes, sinão todas, são por sua vez o producto da espe- culação estrangeira, Assombra o interminável catalogo das inexgotaveis dro- gas, que enchem a quarta pagina das folhas medicas d’alem mar, como ainda daquellas mesmas da nossa imprensa diaria, quer seja commercial, política, noticiosa, litte- raria, quer humorística mesmo. Acoroçôados pelos lucros immediatos dessa nova pro- fissão, mui diversa da que cumpria exercessem, não mani- pulam mais ; a retorta, o alambique, o deslocador, o matraz, e outros petrechos, que formavam outr’ora o seu arsenal, foram repudiados, substituídos pelos perfu- mados pacotes, elegantes vidros, douradas caixas, que adornam graciosamente os mostradores, attrahem a con- currencia, e satisfazem os interesses. As côresdoarco iris ahi brilham em todos os seus matizes, confundindo-se quasi a pharmacia com uma loja de papeis pinctados ! Indagai si ensaiaram algum dos mil preparados, occultos em seus inseparáveis reclamos em todas as linguas vivas, e obtereis um negativo sorriso, que bem revela a impru- dência de tão descabida pergunta. Indagai ainda os mo- tivos porque não esquecem em suas prateleiras as menos 123 recommendaveis drogas dos menos conhecidos expor- tadores, e a resposta será, invariavelmente, que o publico as procura. Acreditáes, por ventura, que o publico se occupe alguma vez em reler, sem descanço, a ultima folha de quantos jornaes médicos nos vem de todas as partes do mundo? Certamente, occultam elles, nessaphrase sig- nificativa, o vicio deplorável em que incorre a maioria dos nossos médicos, disputando-se, com um açodamento pueril, a primazia na prescripção de algumas dessas pre- conisadas drogas, que pela primeira vez são annunciadas nessas folhas ou mesmo em outras de natureza diversa. Isto desperta a suspeita em muitos, que acreditam essa aparte scientifica de táes publicações a mais conhecida e lida pelos nossos practicos. Seremos o primeiro a defendel-os publicamente desse infundado juizo, mas não podemos, infelizmente, contestar a verdade dessa decidida paixão pelas drogas occultas. Indagai, finalmente, nessas pretendidas pharmacias das preciosidades da nossa matéria medica, dos productos da nossa flóra, e tereis, na grande maioria das vezes, a ex- pressão da mais supina ignorância, da mais condem- navel lacuna. Si os nossos pharmaceuticos, importadores de drogas, conhecessem de perto os fabricantes que as exportam, pela maior parte compungir-se-hiam da sua leviana creduli- dade, comprehendendo o ridículo, no qual incorrem os 124 médicos menos prevenidos que elles. Aconteceu nos muitas vezes, na Europa, parar sorprezo deante de uma racliitica e desprovida botica, despida até dos medica- mentos impostos pelo Codex, em cuja frente figurava o triste nome desses tão populares aqui, como um heróe de campanha, um poeta, um orador, um actor, etc., de universal reputação. Elles vivem muitas vezes de presente- ar-nos (a nós somente) com taes novidades de subido jaez ; por exemplo, com um famoso vinho de resolvida elficacia, onde foi a quina substituída pela genciana, ou esta pela canella, etc. Não queremos fazer a injustiça de crer : sejam todos os preparados oííicinaes extrangeiros o producto do charlatanismo ; importaria isso uma injuria a vultos que fazem honra a sciencia, um symptoma de requintada igno- rância dos inestimáveis productos, que são universalmente utilisados em proveito reál da humanidade; reputar, porém como taes quantos são expostos a venda, para explorar a credulidade do publico, é applaudir uma especulação re- provada, sinão mesmo um crime. Quizeramos vêr, pois, da parte de tantos dos nossos practicos menos decidido apoio a taes medicamentos oc- cultos, cujas maravilhas apenas conhecemos pela leitura dos rotulos. Nossas censuras, digamos ainda uma vez, não são aqui formuladas para offender a classe de que nos occupamos, 125 abrindo margem vasta a quantos respeitamos e julgamos acima dos nossos louvores, antes pelo contrario levamos o terminante intento da defeza dos seus créditos. A linguagem franca e nua da verdade não se compa- dece com o espirito de muitos, que julgam dever-se en- cobrir os viciospara deixal-os prosperar, entranhando cada vez mais suas ramificadas raizes. Não poderemos, por- tanto, satisfazer aos que assim pensam e muito menos áquelles com justiça feridos pelas nossas ponderações. Nossas humildes, porém fundadas reflexões, serão inevi- tavelmente contestadas por muitos, que taxal-as-hão de im- prudentes, si não julgal-as contrarias á verdade ! Tudo pode ser negado e por todos ; quem não sabe que o sabio Voltaire contestava fosse o polypo um animal, o coral fabricado por seres viventes, e outras verdades de formal evidencia! Uma consequência grave acarreta a maneira porque se encara hoje a pharmacia entre nós: que as manipulações raras e indispensáveis, que se resumem, em verdade, na simples associação dos medicamentos prescriptos pelo medico, e, que em linguagem vulgar, se diz aviar receitas? são ordinariamente executadas por practicantes, alheios a todos os princípios, quer theoricos, quer practicos, e peior ainda fora da inspecção obrigada do pharmaceutico. Dahi, toda a serie de perigos imagináveis, e dos quaes nos preserva tantas vezes a Providencia. O abandono, o 126 pouco interesse com que é exercida a arte, não pode passar desapercebido aos olhos de todos. Si pouco valor ligam estes em geral a sua verdadeira profissão, exhorbitam por outro lado não poucos, para invadir o terreno, no qual lhes é vedado penetrar. O exercício illegal da medicina é tão condemnavel em um pharmaceutico, como em outro qualquer homem leigo. E esse abuso torna-se inqualificável, quando é commeltido por aquelles, que de pharmaceutico só têm a practica. Não é raro nós médicos sermos testemunhas de consul- tas prodigalisadas de um mostrador de pharmacia áquelles que, abysmados na mais crédula ignorância, abandonam o medico por um caixeiro de botica! Ainda hoje presenceamos, no Brazil, a falta entre os pharmaceuticos, de uma instrucção conveniente das scien- cias naturaes, de sérios conhecimentos de chimica, sobre- tudo de chimica organica, constituindo-se essa lacuna um obstáculo poderoso, que não permitte um passo de progres- so para a pharmacia brazileira. Mui raros são aquelles a quem se pode confiar uma analyse medicamentosa ou chimica, muito poucos são os que conhecem sobejamente a matéria medica geral e muito menos a brazileira, rarissimos ainda são herboristas. Tud° procede, porem, do ensino irregular e pouco apurado que recebem nas faculdades, onde se preparam. Essa segunda parte da sua verdadeira instrucção devera de ser precedida 127 de solidos e completos estudos humanitários. Em regra geral, os preparatórios para os cursos de pharmacia não são conscienciosamente adquiridos, e mais tarde a carên- cia de taes conhecimentos primordiaes nullifica grande- mente os resultados dos estudos universitários. É tempo de levantar-se, no Brazil, uma classe, hoje tão considerada e respeitada nos paizes do Yelho Mundo, emprestando-se-lhe elementos de vida, de verdadeiro pro- gresso a autonomia, promovendo-se a continuação dos triumphos alcançados, em outros tempos, pelos José Caetano, Ezequiel, Estevão de Magalhães, etc., e hoje conquistados por um numero tão reduzido. Tenhamos os nossos laboratorios, os nossos preparados, os nossos medicamentos, productos legítimos da nossa terra; sejam os pharmaceuticos brazileiros profissionaes no ramo que abraçaram, verdadeiros homens scientificos, dignos de tal titulo. Fazemos votos por vêl-os restituídos todos á elevada posição que lhes compete, circumscriptos á missão a que se impõem. Não são muito raros os casos de um boticário convi- dar o medico, para auxilial-o em uma manobra chirurgica. Um medico, não sabemos si nacional ou estrangeiro, traçando o estado da medicina no Brazil, em 184-7, assim se exprimia, em um folhetim, transcripto na Gazeta Me- dica de Pariz, de 20 de Março d’aquelle anno, acerca dos 128 plmrmaceuticos, julgados por elle um dos mais fortes con- currentes do medico : cc Les pharmaciens, maniant des remèdes, se croient naturellement la Science infuse pour les appliquer, et cette croyance est partagóe par la grande majorité de leurs clients. Ils traitent quelquefois les malades à domicile; mais le plus souvent ils n’ont pas besoin de les visiter- « Yoici comment se passent les choses : un malade et un pharmacien étant donnés, un tiers va exposer au phar- macien 1’élat du patient et sur cette simple relation l’apo- tliicaire prescrit pour le moins un purgatif. Cette prescrip- tion est faite avec une assurance qu’on ne retrouverait pas chez un professeur de clinique quand, au litde ses malades, après avoir appliqué à 1’interrogatoire, à 1’examen et à la déduction du diagnostic, toute 1’habilité de 1’esprit et des sens, toute la logique du savoir et de 1’expérience, il en vient à la question tbérapeulique. J1 est vrai que la for- mule du boticário varie fort peu, c’est toujours un purga- tif. Ces prescriptions se renouvellent tant que le mal et le malade persistent; quant au boticário, il persiste tou- jours. » Na verdade mui pouco se ha modificado, de 1847 até hoje a norma adoptada no exercício da arte pharmaceu- tica, e pondo sempre de parte aquelles que comprehendem a sua profissão, é precisamente o quadro acima traçado o que temos presentemente sob nossas vistas. 129 0 meio susceptivel de elevar, pois, a pharmacia, de crear pharmaceuticos sufficientemente instruídos, dignos de tão nobre mister, é a instituição de uma escliola de pharmacia, nas cidades onde já existem estabelecidos cur- sos pharmaceuticos annexos ás faculdades. Em França, exige-se para a matricula nas escholas su- periores de pharmacia o diploma de bacharel em sciencias; entre nós onde o unico estabelecimento official de lettras, o Collegio de Pedro II, não é frequentado por quantos aspi- ram os cursos superiores, hem poder se-hia exigir maior somma de preparatórios para tal matricula, tornando se effectivo o conhecimento preciso das matérias que os constituem. Nessas escholas, novamente creadas, seja conferido, alem do simples titulo de pharmaceutico, o gráu de doctor em pharmacia, depois de defendida uma these, escripta sobre qualquer dos ramos da mesma sciencia, escolhido pelo candidato, com assentimento do congresso escholar. As matérias professadas devem de ser as seguintes: Physica; Chimica mineral; Chimica organica; Pharmacia chimica; Pharmacia galenica; Toxicologia; Historia natu- ral das drogas simples; Zoologia; Botanica e Ilerhorisa. ção; Matéria medica brazileira; Therapeutica; Exercícios chimicos e pharmaceuticos ; as quaes podem ser distribuí- das em quatro annos, pela seguinte fórma: 130 1 0 anno Physica, Chimica mineral, Zoologia. 2o anno Chimica inorgânica, Botanica e herborisação, historia natural das drogas simples. 3 0 anno Therapeutica, Pharmacia chimica, Pharmacia galenica. Toxicologia, Matéria medica brazileira, Exercícios chi- micos e pharmaceuticos. Alem dos professores titulares, incumbidos de regencia de cada uma destas cadeiras, e dos respectivos opposito- res, cumpre sejam as mesmas escholas providas de pre- paradores habilitados dos differentes cursos. Crèados devem ainda de ser annexos ás mesmas : laboratorios e gabinetes necessários aos trabalhos practicos. O ultimo anno do curso e o que se seguir, uma vez rea- lisados os exames finaes deste, serão destinados a prac- tica, que poderá ser adquirida em uma pharmacia qual- quer de cujo chefe obtenham um certificado de seus exercícios, ou na de um hospital civil ou militar, onde serão admittidos a titulo de internos ou externos, como succede com os estudantes de medicina. 