I^iíínica ]y[edica pelo Dr. Ríibião Meíra Professor de cli- nica medica na Faculdade de :: Medicina de S. Paulo. = Membro da Aca- demia Nacional de Medicina. Chefe de Clinica da Santa Casa de Mise- ricórdia de S. Paulo. Membro da Aca- demia Paulista de Letras. == IMmBBui ã0 REUNII)0S> neste vo- lume, trabalhos e lic- ÇÕES DE CLINICA MEDICA, UNS, JA' PUBLICADOS E QUE O TEMPO INDA NÃO ENVE- LHECEU, DOUTRINAS E FACTOS QUE SE ACHAM ATE' AGORA DE PE', E OU- TROS, INÉDITOS, E QUE SAHEM PELA PRIMEIRA VEZ. E' O VOLUME INICIAL DE ESTUDOS, QUE SE SEGUIRÃO ANNUALMENTE, ACOMPANHANDO A REGENCIA DE MINHA CADEIRA E A EVOLUÇÃO DA MEDICINA. * I-T« __ BSicção Inaugural proferida naJTaculdade de JVfedicina= = e firurgia de 5, P^ulo 1916 EALIZO hoje, ao sentar-me na ca- Xuii^MRPW thedra de professor de clinica me- ^Ca ^es^a Faculdade, a maior aspiração de minha vida profis- sional. Nunca nutri outro desejo, nunca me deixei prender por ou- Ítra ambição. Desde muito moço, desde os bancos académicos, com a alma cheia das illusões que abarrotam o espirito da juventu- de, foi sempre esse o idéal que sonhei, a fagueira esperança que meu coração acariciou, idéal e es- perança que agora vejo corpori- ficado e alcançada, após dilata- dos annos de labor constante e ininterrupto, de pertinácia no es- tudo, de tenacidade no trabalho. Jámais desanimei de attingir esse objectivo, que é o derradeiro tér- mo dessa viagem que venho fa- zendo, luctando com os óbices e penedos que estorvam a estrada profissional, onde as urzes e os espinhos atapetam o caminho e nos impedem o livre transito. E, nunca recuei nem es- moreci porque trouxe, e ainda conservo, o lemma do tra- balho por conforto e como bússola o labaro do estudo. Consegui, ao cabo de peregrinar demorado, apor- tar á terra promettida de meus sonhos, galgar as esca- das douradas deste Capitolio, de cujo cimo se não avis- tam os rochedos de Tarpeia, porque aqui vim trazido -deixae-me que vos fale sem modéstia, porque esta não é a hora - pelo pouco que sei, pela minha vontade de aprender vos ensinando, pelo que hei feito e demons- trado de minha dedicação ao exercicio da medicina. A nimia bondade do emerito director da Faculdade de Medicina de S. Paulo, que a tem constituído com a maxima isenção de animo e o máximo desprehendimen- to das paixões humanas, foi procurar-me no retiro obs- curo de meu gabinete e, sem que eu lhe solicitasse ou alguém por mim, me trouxe até aqui, me conferiu a honra de ser o primeiro vosso encaminhador nos estu- dos propriamente médicos. E' por isto que me tendes, hoje, inaugurando o curso de clinica propedêutica, que sabeis, é a base solida sobre que se ergue, majestoso e resplandescente, o edifício da medicina. Não sou novato, não sou inexperiente, nem inci- piente no professorado medico. Já passei pelas forcas caudinas de concursos na Faculdade de Medicina do Rio em celebradas provas - e celebradas pelo valor, pelo merecimento, pelo renome justo de meus competi- dores - e tenho orgulho em vos affirmar que a voz unanime daquella congregação, por duas vezes, me jul- gou digno de entrar em seu seio, embora a classificação recahisse em outros de ma is avantajado preparo e que fazem parte da pleiade brilhante de mestres da escola fluminense. Apesar de não ser o escolhido nesses con- cursos, não esmoreci no meu antigo intento, não des- animei de conseguir o que considerei sempre a méta de meus desejos, o termo de minha carreira, o derra- 8 deiro marco de minhas legitimas aspirações. Continuei firme no estudo e no trabalho; não descuidei de um e esforcei-me mais em outro. Não deixei que a desillusão, que é a flôr do mal, que sóe apoderar-se dos candidatos e dos homens quando não attingem o seu objectivo e vêm ruir as esperanças, me tomasse entre os ferros de suas garras e me precipitasse no fundo grotão do des- animo. E' que o voto da Congregação, considerando-me apto para alli exercer o magistério, teve o condão de uma nova força que me impelliu, sobranceiro e altivo, para a frente, que me encorajou para novos tentamens, que me animou a perseverar no manuseio constante dos livros e no trato habitual com os doentes - as duas alavancas poderosas que fazem os mestres de medicina. Demonstração da perseverança de meu espirito tenho a dar-vos, com a inauguração que, em 1909, fiz em S. Paulo, do primeiro curso de clinica medica, sob o pa- trocinio do dr. Arnaldo de Carvalho, que, entre nós, occupa o pináculo da cirurgia e aqui vos encaminha, sob sua direcção nesta casa de trabalho, para a con- quista de vossos diplomas, para a concretisação de vos- sos idéaes de moços. No Hospital de Misericórdia cumpri o que havia promettido, e tenho a satisfação de vos assegurar que o meu curso sempre teve frequência lisongeira e que sempre mereci dos jovens estudantes applausos e encó- mios. Outra prova de que me não descuidei de meu an- tigo úesideratum está na concurrencia que fiz ao logar de livre docente de clinica medica, quando entrou em vigor a lei Rivadavia, perante a Faculdade de Medicina do Rio, e o parecer com que acceitaram, por unanimi- dade de vozes, o meu nome, foi daquelles que satisfa- zem os espiritos mais exigentes, dando-me o conforto de uma victoria, a sensação de um bello triumpho. Posso, por isso, vos affirmar que tenho esperança de 9 vos conduzir, com a minha palavra, onde certamente não scintillarão phrases coloridas, mas onde os ensina- mentos e a procura da verdade scientifica hão de ser o meu constante desejo, para illustrar o vosso espirito, cheio dessa ancia, pela conquista da sciencia, que enche o vosso entendimento intelligente. Trabalhos de clinica medica ahi estão para attes- tar a firme preoccupação de meus estudos e sem que- rer chamar para todos elles a vossa attenção, porque nem todos têm o valor necessário, basta que eu vos falle nos que complasmei sobre o coma, e que são citados nos autores nacionaes, sobre as perturbações gastricas na ancylostomiase, a que a observação posterior nada ac- crescentou e que serão clássicos amanhã, sobre o aneu- rysma da aorta de origem rheumatismal, de que os "Archives des maladies du coeur de Paris", annotaram e rezumiram, e que valeram elogio de Renon, e sobre o alastrim, cuja opinião vem citada na erudita obra do talentoso professor Afranio Peixoto, em seu recente tratado de hygiene. Afora estas, muitas outras publi- cações produzi, pelas quaes se verifica desde logo a incessante direcção de meu espirito, que se não deixou empolgar só pelo desejo de fazer clinica, mas que se abriu e se espadanou em investigações scientificas, que se formou e se constituiu com a observação dos doen- tes, dando-me critério sufficiente e permittindo-me ter opinião própria, capaz de vos orientar na solução dos problemas que se apresentarem ao nosso estudo. Eu vos fallo destas cousas, porque é preciso que hoje vós fiqueis sabendo que o novo professor, que ides frequentar, traz em sua bagagem alguns volumes de merecimento, que é o que me encoraja a assumir esta responsabilidade, por demais cheia de pesados onus, embora o seja também de magestosas grandezas. E, es- pero, com confiança, merecer a sancção de vossos ap- plausos, vos garantindo empenhar todos meus esforços. 10 toda minha actividade, para vos transmittir os ensina- mentos de que tendes agora precisão, agora que os estu- dos médicos se vos mostram pelo lado mais attrahente, mais pratico, mais necessário, mais utilj á vossa ins- trucção profissional. Meus senhores. Deixaiune, antes que eu entre no fundo do objecto sobre que vou discorrer, eu vos diga ainda duas palavras, que certo ecoarão com calor em vossos corações, que transbordam dos sentimentos no- bres da mocidade, e ahi imprimirão a sensação de res- peito á memória veneranda daquelle que eu invoco, agora, neste momento, para mim inolvidável. E' de Francisco de Castro, respeitável mestre cujos ensinos inda perduram na geração medica de meu tempo, que vos vou falar, para que fiqueis conhecendo, atravez das minhas palavras, uma das maiores personalidades da sciencia brasileira. Foi elle quem me desvendou as bel- lezas do terreno desconhecido que depois pratiquei, quem rasgou os véos do ignoto e me apontou o rumo a seguir, na trajectoria de minha vida profissional, de que me não afastei. Fui um dos muitos que viveram magnetisados pelo seu verbo eloquente, um dos que inda conservam os olhos voltados para o passado, onde sua figura, de rara belleza humana, imperava majestosa e grande, no grande centro, na formidável escola que elle constituiu, formou e elevou. Não podeis fazer idéa, vós que a não sentistes, da attracção do poderio, da for- ça daquella incomparável eloquência e daquella inegua- lavel erudição, que prendia a geração medica a que per- tenci, no circulo encantado de suas lições. Ninguém se lhe approximava que não ficasse embevecido e ligado pelos liames daquella voz portentosa; ninguém o ouvia uma só vez, que não voltasse de novo, como os discipu- 11 los do meigo Nazareno, que o não deixaram nem mesmo no derradeiro momento. Elle tinha a seducção pela palavra, pela palavra "que fala ao mesmo tempo á phantasia e á razão, ao sentimento e ás paixões", pela palavra que "encadeia á sua lyra magica estas féras humanas ou deshumanas, que se chamam homens, arrebatados e enfurecidos nas mais truculentas allucinações" na formosa linguagem de Latino Coelho- Elle seduzia pela rara erudição, pelo grande saber, pela inexcedivel illustração, pela profun- deza de seus conhecimentos, pela convicção de suas idéas, pela fortaleza de suas doutrinas. A' palavra fascinante e sublime unia a força valo- rosa de sua sciencia, e a mocidade de meu tempo, em cujas veias giravam, como giram em todas as épocas e em toda a parte, os sentimentos de justiça e de majesta- de moral, corria pressurosa a cercar o grande mestre, que ella cognominava o "Divino Mestre", formando a seu lado a escola, de onde sahi e de que fui dos mais hu- mildes, embora dos mais sinceros discipulos. Espirito de eleição catechizava a juventude, im- primia-lhe o amor á medicina, apontava as agruras da profissão, mostrando-lhe suas bellezas e seus encantos. Elevado nos seus conceitos, tinha a clemencia celeste para com seus alumnos, a quem perdoava nos erros, que elle chamava "o flagello da humanidade" e que fructificam muitas vezes e valem, não raro, mais do que os acertos ao acaso. Abri o seu tratado de "Clinica Propedêutica" e lede, mas lêde com attenção, o pri- meiro capitulo "considerações geraes", que o vosso espirito se volverá para elle, com a rapidez fulgida do relampago, e ficareis desde logo conhecendo as difficul- dades e tropeços que ides encontrar em vossa carreira. E, guardae, desde já, em vossa mente, um verdadeiro e grande aphorismo, que elle alli estampou e que deveria ser insculpido no bronze, para que todos o conhecessem, 12 e pudessem reflectir as grandezas de seu conceito. Ou- çamol-o, com respeito, porque é a voz da verdade que fala. "Nos casos de tal ordem, são inevitáveis os erros, onde ha de tropeçar a analyse dos phenomenos biologi- cos, na moléstia como na saúde. A impossibilidade de saber é, por esta parte, definitiva: ha ahi, digamos as- sim, um lastro de ignorância "necessária e perma- nente". Em semelhantes condições, coagido deante da fatalidade do erro, por lição de sabedoria e consciên- cia, a renunciar as tentativas sem fructo na esphera da razão empirica, assiste ao espirito o direito de duvi- dar. E a sciencia, por mais longe que leve as suas con- quistas, jámais terá força bastante para abater, atro- phiar ou delir o lobulo da duvida no cerebro do ho- mem". Vêde por este trecho lapidario - colhido na im- mensidade daquelle livro encantador - o espirito phi- losophico do mestre, que pregava a philosophia da me- dicina, que ensinava, por leis, os factos pathologicos, que insistia sobre o valor dos phenomenos geraes, que dissecava os processos morbidos unindo-os pelas rela- ções anatómicas e physiologicas, que synthetisava, em geniaes concepções, a obra da medicina moderna. Nem de outro modo poderia Francisco de Castro ter feito es- cola no Brasil, si não fôra a lógica de ferro que domina- va suas lições e impregnava seus escriptos. Sahidos de seus lábios cada oração era uma sentença, cada juizo um aphorismo. Si quereis avaliar, ainda uma vez, a grandeza de tudo o mais, a grandeza do que a Patria perdeu com seu desapparecimento, prestae attenção a esse bocado de ouro, que eu vou expôr agora á vossa apreciação: "Nada podemos contra as alterações da estructura organica; não ha acção therapeutica capaz de recom- pôr os tecidos que a moléstia desfez... 