4o anno 131 Terminado o ultimo anno de practica e portanto o curso de cinco annos, será conferido o diploma de pharmaceu- tico aquelles que hajam sido julgados habilitados em todas as matérias delle; ficando ao arbitrio de pharmaceulico graduado a defesa de uma these para a obtenção do titulo de doctor. As escbolas pharmaceuticas organisadas segundo dei- xamos indicado estarão no caso de derramar uma solida e completa instrucção aos alumnos, que delles se apartarão com elementos de sobra para o fiel e satisfactorio desem- penho de sua elevada missão. Taes são as bases em que desejariamos vêr firmadas as futuras escholas desta natureza, as quaes se nos affiguram de indeclinável necessidade em nosso paiz, onde o nu- mero de pharmaceuticos habilitados se mostra dispropor- cional com a extensão de seu terretorio habitado, particu- larmente o seu interior, desprovido dos recursos de medi- cina e peior ainda dos elemento de therapeutica. A pbarmacia, já muitas vezes o dissemos, possue não poucos representantes de notável merecimento, de instruc- ção aprofundada por incessantes labores, que serião com decidido proveito e publico louvor imitados por quantos abraçam tão digna profissão. A confissão plena dos vicios que a desvirtuam ainda hoje não importa da nossa parte malévola intenção de deprimil-a; ao inverso, considerando-a como poucos, 132 levamos o firme proposito de advogar os seus interesses, promovendo justos meios de realçal-a tornando-a essen- cialmente scientifica. Reorganisação de ensino da arte de parto para as parteiras Em uma carta publicada na cidade de Philadelphia (Es- tados Unidos) em 1842 e transcripta no seguinte anno na Gazeta Medica dePariz, sobre o estado da medicina no Brazil, referindo-se ás parteiras, assim se exprimia o dr. Pleasaretseu autor e neste paizresidente: « La practique des accouchements est si généralement entre les mains defemmes sans ancune instruclion qu’un médecin peut se livrer pendant plusieurs années de suite â une pratique très-étendue sans ètre appelé pour un seu! cas d’accouchements parmi les femmes du pays. « En effet, on n’a recours à lui que dans les cas ex - íraordinaires, il est admit généralement, d’après les faits, qu’il serait difficile de nier, que les femmes brésiliennes souffrent beaucoup moins pendant le travail que les fem- mes américainnes; cependant le grand nombre de ma- ladies de matrice qu’on observe chez les femmes mariées ne permet pas de méconnaitre qu’elles gagneraient beau- caup si elles appelaient plus fréquemment 1’homme de 133 l’art pour les cas qui concernent cette branche spécial de sa profession » Si a arte de partos é hoje exercida por algumas parteiras distinctas, que honram sobremodo a sua classe, e que assaz se recommendam pela sua reconhecida ins- trucção practica, entre as quaes sobresae o vulto proemi- nente de uma Mme Durocher, cuja pericia e illustração tornaram-se proverbiaes entre nós, não é menos pa- tente — a cohorte de mulheres desprovidas da mais rudi- mentaria instrucção, pela maior parte analphabetas, que são invocadas, com uma inabalavel confiança, por grande parte da nossa população, particularmente das classes menos abastadas, de preferencia á um medico, a prestarem serviços relativos á profissão de que tractamos. Os mais indescriptiveis disparates são por ellas practica- dos, com a mais ingénua boa fé, embuidas dos mais ve- tustos preconceitos e firmadas na ignorância a mais ab- surda possivel. Estas mulheres, outr’ora conhecidas pelo titulo de—comadres—, e que o publico mais sensato de- nominou de — aparadeiras —, são hoje consideradas par- teiras profissionaes e nesta conta são tidas por aquelles que as antepõem a um parteiro titulado! Isto que se obser- va na capital do Império, adquire fóra delia proporções 1 Carta transcripta do mez de julho de 184i do American Journal of the medicai Sciences. 134 desmedidas, convertendo-se, em muitos ponctos, em uma verdadeira calamidade! Os nossos parteiros que attcstem as catastrophes a que são quotidianamente chamados a reparar; acreditando nós, com o o dr. Pleasart, serem delias mais preservadas as nossas compatriotas pela providencial felicidade que as assiste em tão perigosos trances. A ultima parte do citado trecho deste ultimo medico ainda procede hoje: notorio é que não poucos practicos, aliás muito hábeis, atravessam enormes phases da sua vida profissional, sem haver assistido a um parto natural, e os parteiros propriamente dictos, especialistas, são os primeiros entre nós . a declarar redusido o numero dos que os procuram para este mister, sendo ordinariamente invocados para os casos extremos, nas condições as menos lisongeiras. E hoje que possuímos felizmente parteiros tão hábeis, embora em numero pouco avultado, altamente reparavel se mostra tão condemnavel aversão aos proíissionaes, por- tanto os mais dignos de confiança em similhantes situações. Fazendo abstracção de algumas parteiras distinctas, co- mo acima nomeamos, não é possível occultar-se uma ver- dade: que a pluralidade das que se apresentam com titulos taes possuem deficientissimos recursos de instrucçâo pro- fissional, si não são ainda menos versadas em matéria de instrucçâo primaria. 135 Si a nossa população feminina não se dispõe a abraçar o systêma usado na Inglaterra, onde tal profissão é, segun- do cremos, mesmo desconhecida, sendo as senhoras assis- tidas irremediavelmente pelos médicos e parteiros-, trae- temos, ao menos, de regularisar o ensino desta arte pro- digalisado ás mulheres qne a ella se propuzerem. Antes de tudo, seja o governo mais rigoroso na exi- gência dos preparatórios requeridos para a matricula nesse curso, tornando obrigatorios os exames de portuguez, francez e arithmetica pelo menos. Alem do curso de partos propriamente dicto, hajam de estudar as candidatas algumas noções geraes de thera- peutica e a anatomia da bacia e dos orgãos da reproduc- ção, sobmettendo-se ãs dissecções necessárias. Os simples conhecimentos theoricos, adquiridos nos cursos oraes, não poderão tornal-as aptas ao exercício legitimo da sua profis- são ; é de indeclinável necessidade a instituição de exercícios practicos, que poderão ser feitos nos serviços de clinica de partos annexa á faculdade (uma vez creados, como será para esperar), em hospitaes, casas de saude ou mater- nidades, das quaes obterão um certificado de frequência e applicação. Estes conhecimentos practicos não podem ser adquiridos em menos de dous annos, a partir do segundo do respec- tivo curso. Em tres annos, pois, conviria resumir-se todo o curso de que tractamos. 136 Assim habilitadas practicamente, as parteiras formadas pelas nossas escholas, ficarião as nossas compatriotas a cobertas dos sérios e graves riscos, aos quaes as expõem os limitados conhecimentos que possue o já reduzido nume- ro dessas ncão comprehendidas entre as poucas nomeadas, como illustradas e peritas em tal ramo. 137 VI Não poderíamos terminar as ligeiras considerações que acabamos de esboçar, em relação ás reformas julgadas uteis ao melhoramento do ensino no Brazil, sem proceder li- geiramente a uma analyse sobre a maneira porque são preenchidas, na eschola medica de Rio de Janeiro, as di- versas disciplinas nella leccionadas. Outro tanto não po- demos fazer, em relação á eschola bahiana. Passaremos, assim, em revista e de um modo rápido ás diversas cadei ras pertencentes á primeira. h Physica em geral e parlicularmenlé em suas applicações á medicina. A primeira objecção que deveria de cahir da penna, ao entrarmos na analyse desta cadeira, outra não poderia ser sinão a da carência de instrumental adequado e completo. Estamos, assim como todos, de pleno accordo que, sem este auxilio, nada se poderá fazer em prol de um ensino me~ thodico e regular. 138 Não é por ahi, pois, que devem de correr as nossas cen- suras ou applausos: o que julgamos digno de reparo é a lacuna aberta, lia tantos annos, no ensino d’esta sciencia, relativamente ao estudo do certas applicações medicas da physica. A exposição singela dos elementos desta sciencia satisfaria apenas a primeira parte do programma official, cujo a segunda tem particularmente em vista as applicações daquella á medicina. Não contestamos seja a primeira parte proficientem nte exhibida aos alumnos do primeiro anno de curso medico; mas estamos certo de que os ver- dadeiros fins do legislador não se realisam em sua pleni- tude, deixando de ser esses últimos instruídos nas appli- cações variadas da physica á medicina. São quasi total- mente olvidadas, de facto, as variadas e interessantes applicações physiologicas e therapeuticas, como ainda o desinvolvimenlo de grande numero de questões de capital importância para a comprehensão dos plienomenos biolo- gicos. « Dans nosjours, d’z Wundt, la physique ne constitue pas seulement 1’indispensable préliminaire d’une étude approfondie de la physiologie; elle a reçu, en outre, dans la médicine practique une foule d’applications des plus fécondes, dont le nombre augmente encore sans cesse. « Tout 1’ensemble du diagnostic et de la thérapeutique phvsiques, dont la création est presque entièrement l’ceu- vre de la génération actuelle, repose d’une part sur la 139 €onn;iissance de phénomènes du ressort de } hysique, de 1’autre sur 1’emploi des ressources que celte Science met à notre disposilion. C’est à cet essor que la physique mè- dicale doit de s’ètre élevée au rang de nouvelle branclie des Sciences appliquées ‘. » Não queremos dizer com isto se deva de desprezar as noções de physica pura nos cursos das faculdades e con- sagrar-se todo o tempo ás suas applicações á medicina, mas acreditamos de transcendente alcance para o medico os conhecimentos physicos especiaes ássuas necessidades. Uma vez enunciadas as leis geraes da physica, seria de maxima utilidade, sinão de rigoroso dever, entrar no estudo das questões que se referem mais de perto á pliy- siologia e á medicina. Quem, tomando um compendio de physica pura, como é o de Ganot, adoptado nos cursos das nossas faculdades, o seguisse ou reproduzisse de principio a íim, não teria preenchido por certo o programma dictado pelo regula- mento escholar, não teria certamente feito um curso de physica medica. Este curso, muito completo e adequado á uma academia de sciencias, á uma eschola de engenharia, seria, entretanto, defeituoso em uma eschola de medicina. Muito proveitoso ás primeiras, seria elle supérfluo á esta 1 Wundt.-- Traitc élémentaire de physique médícale, trad. du dr. Ferd. Monover. Paris 1871. 140 ultima; ministrando aos médicos noções de que mão ca- recem e roubando-lhes ao mesmo tempo o conhecimento de questões mais interessantes e mesmo indispensáveis em relação ás numerosas applicações daquella sciencia. Aquelles ponctos, que são expostos abreviadamente e de mui pouca valia para o physico profissional como para o nakT ralista, tornão-se notavelmente deficientes para o medico, que nelles enxerga precisamente as fontes de onde devem de brotar os recursos indispensáveis aos seus estudos. Portanto, somos de parecer que um professor desta sciencia, em uma faculdade de medicina, deixe de parte ou se occupe perfunctoriamente de todas as questões que não firam as applicações da medicina ou contribuam á intelligencia dos phenomenos biologicos. Estas ideias parecem partilhadas por um dos mais dis- tinctos e novéis oppositores actuaes daeschola de medicina, o sr. dr. João Martins Teixeira, nosso amigo e condiscípulo, que delias revelou-se partidário em suas duas e excellen- les theses de concurso para uma cadeira de oppositor, versando ambas sobre importantes assumptos do dominio daphysica, — o calorico e a audição; onde mostrou-se possuidor de solidos conhecimentos deste ramo de sua predilecção. Sem querer traçar um programma do curso de physica medica, que excederia os limites das nossas rapidas con- siderações, não podemos furtar-nos ao desejo de esboçar 141 algumas das mais palpitantes questões, que não são devi- damente explanadas ou são inteiramente olvidadas nos cursos das nossas faculdades de medicina. Entre outras merecem ser aponctadas as seguintes : As curiosas applicações da hydrodynamica á circulação do sangue; a demonstração dos apparelhos destinados a medir a tensão do sangue; dictos empregados para medir a velocidade da corrente sanguinea. O mechanismo dasfuncçõeseordiacas;as leis hydraulicas que presidem ao funccionalismo deste orgão. As leis physicas que regulam a circulação do sangue; explicação do phenomeno do pulso. Dos instrumentos conhecidos para reproduzir os characteres dos batimentos cordiacos e arteriaes: sphygmographo e cardiographo. Das considerações meteorológicas que influem sobre a saude e o desinvolvimenlo das moléstias; effeitos da pres- são atmospherica sobre a economia. As interessantes e debatidas questões da influencia da ozona sobre a producção das epidemias; da ozonometria. As importantes applicações da acústica aos methodos de exploração clinica; as da luz á ophthalmologia e á micros- copia. O conhecimento e manejo do ophthalmoscopio e do microscopio, ambos de indeclinável importância para o medico. Quanto ao primeiro, acreditamos com um dos mais preclaros professores, creador do cerebroscopia, Bouchut, ser esse instrumento tão util e necessário ao 142 medico em geral, corno ao oculista em particular 0 mesmo acontece com o endoscopio, tão pouco conhecido no Brazil. As leis da polarisaçâo applicadas á saccharinietria, um dos mais seguros elementos de analyse das urinas dos dia- béticos. As infinitas applicações medicas do calor e do frio á physiologia, cá clinica, á tlierapeutica e á hygiene. Outras tantas da electricidade; os effeitos da electrolyse e do galvano-caustico chimico, introduzidos ultimamente na therapeutica chirurgica. Algumas noções, em summa, do que se entende por electricidade medica. O estudo das questões relativas ás nossas condições meteorológicas; da influencia da electricidade atmosphe- rica, etc, sobre a nossa economia. Estes estudos, iniciados pelo sabio professor Taula Cândido, foram f ara sempre esquecidos, depois de sua morte, attestando o vacuo immenso, deixado por esse vulto venerando. Muitas outras questões são esquecidas no curso de que tractamos, as quaes seria longo declinar neste escripto, e que cumpria serem desinvolvidas para completo estudo dessa sciencia. Uma das maiores difliculdades do professorado 6 o saber tractar das questões, expondo em um tempo dado, e por vezes restricto, tudo' quanto de util e interessante á ellas 143 se prende, expurgando-as ao mesmo tempo das minuden- cias eincidentes dispensáveis e menos aproveitáveis. Este raro dote se faz, mais que em outra qualquer parte, ne- cessário entre nos, onde em falta da liberdade de ensino, e portanto de cursos livres e supplementares, são os pro- fessores officiaes os únicos oráculos, dos quaes recebe a mocidade toda sciencia. Forçoso se torna então sejam os cursos completos, e, portanto, enunciados os assumptos capitaes, sem exclusão daquelles de que não podem pres- cindir os futuros médicos. Neste caso estam as questões practicas de physica que enumeramos, e que são olvidadas em proveito de outras de muito menor interesse e utili- dade. Esta é uma das razões pelas quaes o livro adoptado pelas faculdades como compendio deveria de ser não o Tractado de Ganot, mas o de Wundt, professor de Heidel- berg, já citado, o qual se mostra superior a quantos exis- tem para a execução do programma assim concebido. Chimva e Mineralogia Nesta cadeira teremos unicamente de referir-nos á chi- mica, pois raramente delia se falia de minerologia ; sendo isso devido, como confessa o professor respecfivo, á falta de tempo. Ninguém pode contestar seja esta falta real: é mesmo mais uma prova de que tal matéria cumpriria 144 ser familiar aos aluirmos, antes da matricula nos cursos médicos, como succede na Europa, não só com esta mas com as demais que se resumem sob o titulo de sciencias naturaes. Dahi vem, ainda, porque os bacharéis do collegio de Pedro Segundo, aosquaes se deveria de dispensar o estudo de certas matérias accessorias, matriculam-se nas Escho- las de medicina, sabendo mais minerologia do que quando de lá saem. A chimica, quando não deleita ao mesmo tempo que instrue, converte-se na matéria mais soporifera e repug- nante, estudada neste mundo; é absolutamente im- possível conhecel-a, quando não se é attrahido a ella pelas agradaveis atenuantes que a tornam deleitavel e portanto util. Reduzil-a a uma serie de leis sotopostas umas ás outras, cada qual mais confusa, sem a parte amusante, como chamam os francezes, é tornai a monotona e incom- prehensivel. Chimica decorada significa, pois, chimica es- quecida. Infelizmente, é o que succede precisamente entre nós ; sendo, na verdade, este ramo um dos mais ignorados pelos médicos brazileiros. Uma das condições fataes desse ensino defeituoso é a carência de um gabinete montado de maneira a poder prestar-se ao estudo franco e livre daquelles que procurassem adquirir conhecimentos mais solidos desta sciencia accessoria. Nem todos pretendem ser chimicos, mas nenhum medico póde desprezar certas 145 noções basicas desta matéria, sem as quaes ficarão incom- prehensiveis muitas questões que tiver de resolver em sua futura vida practica. Portanto, não pode ser de modo algum justificável a ne- gligencia absoluta deste estudo. Um curso supplementar, essencialmente practico, eis uma outra circumstaneia, que concorreria, uma vez existente, a despertar mais in- teresse por essa matéria, menos ardua e ingrata do que parece á primeira vista. Nós estamos convicto de que, si tôsse o respectivo professor menos minuciso acerca de certos ponctos, que se não gravam na memória, e se encar- regasse de fazer algumas applicações á medicina practica destas ciência, encontraria da parte de seus dicipulos mais interesse em ouvil-o. Sobram-lhe para isso profundos co- nhecimentos da matéria e um zèlo pouco vulgar no cum primento dos seus deveres do magistério. Faltam lhe, todavia, preparadores habilitados e interes- sados ; auxilio sem o qual impossível é expender se uma lição proveitosa de chimica. O compendio adoptado, podemos dizel-o com inteira satisfação, é da lavra do mesmo professor; este livro se acha, na opinião dos entendidos, escripto com methodo e critério, mas pecca pelo vicio innato aos brazileiros, pela ausência de cunho nacional, falta essa que se mostra mais sensível no poncto em que se occupa das aguas mineraes, deixando no esquecimento os importantes trabalhos que 146 já possuímos sobre muitas das nossas aguas mineráes, submettidas á repetidas analyses. Estas questões, tão agitadas na Europa, nos differentes paizes que se disputam a primasia das aguas mineráes e thermáes, são totalmente menospresadas aqui, em um paiz, cujas fontes, si não são superiores, rivalisam por certo com as mais afamadas de todos os paizes do velho Mundo. Mais vivacidade, concisão, nacionalidade e applicações medicas, tornariam, em resumo, o estudo da chimica mais profícuo, no Bio de Janeiro, do que o é actualmente". Auai mi í de* ri, lie i A meneira defeituosa e improfícua porque é, no Brazil ensinada a anatomia descriptiva já ficou, em grande parte, averiguada neste acanhado escripto. Condições de muitas ordens se mostram neccessarias para o bom e util desempenho desta cadeira, tida hoje como uma das mais solidas alavancas de todos os estudos médicos. O medico leigo em anatomia grosseira é indigno desse titulo, porque se revela incapaz de bem realisar a elevada missão que lhe é confiada’, o medico que não co- nhece as mais brilhantes paginas desse hymno en oado ao Creado ', não poderá partilhar das magoas e das doçuras 147 desse sublime apostolado ! Uma barreira invencível cir- cumscrevel-o-ha a uma triste mediocridade, expondo-o ao menospreço publico. Não extranhaiemos que alguém sorria zombando, dirá elle, das nossas declamações, não será para admirar sejam repellidas, como inconvenientes, estas pretendidas explosões de enthasiasmo. Bem sabemos que somente as cans imperam autoridade e crença neste paiz tão jovem, mas não hesitaremos também em afíirmar que a velhice nos tem legado um mau exemplo, um exemplo pernicioso que tem sido a causa primordial de nosso atraso seienti- fico; este exemplo tem sido : o vacuo, a indiflerença eo egoismo ! Conte-se um por um tod s os vultos que illustraram, p)r seu saber e por sua practica a medicina brazileira, re- volva-se as cinzas desses benerreritos que nos legaram nomes tão honrosos e respeitáveis, e respondam nos o que nos resta hoje, além de sua fama, de sua memória, trans- mittida por tradicção ? Onde está esse livro, em que archi- varam tantas conquistas preciosas de suas lucubrações, tantas lições de saber, que seriam hoje o nosso alkorão? E digam-nos : este exemplo é sublime, esta practica é para abraçar-se? O que nos diz o futuro deites, hoje nosso presente, desta norma reprovada? Estas exjlosõjs de cnt!iniiamj, pois, têm seu lugar; são mais dignas de applauso do que o proceder daquelles 148 que, lançando ao desprezo a medicina, onde grangearam um nome distincto, atiram se, egoístas, ás mais extranhas especulações, abafando assim os generosos sentimentos que eram outr’ora a sua divisa ! Ainda, ha poucos dias, um enthusiastico íillio de Hyppocrates, pertencente á geração do presente, declarava publicamente, no seio de uma assembléa illustre, que as fontes, onde bebera os elemensos que davam matéria a sua conferencia sobre questões capitães da nossa hygiene publica, eram filhas dos mais novos apostolos desta humanitaria crusada. São os neophytos que começam a reconstruir esse edi- licio esboroado que encontraram abandonado em ruinas. E a esses missionários retribue-se com a indifferença ou peior ainda com a zombaria! A historia ha de, porém, vingal-os e a posteridade tributar homenagem a sua me- mória ! Voltando ao objecto do qual nos occupava-mos, diremos que o ensino da anatomia implora uma reforma radical e e radical sob todos os ponctos de vista: pessoal mais nu- meroso e habilitado, amphitheatros apropriados, instru- mental neccessario, injecções conservadoras, e regular destribuição do trabalho. O ensino não pode ser exclusivamente feito por um só professor e dando de barato que um só exista, deverá de 149 ser completado por eutros auxiliares, nomeados por um concurso. Podemos muito bem seguir o systema adoptado pela Eschola de Pariz, que, imparcialmente fallando, é uma das mais completas e aperfeiçoadas de toda a Europa. Nós podemos afíirmal-o, porque fômos discípulos dessa eschola e verificamos practicamente os resultados do sys- têma seguido. Organisados os amphitheatros reclamados pelo numero approximado dos que devem de frequental-os, seja um oppositor habilitado incumbido da sua direcção., sob o titulo de chefe dos trabalhos anatómicas. Este lugar costuma ser preenchido em Pariz por um professor agre- gado, porem nomeado por concurso. Este chefe dirige todos os trabalhos de investigação que a Eschola julga uteis aos progressos da arte de curar em geral; elle forma os prosectores na arte das preparações anatómicas; executa ou faz executar, sob suas vistas, pelos prosectores ou alumnos, preparações anatómicas naturáes, « para formar series tão completas, quanto possível, em cada um dos systêmas de orgãos. » Este mesmo chefe é ainda obrigado a fazer um curso de anatomia, de accordo com o professor cathedratico, curso eminentemente util, porque abvia as lacunas reciprocas. Cada um desses amphitheatros seja subdirigido por um prosector, embora extranho ao corpo docente, mas no- 150 meado também por concurso, eauxiliado por ajudantes de dissecção, tirados dentre os alumnos que melhores provas demonstrarem em um concurso. Tanto os prosectores, como seus ajudantes, serão in- cumbidos de velar pelas bôas condições de salubridade dos amphitheatros respectivos, e de repetir ainda as lições de anatomia e de medicina operatória professada dos titulares. Cada prosector e ajudante deve de ter á sua disposição um gabinete ou laboratorio distincto no qual poderá, mas somente fóra do tempo consagrado ás suas funcções, en- tregar-se a trabalhos pessoaes de pesquizas anatómicas- Dispostos e distribuídos assim os trabalhos anatómicos, poderão os alumnos tirar todo o proveito possível do estudo desta matéria; poderão entregar-se demoradamente ás dissecções, sem grave prejuízo de sua saúde, e, in- jeclados convenientemente os cadaveres, preservados dos terríveis accidenles das picadas anatómicas. Actualmente o ensino é fastidioso, defeituoso, incom- pleto, quasi absolutamente theoríco, sendo apenas mal demonstradas, porque são mal dissecadas, as peças anato- micas. São perfunctoriamente tractados certos ponctos capitaes, como por exemplo: a angeiologia, a nevrologia, que ignoram pela maior parte quantos se formam nas nossas faculdades. Acreditamos que, além da osteologia, mui pouco se 151 aprende de anatomia no Brazil, pelo menos no Rio de Janeiro. E bem provável que peior aconteça na facul- dade da Bahia, cujo amphitheatro anatomico causa lastima, como todo o edifício da faculdade. Zoôlogia e Botanica Esta cadeira está em um periodo de transição no Rio ite Janeiro : nomeado delia professor um dos oppositores mais antigos da faculdade, revestiu-se este de coragem admiravel para arcar com os óbices que teria de en- contrar em seu novo tirocínio. 11a muitos annos que se leccionava zoologia e botanica na eschola de medicina do Rio de Janeiro e, entretanto, nem um simulacro de gabinete existia, onde fossem collec* cionadas algumas peças destinadas ás demonstrações practicas,um hervario, embryonario mesmo, onde se reco- lhessem exemplos vivos da nossa flora, afim de illustrar practicamente o ensino. Uma ou outra rara e pouco concorrida excursão era o unico recurso de que dispunha o fallecido professor Rocha Freire e antes delle Freire Allemão. Um horto botânico é cousa ainda desconhecida nas faculdades brazileiras. Pois bem, assumindo o difíicil encargo, que conquistou em um concurso publico, o recente professor desta matéria esme- 152 rilhou algum meio valorôso que conseguio do governo ser enviada para a eschola de medicina uma parte da collecção zoôlogica do Musêu nacional para servir de núcleo a um futuro gabinete zoôlogico ; e ao mesmo tempo, á solicitadas reclamações suas, mandou ainda o governo vir apparelhos destinados á conservação das plantas, que, recolhidas em avultado numero, deram origem ao gabinete botânico boje existente, mas ainda relativamente embryonario. Entretanto, taes dimensões offerece o recinto deste gabinete que, ainda em começo de sua organisação, assim se exprime a seu respeito o respectivo professor, dr. Ca- minhoá, no relatorio ou memória apresentada á faculdade no anno de 1873 pelo dr. V. Saboia : « Quanto ao gabinete de botanica, já está por tal modo repleto, que não tenho logar para mais cousa alguma. « Preciso com a maior urgência de um salão para o gabinete de botanica, e outro para o de zoologia, que também já está bastante augmentado. Consta-me que não é possível por ora ; e então esperarei até que Deus queira. » Diz ainda o professor que o hervario da faculdade está enriquecido com 360 bellas amostras, colhidas nas herbo- risações e preparadas pelos alumnos durante o anno lectivo. É uma obrigação imposta com justificável utilidade e 153 que muito applaudimos. Nem outro recurso poderia en_ contrar o mesmo professor para fundar um gabinete bo- tânico neste paiz, onde a instrucção apenas serve para rasgos de eloquência nos comícios públicos. Dous ou tres palacetes para justificarem as graças con- cedidas, eis em que se resume todo o ardor acrysolado pela diffusão das luzes neste condemnado torrão Diz o sr. dr. Caminhoáque se exforça por tornar o menos arida possível a matéria, não deixando de fazer applicações delia á medicina, á nossa therapeutica sobre- tudo. Assim deve de ser, e nesse intento instituio o governo a cadeira de botanica medica e não de pura botanica. A vastidão de nossa flora, as suas incommensuraveis riquezas, as innumeras plantas medicináes que possue dão margem larga a explorações grandiosas e lucrativas para a nossa matéria medica. Oxalá que o encorajado lidador não se afadigue antes de tocar a meta do seu roteiro-, que não torne alquebrado e descrente ás costumagens do passado ! Mais uma vez não podemos reprimir uma increpação ao systêma excêntrico, seguido pela governança de nossa terra. Estava o novel professor armado de feFvôr e cren- 1 São excepções, e muito dignas de nota, as Sociedades: Propaga- dora das Delias Artes, Auxiliadora da Industria Nacional, e Promo- tora da Instrucção Publica. 