13 Do esforço humano não se desentranham impos- síveis; desengane-se o medico que jámais conseguirá chegar com a previdência do remedio onde leva a am- bição de cura". Esta sentença vale por um aphorismo. E' de uma verdade que não levanta duvidas- Concebeis desde já que ha estados morbidos que se não curam, porque a lesão é irreductivel e a sciencia do homem imperfeita e limitada. Dito de outra maneira poder-se-ia discutir o facto, procurar sahidas e escapatórias, levantar hypothe- «es, erguer theorias. Mas, accentuado que dos esfor- ços humanos não se pode retirar impossíveis, compre- hende-se a impossibilidade de se restaurarem, com o re- medio, qualquer que elle seja, tecidos que se desfizeram, que se esclerosaram, que degeneraram. Esse - o espi- rito de synthese e de lógica - foi o grande condão que levou o mestre ás regiões alcandoradas de onde ponti- ficava, cercado sempre daquella aureola refulgente, em que a mocidade, estonteada de admiração e com fervor extranho, entrevia os toques de sagração quasi divina. Sentenças como essa descorriam constantemente de seus lábios, que a morte immobilisou para sempre. Não penseis que elle tinha o desanimo de Voltaire, o eterno sceptico que causticava, na sua perenne satyra, a medicina, quando prégava que ella consiste "em pôr drogas que se não conhece em corpos que se conhece menos". A sua orientação era a de verdadeiro sabio, porque seu espirito era forrado de philosophia e ves- tido de lógica. Sua doutrina era a doutrina sã, a dou- trina da verdade. Ha lesões que se não curam justa- mente porque se as conhece, se as analysou, se as veri- ficou e, reconhecidos os effeitos physiologicos dos re- médios não se póde esperar que elles reconstituam o que se perdeu, o que se desfez, o que se diluiu, o que morreu. Tecido degenerado é tecido em que se deu o 14 processo de retrogradação, em que se realisou o pro- cesso de decomposição. Taes eram as lições que elle pregava do alto da cathedra, de onde irradiava a luz da verdade, de onde promanava o facho da sciencia. Vós que não tivestes a felicidade de entrar em contacto com o fulgor daquella intelligencia, abeirae-vos, um pouco que seja, de suas obras, tocae, embora de leve, nos seus escriptos e ha- veis de reconhecer, na riqueza de seu património intel- lectual, o valor de sua personalidade, que eu evoco aqui, em espirito e em idéa, como o maior dos proipe deutas brasileiros, que tanto honrou a medicina, que tanto dignificou o Brasil. Foi sob sua influencia, be- bendo diariamente seus ensinamentos, penetrando no profundo de suas theorias, esposando suas concepções, que se formou a minha educação medica, cuja orienta- ção será a mesma que penso imprimir em vossa intelli- gencia, retiradas, bem se vê, a eloquência e erudição, ã formosa maneira de ensinar e a rara illustração scien- tifica, que lhe eram peculiares, que lhe eram próprias e que constituiam os dons pessoaes, que o puzeram em notável relevo no meio medico nacional. Quero prestar á sua memória - que cada hora abençoo com uncção e enthusiasmo - esse derradeiro preito, o de manter integra a sua escola, que ensinava a medicina raciocinando e observando, interpretando e concluindo, para que da Faculdade de Medicina de São Paulo, possa sahir um dia uma figura que occupe, no scenario scientifico brasileiro, situação de destaque e de honra para esta casa, onde acabo de entrar, cheio de ricas esperanças e armado de risonha confiança no seu futuro. Tende, por isso, sempre em consideração seu exem- plo e guiae vossa vida pela sua, que chegareis assim ás culminâncias, de onde se avistam, no horizonte per- 15 dido do infinito, desenhados em traços de fogo, os con- tornos límpidos da verdade. Meus senhores discípulos: Acabastes os vossos estudos preliminares, os que são indispensáveis e os necessários á vossa instrucção medica. Agora, o terreno é outro, o panorama, que se abre a vossos olhos, differente. Até aqui - vos abarro- tastes de noções que dizem respeito ao homem são, ao homem normal; estudastes anatomia, physiologia e histologia - as sciencias preparatórias e basicas; co- nheceis a composição do organismo humano, aprecias- tes o desenvolvimento de suas funcções, sabeis a cons- tituição intima de todos os tecidos e de todos os or- gams, não vos são extranhas as particularidades mini- mas da economia em saude. De hoje em diante a scena é diversa; são os phenomenos pathologicos que appa- recem ao vosso estudo, as perturbações mórbidas que se mostram á vossa consideração, as moléstias que sur- gem, as enfermidades que se apresentam ao vosso cui- dado, o homem doente que pede o vosso carinho, a vos- sa sciencia, o conforto de vossa auctorizada palavra, auctorizada e caritativa. Até aqui, - a physiologia, agora a pathologia; até aqui a normalidade, agora o desequilíbrio, a anormalidade, a doença. Até aqui - a saude em todo o seu bello esplendor, nas suas majes- tosas manifestações, agora a moléstia, com todos os seus horrores e misérias, nas suas dolorosas demons- trações. As differenças de vista são palpitantes, as co- res do quadro inteiramente oppostas e dissemelhantes. Até então, tivestes de dissecar o cadaver para conhe- cerdes o homem são, que experimentar nos animaes para vos instruirdes das funcções physiologicas, que vos de- bruçar sobre o microscopio para analysardes a estructu- ra intrínseca dos tecidos, a contextura dos orgams; de agora em deante - tendes que apalpar a humanidade em 16 -doença, que recalcar os sentimentos nobres de compai- xão para assistirdes ás dôres de vossos semelhantes, que tactear a miséria humana para formardes e comple- tardes vossa educação medica. Deixastes a necrotheca e o laboratorio de expe- riências; entrastes no hospital. E' junto ao miserável, -que se acolhe á guarida da caridade, que tendes agora de aprender, que tendes de constituir a vossa armadu- ra de scientistas, que tendes de colher ensinamentos que futuramente vos sagrarão apostolos da medicina. Abeirae-vos delle, pois, com respeito e o coração cheio de magnanimidade, porque é elle que d'oravante vae ser o vosso livro, é nelle que ides tocar de perto os principios que formam a sublime arte, a que dedicas- tes a vossa existência. Eis o primeiro e salutar conse- lho que me cabe infligir em vosso animo, aberto a to- das as manifestações de nobreza d'alma, que forram o espirito da juventude sadia. Approximae-vos dos doentes, que a mão do destino e da fatalidade empur- rou para a cama do hospital, com commiseração e pie- dade, porque são elles que vos hão de ser uteis e pre- ciosos Guardae todas as observações que fizerdes, com o máximo carinho, porque são ellas que vos servirão sempre no trafego quotidiano de vossa vida clinica, por- que ellas irão deixar traços profundos vincados em vos- sa memória, impressos em caracteres indeleveis na vos- sa retina psychica- Observae, e observae bem e observae -sempre. Porque, meus caros discipulos, a medicina está toda na observação, "ars tota in observationibus" - mas na observação rigorosa e profunda, na observação ajudada do raciocinio, na observação intelligente e cor- roborada pelas luzes da reflexão. Não basta observar, é preciso observar e reflectir. E' necessário observar de- duzindo, para concluir. Sem o desenvolvimento e o aperfeiçoamento do es- pirito observador, nunca podereis ser grandes clinicos, 17 nunca chegareis a formar opinião criteriosa e pessoal, nunca attingireis a fazer juizo proprio. A base da me- dicina está na experimentação e na observação; os pri- meiros alicerces para a construcção desse portentoso edifício já os tivestes, agora é occasião de preparardes os outros. E é no hospital, nas salas onde as angustias das dores humanas se mostram e se expandem, junto ao leito do padecente, que essa ultima qualidade vae se despertar e se desenvolver, se educar e crescer em vosso espirito. Meus senhores, a medicina, a arte clinica, é muito cheia de difficuldades e de tropeços, e é agora que vós ides esbarrar quotidianamente com os óbices e as muralhas, que vos atravancam a estrada, que ides ver como são frequentes e constantes os trechos, em que a vossa razão entra a duvidar e a fé no valor da vossa sciencia a vacillar. E' que nenhuma profissão exige, como essa, maior somma de esforços e de intelligencia, para que seja levada a termo com dignidade, com per- feição, com nobreza e com probidade. Deante de qual- quer doente, o vosso primeiro cuidado e vossa primeira obrigação, é a formula do diagnostico do mal que o trou- xe a procurar-vos. Sem elle, nada mais podereis fazer; elle constitue a lanterna que se accende para vos mos- trar o caminho, elle é o pharol que vos illuminará, elle é que vos imporá o prognostico e vos dará as normas de tratamento racional a seguir. E, nenhuma emprei- tada é mais ardua, mais penosa, mais difficil que essa do diagnostico. Tendes que colher todos os elementos de que a arte dispõe para conseguil-o, para firmal-o de maneira a aproveitar o doente, desde a applicação de vossos sentidos especiaes até á de apparelhos, desde a inspecção a olho desarmado até á inspecção pelos raios X, desde a applicação da mão, na simples apalpação, até á applicação dos esphygmomanometros, esphymo- graphos, do catheterismo profundo, da endoscopia dos orgams. 18 Todos esses processos de technica vos devem ser habituaes, precisaes conhecer o seu manejo nos seus de- talhes de emprego. Não podereis porém, - e essa é uma noção util que desde já vos ensino - querer conhecer muitos methodos e muitos apparelhos com destino ao mesmo fim; vale mais saber profundamente um delles que muitos, pela rama, superficialmente. Quem percute bem o coração pelo processo Potain póde dispensar os de Goldscheider, Bianchi, Constantin Paul e Bondet; quem emprega, com segurança, o Pachon, póde ignorar os cento e um esphygmomanometros, que não importam muito á illustração medica. Si desejardes vos aprofun- dar em todos os methodos e processos de technica, não vos bastarão nem dois, nem tres, nem cinco annos de estudos- Toda vossa vida será insufficiente para col- leccionar esses principios. E' que a medicina moderna se enriquece cada vez mais de conquistas, que assober- bam o espirito do novato, e cabe-me dar-vos o conselho de procurardes ser bom medico com os conhecimentos das noções basicas, deixando de lado o que é supérfluo, o que é desnecessário, o que é demasia, o que é, afinal, luxo de illustração, futilidade de sciencia. Os tratados a que ides recorrer, com a ancia que afoga a vossa curio- sidade de incipientes nos estudos a que vamos dar co- meço, estão cheios, regorgitam de innovações, que só servem para perturbar o espirito dos principiantes, tur- vando-lhe o entendimento, lançando-lhe a confusão, a desordem, a anarchia. Deveis vos afastar desse caminho, procurar os ensinamentos clássicos, estudar os casos e as cousas mais banaes e mais frequentes, porque esta é a verdadeira estrada, que vos levará, com vantagem e galhardia, ao bom termo de vossa educação. Essa é mes- mo a tendencia do ensino medico moderno na Europa, essa será aquella de que vos vou indicar o roteiro. Ninguém melhor traduziu o pensamento que tenho sobre a maneira de se ensinar a clinica, que o professor 19 Castellino, que, em 1910, escreveu: "As estereis discus- sões theoricas já passaram de moda; as exigências da vida, reclamando um resultado rápido e immediato, fa- zem convergir nossos esforços para um fim mais directo e mais proximo, qual o de guiar os alumnos, sem rodeios e sem inutilidades theoricas, ás difficuldades do dia- gnostico e ás provas therapeuticas sobre o doente, que nos não pede outra coisa senão o nosso soccorro". E' o ensino pratico, aquelle que melhor vos aproveitará e re- sultados mais beneficos irá vos dar. Agora que ides entrar pela primeira vez em conta- cto com o doente, conheço, por experiencia própria, que ides ficar obumbrados pelas difficuldades, que serão cada vez maiores, que serão engravescentes, si quizerdes exgottar os methodos de exame, os processos de diagnos- tico em cada caso. E' que a vossa instrucção medica é ainda incompleta, é muito imperfeita. Ides encontrar o doente, mas não sabeis o que é moléstia, não tendes noção da differença que vae de moléstia a affecção, não distinguis exactamente o que é enfermidade. Ides ouvir falar no rheumatismo agudo e na choréa como causas determinantes das lesões endo- cardicas e não vos foi ainda dito em que consiste o valor dessas causas, nem quaes as distancias que as separam das predisponentes e occasionaes. Ides encon- trar, na minha linguagem, referencia a estados diathe- sicos e não tendes sciencia do que são diatheses. Vêr- me-eis formular diagnostico de nevrite, dyspepsia, in- sufficiencia mitral e não conheceis nem suas lesões, nem seus factores etiologicos, nem seu quadro sym- ptomatico. Eu vos aconselho, por isso, muito bôa von- tade e muita attenção no inicio do curso, no principio de vossa aprendizagem clinica, para que ella se faça lentamente, noção a noção, até que vossa intelligencia se encontre armazenada de elementos, capazes de per- mittirem estudos mais profundos, mais completos, mais 20 especialisados. A pouco e pouco esses conhecimentos irão se infiltrando em vosso espirito, gradualmente e insensivelmente, ganhando terreno a par e passo, como uma gotta de oleo lançada sobre um papel de filtro e que, de vagar, o vae tomando de uma extremidade á outra- Só assim tereis solida instrucção, que vos apro- veitará mais tarde no trafego constante e diuturno de vossa vida profissional. Eu comprehendo que vós vos achaes anciosos de aprehender em pouco tempo abundantes e bastas noções e de formar grande cabedal scientifico; comprehendo que deveis ter fortes illusões sobre a arte clinica, acre- ditando se armazenem, em espaço limitado, muitos ensi- namentos, capazes de vos tornarem desde logo habilita- dos no officio que agora se vos apresenta pelo seu lado mais encantador. Já assim pensei, já me illudi como vós outros. Mas, não quero deixar cresça em vossa mente esse engano e desde já vos arranco, com energia, todos os enlevos com que elle forrou talvez o vosso entendi- mento, para que mais tarde não tenhaes de soffrer os golpes da desillusão, que é sempre dolorosa, que é sempre pungitiva, que é sempre ferina ao coração da mocidade. Estudae, estudae muito, porque é a medicina, re- pito e repetirei sempre, um ramo dos conhecimentos humanos muito cheio de pesados onus e de agrestes abrolhos. Não confundi a verdadeira sciencia, essa que é a ministrada nesta casa, com a arte espalhafatosa, que veste os truões de todos os tempos e de todas as épocas, e que representam tristes comedias no palco immenso da vida, jogando com o que ha de mais precioso na existência e que é a própria existência. Esses são di- gnos de lastima e de compaixão. Afastae-vos delles desde já e olhae-os com commiseração, e lembrae-vos das palavras evangélicas, que pregam deixal-os porque 21 não sabem o que fazem. A medicina requer estudo cons- tante, perseverante, persistente, obstinado, capacidade intellectual avantajada, observação intelligente e cui- dadosa, desde já, em que ides tocar pela primeira vez os doentes que se vos mostram no hospital, com o co- ração coústrangido deante a miséria humana, até o termo ultimo de vossos dias, quando tiverdes chegado á situação culminante de elinicos abençoados pela po- pulação, quando tiverdes alcançado o apogeu de vossa carreira e conseguirdes ver os beneficios que espalhas- tes, as vidas que roubastes á morte, consagrados pela humanidade, que se afastará, com respeito e attenção, á vossa passagem. E' que a medicina caminha sempre e a passos largos, cada vez mais se abastece de ensina- mentos. se enriquece de elementos capazes de a torna- rem perfeita, exacta nas suas affirmações, para que possa attingir ao apuro de seu desenvolvimento. Basta se fazer um exame retrospectivo do que ella foi e do que ella é, para que essa convicção se firme em traços bri- lhantes em vosso espirito. E não quero, nem devo, pra- tical-o considerando-a em passado remoto e no pre- sente; o parallelo seria muito desegual, absurdo mes- mo, e a comparação não mereceria valor. O que ella é hoje e o que foi antes de Pasteur sabeil-o já; o que era antes do advento da microbiologia e o que é após a theoria microbiana, são noções que já recebestes. Eu quero vos mostrar, apenas, para patentear sua força evolutiva, a medicina que aprendi e a que sou obrigado agora a vos ensinar. E' uma outra sciencia toda nova, toda outra, meus caros amigos. Si eu tivesse parado em 1900, quando me doutorei, e não tivesse acompanha- do, com attenção, o desenvolvimento da sciencia, si ti- vesse ficado com os conhecimentos que trouxe da aca- demia, si nunca mais houvesse aberto um livro, lido uma revista, frequentado as enfermarias, trocado idéas com collegas, emfim, si entre estes dois periodos uma 22 muralha impenetrável se formasse, eu não deveria, em consciência, hoje achar-me nesta cadeira, porque não poderia então vos encaminhar nos estudos de medicina, viria dar-vos a dolorosa impressão de um velho a contar historia antiga, de um antiquário colleccionador de ve- lharias. E, no emtanto, apenas são passados dezesseis annos, espaço de tempo muito limitado e que não deve- ria ter aberto tão formidável brecha, tão profundo sulco nos conhecimentos humanos- Eu sou de uma época, em que o laboratorio não existia como auxiliar do diagnostico, de uma época em que os raios X iam apenas levantando a cortina do desconhecido e appare- cendo, inda envoltos em densas brumas e obscuridades, de uma época em que o parasito da syphilis era igno- rado, de uma época em que a reacção de Wassermann não beneficiava ainda a diagnose clinica, de uma época em que a chimiotherapia estava dando os primeiros passos inda mal tropegos, de uma época em que se du- vidava e se vacillava em affirmar juizos que, hoje, es- tudantes do 4.° anno medico têm obrigação de formar e verem confirmados. E' uma outra sciencia a que eu tenho de vos ensi- nar agora. Não penseis que esta oração seja uma hy- perbole para vos fascinar. Em qualquer que seja o cam- po que eu escolha para demonstrar o valor desta asser- ção, vós verificareis a veracidade de meu pensamento. Na pathologia cardiaca, por exemplo, quanta diffe- rença, quanta conquista nesses annos decorridos e tão poucos. No meu tempo, toda a importância diagnostica estava no reconhecimento dos sopros, saber si eram de natureza organica ou extra-cardiacos. O estado do myocardio de nada valia. A tensão arterial não mere- cia maior importância. Do pulso venoso tinham-se idéas vagas e vasias. Das propriedades physiologicas do musculo tudo se ignorava; conhecia-se que elle tem pa- pel saliente na contractilidade do orgam, mas desco- 23 nhecia-se inteiramente que elle é quem governa a vida e que sua lesão vale mais que as que se assestam nos orificios. Feixe de His, nodulos de Keith e Flack, de Tawara, passavam sem nosso conhecimento; alguns, eram apenas questões anatómicas sem interesse. Hoje tudo mudou, e como mudou! As arrythmias eram banalidades clinicas e se as estudava, sem as com- prehender, em quatro palavras. Veiu, porém Macken- sie, nome obscuro e que se immortalizou repentina- mente, vieram Gaskell, Engelmann, Hering, Eintho- ven', Merklen, e a revolução foi completa. Quasi tudo ruiu por terra, muito pouca cousa ficou de pé! Só ficou o que a observação clinica tinha apurado, só ficaram os factos observados conscienciosamente e a descripção symptomatica- Mas, o resto atulhou-se na valia em que se jogam as noções imprestáveis. O que se quer saber, hoje, em cardioqjathologia, não é si existe um sopro da base, propagado para a ponta do coração, occupando toda a diástole, diminuindo de intensidade á medida que se vae terminando a phase de repouso do orgam. Isso que era tudo outr'ora, merece, nos tempos que correm, diminuta importância- Hoje, quer se saber em que condições se acha o tonus cardiaco, como se re- presentam a tensão systolica e a diastolica, si o cora- ção tem energia sufficiente para supportar os embates das correntes sanguineas, que retrocedem e se encon- tram, si o feixe de His conduz normalmente a excitação partida do nodulo de Keith e Flack, si não ha inter- rupção em sua passagem, si as propriedades inotropi- cas do musculo se acham validas e perfeitas. Procura-se o pulso venoso e verifica-se si o traçado é normal ou si apresenta irregularidades. Para estudar as arrhyt- mias não basta dizer-se, como no meu tempo, que ella é cadenciada, allorhythmia de Sommerbrodt ou aty- pica, quando interessa "a sequencia, a duração, o nu- mero dos batimentos do coração". 24 Falar actualmente dessa maneira é demonstrar ignorância. E, no emtanto, assim falavam outr'ora os mestres queridos! Hoje não se póde affirmar a existên- cia delia, sem se estar de posse do traçado do choque da ponta, do pulso radial e venoso, sem se verificar si a conductibilidade do feixe de His está interrompida ou não, si ha íibrillação auricular de Lewis, si existem extra-systoles - todas noções que o genio de Macken- sie - o velho medico de Burnley e que no sentir de Jean Heitz evoca no espirito de todo clinico instruido a imagem de um dos melhores pioneiros da sciencia moderna - colleccionou e desenvolveu e aperfeiçoou transformando os conhecimentos de cardio-pathologia, baseados todos nos estudos de physiologia. A syndrome de Stokes-Adams era outr'ora, ha poucos annos, a forma cardio-bulbar da arterio-escle- rose generalizada e ahi estacionava tudo que a sciencia registava de sua pathogenia. Hoje, e dentro em pouco ireis sabel-o, é o producto de interrupção da proprie- dade dromotropa do feixe de His. Vêde a differença como é collossal, como é espantosa! Antigamente, era uma cousa vasia, apenas retumbante, o que se ensinava a seu respeito; agora, a anatomia pathologica, de mãos dadas com a clinica, interpreta fielmente o que occorre nessa syndrome, que é, aliás, de não rara observação. Ha ainda, é bom que eu vos avise, controvérsias e dis- cussões sobre muitos casos, mas o principal já está fóra do terreno onde se batem as hypotheses e já está consagrada a base de seus ensinamentos pelas provas anatomo-clinicas. Si quizesse demorar-me em estudar outros casos, em que a renovação das theorias foi com- pleta, levaria, muito tempo e teria que passar em re- vista toda a cardio-pathologia. E' que o alicerce sobre que a sciencia se apoiava outr'ora baqueou, acarretando na sua quéda todos os factos que nelle se firmavam, é que a physiologia trouxe um descortino differente ao 25 estudo das lesões cardíacas e, alliada á observação, transformou inteiraniente a orientação da pathologia, que é hoje completamente nova daquella que estudei, quando me sentei nos bancos que agora honraes. O exame de sangue era de alcance rudimentar. Procurava-se a taxa da hemoglobina, numeravam-se os globulos vermelhos e os brancos, distinguiam-se super- ficialmente as granulações leucocytarias, buscava-se o hematozoario de Laveran, cujas formas se achavam mal esboçadas, e a filaria que mal se interpretava. Nisto consistia todo o esforço de meu tempo. E como se estava adeantado, como se andava preparado! A re- volução ahi foi total também. Hoje, o exame completo do sangue, com o estudo da curva dos leucocytos, o valor da polynucleose e da eosinophilia, a apreciação das alterações das hematias, a presença dos trepone- mas e dos spirillos, veio trazer um facho de luz rubra e brilhante, que muito auxilia a obra do diagnostico e o póde firmar, de modo inabalavel, seguro, inacessível á critica, verificado pela necromatopsia. A leucemia, os estados anémicos, as infecções - mormente a syphilis - como ganharam, como lucraram com esses elemen- tos que hoje são indispensáveis em clinica! A cytologia dos líquidos nasceu dessas novas conquistas e ninguém hoje tem ma is o direito de punccionar a pleura, sem procurar reconhecer a natureza do derrame- Em 1899 mal se balbuciava nesses estudos, mal se davam os pri- meiros passos nessas pesquizas. A analyse do liquido cephalo rachidiano não se fazia - e vós deveis saber que actualmente é indispensável se a pratique, para fir- mar diagnósticos cujas duvidas ella esclarece e illumi- na. Na tabes, na paralysia geral, na syphilis cerebral, a perquisição desse liquido se impõe, é obrigatória como a de se percutir o figado para reconhecer o seu volume, como a de se examinar os escarros para encontrar os bacillos de Koch. Que somma enorme de ensinamentos 26 não trouxe á diagnose esse exame, sobre que se calava na occasião em que me doutorei! Relativamente ás con- quistas de laboratorio, como elementos de utilidade clinica, então, nem falemos, meus amigos. O laborato- rio era uma luz apagada, mal bruxoleava, sem clarões nem jactos de brilho. E, hoje, o excesso vae a não se o dispensar, ao erro de se basear mais em seus resultados que na observação do doente. Fugi, porém, dessa norma, porque ella vos levará muitas vezes por caminhos erroneos, vos afas- tará, não raro, da trilha da verdade, que procuraes attingir, com cuidado. A medicina, não é uma sciencia exacta e positiva, e não deveis confiar demasiado em nenhuma prova isolada, porque são communs os enga- nos e as desillusões. Conto-vos apenas um caso para que possaes tirar as illações que elle comporta. Adoece uma creança, e ao lado de pyrexia continua, cresce o baço desmedidamente, collosalmente e hemorrhagias apparecem, nas gengivas, no intestino e no estomago. O clinico, conhecedor de seu officio, estabelece o dia- gnostico de leucemia, a que o levou a observação intel- ligentemente feita do doente, mas pede pára confirmal-o as luzes do laboratorio. Imaginae agora que o analysta, de posse dos elementos necessários ao exame, encontra reacção de Wassermann positiva, reacção de Vidal, po- sitiva igualmente, com as demais provas que falam em favor da febre typhoide, e grande leucocytose lympho- cytica indicando a leucemia. Quer dizer que o labora- torio trouxe á tela do diagnostico, para confundil-o e não para elucidal-o, tres hypotheses differentes, tres moléstias inteiramente diversas - a syphilis, a dothie nenteria e a leucemia. Acreditaes que o doente era por- tador desses tres estados morbidos, que surgiram inopi- nadamente