154 ças, acabava de abrir uma valvula de progresso em seu ensino, promettia ainda muito trabalhar, quando no meio de suas lucubrações é sorprehendido 1 por uma excên- trica com missão do governo, — de partir para a Europa como um dos nossos representantes na Exposição de Vienna, levando o encargo de estudar os differentes systémas de ambulância adoptados nos paizes europêos. É, na verdade, estupenda similhante violação de boa ordem e uniformidade do ensino. Apenas acabava de empossar-se de um cargo espi- nhoso, quando começava a acclimar-se em sua nova posi- ção, que tendia a operar reformas uteis em seu systêma de ensino, que parecia inaugurar uma era favoravel ao engrandecimento da botanica brazileira, é este funccio- nario bruscamente subtrahido dos seus nobres affazeres escholasticos para uma commissão totalmenle alheia ao circulo da sua especialidade. Mandar um professor de botanica estudar ambulancias, é o mesmo que confiar a um chirurgiio a côn- fecção de um hervario. É sempre a excentricidide extra-brilannica que trans- pira de maioria dos actos de nossos administradôres. 1 Si excluirmos a hypothese da sorpreza, mais digno é de censura aquelle professor que, sem motivo justificável, deixa ein meio tarefa mais util que a novamente abraçada. 155 Não esquecem pêas a tudo quanto propende para bom exilo ;. constituem- se verdadeiros baluartes, deante dos quaes se quebram as mais avançadas idéias, os mais espe- rançosos planos! Eterna condemnação, fatal aberração ! Chimica organica A velhice é precoce no Brazil, diz-se geralmente faltan- do, mas ninguém se lembra também de observar que pro- curam muitos envelhecer mais cedo que permitte a natu- reza. E, realmente, notoria a maneira prompta porque se exgotam os nossos homens públicos: aspiram as mais elevadas posições, quebram lanças por obtêl-as, conquis- tam-as; quando se acham de posse, quando ganharam uma experiencia no exercício de suas funcções, quando se collocam na posição de produzir fructos de suas lucu- brações, eis que a prematura velhice os sorprehende e sern detença descem de seu pedestal para repousar desde logo. E a metade da vida fica entregue ao repouso e, por- tanto, á inércia. Na carreira do magistério, isto é facto de observação ordinaria, si conveniências de certa ordem não os. prendem á cadeira, apenas attinguem o marco legal do professorado, protestam vivamente não lhes permittir mais trabalhos o pêzo dos annos. Que isto se effectue na 156 Europa, onde o accesso é difficil, onde essas posições não se atlingem na flôr da juventude, é acceitavel, justificável; mas entre nós, onde se estreia na cadeira do professorado, quando apenas se balbucia as primeiras syllabas dessa sciencia tão vasta, é cousa por demais reparavel. Dahi resulta, renunciarem tão solemnes deveres muitos que apenas tocaram o periodo medio da vida. Ainda cheios de força, de vigôr, provisionados da seiva da experiencia e da reflexão, vão recolher-se ao silencio, precisamente quando mais podiam produzir em vantagem da sciencia que cultivavam. Tal é ainda um dos motivos pelos quaes se apartam de nós tantos vultos de celebrada sciencia, sem legar nos um vestigio de sua afanosa peregrinação sobre a terra. A cadeira de chimica organica foi não ha muitos annos ereada; era uma sciencia desconhecida no Brazil e nin- guém se achava habilitado a regêl-a. Surgiu então o expediente ao governo de enviar um dos membros do côrpo docente a Europa, para estudar esta nova matéria, afim de inaugural-a no Rio de Janeiro. A escolha recahiu sobre o sr. dr. Francisco Bonifácio de Abreu, que, já se achando na Europa, facil foi incumbir- se desta missão. De volta de sua commissão, inaugurou o referido pro- fessor com immensa acceitação o seu curso, que entrou a 157 ser visivelmente concorrido pelos alumnos da faculdade. Entretanto, não escapou este distincto membro do con- gresso docente de ser desviado frequentemente da sua brilhante tarefa; nomeado, breve, medico da imperial camara, começou a faculdade a ser repetidamente priva- da dos interessantes lições de chimica organica; ninguém se achava apto a substituil-o, era portanto irreparável a lacuna. Essas frequentes ausências foram mais tarde suc- cedidas de outra interrupção mais demorada, sendo o professor invocado a fazer parte da comitiva imperial, durante a viagem ao norte do Império. Foi um vacuo aberto ao ensino regular, com grave offensa do estudo desta sciencia. Quando voltava de novo aos seus anti- gos misteres e parecia dedicar-se ao cultivo tranquillo da sua cadeira, eis que rompe a guerra do Paraguay, e, entre as cohortes humanitarias que accudiram ao appello dos brios nacionaes offendidos, lá se foi pela ultima vez o professor Bonifácio de Abreu, para não mais tornar á eschola. O popular e estimado professor Bonifácio voltou convertido no Barão da Villa da Barra, deixando com sua ausência um vasio, que ainda não foi preenchido. Eis, em resumo, a historia da chimica organica no Rio de Janeiro. Aquelles poucos que tiveram a felicidade de ou- vil-o, estamos certo, muito aproveitaram; mas esses pre- vilegiados não foram muitos. Dispondo assim, a faculdade uma columna valente para o sustentáculo das suas glorias, 158 para logo esvaeceu-se ella, quando tanto promettia por seu valor. Ainda repleto de seiva, vigoroso e activo, condemnou- se tão cedo á esterilidade scientifica, furtando-se ás pingues messes, que delle esperavam os coetâneos. As seducções politicas tudo esmagam neste paiz; essa rêde traiçoeira que tudo emmaranha e prende entre suas malhas; esse abysmo vertiginoso ao qual se arrojam atur- didos os mais intrépidos. Elle também roubou mais um vulto a sciencia, mais um apostolo á charidade! Physiologia Pouco temos de acrescentar ao que já foi dicto acerca desta cadeira : a mera exposição de factos e doctrinas sem uma critica autorisada por variados conhecimentos médi- cos, por uma solida illustração destas matérias tornam improfícuas as lições theoricas. A palavra facil, a dicção fluente e clara a variedade de imagens, a vivacidade de expressões, erudição variada e profunda, solidas bases da medicina em geral, taes são os requisitos indispensáveis á um verdadeiro professor de physiologia. É preciso consu- mir uma boa parte da existência nesse atarefado labutar, nessas infindas lucubrações, para poder-se, algum dia, 159 ser ouvido em matérias de tal quilate. A parte experimen- tal exige ainda noções especiaes, que ninguém tem apren- dido no Br izil; e, portanto, quem não tiver ido beber nas fontes europeas conhecimentos desta ordem, nunca estará apto a assumir um papel tão difficil, sem se expôr a um revez. Os professores de sciencias experimentaes não po- dem ser sinão professores; si Claude Bernard, BrownSe- quard tomassem da penna de jornalistas, ou subissem á tribuna do parlamento, veriam, dentro em pouco, eclyp- sado o brilho de seus nomes, embaciadas as conquistas dos seus talentos. E elles já grangearam um renome uni- versal ! O encyclopedismo que nos devora, tem crestado todas as sombras de prosperidade que nos restavam, e hoje mui pouco só pode esperar da physiologia no Brazil. Ninguém se dispõe entre nós, a cercear certas ambições mundanas em favor da applicação exclusiva de suas forças intelligentes a uma sciencia experimental tão intrincada, submettendo-se, perseverante, ás não interompidas de- cepções que delia brotam. É tarefa que muitos pezam? para recuar sem forças de leval-a ao cabo. É empreza que demanda, para sua íiel execcução, uma vocação decidida, um desmarcado amòr ao trabalho. Sem um exordio de provanças, nunca se attingirá á peroração desse discurso juncado de peripécias. Assumir de improviso o papel de plr siologista é uma temeridade, a que ninguém se deva de 160 arriscar, si se arreceia do resultado. A physiologia que, na opinião do professor actual, « tem crescido de um modo assombrôso nestes últimos annos com a creação da chimica organica e da histologia, com os progressos da physica e da anatomia, com as conquistas do methodo experimental, com a observação esclarecida dos pheno- menos pathologicos» é, de facto, uma sciencia que « assoberba » a quem pretenda exploral-a perfunctoria- mente, sem um fundo de recursos, para vencer as barreiras do caminho. Actualmente, nada se poderá dizer acerca da maneira porque são dirigidos os estudos physiologicos em nossa faculdade; atravessamos um periodo transitório, onde os factos não autorisam juizo algum. Ainda é cêdo para poder-se bem julgar dos methodos postos ena practica no ensino desta matéria. O auxilio que pretende o governo prestar ao ensino ex- perimental, mudará certamente, a face das cousas e os estudos physiologios tomárão melhor rumo. Sem este in- dispensável recurso, já está por demais demonstrado, ficarão até certo poncto estereis os bonsexforços do pro- fessor. Nesse oceano de óbices será bem facil naufragar-se, quando são tão excassos os elementos de salvação. Um professor de physiologia deveria de dispor de bons auxiliares que coôperassem á bôa realisação da parte experimental, 161 tarefa que de algum modo não lhe pode pertencer exclusi- vamente. Nas condições actuaes, por mais brilhantes que sejam os dotes que 0 distingam, ser-lhe-ha impossível «levar esse curso á altura dos seus intentos. Anatomia geral e pathologia Um sô professor, no curto período de alguns mezes, não pode satisfazer esta parte do programma oflicial. A subdivisão das duas cadeiras já foi, assim, proposta como o unico correctivo desse mal; e mais alguém já advogou com boas bases esta causa. Seria bem para desejar se correspondesse o profes- sor desta cadeira directamente com os das clinicas medica e chirurgica, correspondência que teria por fim a intervenção do primeiro 11a parte relativa ás aberturas cadavéricas, ficando-lhe 0 exclusivo direito de proceder aos exames que julgasse necessários, para proferir um juizo comprobativo ou não do diagnostico lavrado, durante a vida, pelos professores de clinica. Nenhuma fonte mais fecunda de instrucção practica, nenhum meio mais valente para imprimir á anatomia pathologica um progresso gigantesco no Brazil. Fossem os exames anatomopathologicos grupados á historia da moléstia, e da confrontação destes dados colheria a mo- 162 cidade e os médicos já feitos uma somma illimitada de solidos conhecimentos practicos. Seja reproduzido, ainda que mal, o systêma allemão, onde o escalpello de Roki- tansky, o microspio de Wirchow vão demonstrar á luz da evidencia os erros de um Traube, de um Frerichs, de um Liebreich, de um Langenbeck, de um Bamberger, de um Bucheck, de um Billroth, de uai Braun e tantos outros desta tempera! Fossem as autopsias dos doentes pertencentes á clinica medica effectuadas sob a inspecção directa do professor de anatomia pathologica, o qual procederia aos exames que julgasse de rigor para lavrar um juizo, determinando a causa real da morte, e ignorando até então a historia do doente. Este juizo transmitido ao professor de clinica ir-lhe hia corroborar ou reprovar o diagnostico promul- gado durante a vida do doente. Esta sentença final, proferida pelo escalpello e pelo microscopio, será um epilogo copioso, abundante de seria inslrucção clinica fornecida aos que procuram recebel-a. E a chave do verdadeiro progresso em medicina practica, sem a qual não poderemos adiantar um passo. A exacta execução deste programma reclama a existência de amphitheatros convenientes, de auxiliares proveitosos ao professor, sem o que permanecerá estaccionario e mais que modesto o ensino da anatomia pathologica ; ainda, 163 sem um gabinete adequado, bem provido, tornar-se-hão infructiferas as pesquizas hystologicas. Por bons desejos que nutra o professor, elles se que- brarão diante de obstáculos insuperáveis. Si uma reflexão nos fosse permitida, não hesitariamos em observar que uma elocuçção menos ornada, mais despida de atavios, um tom menos emphatico, faria esquecer a rhetorica em van- tagem de uma linguagem clara e scientifica, que demanda — precisão e modéstia. A eloquência que distilla do escal- pello ao desvendar os mysteriosdo organismo, que arranca da matéria inanimada os segredos da vida, não precisa de mais ornatos para tornal-a sublime. É bem para lamentar que novas funcções, alheias ao magistério, venham roubar-lhe um tempo preciôso, já tão escasso para a fiel execução dos seus honrosos afla- zeres escholasticos. A medicina é sciencia que não chega, no Brazil, para encher a vida inteira : quando ainda tão longe estamos da terra da Promissão, para logo nos enfastiamos dessa sci- encia mesquinha aos olhos da nossa ambição. Si os arbustos não vingarem, nunca teremos frondosos troncos. Entre nós é assim, o sol da indifferença cresta-os logo ao brotar. Torque não havemos de regenerar-nos ? ! 