em plena saúde? Não deveis crel-o, nem é possivel que assim seja. E, no emtanto, não ha negar - alli estavam os documentos que falavam pelas tres 27 entidades pathologicas. Mas, concebeis que não se pode dar ao laboratorio esse valor e que uma unica dessas doenças - e sem duvida a leucemia, porque o exame clinico a impunha - se achava em scena. Por ahi podeis fazer idéa de que não deveis calcar vosso diagnostico em único de seus elementos, nem dei- xar o vosso espirito se inclinar só para as investigações do laboratorio, quando, e sobretudo, a clinica lhe fôr opposta lhe fôr em sentido contrario. Mas, isto não lhe tira o seu valor e antes eu quero agora vos aconselhar a jámais dispensal-o, a nunca deixar de procurar a sua documentação, que é sempre e incontestavelmente va- liosa, e subsidio notabilissimo, á obra do diagnostico. Quando estudei, no velho edificio da rua da Mise- ricórdia, do Rio, um capitulo da medicina estava intei- ramente fechado. Delle pouco se conhecia e mesmo nes se pouco se andava ás apalpadelas, como o viandante em noite escura, com lanterna mal accesa e pouco lu minosa. Tudo, ou quasi tudo, estava immerso em trevas profundas. Os espiritos mais atilados percebiam, na confusão do pouco que se sabia, o muito que se iria saber. E, hoje, decorridos que são apenas dezeseis an- nos, intensa luz se projectou sobre esse trecho da pa- thologia, multiplicaram-se estudos, irromperam dos la- boratórios trabalhos e mais trabalhos, a physiologia correu de encontro á clinica e o campo das moléstias de secreção interna appareceu no horizonte da medi- cina, querendo tudo conquistar e tudo interpretar. No meu tempo, não se ignoravam o thyroidismo, a acromegalia, e a syndrome de Addison; tinha-se noções vagas sobre as perturbações ovarianas e as parathyroi- dianas. Mas, todos esses conhecimentos eram superfi- ciaes e tão sem valor que não importavam á educação medica. E, como mudaram as cousas! Hoje, é preciso se resistir para não attribuir todos os phenomenos mor bidos a desarranjos nas secreções internas, tal o papel 28 que, está verificado, ellas exercem na economia. Mas, evidentemente a sua influencia é notável e seu valor indiscutível. E não se póde, de modo absoluto, negar que são devidos a desvios no seu funccionamento, um certo numero de estados morbidos, que até pouco esta- vam sem interpretação. Assim é que a syndrome de Dercum, a osteo-malacia, o rachitismo, um certo nu- mero de affecções cutaneas, a obesidade, a syndrome de Miculicz, são tidos como dependentes do hypothyroi- dismo; a tetania é filiada á diminuição de funcção da parathyroide, a syndrome de Erb e a de Parkinson ao exaltamento de seu trabalho. Querem alguns auctores ainda subordinar ao hypothyroidismo um grupo de affecções - a eclampsia, a epilepsia e a choréa - que são. sem duvida, o fruto de intoxicação, banindo-se, co mo se ha de banir, a hypothese que as faz entrar no grupo das nevroses e que a anatomia pathologica ha de um dia reconhecer-lhes as lesões, os desvios anatómicos na trama organica dos tecidos. O hyperthymismo, ahy- porchidia, a hypoovaria vêm egualmente sendo lembra- dos para a explicação de phenomenos, cuja filiação nos deixava sempre em duvida. Os estudos de Claude e Gougerot, creando a dou- trina das syndromes pluriglandulares, lançaram um facho de luz sobre a pathologia, elucidando capítulos até então obscuros, permittindo se possa caminhar ás claras, sem receio de tropeços nem cabeçadas. Esta linguagem, meus senhores, é nova, como novos são os estudos que a physiologia e a pathologia, entrelaçadas e irmanadas, produziram e fizeram surgir do immenso cahos em que jasiam, e vós sois mais felizes que eu fui, porque viestes aprender esses conhecimentos na época mesma em que elles têm o brilho do momento. A pathologia renal soffreu egualmente um avanço considerável- As theorias sobre as uephrites, a tricho- tomisação clinica delias, o papel do chlorureto de sodio 29 na parnogema dos edemas e a cura aa uescmoruraçao. a constante de Ambard, a dosagem da urea no sangue, são factores posteriores ao meu doutoramento e ides vêr como transformaram, como modificaram, como simplificaram as noções que tínhamos e que hoje cha- mamos de velhas, como si se pudesse chamar de velhas cousas que ha poucos annos eram correntes, eram clás- sicas, estavam solidas como blocos de granito. E' que a evolução se processou em quasi todos os terrenos da medicina, é que a medicina de hoje, meus senhores, é uma sciencia nova, raais avançada, mais estável, embora esteja longe ainda o "algebrismo de a 4- b", na formosa formula de Francisco de Castro. Não me estenderei mais, porque não preciso mais dizer. Vistes que a medicina que vos vou ensinar é bem outra que aquella que me ensinaram. Não abandoneis, pois, os vossos livros, não deixeis de frequentar as en- fermarias, porque do contrario fugireis á nobre missão que o vosso titulo vos vae outorgar. Não cesseis de observar, porque é só com a observação que podereis attingir a formar o vosso critério pessoal, a fixar a vossa opinião própria, a constituir o vosso espirito cli- nico. E será assim que podereis, ao cabo de vossos dias, quando o inverno da vida houver coberto de neve vos- sos cabellos, guardar a certeza de terdes acautelado os interesses de vossos doentes, que se vos entregam com segurança, tranquillos no valor de vossa sciencia, e apoiados na fé de vossas convicções. Esse é que deve ser o único objectivo de vossa profissão, nobilíssima, como nenhuma outra ha que mais o seja, si comprehenderdes bem o ministério que a investidura consagra, em que vossos actos e vossas palavras precisam ser cheios de uncção e caridade, no exercício desse sacerdócio, que si não veste as roupagens que a religião impõe, inspira a mesma reverencia e infunde a mesma majestade. 30 Resipeitae os soffrimentos dos que se vos chegam tocados pela mão de Deus, com piedade e doçura, le- vantae, com as blandícias de vossos conselhos, a alma soffredora dos que vos procuram com o coração trans- bordando de esperanças, que só deste modo recebereis a paga terrestre de vossos sacrifícios, a remuneração bastante de vossos esforços, de vossa intelligencia, que se gasta no labor constante e ininterrupto da existên- cia, que só deste modo ganhareis os louvores da huma- nidade e colhereis as bençams do céo. 31 0 Laboratorio e a Clinica<n Meus Senhores Eu vos confesso, com a maxima sinceridade, que a unica posição que sempre me attrahiu, desde os bancos académicos, foi a de professor de clinica medica, que é o supremo gráo do magistério no templo de Hypocra- tes. Foi sempre essa a minha unica ambição, que o destino não deixou realisar, com os titulos officiaes, mas que a vossa generosidade acolheu com o enthusias- mo juvenil, sempre louvável, sempre nobre, sempre di- gno, ouvindo-me annualmente, com attenção, nas pra- ticas que entretêm a nossa convivência nas épocas de repouso escolar. Eu me fiz clinico ao vosso contacto e si não me fiz mestre - que pouco sei para vos trans- mittir - ao menos resta-me o doce consolo de vos ver (1) Licção proferida no Curso Livre de Clinica Medica, na Santa Casa de Misericórdia em 17 de Dezembro de 1911. 33 unidos ao meu lado, cada vez mais presos á minha pa- lavra, aprendendo commigo o pouco de que dispõe o meu cabedal scientifico e ensinando-me o muito que tenho sido obrigado a consultar para vos satisfazer. E' sempre essa a tarefa do ensino e esse é o melhor fructo que ahi se colhe - a aprendizagem reciproca, que nasce dos desejos de se instruir de uns e da necessidade de saber para educar de outros. Eu vos agradeço, mais uma vez, a vossa presença e inicio hoje o meu curso de clinica medica. Iremos percorrer, meus jovens amigos, os casos clínicos que se forem mostrando diariamente na nossa sala do hospital e desde já vos digo, como sempre me tendes ouvido dizer, é o diagnostico que vae nos prender mais a attenção. Elle é, deveis sabel-o, o eixo da verdadeira medicina. Sem diagnostico, sem o conhecimento certo da moléstia de que é portador o doente, sem noção precisa das condições em que se faz a reacção de cada organismo, em cada indivíduo, não pôde haver clinica sensata, não póde existir a verda deira sciencia, não subsistirá a máníma parcella de probidade profissional- O diagnostico é a base do pro- gnostico e egualmente do tratamento. O mais que se verifica, quotidianamente, aqui e em toda parte, de se tratarem e cuidarem os doentes sem a apreciação exacta do seu estado, sem a firmeza no juízo da moléstia que os obrigam a procurar a medi- cina. não merece os fóros de sciencia, é uma burla fu- nambulesca que enterra reputações, destróe a con- fiança nas conquistas scientificas, levanta uma mura- lha obstruidora ao caminho da verdade. E' certo que nem sempre elle póde ser feito, é incontestável que muitas vezes as duvidas se entrechocam na mente do clinico, mas entre a existência de diagnostico difficil de casos, em que ninguém póde fazel-o, não obstante os recursos modernos e o facto de não se procurar conhe- cer o mal de que é portador o doente, a differença é 34 tão grande e tão profunda como a que vae de uni dia- mante bruto a um pedaço de gelo. Eu não vos conto cousas novas. São velhas e reve- Ihas. Si falo delias é para que vós os moços vos compe- netreis dessa asserção, de que sem bom diagnostico não se póde formular prognostieo, nem instituir segura therapeutica, que aproveite os interesses do cliente. E, quando falo em diagnostico, é preciso que sai baes egualmente que falo no diagnostico total de vosso caso. Não basta dizer que um indivíduo tem febre ty- phoide ou insufficiencia aortica e não é preciso sup pordes que, com essa ennunciação tão simples, o espirito fique satisfeito. Não. A febre typhoide tem muitas mo- dalidades clinicas, desde a forma banal, commum, até os differentes typos baseados sobre a variedade dos symptomas, sobre a sua evolução, sobre o seu começo, muitas vezes especial, sobre o meio em que ella inter- corre, formas que comportam, cada uma, juizo diverso, prognostico differente e permittem therapeutica variada. E' preciso conhecerdes da resistência do myocardio em cada caso, sabido como deve ser que, no 3.° septenario, quasi todos os typhosos apresentam enfraquecimento, de- bilidade do musculo cardiaco e os collapsos não são ra ros; é necessário terdes noticia das funcções renaes, que sobrelevam de importância nessa moléstia, em todo o seu percurso: é indispensável attenderdes aos pheno- menos nervosos, ás perturbações intestinaes - tudo isso influindo para o vosso conceito prognostico, como para a instituição de therapeutica util e efficaz. A in- sufficiencia aortica pede a mesma attenção, saber si é endocardica ou arterial, si se acompanha de myocar- dite, si é seguida de desordens na circulação cerebral e renal, perturbações que importam mais que o simples ennunciado da affecção, que nada adianta, sem o con curso desses elementos, que affirmam noção prognos tica indispensável á proveitosa e benefica medicação. 