164 Pathologia geral O espirito altamente philosophico e cultivado do res- pectivo professor ; a sua dicção facil, correcta e amena; a sua instrucção variada; a sua argumentação convin- cente ; tornam eminentemente proveitosa a instrucção desta matéria, recebida na faculdade do Rio de Janeiro. Analysando com a maior imparcialidade e critério os mais intrincados e oppostos dogmas da vasta sciencia da medi- cina, nada deixa a desejar, sob o poncto de vista que ana- lysamos. Firme em seu posto, crente sempre em seus princípios, apenas uma vez se affastou o illustrado professor da sua cadeira do magistério, para assumir o mandato po- pular. Si a rêde política não o prendesse também em suas traiçoeiras malhas, contaríamos mais um sacerdote exclu- sivamente dedicado a um culto tão sublime ! Mas... a fatalidade desvia, muitas vezes, os intentos os mais firmes ! Pathologia externa A pathologia externa é matéria de subido interesse e que não poderá ser desconsiderada por aquelles que anhelam c nobre titulo de medico. 165 Os que se destinam particularmente á chirurgia, encon- tram nella o primeiro passo para os fins que almejam, é, por assim dizer, a sua base de operações. Tal é a rasão pela qual existe esta cadeira em dupli- cata em muitas faculdades europeas, sendo escolhidos para regêl as autoridades consummadas. Seja pela escassez do tempo, pela extensão da matéria, parece opinião corrente que o ensino delia não satisfaz absolutamente, na faculdade do Rio de Janeiro, as exi- gências da sciencia moderna. Não estamos longe de crèr preferível ao nosso systêma, modelado pelo de Pariz neste ponet«, o seguido nas facul- dades allemãs, onde é a pathologia theorica ensinada com a clinica pelos mesmos professores. Não que esteja áo arbítrio delles alternar estes dous ensinos, ou de fazer cursos hybridos, uma meia parte cliifya, outra meia parte theorica, não ; são elles obrigados a satisfazer a dous cursos distinctos e a ensinar parallelamente a cli- nica e a pathologia. Si fosse entre nós este systêma abraçado, não teríamos o desconcerto de ser lecionada a clinica chirurgica a estudantes, que ainda não ouviram uma lição de patho- logia externa. Na Allemanha, não são os alumnos admit- tidos ao estudo das clinicas, sem haver preenchido a primeira metade de todo o curso escholar. Surgirá promptamente a muitos a objecção que essa 166 tarefa assim realizada, segundo a practica allemã, é su- perior ás forças de um só professor: certamente, si os nossos professores fossem mais exclusivamente dedicados ao magistério e muitas outras funcções diversas não preen- chessem uma grande somma dos seus afazeres, ser-lhes-hia possível executar fielmente, sem um exlorço sobrenatural, esta dupla commissão. Verdade seja, em paiz nenhum se promove a emulação em gráu mais elevado que na Allemanha, onde, alem dos seus honorários fixos estipulados pelo Estado, são os professores retribuídos pelos alumnos, que lhes pagam uma somma determinada por cada inscripção tomada. Dahi resulta que, quanto maior fòr a afíluencia ao curso, mais pingues lucros auferirão os professores. Quem não se exforçará por merecer a preferencia ! Uma outra conclusão também nasce de tal systêma: que as recompensas estam na razão directa do numero dos cursos que fizer um professor. Táes fadigas são, pois, amplamente remuneradas, e na sua profissão exclusiva encontra o professor elementos de justas aspirações e illimitada prosperidade. Billroth, Langenbeck, Bamberger, Frerichs, e outros realisam explendidamente este desideralum, sem quebra do repouso, ao qual tem direito todo o obreiro incansável. A bòa divisão do trabalho, a convergência de todas as 167 torças intelligentes para um fim unico : o cultivo da sciencia, eis a chave do problema ! É bem para sentir a pouca disposição, em geral, dos nossos homens scientificos á se tornarem profundos em um ramo, no qual sejam mais tarde reputados autoridades respeitáveis e dignas da confiança dos entendidos. A complexidade de assumptos que partilham simul- taneamente a sua attenção, os seus estudos e o seu pre- cioso tempo, não lhes permitte absolutamente, ao cabo de certo tempo, conhecimentos aprofundados de um dos ramos da vasta sciencia, pois toda a sciencia é vasta para as aspirações de um só homem. Si consagram as operações do seu espirito ao cultivo da pathologia, agigantem-se neste vasto departamen'o da sciencia hippocratica, e grangearão mais renome, mais valiosos titulos da sapiência, que distrahindo em mil assumptos diversos suas preciosas lucubrações. A persistência e a crença são dotes raros entre nós. Pathologia interna As considerações que acabamos de expender, em re- lação ao ensino da pathologia chirurgica, podem bem ser applicadas ao da pathologia medica. Também não sabemos, si apesar dos nobres intentos 168 do intelligente professor incumbido desta importan- tíssima disciplina, adquirem os alumnos da faculdade do Rio aquelle gráu de instrucção imposta aos que se des- tinam ao elevado sacerdócio da medicina. Ignoramos de que lado se acha a razão, mas, verdade incontestável é que dessa falta de instrucção se ressen- tem os alumnos, quando á cabeceira do leito, nas salas de clinica, são invocados a pol-a em contribuição. Si essas incompletas noções nullificam consideravelmente o pro- veitoso estudo da clinica interna, si ellas expõem assim os neophytos da sciencia á futuras decepções na sua vida practica, justo é, por sem duvida, se tracte de averiguar a causado mal, oppondo-se-lhe os devidos correctivos. A frequência constrangida dos alumnos não parece justifi- cável em um curso, sem o qual não pode ser derramada verdadeira instrucção medica. O respectivo professor tão respeitável, tão zelôso no cumprimente exacto dos seus honrosos deveres, obraria acertadamente, em nosso humilde pensar, envidando todos os meios, variando-os na razão de sua opportunidade, com o louvável intento de descobrir um dentre elles que inspirasse aos seus numeros discípulos a profunda convicção do quanto valem taes estudos. Com o professor acontece muitas vezes o mesmo que com o actor, embora preencha conscienciosamente as 169 suas funcções, fica muitas vezes aquem do contento geral do publico. Alguma cousa cumpre fazer, pois, afim de emprestar mais apreço ao estudo da pathologia medica, tornaudo-o, assim, tão profícuo, quanto deve de ser. Quando permittir o ensino livre a multiplici lade dos cursos, muito subirá de valór um ensino como este, pre- cioso em extremo. Apezar do brilhantismo com que se distinguem, em seus procurados cursos, os dous professores titulares da faculdade de Pariz, Ilardy e Axenfeld, não deixam de ser, entretanto, eminentemente uteis e assaz concorridas as lições do professor Bouchut e de outros não menos repu- tados professores livres. Não podemos, terminando, occultar um elogio devido ao actual e distincto professor de pathologia medica no Rio de Janeiro, em um poncto no qual leva elle vantagem a muitos dos seus collegas, vem a ser o apreço com que se occupa, quando vem a proposito, da matéria médica brazileira, na qual se mostra muito versado. Segue, com este louvável proceder, as pegadas do seu antigo mestre e antecessor, o fallecido professor Joaquim José da Silva, de tão saudosa memória. Oxalá, por sua vez o imitem nisso seus futuros successôres !... 170 Partos, Moléstias de mulheres pejadas e paridas e de crianças recem-nascidas Tal é a complexa cadeira que faz parte do programma de ensino, no quarto anno de estudos. Que ella não é plenamente realisada já o fizemos obser- var : o tempo é por demais excasso para tornai a com- pleta. Existisse uma clinica destinada ás parturientes, ao trac- tamento das moléstias puerperaes, e ás das crianças recem- nascidas, e essas justificáveis lacunas seriam em grande parte preenchidas pelo respectivo professor, o qual, soli- dário com o da cadeira theorica, converteria em realidade o ensino da arte tocologica, no Rio de Janeiro. A arte theorica tem sido brilhantemente exhibida nesta cadeira, e bastará lembrar que nella sentou-se o venerando vulto de Francisco Julio Xavier, uma das glorias da medicina brazileira. Ella acaba de ser conferida a um jovem representante da geração do presente, do qual parecia a principio des- viada a sympathia dos seus novos discípulos; os dotes pessoaes que o recommendam á estima publica; o cava- lheirismo menos commum com que se tem havido para com seus ouvintes, hoje seus amigos; o interesse visivel 171 com o qual se mostra empenhado no certamen iniciado, auguram, no entretanto, um auspiciòso futuro para a ca- deira novamente provida. Retemperado nas ideias da nossa épocha, armado de nobre ardor pela sciencia, procure evitar o novo campeão as chammas da indifferença que ateiam, entre nós, o progredir dos annos. Anatomia topographica, Medicina operatorii e cpparelhos Esta matéria tão vasta, como indica o seu titulo, nunca é, segundo cremos, exgotada durante o anno lectivo; e taes sãe os óbices oppostos ao seu inteiro desinvolvi- mento que, por mais interessado e zeloso que fosse o professor desta cadeira, impossível seria executar devida- mente uma só parte desse programa. Não existe absolutamente um amphitheatro, submettido á direcção geral do chefe dos trabalhos anatómicos e par- ticular de um prosector, o qual, auxiliado pelos ajudantes já assignados, procedam ás necessárias preparações, des- tinadas ás demonstrações praticas, patentes a todos. Conglomerados em torno de uma meza, onde gasta o professor toda a hora de curso em preparar, em pessoa, as peças a demonstrar, não tiram pela maior parte os 172 alumnos grande ou nenhum proveito de um ensino por tal forma irregular. Para o curso de operações faltam até os menos apu- rados bistouris; e raros alumnos se instruem practicamente nas manobras sobre o cadaver. Meros espectadòres de al- gumas das mais frequentes operações de alta chirurgia, terminam o seu tirocinio escholar, recebem portanto o capello, sem haver muitas vezes si quer sentido o pèzo de uma serra de amputação. Isto é verdade corrente e fa- cilmente averiguada. O pouco amôr ao methodo da parte do professor, as suas não interrompidas divagações, seja qual fòr o as- sumpto que sirva de thema, não obstante a sua reconhe- cida e divulgada sciencia, contribuem ainda mais, aggra- vando as condições desvantajosas de uma cadeira de tanto alcance! Matéria medica e therapeutica A matéria medica e therapeutica tem sido, sem contes- tação, um dos ramos das sciencias medicas votadas ao ostracismo no Rio de Janeiro : podendo considerar-se a do seu ensino uma missão ainda não comprehendida até hoje. A reproducção fiel como é feita, actualmente, de um tractado extrangeiro que para compendio de um cur. o tão limitado pelo tempo, é demasiadamente extenso, não 173 corresponde aos desejos dos alumnos, que attingiram ao quinto marco de seu tirocínio escholar. A critica judiciosa, a calma, a reflexão, são requisitos que reclamam a expo- sição destas matérias e sem as quaes ficará o curso des- pido da importância e utilidade, que lhe competem. Quiséramos houvesse mais concisão de matéria, fòsse esta pouca explorada de modo claro, intuitivo, desper- tando da parte do auditorio interesse por um ramo de tão vital necessidade, quer para o medico propriamente dicto, quer mesmo para o chirurgião. Fôra, assim, para desejar mais autonomia na exhibição oflicial destas noções jul- gadas indispensáveis ao clinico, menos precipitação na ex- posição das matérias, mais