35 Como vedes, o diagnostico não se deve limitar a uma formula simples e a uma expressão unica, ao titulo da moléstia ou affecção de que é portador o indivíduo. Porque, o intuito do estabelecimento do juizo clinico é sempre a formula do prognostico e esse não póde ser feito sem o conhecimento exacto das alterações que a moléstia provoca no organismo, alterações que, varia- das como são, muito influem para o tratamento. E' por isso que muitos, e abalisados professores, julgam o pro- gnostico o elemento de mais valor a se conhecer em dado caso. Leia-se a opinião do professor Leyden, em sua magistral monographia - do prognostico das mo- léstias do coração - e a convicção que desde logo sobre- sahe é que, para elle, o prognostico é a peça que mais importância merece ao clinico- Assim é que elle se exprime, nesse trabalho, que todos os médicos têm obri- gação de conhecer, tão profundas são suas idéas, tão grandes seus ensinamentos, tão importantes suas con- clusões : "Tem-se muitas vezes inquirido qual a mais apre- ciável das aptidões do clinico, e por qual destas primei- ras poderemos ajuizar do seu valor. Conceituam uns que é o diagnostico a verdadeira pedra de toque; opi- nam outros - entre estes me colloco eu - que o pro- gnostico. Por fim de contas, o melhor medico se affirma pelos melhores resultados obtidos na sua clientela, me- recendo superior credito aquelle que consegue salvar maior numero de doentes e das mais difficeis situações clinicas." Potain, o grande cardio-pathologista, se manifesta de accordo com o emerito professor, cuja opinião acabo de transcrever. O meu finado mestre Francisco de Castro, cujos ensinamentos, até hoje, conservo, envol- tos pelo crepe da saudade dolorosa daquelle grande espirito, immoredouro no coração de seus discípulos, já se exprime de outra forma, coincidindo o meu modo 36 de entender com o do meu pranteado iniciador nos segredos da arte hypocratica. Assim disse elle, com a correcção de sua linguagem castiça, annotando o tra- balho de Leyden que traduziu "mas não percamos de vista que o maior interesse do prognostico provem de que são precisamente os phenomenos morbidos - si- gnaes e symptomas - tirados da historia e do exame do doente e necessários á formação do juizo prognos- tico os mesmos que servem para orientar o trata- mento." Portanto, sem noção precisa do diagnostico, im- possivel o prognostico e mais impossivel ainda o trata- mento. Como se tratar uma lesão cardiaca, em seu periodo de asystolia, si não se conhece exactamente qual a sua séde, si se não sabe da resistência myocardica, si se não é informado do estado da circulação peripherica, si se ignora qual a tensão arterial, qual a situação dos emunctorios renaes? Como fazer o prognostico desse processo morbido, si faltam todos esses elementos, na inópia destas informações, que uma unica ausente pode conduzir a juizo erroneo? Dá-se digitalis a todos os individuos? Desengana- se-os todos? Melhor seria então, meus caros amigos, fechar os vossos livros e cuidar de outro officio. Não obstante é essa a maneira quasi generalisada de proce- der. O individuo A é um cardiaco - diagnostico; está perdido - prognostico; - digitalis - tratamento. Mas não é absolutamente esse o critério que a verda- deira medicina aconselha. E isto pode ser tudo, receber todos os nomes que quizerdes, mas tem tanto de sciencia como a magia, o chalatanismo e a ignorância. Bem sabeis que não são esses os ensinamentos que a Faculdade prodigaliza e nenhuma questão ha que mereça mais attenção que a do tratamento das lesões cardiacas, onde agora um 37 pouco de luz vem surgindo, após os estudos da physio- logia do musculo, do conhecimento das propriedades a elle inherentes. E o que digo sobre esse caso se applica aos demais. Como diagnosticar um estado anémico, sem a apre- ciação do exame do sangue, sem a indagação precisa do elemento etiologico, sem pesquizar cuidadosamente a cauza que concorre para a diminuição do numero de hematias e depreciação da hemoglobina, sem inda- gar, por analyse profunda - exame caput ad calcem - si existe ancylostomiase, si ha um câncer occulto, um processo hemolytico qualquer que passa desaperce- bido. si se trata de anemia syphilitica, da paludica, da bryghtica - que sei eu - de um sem numeros de cau- zas capazes de originarem a mesma situação mórbida? Como fazer o prognostico na ausência, na falha de dia- gnostico acertado? Porque, sabeis, a anemia perniciosa, que é estado, como seu nome indica, pernicioso, grave, muitas vezes ou quasi sempre irremediável, pode soffrer recúo na sua marcha e permittir desappareça. Basta verdes que a anemia bothriocephalica, a ancylostomia- sica, a palustre, a syphilitica. são passíveis de cura, com a expulsão do elemento pathogenico, emquanto a cancerosa é mortal, porque traduz intoxicação genera- lisada, processo de hemolyse que nenhuma therapeutica faz retroceder. Como assegurardes, com vossa opinião seientifica, o exito da medicação si desconheceis exacta- mente a natureza, a especie da syndrome que se acha em scena? Dareis a todos elles os ferruginosos, os arse- nicaes. os glycero-phosphatos, os excitantes nutritivos? Bella maneira será essa de nunca merecerdes o conceito de bom medico, porque os insuccessos serão tantos quantos os casos examinados. E' por isso, senhores, que o provérbio popular, que conheceis - diagnostica quem pode e trata quem quer - é uma realidade e merece, de vossa parte, a maxima 38 attenção, para que fiqueis formando na fileira dos que bem diagnosticam para bem tratar. Com esses palpitantes exemplos quero crer fixei o vosso espirito no capitulo mais importante da scieucia medica. Que o diagnostico constitue o fundamento da me- dicina já deveis estar compenetrados, pelo vigor de linguagem com que desenhei o seu valor. Mas, não quero deixar-vos ir, sem vos debuxar o pensamento de Reger, que diz, com a sua autoridade sempre respeitável "estabelecer um diagnostico exacto e completo é procurar a satisfação que sempre se expe- rimenta quando se resolve um problema difficil; e também, o que é mais importante, fornecer indicações precisas ao tratamento." (x) Ahi vedes que meu modo de entender se coaduna com o do emerito professor. Sobre as relações entre o diagnostico e o prognostico vereis que ainda tocamos afinados pelo mesmo dia- pasão. Assim é que elle pontifica, "num grande numero de casos diagnostico e prognostico são connexos. Uma creança apresenta symptomas que fazem pensar no diagnostico de meningite tuberculosa; o prognostico é desde logo fatal. Ora, por um exame mais detalhado poder-se-á encontrar alguns phenomenos insolitos e por auscultação mais cuidadosa ouvir um sopro tubario no thorax, Tratava-se não de uma meningite, mas de acci- dentes meningêos dependentes de uma pneumonia. A terminação será toda outra; o doente se restabelecerá. Eis ahi uru caso, em que o erro do prognostico está ligado a um erro de diagnostico." Ahi tendes, mais clara ainda, a minha maneira de sentir, mais clara e direi, mais autorisadamente expres- sa, bem explicita. Apenas discordo do modo por que se ennuncia o eminente clinico, quando fala em grande (1) II. ROGER, Introduction à 1'etude de la medecine, 1908 39 numero de casos. Para mim, é sempre o diagnostico a base da medicina - a pedra angular do prognostico, o eixo de redor o qual se move a therapeutica scientifica e sensata. Mas quiz vos mostrar a lição do scientista francez, para corroborar, com sua competente opinião, minha maneira de considerar as cousas. Quero que leveis, portanto, esta convicção bastante arraigada na vossa mente, para que a tenhaes sempre presente á cabeceira dos doentes. O diagnostico, bem o sabeis, tem duas fontes onde bebe ensinamentos, duas correntes que se complasmam para constituil-o, duas origens que se reúnem para fundamental-o - de um lado, o exame clinico do doen- te e de outro os methodos de laboratorio- Sob a desi- gnação de methodos de laboratorio eu quero que com- prehendais que ahi incluo, arbitrariamente, não só as pesquizas e analyses chimicas, como egualmente o exa- me electrico, a radiographia, a orthodiagraphia e a applicaçao dos apparelhos, desde o simples abaixador de língua até á complicada endoscopia. Todos os pro- cessos de investigação devem ser aproveitados, não abandoneis os que parecem menos uteis, porque elles podem vos servir de muito e não raro conduzem ao co- nhecimento da verdade que procuraes. Uma unica per- gunta, muitas vezes, pode vos fazer abandonar caminho errado. Eu exemplifico para vos fixar. Um doente apresenta o nariz typico do indivíduo syphilitico; ao lado disto, soffre de dores de cabeça, tem vomitos e symptomatologia que vos conduz, sem receio de engano, ao diagnostico de infecção luética. Submetteis esse individuo ao tratamento especifico e observaes que as melhoras são nenhumas ; ao contrario, tudo se aggrava. Por acaso lhe perguntaes, um dia, ha quanto tempo está o nariz achatado, si é de nascença que assim elle se mostra ou si veio no inicio do mal actual. Tm a gin ae a decepção ao saberdes, pela resposta, 40 que o nariz, caracteristico da syphilis, foi consequên- cia de quéda, de accidente, de couce de animal, e assim vae-se por terra o vosso diagnostico, que um unico si gnal parecia confirmar! Este caso não é isolado e vos mostra a necessidade absoluta de não desprezardes o minimo ensinamento, que vos póde esclarecer na tarefa ardua que tomaes sobre hombros, de formular diagnos- tico certo. Do mesmo modo no que se refere ás pesquizas de laboratorio. Nunca deixeis de fazel-as. Tendes um doente em estado uremico, debalde examinaes sua urina, seu sangue, em vão procuraes a causa desse estado morbido, percorreis toda a symptomatologia da syndrome nas diversas moléstias que a originam e não podeis chegar a uma conclusão que vos satisfaça. Re corra porém, um de vós, á puncção lombar e o exame cytologico vos demonstrará a existência de franca re- acção lymphocytaria, de lymphocytose caracteristica da intoxicação saturnina. Occorrencias como essas não são raras, e a therapeutica poderá ainda - quem sabe? - salvar o a osso doente, que uma pesquiza unica, antes desprezada, impõe o diagnostico e afasta outras hypo- rheses em campo. Eu poderia, si quizesse, multiplicar os exemplos. Bastam esses dois para fazer comprehender o alcance dos methodos que a propedêutica dispõe para a obra fundamental da clinica, não precisando insistir na obrigatoriedade do medico de examinar o catarrho de quem tosse e expectora, o sangue de quem apresenta espleuomegalia ou accessos febris intermittentes, as fezes do anémico, de praticar o exame cytologico do pleuretico e as urinas dos hydropicos, de fazer a radio- graphia dos tumores thoracicos pulsáteis. Como vedes, ha necessidade absoluta, hoje em me- dicina, de se reunir ao exame clinico do doente, feito nos velhos moldes da arte hypocratica, com o conheci 41 mento exacto da pathologia nas suas conquistas moder- nas, o exame do laboratorio, a analyse não só chimica como bacteriológica e a applicação de apparelhos, cuja technica tendes obrigação de conhecer. Resta-me que eu me manifeste sobre o valor de cada uma dessas duas fontes de elementos diagnósti- cos, porque a noção que anda por ahi, perdida no es paço, é, no meu entender, errónea, mais que errónea, é prejudicial e nociva- Para uns, o laboratorio é tudo, só elle convence, só elle affirma e resolve, embora a clinica se levante contra suas conclusões, não obstante o exa me do doente firmar o opposto. • Para outros, o laboratorio é uma excrescencia su- pérflua, uma adjacência inútil, que nunca satisfaz, que jamais propõe firmes resultados, que não subsiste deante dos processos propedêuticos e da applicação dos conhecimentos theoricos da pathologia medica. O exag- gero, senhores, se acha em ambos os lados; ha, em cada um delles, uma parte da verdade, como ha uma parcella de má interpretação. Eu pretendo orientar vossa opinião, nesse assum pto, que é o eixo de redor o qual gira a nossa conversa de hoje. O que quero accentuar, desde logo, é que o labora torio não suppreo exame do doente e indispensável se faz mister eu já saliente a revolta que sempre me causam as conclusões que hodiernamente se retiram, somente baseadas pelo que elle fornece. Então, porque o exame do escarro de um doente se mostra negativo quanto ás pesquizas dos bacillos de Kodh, póde-se deixar de for- mular o diagnostico de tuberculose pulmonar, si elle vem apoiado na submassicez do apice, que assume hoje em matéria de propedêutica maior valor que as per- turbações ausculta torias (Goldscheider, Krõnig) si se baseia em symptomas de plena reacção do organismo contra o germen morbifico? Ha de se deixar de dizer 42 que o indivíduo é portador de lesão syphilitica, só porque as reacções de Wassermann ou Noguchi se mos- tram negativas, na presença de um passado luético francamente positivo, de manifestações hunterianas, claras, evidentes, palpaveis? Poder-se-á recusar o dia- gnostico de câncer do estomago só porque o exame do sueco gástrico encontra o acido chlorhydrico ou não revela acido láctico, embora as dores caracteristicas delle e os vomitos ahi estejam conclamando por sua existência, ahi estejam forçando o espirito a chamal-o á tela do diagnostico? Não, meus caros amigos, não leveis os vossos olhos assim vendados para a vida pratica, porque ahi é que tendes de resolver, em cada caso, com os conselhos da vossa experiencia, os avisos de vossos mestres e o con- juncto de vossos conhecimentos. Não, o laboratorio não tem capacidade para, elle só, vos guiar nessa trilha, que é absolutamente falsa, certamente errada. Compre- hendeis bem que nos casos em que o resultado fôr posi- tivo tollitur questio, a questão se acha resolvida. Ora, encontram-se bacillos de Koch, a reacção de Wasser- mann é positiva, o exame da secreção gastrica está concorde com o diagnostico de câncer - logo tudo leva a crer que não se precisa de mais nada indagar e que essa obra do diagnostico, que a tantos assoberba, está facilmente decidida. Mas, não é tanto assim. Desçamos ipais um pouco ao fundo das cousas e vamos vêr si podemos melhor nos orientar. Começarei pela pesquiza analytica do sueco gás- trico e exponho, expresso em linhas de fogo, meu pen- samento, transcrevendo a opinião do grande Mestre Albert Robin, que se coapta exactamente ao meu; a delle, fructo de sua vasta observação e de seus profun- dos conhecimentos scientificos; a minha, oriunda do pouco que tenho observado, mas observado com intuito de guardar e fazer interpretação pessoal. " Je voudrais, 43 fala o professor, réagir contre cette tendance et faire le part exact qui revient à la chimie comine elèment d'etude scientifique ou comme moyen de controler, taudis que la clinique doit rester au premier rang quand il s'agit d'etablir un diagnostic". Mais abaixo - "Je suis convaincu que l'on peut faire, sans le secours du chimisme stomacal, le dia- gnostic précis de toutes les maladies fonctionnelles de 1'estomac"... (x) Eu já entrevejo abrirem-se, em sorrisos, os lábios dos adeptos ultra-arraigados dos processos de labora- torio, porque Robin fala das moléstias funccionaes do estomago e o câncer é das mais legitimas manifestações de lesão organica. Mas, ahi mesmo, nesse capitulo, veja-se a sua opi- nião. Houve tempo em que a ausência de HCL livre no estomago era indicio, senão certo, ao menos muito favo- rável, da existência do câncer gástrico. A propedêu- tica se achava, assim, armada de forte clava destrui- dora de diagnósticos obscuros; esse exame desfazia as nuvens que toldavam o horizonte clinico e fazia jor- rar a luz em catadupas- Reconheceu-se depois, com novos e demorados es tudos, com a apreciação de innumeras observações, que de facto essa pesquiza tem valor, mas, como tudo em medicina, apenas valor relativo. Assim é que o mesmo resultado se obtem em outros casos, justamente em opportunidades de confusão facil com a hypothese que agora eu enfrento. Na gastrite chronica, que muitas vezes traz symptomatologia de difficil separação, da qual revela o câncer e que embaraça o clinico mais habil e nas dyspepsias hyposthenicas, que além de tudo tra- zem ácidos de fermentação (láctico e butyrico) e que (1) Les maladies de l'estomae, par Albert Robin. - 1904 2.e edition. 44 se caracterisam de modo a que o exame gástrico não seja sufficiente para a obra do diagnostico "Fexamen du chimisme stomacal est d'un faible secours, et, pen- dant la periode ou le câncer latent ne se manifeste ai par une tumeur épigastrique ni par des hématémèses, oh il n'y a que de Famaigrissement et des troubles, dyspeptiques, la distinction est quelquefois difficile" (Robin). Por ahi se vê, que essa indagação unica não basta, não aclara a marcha do raciocinio, senão mais a turva e mais perturba o espirito do investigador. Veri ficou-se mais que casos de câncer existem em que HCI é encontrado como normalmente e quiçá mesmo aug> mentado, em proporções volumétricas mais considera* veis que no estado physiologico. De sorte que o que se mostrava capaz de deslindar todas as duvidas, poucas vezes tem servido, por si só, para nortear o clinico na tarefa penosissima de resolver questões, em tempo em que a therapeutica opportuna ainda tem guia a se apro- veitar. E, a conclusão de quem se aprofunda nesses es- tudos é a mesma que se lê em Robin "le chimisme sto- macal ne fournit aucun signe decisif; mais les indica- tions qu'il donne creént des presomptions en faveur du câncer ou corroborent la valeur des autres signes". Não é dizer que esta é opinião isolada. Eu posso vos mostrar as outras, que se adaptam a esta em todas as suas linhas, por todos seus contornos. Pron fala: "On admet genéralement que le suc gastrique, dans le câncer de Festomac, ne contient pas ou peu d'acide chlorhydrique libre et renferme une grande quantité d'acides organiques, surtout 1'acide lactique. Ceei n'est pas toujours vrai et les resultats fournis par Fanalyse chimique sont loin de toujours concorder". (x) (1) Traité clinique des maladies de l'estomac por Lucien Pron (Algeria) 1908. 45 Bourget vae mais longe quando se exprime: "les renseignements fournis par 1'analyse chimique da suc gastrique ne sont jamais pathognomoniques, comme ont voulu 1'affirmer certains auteurs. La présence ou 1'absence de 1'acide chlorhydrique libre ne peut pas nous guider pour un diagnostic pré- coce de carcinome de 1'estomac, pas plus du reste que la présence d'acide lactique. Nous retrouvons des anomalies dans la composi- tion du suc gastrique dans trop d'affections differen- tes pour pouvoir leur attribuer une valeur speciale lors- qu'il s'agit de carcinome." (x) Huchard se regula pelo mesmo diapasão, quando af firma que "donc, les dyspepsies anachlorhydriques ne sont pas toutes d'origine cancéreuse." (2) e da mes- ma maneira Cade, quando assegura que "ce symptome (o de Van den Velden, que é o desapparecimento com- pleto do acido chlorhydrico livre e diminuição ou des- apparecimento do acido chlorhydrico combinado) n'est d'ailleurs ni constant ni pathognomonique. (A Cade - Précis des maladies de Festomac et de 1'intestin - 1910 ) Tão cathegorico é John Musser, na sua mirífica obra "Praticai treatise on medicai deagnosis", cujo manuseio vos aconselho, quando discreteia, com o modo incisivo e secco dos inglezes: "While it cannot be ga- insaid that the Chemical analysis of the stomach con- tents is of the utmost clinicai value it is just as cer- tain that the information obtained in this way does no quite satisfy the expectation of the clinician and can- not be relied upon exclusively in the formation of a diagnosis." (1) Les maiadies de l'estomac et leur traitement. (2) Maiadies de 1'appareil digestif et de 1'appareil respiratoire par H. Huchard - 1911. 46 Para que mais insistir e mais vos fatigar, procu- rando, na litteratura medica, tão bem accorde sobre este ponto, as opiniões, que são idênticas, como si for- massem uma única, certamente aquella que nos deve dominar? A que fica reduzido esse exame de labora- torio, tão apregoado e tão exigido, justamente para uma moléstia que requer juizo seguro, precoce e exacto, eapaz de proporcionar therapeutica consoladora? A nada, pois os proprios mestres nos ensinam que se não póde ter confiança no seu resultado e que elle, só, não tem poder sufficiente para destruir a duvida nascente no espirito do clinico. Não crede vós, os meus jovens collegas, que sou infenso a essa pesquiza chimica; ao contrario, sou fervoroso adepto delia. Apenas a col- loco no logar em que deve estar e nunca modifico o meu juizo, quando o laboratorio discorda do exame do doente. Eu mesmo já me tenho deixado cair nas malhas do erro, por confiar demasiado nos resultados desses exames. Inda ultimamente incidi em um, de que quero me penitenciar. Estou certo que todos cairiam como eu cahi, mas quiz a fatalidade que fosse eu a innocente vi- ctima da demasiada segurança nos processos de labo- ratorio. Tratava-se de uma senhora, de elevada educação, e que apresentava a classica symptomatologia da este- nose pylorica: grande dilatação do estomago, vomitos abundantes e typicos, impossibilidade de conter o ali- mento na cavidade gastrica duas a tres horas após a alimentação, necessidade imprescindivel de provocar a sua expulsão, emmagrecimento consecutivo. Jámais hematemeses nem melena, tez rosada, não indicando a presença de câncer. Propuz indagar a cau- sa do estreitamento, verificar si benigno ou maligno, aconselhando francamente a intervenção operatória - pylorectomia ou gastro-entero-anastomose -qualquer 47 que fosse a resposta que o exame chimico fornecesse. Au- sência absoluta do acido chlorhydrico livre, diminuição* notável da acidez total, presença de acido láctico, me impuzeram, não obstante a falta dos demais sympto- mas cancerosos, o diagnostico de estenose pylorica maligna, produzida por câncer ali localisado. Eis senão quando a operação, que eu entendia agora mais do que nunca indispensável e urgente, revela, de facto, a coar- ctação, o aperto, a diminuição de calibre do orificio pylorico, mas não por causa endógena, mas sim de ori- gem exógena ou externa, pela compressão delle por tumor vesicular. Era um caso de cbolecystite calculosa que havia occasionado a inflammação peritoneal chronica, com to- das suas consequências, a mais em evidencia, no caso, o encerramento do pyloro por uma de suas bridas. Ora ahi está um facto que deixa embaraçados os homens do laboratorio e eu bem queria que me explicassem, de modo sufficiente, como a analyse do sueco gástrico re- tratou exactamente a que revela o câncer. Eu quero crer que das teias desse erro poucos poderiam fugir. Elle é erro, afinal, que não envergonha, porque veiu dourado pelo pó da sciencia, mas em todo o caso não deixou de abalar um pouco o espirito confiante do cli- nico e do... cliente. Felizmente que a therapeutica foi opportuna - e talvez opportuna pelo máo diagnostico - e a doente lucrou com a intervenção, mas poderia não ter lucrado- Agora, para contentar um pouco aquelles em quem bato firme, um consolo. Eu nunca deixo de fazer, embora guardando reservas, sobretudo depois desse ensina- mento que vos transmitto, nos doentes que me procu- 5 ram, com symptomas gástricos, o exame de sua secre- ção. E elle já me serviu, uma vez, excellentemente e facto que conhecem os que frequentaram, de tres para quatro annos, a minha enfermaria desta Santa Casa. 48 Era um sacerdote, moço, que accusava unicamente gas- tralgia. Eliminada a hypothese de câncer gástrico, pela absoluta ausência de signaes reveladores, de ulcera do estomago pelo mesmo facto, de tabes ou qualquer outra moléstia nervosa que se repercute habitualmente sobre essa viscera, acreditei tratar-se de simples dys- pepsia hyperchlorhydrica. O exame revelou, ao contra- rio, ausência de HCL livre e acidez total insignificante com falta de ácidos de fermentação. O diagnostico que se impoz foi outro; as dôres revelavam antes hypochlo- rhydria que hyperchlorhydria e o doente, que vinha do interior destinado ao uso das aguas medicinaes de Ca- xambú, foi tratado de modo diverso, com a administra- ção diaria de acido chlorhydrico e medicamentos eupé- pticos, restabelecendo-se completamente. Pode dar tes- temunho desse caso o meu amigo Dr. Oscar de Oliveira, então meu assistente, que commigo praticou o exame do sueco gástrico. Ahi está uma fixa de consolação para os adeptos á ou trance dos methodos de laboratorio, para aquelles que os sobrepõem aos ensinamentos da clinica. Acredito que deixei bem gravado, na vossa atten- ção, que em lesões gastricas o laboratorio ainda deixa a desejar e, si ajuda a clinica, não pode, de modo algum, substituil-a nem a dispensa, antes é mero auxiliar, for- nece documentos que precisam ser cuidadosamente analysados. O mesmo impulso que se dá contra o valor do exa- me do sueco gástrico nas affecções estomacaes precisa ser dado contra o papel que ultimamente a reacção de Wassermann representa em pathologia. Eu não recuso, de modo nenhum, sua importância,, muito pelo contrario, procuro múltiplas vezes ouvir o seu veredictum, não tanto para me ajudar em casos obscuros como para satisfazer o desejo dos clientes. Es- 49 palhou-se hoje a noção de sua importância de tal modo e é noção tão comesinha esta do exame de sangue na syphilis, que não ha caboclo, por mais afastado do centro civilisado que resida, que não procure os mé- dicos, com o eterno sorriso e a eterna pergunta "queria fazer exame do sangue, não acha bom?". Isto mostra a sua vulgarisação e quero possaes responder sempre com segurança a esse pedido. O seu valor é, senhores, dubio como muita cousa em medicina: - importante quando positiva, retiran- do hesitações, confirmando diagnósticos, infirmando outros, mas sem preço quando negativa, porque pro- voca as mesmas duvidas, origina as mesmas controvér- sias, produz as mesmas vacillações no espirito do cli- nico. Demais, deveis saber que a reacção de Wasser- mann dá resultados differentes, segundo a época da evolução da moléstia em que ella é pesquizada- Nos pri- meiros quinze dias que se seguem á inoculação do mal, ella é quasi sempre negativa (Levaditi), facto esse que já lhe tira um pouco de seu préstimo, porquanto é jus- tamente no inicio da infecção, em presença do cancro duro, que, muitas vezes, o diagnostico é mais difficil e deixa o medico perplexo no juizo a emittir. Para que a reacção seja positiva é necessário que haja generalisa- ção da infecção. Ora, ahi já ella não representa em pro- pedêutica o papel que se deseja represente. Só mais tarde, no periodo secundário, em plena efflorescencia dessa phase virulenta do mal, é que o seu resultado se dá mais brilhante. Mas, ahi comprehen- deis, já a diagnose está feita. Antes da reacção de Was- sermann se mostrar, com o seu rutilo brilho, já se fa- zia o diagnostico da syphilis. Nunca foi precisa e sem- pre a therapeutica apropriada foi empregada, sem ter- giversações, com a maxima segurança. Ai da clinica no dia em que o medico ficar indeciso em formular a sua opinião e necessitar do concurso do laboratorio, 50 deante um indivíduo marcado pelas roseolas, crivado de placas mucosas, arrastando dores rheumatoides, sentindo nocturna cephaléa e vendo tombarem ás ra- jadas os seus cabellos! Por ahi vêdes que a reacção de Wassermann só póde corroborar o juizo, reforçal-o, ga- rantil-o. Agora dir-me-heis, meus caros collegas, qual a situação em que ficareis no dia em que assentardes o conceito deante dessa symptomatologia franca, exa- cta, certa, fatal da syphilis e a reacção, que procuraes para melhor elucidação, vos vier com o sello da nega- tividade? Hesitareis no vosso diagnostico? Titubiareis na escolha da medicação a empregar? Certo que não. Pois esses casos são communs, e não raro vos sur- prehenderão. No quadro organisado por Laudsteiner sobre os