precisão de linguagem. A memória muitas vezes prejudica os bons créditos, con- quistados de direito por um professor distincto; a maneira facil porque apprehende arraigadamen’e aquella faculdade os factos adquiridos por uma simples leitura, induzem involuntariamente o orador, uma vez na tribuna do ma- gistério, á reproducção tainbein fiel e facil desses mesmos factos, quando certamente provido de matéria própria, bem podéra desembaraçar-se de tão onerosa e compro- mettedòra bagagem. Talvez seja esse um dos salientes motivos pelos quaes tão perto navega o profess or de lherapeutica das costas desse volumoso parto de dous eminentes campeões, Trous- seau e Pidoux, compellido talvez pelo sôpro mais violento 174 de sua feraccissima memória. Eis ahi um defeito, que nàq fôra talvez difíicil de corrigir. A matéria medica brazileira foi absolutamenle pros- cripta, sem motivo plausível, dos cursos da faculdade, quando nelles aliás se tracta, com desmarcada minúcia e fidelidade, de drogas menos conhecidas nos formulários estrangeiros. Si é verdade ser esta uma vereda de não mui franco e facil accesso, juncada de múltiplos estorvos, que ainda repetidas vezes obrigam a estacar o viajor intrépido, tam- bém é certo: dos materiaes amontoados por quantos hão amargado os rigores dessa ingrata provança, não poucos factos se despredem, em condições de constituir um núcleo de solidos e aproveitáveis conhecimentos. Os ricos mananciáes recolhidos pelos exforçados: Pison, Martins, em sua monumental Flora Brazileira, A. de Saint-Hylaire em suas Plantas usados dos brazileiro Arruda Gamara, em suas suculentas obras, recentemenle restauradas, e, si a tão longe não quiséramos chegar, os escriptos produzidos, em nossos dias, por um sabio como Freire Allemão, os trabalhos origináes devidos ás inves- tigações de um talento tão notável quanto modesto, o de José Agostinho Vieira de Mattos, as noticias que herdamos das infatigáveis lucubrações de um Joaquim José da Silva, muitas das quaes existem ainda hoje inéditas talvez, de 175 um Ezequiel Corrêa dos Sanctos, as publicações ainda mais novas dos drs. Nicoláu Joaquim Moreira (diccionario das plantas usuaes do Brazil), Theod. Peckolt, Corrêa de Mello, de Campinas, Caminhoá, Felicio dos Sanctos, do notável botânico Ladisláu Netto, Chernoviz, Langgaard, t tantos outros valiosos escriptos que longo fora aqui reproduzir, já fornecem, por sem duvida, vasta maté- ria para largos e fructuosos estudos. Por mais adiantadas que nos pareçam as investigações operadas, segundo acabamos de vêr, por tantos obreiros valentes, ainda muito nos resta a fazer, ainda nos sobra vasta margem a transcendentes pesquizas. Quanto á parte botanica, ouçamos a palavra autorisada e amêna de um brasileiro illustre e sabio botânico, Ladisláu Netto: « Nas suas — Plantas Usuaes dos Brasileiros, Augusto de Saint-Hyl;iire, mencionando as especies mais conhecidas pelas suas virtudes medicináes, já nos faz admirar a avul- tada copia de vegetáes empregados pelos habitantes do nosso extenso território. Outros exploradores vieram aug- mentar essa lista, porém, por mais completa que nos ella pareça, á primeira vista, está longe ainda de conter a enu- meração da immensa quantidade de riquezas vegetáes aproveitáveis, que crescem de continuo sob a influencia 176 ■da primavera eterna de que Deos ataviou aquelle bello e grandioso Império *. » Quanto ao experimento therapeutico, é notoriamente injusta e mal cabida a repugnância desmedida com a qual se dispõem difíicilmente os nossos practicos a se uti- lisar desses inapreciáveis thesouros em proveito da huma- nidade soífredòra em nossas plagas. Desejáramos vêr tal proceder rebatido pelo exemplo demonstrado em prol desta idéa pelo professor de therapeutica e matéria me- dica da faculdade do Rio. Resente-sc este curso da ausência de certos attractivos, que deleitam ao passo que instruem. Não é, por sem du- vida, impracticavel a realisação deste duplo desidera- tum. Si, pois, alguma reacção favoravel se não o operar no ensino de táes matérias, ficará elle convertido em uma fonte exhaurida, da qual não poderão sorver uma gotta de tão salutar sciencia os futuros neophytos da medicina brazileira. Não escrevemos de má fé, e, antes pelo contrario, temos a franqueza de confessar-nos publicamente affeiçoado a 1 Utilidade da creaçúo de um Horto de plantas indigenas no Bra- nil. Memória lida á sociedade botanica de França em sessão de 11 de Fevereiro de 1865, reproduzida em seus Apontamentos relativos á botanica applicada no Braúl. Rio de Janeir#. 1871, p. 3. 177 tão illustre representante do congresso docente da fa- culdade de medicina do Rio de Janeiro. Ilygiene e Historia da Medicina A primeira destas matérias leccionada, como ê, no Rio de Janeiro, forçoso é convir, deixa sem solução- muitos dos problemas mais instantes da nossa hygiene pu- blica e privada. Os talentos que ornam a quem a professa,, a sua reconhecida illustração, autorisam a exigencia de uma côr local emprestada a um curso tão util e neces- sário ao medico. Actualmente, quetáes questões reclamam mais que nunca o estudo dos brazileiros, que attraves- samos um periodo de reforma dos nossos usos, costumes, instituições, etc., justo é que adquiram os futuros mé- dicos noções menos exóticas desta tão relevante maté- ria. Seria para desejar íossem mais nacionáes as lições de hygiene professadas na faculdade de medicina do Rio de Janeiro; tractando-se particularmente daquillo que mais de perto nos interessa. Relevar-nos-ha o nosso- distincto mestre este ligeiro reparo. Certas questões, entre outras, merecem ser aqui fri- sadas : As condições hygienicas dos nossos hospitáes e cemi- térios ; o escoamento das aguas pluviaes; o exgõto das 178 matérias fecàes; a influencia sobre a saude publica do gaz de illuminação, e isto com particularidade, por ser o nosso um dos raros paizes, em que se usa do gaz no inte- rior dos aposentos ; da nossa alimentação, especialmante da classe pobre; do alcoolismo entre nós, these que já mereceu algumas paginas do sr. conselheiro Pereira Rego, em um dos seus Relatórios, como presidente da Juncta de hygiene publica; a educação physicadainfancia, assumpto inteiramente despresado até hoje, e aliás tão momentoso; a necessidade da creação de hospitáes para a nossa infân- cia desvalida; a mortalidade das crianças, outra these que jà foi também pela primeira vez desinvolvida pelo pre- sidente da Juncta de hygiene; a importantíssima questão, tão magistral mente tractada pelo finado e sabio conse- lheiro Paula Cândido, das nossas habitações e dos nossos edifícios públicos, particularmente d’aquelles destinados a educação da infancia e quartéis ; as interessantes ques- tões da hygiene militar e naval, questões que jà foram entre nós esboçadas em um opusculo publicado pelo dr. E. A. Pereira de Abreu sobre tal assumpto e em outro trabalho importante do dr. J. Ribeiro d’Almeida; da creação e permanência de fabricas no seio das nossas cidades ; a questão capital das variantes dos climas nas nossas diversas províncias, questão de máximo alcance e que até hoje ainda não despertou uma só palavra em favôr do seu desinvolvimento; o abastecimento d’agua e 179 outras medidas que reclamam com instancia a capital do Império e as das províncias; o importantíssimo estudo das nossas epidemias e as causas prováveis da sua produc- ção e frequência, etc., etc. Que nos importa saber quantos escriptorios de amas existem em Pariz e declinados por Becquerel nas diffe- rentes edições do seu livro de hvgiene ? Muitas vezes, sinão sempre, deixam de ser estes dados a expressão rigorosa da verdade, e são, entretanto, os estudantes forçados a conhecer o numero daquelles e analogos estabelecimentos e até o dos empregados que lhes pertencem ! Escolhemos precisamente este exemplo para demons- tração do que levamos dicto : de facto, visitando em Pariz os differentes escriptorios de amas, e uma vez por inte- resse proprio porque de uma precisávamos, ficamos pas- mos de encontrar extinctos a maior parte dos escriptorios particulares archivados nos livros mais recentes da hygiene 1‘ranceza, verificando que mui poucos existiam e alguns montados com vistas unicamente especuladoras, sem bene- ficio real para o publico. De que serve saber-se o numero de quartos e salas de que se compõe uma creche, sem discutir-se ao me- nos a questão — si tal instituição convém ou não ser abraçada entre nós?0 estudo das rodas, sem a mais ligeira noticia da maneira porque se acham organisadas em nosso paiz e quaes os fructos produzidos em relação ao 180 numero dos infanticídios e aos progressos da nossa popu- lação, não será uma outra lacuna que convinha reparar ? Acreditamos, em nosso fraco pensar, que a matéria da hygiene, de que consta a segunda parte do curso, pcdsria ser mais nacionalisada; convindo patentear aos futuros médicos, prestes a desligarem-se dos bancos da eschola, noções mais precisas sobre a maneira particular como actuam entre nós os modificadores hygienicos. Expressamente nos reservamos a íallar por ultimo de outra questão, que seria para desejar occupasse a atten- ção do distincto professor desta cadeira, — a da colo~ n isação! Haverá na actualidade assumpto mais momentoso e que mais de perto se prenda á hygiene publica e privada ? Não serão os futuros médicos que se farão mais tarde ouvir, promulgando as leis que convirão ser abraçadas por aquelles que deixam o clima natal em busca de outro inteiramente opposto, que mudam bruscamente de hábitos, de regimem, e muitas vezes mesmo de pro- fissão ? A magna questão, pois, do acclimamento nos paizes quentes não é uma daquellas que deveria de elevar á altura dos seus reconhecidos talentos e iliustração o professor de hygiene da nossa eschola fluminense ? Iloje que são as recompensas mais equitativas, já pode- 181 rão os professores do nosso ensino superior fortificar-se com mais ardor nas matérias que professam, tornando-se, sem grande exforço, verdadeiros especialistas de táes ramos. « A especialidade, escreve um distinctoescriptor, é alei inevitável da sciencia e da acção humana; todo o conhe- cimento é necessariamente especial, porque nenhum homem tem sciencia universal, e toda a practica é limi- tada a um certo numero de actos particulares, porque nenhum homem possue o poder illimitado ; a especia- lidade é, por conseguinte, um facto geral e necessário ao desinvolcimento das sciencias. » Medicina legal Si a faculdade, ou melhor o governo, fornecesse ao curso de Medicina legal e Toxicologia o instrumental necessário para as demonstrações e experiencias respec- tivas, poderíamos avançar sem receio de um desmentido que, na Europa, não é mais perfeito o ensino de uma cadeira tão difíicil de preencher. Temos immenso prazer e orgulho de affirmar publica- mente que não nos pareceu superior, no exercicio dessas funcções, o professor Tardieu, de Pariz, ao erudito e elo- quente professor Ferreira de Abreu. 182 Ditosas as escliolas que possuem sustentáculos de tão subido valôr, representantes de tão opulento saber ; mas quer a -orte que os recursos pessoáes de tão fecundo professor sejam em parte tolhidos pela deficiência ou me- lhor ausência de um gabinete, que devera de ílorescer copioso nas duas escholas brazileiras. Oxalá perdure aqueile em seu posto de honra, que as conquistas do seu saber fiquem também gravadas para a gloria de nossa epochaea instrucção dos vindouros ! Não sabemos si o mesmo se poderá dizer da eschola da Bahia. Pharmacia Liga-se entre nós. não lia contestal-o, pouco apreço á pharmacologia; este vicio nã > nos pertence exclusiva- mente, em muitos outros paizes.não se mostram os estu- dantes mui convencidos da importância desta maieria. Não lia duvida, tira o medico grande proveito de algu- mas noções de pharmacologia ; quando não sejam pro- fundos conhecimentos que compelem particularmente ao pharmaceutico de profissão, tenha-as ao menos aquellas indispensáveis para pòl-o acoberto de cruéis revezes e terríveis decepções. Desta verdade se tem compenetrado o illustrado professor desta cadeira, o qual não poupa 183 exforços para emprestar a seu curso todo o interesse, tornando-o, quanto lhe é possível, praclico. Amor menos commum a sciencia que professa, estudos especiaes da matéria, solida instrucção deste ramo, tor- nam por sem duvida recommendavel o professor e garan- tem o bom êxito dos seus exforços. Acreditamos, entretanto, que um vicio offusca um pouco o interesse que deve de prender a attenção dos médicos, vicio que até certo poncto não estcá ao alcance do professor reparar. Consiste na invasão e não pequena que faz pelo terreno da chi mica organica, da qual se occupa com mais ardôr muitas vezes que das questões de pura pharmacologia; isto é, em parte, devido á opinião formada com plena justiça pelo mesmo professor da pouca scien- cia dos seus alumnos a tal respeito, ignorância esta que prejudica sobremodo a comprehensão de muitas questões pharmacologieas. Todavia, com alguma concisão mais apurada consegui- ria reavivar essas noções esquecidas, sem forçar seus discípulos a voltar a novos estudos, aos quaes se entregam constrangidos e precipitadamente. Outrosim, conviria ser mais laconico a proposito d# certas questões, deixando de gastar, por exemplo, uma inteira licção em definir a — pharmacia. Estas e outras analogas minudencias pouco adiantam ao ensino e fatigam promptamente a attenção dos seus ouvintes. 