resultados da reacção de Wassermann vós en- contrareis 98 por cento de positivas nesses casos de syphilis secundaria com todos os symptomas. Quer dizer que ha, ahi, dous casos em que ella é negativa. Esse pouco, mas sufficiente para retirar-lhe a sua impor- tância. Naquellas occorrencias em que a symptomato- logia é apagada, naquelles indivíduos em que a syphilis passa como de longe, sem deixar vibre todo o organis- mo sob sua influencia maléfica, essa porcentagem é de 62. Quer isto dizer que ha em cem doentes 38, nos quaes o laboratorio discorda da clinica, não vem em seu au- xilio, antes ao contrario delia se afasta, de tal modo que cria duvidas onde não existiam, enfraquece a con- fiança nos conhecimentos da pathologia e retira a do cliente no profissional, si esse não a tem arraigada no espirito do doente. Na syphilis terciaria o caso é ou- tro. Si ha symptomas, que a denunciam e o medico del- ia não mais precisa, a sua percentagem é de 96. Mas nos casos de tumores visceraes essa percentagem de- cresce. Vale isto assignalar que deante uma hepatome- galia em que o diagnostico vacilla entre uma lesão sy- philitica e um tumor de outra natureza, essa reacção, 51 que deveria dar a chave do diagnostico, nada adeanta. E, são esses, desgraçadamente, aquelles casos que obri- gam mais vezes os médicos a correrem ávidos ouvir sua sentença, que é falha e incerta e destituida de apreço. De sorte que si baseardes só no laboratorio para affirmar de que padece o vosso cliente, elle vos respon- derá deixando-vos as mesmas incertezas, prenhes das mesmas controvérsias, immersos no mesmo caos, que elle não tem o condão de desmanchar. Guardae, por isto, a noção bebida em Gaucher, Paris e Sabareanu que affirmam que o desvio do complemento, que é a base da reacção de Wassermann, é excellente processo de laboratorio quando positivo, mas o resultado nega- tivo não permittindo affastar a hypothese da syphilis. Ora ahi está ao que se chega, ao cabo de tantas luctas e tantos trabalhos. Mas, ainda assim preciso é que sai- baes da positividade da reacção em casos em que a sy- philis não entra com a minima parcella para seu resul- tado. Quero me referir aos cânceres, que dão a nota positiva na ausência absoluta da infecção luética. Fi- caes já em contingência difficil. Vamos ao mesmo caso do figado. Uma mulher tem um tumor hepático, leve- mente doloroso, com emmagrecimento ligeiro, traços de ictericia, urinas pigmentadas fortemente. O tumor é palpavel, duro, cheio de bosseladuras. E' um câncer? Póde ser que sim e póde ser que não. E' um tumor sy- philitico? E' verdade que não ha antecedentes mórbi- dos, ella nunca teve a minima manifestação do mal luético, nunca teve abortos, seus filhos são bem consti- tuidos, não perdeu creanças quando novas na vida. Mas será um tumor syphilitico que se vae dobrar dian- te da medicação especifica, mercurial ou arsenobenzo- lica? Vamos ao laboratorio, que elle nos dirá. Vem o resultado positivo, mas o analysta consciencioso vos avisa que nos cânceres visceraes costuma, mesmo na 52 ausência do mal hunteriano, apresentar-se, na mais clara manifestação positiva, a reacção, que procurastes como o viandante perdido no meio da estrada procura a vereda certa para seu caminho. Ficaes por conse- quência na mesma e tem de ser o exame clinico do doen- te, a apreciação exacta dos phenomenos morbidos, que vos fará entrar na verdadeira trilha. Inda mais, ulti- mamente tem-se verificado ser positiva a reacção de Wassermann nos individuos de edade avançada, nos leprosos e nos velhos. O que vale dizer que nelles não deve ser procurada com empenho ou pelo menos, que seu resultado não deve pesar mais na balança que a exploração objectiva do doente e a apreciação de seus symptomas. Comprehendeis, portanto, que deveis não vos fiardes demais nos seus resultados e que ahi mais importância tem o exame clinico que o laboratorio. Por acaso duvidareis de firmar o diagnostico de syphilis quando encontrardes a quadripeça mórbida de Babinski, que é a associação do signal de Robertson á desegualdade pupillar, á aortite chronica e á lympho- cytose do liquido cephalo-rachidiano ? Hesitareis em procural-a quando deparardes com uma leucoplasia, que, na opinião de Landouzy e Gaucher, é certo tes- temunho de mal hunteriano? Precisareis de recorrer ao laboratorio deante dessas manifestações que são a marca indelevel da syphilis, como as exostoses e perios- toses da tibia, as irites chronicas com desegualdade pu- pilar, as placas mucosas, o achatamento das narinas, a paralysia súbita do oculo-motor commum, a orchite indolente e cheia de bosseladuras, a albuminúria exces- siva, as cicatrizes lombo-gluteas, que são os estigmas de Parrot, a triade de Hutchinson, de que as pertur- bações occulares se sobrepõem ás demais? Certo que não, a menos que se não queira fazer ruir por terra o fructo de tantos annos de observação, para levantar 53 um castello sem bases solidas, tão cheio ainda de cou- sas vacillantes e por onde filtra a duvida e se perdem as incertezas. Falei ahi na lymphocytose do liquido cephalo-ra- chidiano, mas desde já vos digo que isolada também não tem importância, pois que a tuberculose egualmen- te se retrata dessa maneirá ao exame cytologico e do mesmo modo as meningites chronicas de outra nature- za. Portanto, verifica-se que só o laboratorio não con- clue e que para concluir necessita correr parelhas, com os symptomas, em quanto esses têm o condão de fir- mar, na ausência delle, diagnósticos os mais perfeitos e completos. Pensareis, estou certo, commigo que a reacção de Wassermann auxilia o clinico, mas não basta, não é sufficiente, não chega para decidir de casos sobre que pairam controvérsias. Vamos adeante. Sabeis da reacção de Cammidge e conheceis a opi- nião do professor Mayo Robson, que pensa resolver in- numeros diagnósticos com o seu resultado. Não quero dizer-vos em que consiste; basta que eu vos assignale que veiu do laboratorio para a cabeceira do doente, com o intuito de firmar o diagnostico das alterações pancreaticas, maximé agora que o estudo dessas le- sões começa a seduzir e chamar o interesse do clinico. Essa reacção tem sido o objecto de innumeras discus- sões, dividindo-se o campo dos seus adeptos, que têm contra si enorme onda de adversários, que lhe não dão o menor valor e não a deixam se exceder á symptoma- tologia e ao exame do paciente. Dou-vos aqui, a seu respeito, duas opiniões que muito conceito vos devem merecer. Uma é a do professor Chauffard, que assim se ex- prime "porém de outro lado, as pesquizas de Cam- midge têm sido quasi verificadas e confirmadas por C. E. Ham e J. B. Cleland que consideram a reacção 54 de Cammidge como artificial e podendo ser obtida com uma urina qualquer. A questão fica então, pelo me- nos, duvidosa, e, até nova ordem, a chimica urinaria não nos ensina nada certo para o diagnostico das pan- creatites cholelithiasicas." (x) De Kolké, de Chatel-Guyon, é a outra, que entende não estar a reacção de Cammidge definitivamente jul- gada, e não pode ser considerada como signal de défi- cit secretorio do pancreas. A noção que vos desejo transmittir sobre o seu valor é que não é, de modo algum, pathognomonica das affecções pancreaticas, tem diminuta importância em propedêutica, é de technica excessivamente delica- da e, o que é mais, e dahi a sua minguada considera- ção, apresenta resultado positivo em casos em que a glandula pancreatica se acha sã e, mais que isso, per- feitamente sufficiente. De que serve então o laboratorio nos casos em que o clinico fica hesitante na formula de seu diagnostico? Absolutamente de nada e infelizmente até hoje a arte da diagnose se acha pobre de recursos no que se re- fere ás lesões do pancreas, desse orgão de situação tão profunda, quasi inacessivel á exploração directa, se retractando por symptomas antes de visinhança que pelos oriundos de sua própria alteração anatómica. A reacção de Cammidge deve ser procurada, mas sem o minimo ceitil de esperança em seu veredi- ctum, despida do mais insignificante valor em sua con- clusão. Mais feliz é o laboratorio quando se procede á puncção lombar e se faz o exame cytologico do liquido cephalo-rachidiano. Na tabes, por exemplo, a regra é (1) Ensaio critico sobre o valor da reacção de Cammidge Th. Inaugural - pelo Dr. Sebastião Cesar da Silva - 1911. 55 a lymphocytose, sendo excepção a não existência dessa reacção. Mas, senhores, inda assim lia casos francos de ata- xia locomotora que não permittem outro diagnostico, que se manifestam com todo o seu cortejo habitual, e em que a cytologia do liquido vos revela polynucleose. Que digam as observações de Tixier e Vaillant. Isto prova já que a clinica diagnostica com mais certeza de exito que o laboratorio. Podeis duvidar de tabes, quan- do vos encontrardes deante essa symptomatologia tão completa, tão rica, tão superabundante de phenomenos morbidos, que se iniciam na perda do reflexo de Achi- les e se terminam nas arthropathias, nas atrophias, na ataxia, nas fracturas e no mal perfurante plantar? E' necessária a confirmação do juizo por essa analyse, que já não é concorde em todos os doentes? Creio que não, e não quero mais repisar algo sobre o assumpto. Na paralysia geral, essa lymphocytose, que egualmente constitue a maneira de reagir do liquido cephalo-rachi- diano, não existe sempre. A polynucleose tem sido tam- bém encontrada, desmanchando um pouco a importân- cia da pesquiza. E si eu vos disser que ha innumeras moléstias que se retratam pela lymphocytose, que apre- ço dareis a esse exame, aliás de technica não difficil e que aconselho façaes e que ides me ver proceder nas consequentes lições? Na esclerose em placas, na pachymeningite cervi- cal hypertrophica, na moléstia de Friedreich, de diag- nostico muitas vezes penoso com a ataxia locomotora progressiva, no amollecimento cerebral, nas meningi- tes tuberculosas, toxicas, na nevralgia do trigemeo, nas meningo-myelites syphiliticas, em todas essas va- riadas affecções o resultado é o mesmo, é sempre a lymphocytose, que se encontra, o que retira um pouco do brilho com que essa busca quer cobrir o exame 56 symptomatologico e propedêutico de vosso caso, de vosso doente. A analyse cytologica dos derrames pleuraes essa, é mais positiva, e aqui vos assignalo, com lealdade, que dá effectivamente resultados mais satisfactorios, ten- dentes a descobrir a verdade. A tuberculose pleural primitiva se retrata pela lymphocytose, a polynucleose caracterisa as pleurites purulentas, as inflammatorias, e a mesma tuberculose, quando o pleuris intercorre na evolução de lesão especifica do parenchyma pulmonar, as grandes cellulas endotheliaes marcam a natureza mechanica do derrame, como as cellulas neoplasicas af- firmam os pleurizes cancerosos. Esses dados têm sido confirmados e ahi está um momento em que o laboratorio corre em amparo da clinica, armado de fortes elementos de decisão e capaz de firmar o juizo do medico. Eu sinto que estou prolongando demasiado essa nossa conversa de hoje- Não insisto, por isto, na ausên- cia de merecimento de tantas pesquizas de laboratorio, que nos levam muitas vezes a conclusões falsas e er- róneas. Não deixeis, porém, de procural-as e exigil-as, que com isto ficareis com a consciência quieta, quando in- correrdes em erro, que é o tormento eterno da huma- nidade, no erro, que é a trave inconsciente de tantos esforços, tantos estudos e tantos trabalhos. Procurae sempre cercar o vosso diagnostico de todos os elemen- tos capazes de conduzil-o ao termo. Não dispenseis a menor ajuda, já do exame profundo que sois obrigados a fazer em cada caso, virando o vosso doente pelo aves- so, explorando todos os seus orgãos, mesmo os que não são affectados, já do laboratorio, já do emprego de apparelhos, como o esphygmomanometro, o esphygmo- grapho, os raios X, a electricidade. 57 Só assim, podereis vos approximar da verdade e si não acertardes a culpa não será vossa e sim da inó- pia, da pobreza dos recursos diagnósticos, que cada dia, aliás, mais se enriquecem, mais se abarrotam no mercado das cousas novas. Eu quero leveis a convicção de que o laboratorio, só, não basta em propedêutica. Poderia estender-me nas minhas considerações. Feri, porém, o objecto principal e vos mostrei que não con- vém vos deixeis estontear pelo fulgor das reacções, nem enthusiasmar pelos resultados positivos, quando os ne- gativos vos fazem perder a confiança na medicina. Procurae, com o vosso diagnostico, estabelecer e firmar prognostico, que fuja ás malhas da imprevidên- cia, porque só assim podereis instituir therapeutica scientifica, e quando não conseguirdes a salvação de vosso doente, restar-vos-á o suave consolo de terdes ex- gottado vossa paciência, vossos recursos, vossos conhe- cimentos, vossa abnegação na indagação da verdade e na resolução do problema. E, senhores, na vida de sa- cerdote que o medico é, e deve ser, nenhuma satisfação ha que mais possa encher seu espirito de acalmia, como esse lenitivo e nenhum esforço será, como este, tão bem compensado e trará, como elle, o repouso da consciên- cia, o prazer do dever cumprido, a tranquillidade da intelligencia, que se gasta, aos pedaços, na lucta que é o nobre ministério que tendes adoptado. 