184 Seria para desejar se mostrasse tão hábil professor menos prevenido contra a attenção com que o ouvem seus numerosos discípulos, abraçando generosamente as ideias do século em favor da liberdade de ensino. Procu- rasse captar a sympathia dos seus ouvintes, deixando de inquirir de certas minúcias relativas aos mesmos, e tel-os-hia gostosos em seu amphitheatro, dispostos cordialmente a ouvil-o com religiosa attenção. Certas etiquetas decahidas com o progresso do tempo, reba- tidas pelas ideias livres da epocha, já são por demais caducas para poderem vingar nas nossas escbolas de hoje. Pretender mantel-as de força é, certo, uma ideia pouco justiíicavel, alienando os créditos de sympathia dos quaes é alias merecedor o illustre professor. Por outro lado, pouco ganha o ensino, e portanto a sciencia, com certos rigores disciplinares, que se resu- mem, por ultimo, em pêas oppostas a franca e agradavel diffusão das luzes. Em um paiz americano, onde brilha fulgente o sol da liberdade, não podem mais perdurar certos preceitos vexatórios, hoje ainda em vigor, contra uma mocidade já cônscia, dos seus direitos e, portanto, dos seus deveres. Essas leis, justificáveis na disciplina collegial, não são por certo cabidas, nem bem acceitas, em estabelecimentos de ensino superior. 185 Si o illustrado professor, a quem pedimos venia para estas reflexões, se dignasse de abraçar as ideias genero- sas da epocha, si se abstrahisse do seu auditorio, veria, asseguramos, coroado de inteiro successo seu interessante eurso. A sua posição, a illustração que todos lhe reconhe- cem, são titulos que de sobra garantem o acatamento devido e dispensado, certamente, por seus discípulos. Afora estas senões é, em verdade, a pharmacia leccío- nada theoiicamente com muito brilho e proveito real para os alumnos da faculdade do Rio de Janeiro. Relativamente á parte practica, será de justiça confes- sar que a intitulada — aula practica dc pharmacia não passa, absolutamente fallando, de um simulacro impro- ductivo ; oneroso para o governo, que despende com elle algumas sommas em pura perda, oneroso aos alumnos, que são coagidos a frequental-a para fazer acto de pre- sença. A ausência de um laboratorio materialmente fal- lando, dos apparelhos indispensáveis em táes recintos, de todos os demais recursos exigidos para a bôa e re- gular direcção do serviço, de um director fixo para regel-a, são deficiências de ordem tal que nullifieam definitivamente os fins, que devera de preencher esse annexo da faculdade, achando-se, para cumulo dos obs - taculos, collocado em um sitio inteiramente afastado do circulo dos trabalhos escholares. 186 Clinica interna 0 zelo, o interesse, a dedicação, o enthusiasmo mes- mo, com que ha sido desempenhado, na Eschola de Me- dicina do Rio, o afanoso e diflicil ensino da clinica medica, os resultados lisongeiros que têm coroado os relevantes exforços do respectivo lente, estão acima dos encomios tecidos pela nossa humilde penna. Essa especie de regeneração que se nota na esperan- çosa geração actual ; essa somma de experiencia tão precozmente grangeada por não poucos que se afastam dos bancos da faculdade, attestam de sobra a maneira plausível porque é distribuída nella a inslrucção clinica. Mas, digamos sempre, si o exforço natural de muitos compensa as fadigas de professor, ficam alguns outros a quem, não pela pobreza de recursos intelligentes, mas, por effeito da má subdivisão do trabalho. A instrucção clinica não se pôde obter por tradição, pela simples transmissão theorica das leis que regem o exercício practico da medicina; é preciso tactear nas tre- vas, descobrir pouco e pouco os segredos que se occultam mysteriosos ás nossas indagações, colher por trabalho proprio os dados que fornecem a exploração, ade.\trar-se a pôl-a em practica, assenhorear-se dos óbices que diffi- 187 cultam a analyse e a resolução dos variados problemas da verdadeira arte de curar. Já, mais de uma vez dissemos, um só homem uão sa- tisfaz a tantas exigências justificáveis desses estudos in- dispensáveis. Forçoso é multiplicar os meios de observação, as fontes de instrucção clinica, augmentando o numero dos que conduzam e dirijam os neophytos em seus primeiros pas- sos sempre vacillantes, incertos. Salutares doctrinas são derramadas, mas falta-lhes inteira applicação, sem a qual não ficam de modo algum bem gravadas. Nós que dispomos de um arsenal vastíssimo, de um amphitheatro feraccissimo, que offerece campo largo e illimitado ás indagações clinicas, um immenso hospital, onde são annualmente recebidos perto de 12,000 (!) doen- tes, podemos, como os mais adiantados paizes do velho mundo, elevar ao apogêo da perfeição a instrucção clinica no Rio de Janeiro. — Na maior parte dos núcleos, de onde se irradiam tão coruscantes as mais sublimes conquistas da moderna sciencia, ficam muito áquem dos nossos os recursos desta ordem. tão limitados elementos ganham a causa do prog esso esses infatigáveis obreiros. Mas, não basta este tão amplo theatro de pesquizas, torna-se mais precisa a analyse, a reflexão, a critica in- telligente de onde brota a verdadeira instrucção. 188 A observação e o raciocínio são, como dizia Baglivi, os dous eixos da medicina. Todas as riquezas da observação se convertem em obs- táculos, quando não consegue o espirito fazer resallar os princípios que nella se contém. Cumpre admirar e estudar a natureza, mas cumpre egualmente reflectir sobre ella, para colhermos as leis que delia emanam. Si assim não fòra, ficaria a sciencia eternamente incompleta. Seriamos eternos observadores! Daqui se conclue um grande principio, que de pequena fonte se poderá beber muita sciencia: assim como um regato póde originar um caudaloso rio, como algumas gottas de chuva dar origem ao regato, também em um acanhado tbeatro conseguirá o raciocínio e a reflexão roubar as mais sabias e variadas leis ao reduzido numero de factos que contemplar. Lembremo-nos que a vasta sciencia de Hyppocrates teve por berço a acanhada ilha de Cós, que o genío prac- tico e profundo de um Franck (J. P.) formou-se á cabe- ceira de doze leitos modestos, que um dos mais illustres compeões da cbirurgia, Scarpa, teve por tbeatro das suas maravilhosas conquistas uma pequena cidade de 25,000 habitantes. Ainda hoje, como já dissemos, assombra aos que me- ditam sobre as fontes de instrucção practica os reduzidos 189 elementos de que dispõem, nessas pequenas cidades da velha Allemanha, vultos que dão leis ao mundo. Mas é que elles se compenetram de um principio, que proclamava com enthusiasmo Trousseau, un peu moins de Science, un peu plus d'arl ! no sentido que, pondo de parte os thesouros amontoados por quantos têm contri- buído para a construcção do monumental edifício da me- dicina, entregam-se, armados dos proprios recursos, a novas e constantes pesquizas que não deixam vêr os limi- tes da colossal sciencia! É precisamente esta falta de iniciativa scientifica, essa continua espera dos alheios triumphos, esse interminável gôzo sem trabalho, que nos tem justificado a pecha de parasytas scientificos. Essa paralysia, que cada vez mais se generalisa, vai acarretando a morte das nossas ideias, a desillusão do futuro. É preciso, pois, um coryphêu que se erga dessa turba, afogada na lethal inércia, eleclrisando-a com a scentelha de seu genio, arrastando-a com o exemplo dos triumphos da sua actividade. Esta paralysia que degenera os espíritos os mais firmes, e decididos, que se propaga perniciosa, abafando os raros symptomas de reacção, vae destruindo para sempre a mais poderosa columna do templo da medicina —a crênça. Em um paiz destinado, pelas prophecias do presente, a 190 ser o emporio da civilisação nos futuros séculos, deve desde já de ensaiar os primeiros passos para emprehender essa grandiosa jornada, em busca das glorias que lhe estam reservadas! A clinica medica tem hoje á frente do seu ensino um chefe, repleto de instrucção, animado de bons intentos, e cujo curto passado é o garante do lisongeiro futuro que lhe auguramos, si proseguir 11a mesma senda que tão hrilhantemente inaugurou. Que se mantenha prevenido contra os multiplicados escolhos que hão de, não raramente, sorprehendel-o em sua ardua peregrinação, que as suas ideias scientificas não 0 abandonem na direcção dos trabalhos clínicos. A concurrencia de doctrinas as mais oppostas, que pul- lulam no vasto campo das sciencias medicas, despertam a admiração pelo ardor laborioso que characterisa 0 nosso século, mas quando tentamos apreciar, como diz Schut- zemberger, os princípios que devem de ligar entre si os factos, as ideias geráes que devem de fecundar e abrir á observação medica uma nova direcção, cessa a admiração, porque não encontramos sinão uma deplorável confusão. O symptornatismo, 0 anatomismo, a organopalhologia, a organophysiologia dominando successivamente a direc- ção dos estudos clínicos, exigem uma analyse rigorosa, fazendo delia sobresair as verdadeiras ideias que nos 191 dirijam, que nos sirvam de bússola nesse desconhecido terreno á explorar. Sem entrar mais alem na discussão deste objecto, jul- gamos poder avançar que a physiologia pathologica tem levantado um pouco mais a ponta do véu, que aindá en- cobre tantos segredos occultos á nossa perspicácia. Essa especie de ecclectismo que nos conduz a apropiarmo-nos de todos os elementos ao nosso alcance para um fim úni- co, para o qual devem de pender todos os nossos exforços, parece haver aberto uma eia de progresso real, tornando- nos mais patentes agora tantos mysterios, que debalde tentávamos perscrutar outr’ora. A maior parte destes elementos nos é fornecida pelas esplendidas conquistas da anatomia pathologica, da chi- mica organica, da microscopia e da physiologia experi- mental. Deste terreno não se tem muito affastado a nova direc- ção impressa aos estudos clinicos na eschola de Rio de Janeiro, convencendo-se o professor que a clinica, como todos os ramos da medicina, muito tem a esperar da ob- servação e da experiencia. Todas as acquisições da expe- riencia cumpre ao medico converter em leis ou princípios. Mas em medicina, como em outra qualquer sciencia, essas leis não podem consistir sinão em uma generalisação dos factos e das suas relações; ora, esses factos e essas rela- ções varião ao infinito em virtude da mobilidade dog 192 phenomenos da vida; donde resulta serem as leis e principios em medicina sempre approximativos e nunca absolulos. Cumpre ainda observar não seja a experiencia tida em um sentido tão exclusivo como admittem muitos philoso- phos, que fazem nella consistir toda a medicina, aconte- cendo sustentarem muitos médicos, na melhor bôa fé possível, etn nome da experiencia, os principios da philo- sophia medica « os mais estereis, os mais contrários ans principios elementares da philosophia geral, os mais fu- nestos aos interesses da sciencia. » Pesando, pois, devidamente os factos observados, os recursos da arte deante das difficuldades insuperáveis, que se-lhe antolham, cumpre ser prudente e não se deixar levar pelo enthusiasmo até certo poncto dominante da nossa epocha, por essa injusta sofreguidão em abraçar sem reparo reflectido as doctrinas promettedoras, o que é em grande parte o effeito da credulidade vulgar, á qual não são totalmente alheios os filhos de Hyppocrates. Por outro lado, é certo que maior risco correm aquelles que, abys- mados no scepticismo, se atiram irreflectidos ao culto cégo da autocratia nnturce, crença perigosa que vae ter ao fatalismo o mais intolerante. Si é certo nos soccorre, sob a scentelha por nos desfe- rida, despertando as forças organicas do lethargo em que jaziam ou abatendo-as exuberantes, esse influxo, que mal 193 conhecemos, nem sempre corrige por si só as mani- festações vitaes observadas em sua marcha. A esses a medicina se resume, no estaccionamento, no fatalismo grosseiro. Ha espíritos impacientes, taceis em desanimar, quanto mais se falia em progresso mais se admiram que a practica siga de tão longe as outras partes da sciencia, e se mostram elles tão firmes a este respeito que em sua opinião Stoll curava tão bem como Pinei, Boerhave tão bem como Cor- visart, Hildebrand tão bem como Laennec. A anatomia pathologica é o complemento da < linica; assim, pois, as duas cadeiras ás quaes se achem affeitos estes dous ensinos devem de corresponder-se de modo a ser a ultima parte da historia da moléstia, o exame ne- croscopico, confiado ao professor desta matéria, o qual realisal-o-ha sem sciencia da primeira, o conhecimento da moléstia durante a vida. Só desta sorte poderá ser conscienciosamenle averiguada a verdadeira causa da morte, a qual nem sempre é devida- mente reconhecida pelo clinico que, embora na melhor bòa fé, é muitas vezes desviado da verdade pelo espirito preconcebido. Sem esta sancção do escalpelo, sem tran- sitar por esta chancellaria, não pode ficar completo o facto clinico. 194 Era mais um meio excellente de dividir o trabalho já tão penoso em sua primeira parte. De bons auxiliares devem ainda de dispor os professores de clinica, assistentes cu chefes de clinica, que tomem parte acliva na divulgação da instrucção practica, e não permaneçam meros espectadores, que se incorporam aos discípulos em torno do professor. Os internatos mantidos como hoje existem, são lugares que os alumnos não ambicionam por justos motivos, entre outros pela duração ephemera do cargo, nulla recompen- sa e garantia offerecidas por elle, como finalmente pela falta de emulação que é a chave de todo o p ogresso scien- titico. E um facto este que tem aberto margem a amplas e estereis discuções no seio das nossas escholas, sem que delias tenha brotado uma idéa de reforma util neste sen- tido. Reconhecem todos os inconvenientes ligados ao systêma actuaR mas não lembram em sua sabedoiia os correctivos dignos de serem postos em practica, em vanta- gem de tão proveitoso meio de instrucção practica. Nesta questão não ha que hesitar: das duas uma, ou creem-se os internatos e externatos, como estabelece a eschola de Pariz (por espaço de quatro annos), durante os quaes adquirem os estudantes uma somma prodigiosa de conhecimentos variados e vasta experiencia, ou seja instiluida a polyclinica, como adopta a eschola germâni- ca, servindo de fonte de instrucção clinica as — consultas 195 gratuitas ou as visitas domiciliarias, feitas pelos estudan- tes praclicantes, e para esse fim designados pelos respe- ctivos professores. E mister abraçar-se uma ou outra destas duas hypo- theses, a bem do futuro da medicina practica, porque do modo como se acha organisaio o systema actual nada se poderá obter, semeando elle a esterilidade nesse campo que devera de ha tanto ser roteado. Quaes sejam os óbices á adopção de uma medida reformadora, da ordem daquel- las que offerecemos, não o sabemos! Para todas as reformas uteis são, no Bra il, incalculá- veis os embaraços! Esses mesmos embaraços são já symptomas entre nós da utilidade da ideia! Quando quizerdes aqui conhecer das vantagens de uma ideia subjeita á approvação dos poderes públicos, in- dagae dos obstáculos oppostos á sua execução; aquellas se mostr arão na razão dirccta destes. Clinica chirurgicu Já foram por nós iongamente demonstrados os in- convenientes que se grupam em opposição ao exforçado empenho que prodigalisa o illustrado e esperançoso pro- fessor de clinica i hirurgica em beneficio do seu ensino. 196 Secundando o seu nobre collega do qual acabamos de occupar-nos, como que firmaram o accôrdo de emprestar ao ensino clinico um esplendor decidido, compenetrando- se profundamente dos deveres do magistério. Chefes de clinica, internos, externos como cumprem existirem, franca hospedagem nesse immenso theatro- hospital, generosa contribuição de doentes dignos dos serviços da clinica, instrumental variado e perfeito, recinto adequado, e o professor não se achará isolado em seu animoso progredir! O programma traçado em sua lição de abertura do cor- rente anno lectivo da-nos justa ideia dos principios scientifi- cos que presidem ao ensino da clinica externa. Esses principios firmados 11a sua philosophia garantem seguramente 0 inais lisongeiro exito de uma instrucção tão proficuamente derramada. « O organicismo social é sem duvida alguma 0 methodo clinico, que conduz a consequências mais fecundas em resultados practicos. » Para dar uma ideia mais exacta da maneira porque pro- cede 0 distincto professor, em suas deduções clinicas dos factos expostos á sua analyse, reproduzimos textualmente 0 epilogo dessa primeira lição já citada: « Por meio de uma observação paciente, e experimen- tações prudentes e repetidas talvez possamos descobrir muitas leis, que ainda boje são desconhecidas e que regem 197 os mais importantes phenomenos da vida; mas o único meio de chegar a realisação desse sonho sublime é precisa- mente estudar cada facto em particular, comparai-o com outros, analysal-o e seguir o methodo que acabo de vos- expôr, procedendo do conhecido para o desconhecido e começando pelo que é mais accessivel aos sentidos e intel- ligencia '.» Prosegue deste modo o nobre chirurgião brazileiro na senda aberta por Dupuytren, Sanson, Velpeau, A. Bérard, Blandin, Nélaton, Púchet, Gosselin e tantos outros que ainda illustram a chirurgia de nossos dias! Pondo como elles em contribuição a anatomia normal e pathologica, a etiologia, a physiologia pathologica, a esta- tística, a bygiene e consultando todas as fontes de obser- vação racional, rasga á chirurgia brazileira horizontes vastos! Inaugurando no Brazil um dos recursos mais uteis do nosso século para a propagação dos conhecimentos adqui- ridos na practica, a observação escripta, já deu o dr. Saboia ao lume da imprensa dois livros de clinica chirurgica, onde se acham archivados as lições proferidas quando suppria a cadeira vaga pelo fallecimento de seu mestre e primeiro professor delia, o conselheiro Manoel Feliciano Pereira de Carvalho. Estas publicações raramente acolhi- 1 Vide ílevlstdineJiea n. 2 — Kio de Janeiro. 1873 pg. 22. 198 das hoje com o interese devido á tentativas que assoberbam ainda os mais intrépidos, hão de no futuro attestar o zelo menos vulgar, o enthusiasmo tão louvável com que desem- penha hoje sua brilhante tarefa. Exemplo tão nobre fòra bem para imitar, longe de ser recebido com a gélida indifferença, que stereotypa a triste epocha que atravessamos. Fortalecido pela consciência do dever, animado pela justiça de seu proceder, não se deixe tão illustre campeão esmagar pelos ruins sentimentos que hoje assaltam os cora- ções menos generosos, menos dedicados á sciencia. Por mais esplendidos recursos intelligentes que possua um professor, por mais viva e clara que seja a sua palavra, methodica e precisa a sua exposição, d’um outro recurso dispõe ainda elle, de imprescindível practica hoje, que falia á vista do seu auditorio e mais profundamente nelle grava os factos expendidos, o desenho. Nenhum professor euro- peo sobe a tribuna sem empunhar o giz, e uma ideia practica, um facto material, um processo, um methodo não é trazido á discussão, exarado em seu discurso, sem a demonstração visivel, sem esse complemento eloquente, que da maneira a mais synthetica, fere tão de prompto os sentidos. E quanto melhor reproduzem sobre a pedra a ideia enunciada, mais agradaveis se tornam aos seus ouvintes. E hoje que é o desenho, na Europa, um complemento ri- 199 goroso de uma educação regular, não existe um professor, o mais eloquente mesmo, que não seja mais ou menos perito nessa prenda tão util. E o chirurgião que não desenha, na aclualidade, ainda tem alguma cousa a aprender, por mais consummado que seja! Pois hem, é este precioso recurso que desejáramos vér manejado pelos nossos professores em geral, osquaes não tomam o giz para traçar siquer uma linha recta! Os pro- fessores de anatomia, operações, obstetrícia, hystologia, botanica e clinica, cumpre, mais que a todos, possuírem noções daquella arte auxiliar tão divulgada. 200 V Taes são, resumidamente, as considerações que desper- taram o estudo do systêma actualmente abraçado no ensino da medicina entre nós. Si pezou-nos por alguma vez a penna, accentuando se- veramente os vicios que a desvirtuam e nullificam os seus salutares effeitos, não fomos nesse proceder impellidos pela malevolência ou pelo juizo preconcebido. Se descar- namos os males que o affectam, procuramos mostrar em relevo os seus preciosos tbesouros de inestimável valia, que não se poderá nunca occultar. Rendendo acrysolado culto á verdade, pareceremos aos olbos de muitos haver sido hyperbolicos em nossa franca linguagem ; analysem conscienciosamente os factos, attentem sem paixão sobre elles e teremos conquistado inteiro assentimento á nossa causa. Nós pensamos com um illustre compatriota ainda joven, uma das glorias da nossa engenharia, que « o verdadeiro patriotismo não sóe occultar os erros nacionaes; cumpre o dever de patental-os e clamar incessantemente pela sua reforma. » 201 Apregoando o ensino livre, temos em vista, acompa- nhando as idéas generosas do século, abrir uma éra, em nossa profissão, a franca difusão das luzes, derro- cando o infecundo e prisco edificio do monopolio scienti- tico. Constituído ainda o ensino livre, quereríamos ver por sua vez resgatados do absoluto dominio do governo as universidades e escholas oííiciaes, conferindo-se-lhe amplo gòzo dos seus direitos, e illimitados poderes de sua es- pecial jurisdicção. Occupando-se seriamente da questão da centralisação universitária, assim se exprimia, ha muito pouco tempo, o professor Gavarret (1871), a este respeito, em um bri- lhante relatorio lido no seio da faculdade de medicina de Pariz « Tant que 1’enseignement supérieur est reste monopo- lisé entre les mains du Gouvernement, on comprend que les elements õtrangers aient été introduits dans les jurys de tous les concours ouverts devanl les Facultes. « Mais à Vavenir, laposition ne sera plus la même. En face et à coté des établissements de 1’Etat, s’elevèront des éta- blissemenls d’imlruction sapêrieur elibres, indepen lants, maitres de proceder comme ils le voudront, du rccrute- menl de leurs professeurs. « Dans de telles couditions, de 1’Etat Vide: Gautie des hópitaux, 13 juin, 1873, 202 doivent aussi être conslitués dans une independance com- plete pour proceder â la nomination de leurs professeurs. » Os mais celebres pensadores, os professores mais notá- veis do velho mundo são accordes em proclamar a inde- pendência universitária e a incompetência dos governos em questão de pura administração scientifica. As vantagens beneíicas, incomparavelmente profícuas de systêma tão promettedor já são patentes na Inglaterra e na Allemanha, onde prosperam as faculdades, graças á sua vida própria, á sua autonomia respeitada pelos poderes do Estado. Muitas reformas de reconhecida utilidade julgamos haver formulado em nosso mesquinho escripto, entre outras so- hresaindo a da instituição dos cursos complementares, reconhecidos da mais provada eííicacia pelos fócos de instrucção hodierna. Nossa arte se compõe de conhecimentos tão dislinetos, tão diversos, tem a estudar o homem sob tantos ponctos ditíerentes: physico, chimico, mechanico, vital e mes- mo intellectual, que a cabeça a mais vasta consegue apenas, si não c mesmo isto impossível, ahraçal-os todos em sua unidade comprehensiva. E é este complexo de relações que dá nascimento ás vocações variadas da me- dicina, é esta multidão de ponctos de vista a origem de tantas especialidades practicas, pois que é ainda ella a 203 causa real da profunda difficuldade em nos dislinguirmos egualmente em todas. As especialidades, pois, convenientemente encaradas devem de ter pleno curso eutre nós, recebendo o assenti- mento geral dos homens sensatos, madurecidos pela re- flexão, e convictos dos escolhos sem numero que embara- ção consideravelmente o liei exercício da diflicil arte de curar. As leis da divisão do trabalho applicadas a ella virão polir os obreiros, fortificando-lhes as noções aperfeiçoadas no departamento por elles cultivado do incommensuravel campo da medicina. As conquistas parciaes de cada um de per si, irão, associadas, constituir o todo brilhante e homogeneo, que attestará a intelligente actividadedos nossos dias e a gloria invicta da nossa patria ! FIM Typograpiha Franco-Amkrjcana, R¥A da Ajdda, IS. DO EXERCÍCIO \ U £ ensii medico musie PKLO D“ C. A. M0NC0RV0 DE FIGUEIREDO RIO DE JANEIRO Typoçjraplxia Franco-Americana 18 — RUA DA AJUDA — 18 18 7 4 TRABALHOS DO' MESMO AUTOR lias Dyspèpsiás e.«*éú1 rae tamento. —These inaugural. Rio de Janeiro 1871. 1 v. in-1'0, de 252'pag. — Obra approvada com distincção pèla Facul- dade de Medicina do Rio.de Janeiro ; louvada pela Sociedade de Medicina de Pariz, pela Sociedade de Scieneias medicas de Lisboa, pela sóeiedade de medicina e climatologica d’Algeria, pelas redações da — União Medica de Pariz, Gazela Medica de Lisboa, Gazeta Medica d’Algeria, etc. Considerações Clinicas sobre o diagnostico difiTcrencial entre a dyspepsia essencial e a hypohemia intertropical (oppila- çào) (Gazeta Medica de Lisboa, n. 8. 28 de Abril de 1873. Serie 4*. T. le 21° anno., pg. 199 a 207.) lios ineios ehirurgicos applicados ao Iractamento las eol- lecções liquidas do ligado. (Em publicação na fíerisld Medica do Rio de Janeiro de 1873 a 1874. 1» anno.)