58 Dois casos de Amyotrophia typo Charcot-Marie(I) Entrou, em princípios de Junho de 1910, para o meu serviço clinico na Santa Casa, o doente José Soares Pedroso, brasileiro, de côr branca, trabalhador na roça, de 26 annos de edade, solteiro, procedente de Itú. Praticando seu exame cheguei á conclusão de que estava deante um caso digno de archivo, pois que cae, typicamente, dentro do quadro morbido descripto, em 1886, por Charcot e Marie. Antes de mais - a observação clinica: Antecedentes hereditários - Pae morto, em consequên- cia de hydropisia; mãe viva, gozando saude; tem 6 irmãos, dos quaes 3 mulheres, todas sadias e 3 homens, sendo que o mais moço é doente como elle. Antecedentes morbidos - Teve sarampo ha quatro an- nos, nunca soffreu de rheumatismo, nem de qualquer outra moléstia de natureza infectuosa. (1) Communicação feita á Sociedade de Medicina e Cirurgia de S. Paulo. 59 Historia anterior da moléstia actual - Ha cerca de 16 annos (elle tinha então dez) estando a brincar com outras creanças, uma sua prima dá-lhe um empurrão, que o faz ter um ataque, pelo susto que levou. Perde os sentidos e desta epoca data o inicio da atrophla de seus musculos. Esta co- meçou pelos pés e simultaneamente dos dois lados. Essa atrophia ficou localizada nos pés e pernas durante 6 annos, pois que ha dez se iniciou o mesmo processo nas duas mãos, estendendo-se aos antebraços e mais tarde aos braços. Ape- zar de estar com diminuta massa muscular, entregava-se a serviços pesados da lavoura e só de 2 annos a esta parte é que se sentiu impossibilitado de utilisar-se das mãos para qualquer mister. Estado actual - Quem o olha, sem detida attenção, não diz ser um doente, pois a sua configuração é sadia no tron- co e face. Pela fig. n. 1 verifica-se que a face, o pescoço, o thorax e ventre se acham indemnes do processo atrophico. Deitado e recoberto pelo lençol, ninguém dirá ser um indi- víduo portador de situação mórbida progressiva e incurável. Braços fusiformes, ligeiramente atrophiados no terço infe- rior, apresentando os musculos visinhos contracções fibrilla- res caracteristicas. Antebraços completamente atrophiados, havendo predominância das lesões nas regiões anterior e externa. Mensuração - lado direito - V3 superior 0,18 V3 inferior 0,12 lado esquerdo - V3 superior 0,17 V3 inferior 0.12 Mãos em garra, com atrophia completa de todos os mus- culos, maximé dos interosseos, como se pode apreciar na fig. n. 2 e facto que se observa egualmente bem na fig. n. 1. Ligeira atrophia dos musculos das coxas, com contrac-' ções fibrillares nos musculos vizinhos dos atrophiados; me- dida circumferencial das coxas no seu V3 inferior (unica por- ção que se apresenta atrophiada) - 0,26, dos dous lados. Os musculos da perna inteiramente atrophiados, com diâme- tro de 0,20 no V3 superior e 0,15 no inferior. (Fig n. 3). Pés bastante atrophiados e em extensão, como se vê na fig. n. 1. Frialdade excessiva dos pés, muito mais notada á di- reita. O proprio doente accusa cryesthesia nesse segmento de membro, queixando-se de sensação de formigamento. Colo, ração violacea dos pés e pernas. Abolição completa dos reflexos rotulianos e achylianos; ausência do signal de Argyl-Robertson. Não se póde pesqui- zar o Romberg, pois que o doente não se mantém em atti- 60 tude erecta só; é preciso apoiar-se a uma pessoa ou a um movei. Anda com difficuldade, segurando-se a um bastão e com marcha classica de polynevrite (steppage). Sensibili- dades thermica, dolorosa e estereognostica perfeitas. Des- igualdade pupillar; a do lado direito mais dilatada que a do esquerdo. O doente attribue isto a um traumatismo, que sof- freu, ha 5 annos, no olho esquerdo. Reacção á luz - normal. Exame electrico - Reacção de degeneração nos musculos atrophiados. Nas coxas, diminuição da excitabilidade á cor- rente galvanica no V3 superior e abolição completa nos 2/3 inferiores. Nos braços, á corrente faradica excitabilidade normal e desapparecimento desta no antebraço. Nada de anormal no coração, pulmões, apparelho diges- tivo e urinário. Não tem ganglios engorgitados. Intelligencia lúcida e perfeita. O doente conserva-se até Agosto no meu serviço, quan- do sahe, sem obter melhoras com o tratamento (iod. de po- tássio, tratamento electrico, massagens, estrychnina, etc.) Como me tivesse esse indivíduo narrado, em sua observação, que um irmão soffria do mesmo mal, inda que mais attenuado, fiz buscal-o em Itú, para que o examinasse e verificasse si exactamente se tratava de moléstia familiar. De facto, o irmão de José Pedroso é portador da mesma affecção, inda que menos accentua- da, e facto que dá mais interesse ao nosso trabalho, onde se póde verificar duas phases do mesmo estado pathologico. Eis a observação: João Soares Pedroso, brasileiro, branco, cambista de bi- lhetes, de 22 annos de edade, solteiro, residente em Itú, vem a esta capital a meu chamado, em meado de Junho e entra para a minha enfermaria. Antecedentes hereditários - Os mesmos que os do caso anterior. Antecedentes morbidos - Gosou sempre saulde, referin- do apenas ter tido catapora aos 4 annos; nunca teve syphi- lis, rheumatismo ou qualquer outra moléstia infectuosa. Historia pregressa da moléstia - Tinha 7 para 8 an- nos quando, em virtude de accidente (queda), destroncou o pé esquerdo, ao nivel do tornozello. Gomeçou desde então a andar com difficuldade e a notar a atrophia dos musculos do pé e perna desse lado. Essa 61 atrophia passou no fim de pouco tempo para o lado direito. Um anno ou mais deipois começaram a ser tomadas as mãos, sendo que em primeiro lugar foi affectada a do lado direito, onde as lesões ficaram mais accentuadas. Tem notado que desde esse tempo o processo atrophico tem progredido, em- bora muito lentamente. Estado actual - O doente é forte, inda mais que seu irmão, e ninguém dirá, observando a constituição robusta de seu corpo e a expressão de sua physionomia, tratar-se de um indivíduo affectado da moléstia que o acommetteu. Pela fig. n. 4, que não está tão bôa como as outras, por ter sido a photographia feita em Itú, na minha ausência, vê-se que o doente é forte e apresenta thorax, craneo e face constituidos como normalmente. Deformação do antebraço esquerdo em virtude de fractura de que soffreu quando creança. Atrophia dos musculos das mãos, que têm a forma de mão de macaco (quer dizer que a atrophia é mais pronunciada na região thenar e o doente não póde oppôr o pollegar aos outros de- dos). Os inter-ossos começam a ser affectados porém o doen- te não tem ainda a mão em garra, como seu irmão. Ante- braço atrophiado no seu terço inferior, onde a circumferen- cia é. tanto á direita como á esquerda, de 0,15. Os braços não estão atrophiados, medindo de um e outro lado 0,24. Não existem contracções fibrillares. Atrophia das coxas no seu terço inferior, atrophia en jarretière, typica, qual a descre- vem, em seu trabalho, Oharcot e Marie. Nesse nivel a circum- ferencia é de 0,28. As pernas finas, totalmente atrophiadas, medindo ao nivel dos gemeos, que não existem, 0,18 de cir- cumferencia. Pela fig. 5 vê-se a egualdade exacta das per- nas de cima a baixo. A atrophia é egual dos dous lados. Mus- culos dos pés atnophiados e em attltude de extensão (varus equinus, mais accentuadia á esquerda). Não existem egual- mente contracções fibrillares nas coxas. Ausência do reflexo rotuliano dos dous lados e do de Achyles. Persistência do re- flexo do punho. Nem Argyll, nem Romberg. Nunca teve câim- bras e não ha ainda frialdade nem cyanose dos pés, como no l.° caso. Marcha em steppage, como o outro; quando se o manda deixar o apoio, a que se segura para caminhar, nota-se que elle não póde parar em repouso; tem o chamado piétine- ment, de Charcot e Marie. Sensibilidades dolorosa, táctil, thermica e estereognostica normaes. Pupillas eguaes de ambos os lados, reagindo como nor- malmente. Exame electrico - Reacção de degeneração nos musculos dos pés, pernas e terço inferior das coxas, e nos da região thenar. Os mais respondem bem á incitação ele- ctrica. 62 Coração, pulmões, apparelho digestivo e urinário sem alterações. Não tem ganglios enfartados. Intelligente e mais cultivado que seu irmão, ganha ainda, por si mesmo, sua vida. Retira-se o doente para Itú dous dias depois de aqui dhegado e mais descrente, com o futuro que o aguarda, que seu irmão. Da leitura attenta destas duas observações con- clue-se que esses indivíduos são portadores de uma af- fecção dystrophica, familiar, que se inicia na segunda infancia, após um traumatismo e começa pela atrophia dos membros inferiores atacando mais tarde os supe- riores . Como caracteres desse processo atrophico, observa- se a maneira de sua distribuição, que nos membros ab- dominaes não passa do terço inferior das coxas e nos superiores fica no terço inferior do braço, o seu desen- volvimento, que é parallelo nos dous lados, a existên- cia de contracções fibrilares que são mui accentuadas e mui notáveis no primeiro caso, faltando no segundo, mas onde provavelmente apparecerão, o desappareci- mento dos reflexos tendinosos, a ausência de perturba- ções da sensibilidade, a presença da reacção de dege- neração nos musculos atrophiados e de phenomenos va- somotores (cyanose e frialdade dos pés) e a marcha dos doentes, que reveste o caracter da marcha da poly- nevrite, tudo isto coincidindo com intelligencia perfei- tamente lúcida e integridade a mais absoluta dos or- gãos internos. Taes são os elementos que resahem da apreciação do quadro symptomatico do estado morbido desses in- divíduos, que apresentam, sem duvida, uma mesma af- fecção, em duas épocas de sua evolução clinica. E' pa- tente que o segundo doente se acha em melhores con- dições que o primeiro- Neste, a affecção é mais antiga que no outro. Bas- ta ver o que se observa nas suas mãos para se chegar 63 a esta conclusão. José apresenta a mão em garra, quer dizer que ella já soffreu a atrophia dos interosseos e lombricaes, da região hypothenar e thenar, de sorte que todos os seus musculos se acham attingidos desse processo morbido, emquanto João tem a mão de maca- co, quer dizer possue intactos todos os musculos da mão, exceptos os da região thenar. Naturalmente, com a evolução de sua affecção, com o correr do tempo, suas mãos serão eguaes ás de seu irmão mais velho. Esses dous casos têm mesmo isso de importante - é mos- trarem, em duas phases de sua exhibição pathologica, um mesmo estado morbido. José não póde mais ficar em pé, sem auxilio, emquanto João deixa ver, quando não se o ampara, o phenomeno observado por Charcot e Marie, em que o doente é obrigado a fazer "pietine- ment sur placc" que é a impossibilidade de ficar immo- vel, a necessidade de executar pequenos movimentos com as pernas e pés, para conservar o equilibrio. Delineados os symptomas primordiaes dessa af- fecção, qual o diagnostico que se deve instituir? Elles são portadores de um processo morbido conhecido pelo nome de atrophia muscular progressiva. Mas, dizer simplesmente assim equivale a nada affirmar, pois va- rias são as affecções que a determinam. A atrophia muscular progressiva pode ser ou de origem myopathi- ca, em que é o musculo que se atrophia, independente de lesão nervosa, ou de origem myelopathica, em que a lesão originaria do deperecimento muscular tem séde no eixo espinhal. Tal é, em grandes linhas, a classificação nosogra- phica da atrophia muscular progressiva. Ella não é a ultima palavra no assumpto - e eu sou daquelles que pensam como Raymond e acompanham a doutrina uni- tária de Duchenne. E' deste modo que se exprimia o grande medico da Salpetrière, que acaba de desappa- recer: " Assim se acha reconstituida a unidade de dou- 64 trina, que exclue a hypothese de uma linha de demar- cação separando as diversas modalidades clinicas da atrophia muscular progressiva. Vós vos compenetra- reis pois desta noção capital, directora: a atrophia muscular e progressiva não engloba especies mórbidas distinctas, ella comprehende um sem numero de typos ou modalidades que, encarados em suas formas puras, differem entre si quanto á etiologia e quanto á expres- são clinica, mas que se fundem umas nas outras e têm todas por substractum uma degeneração primitiva, chronica e progressiva, do unico protoneuronio motor ou de seu annexo, a fibra muscular." (1) Os doentes que servem de esqueleto para este tra- balho não soffrem evidentemente de atrophia progres- siva myopathica. E' verdade que apresentam alguns de seus caracteres, mas não podem absolutamente serem rotulados sob esse diagnostico. E' assim que têm, como indicativos de lesão muscular, os seguintes phenome- nos, que fazem parte dos que definem as atrophias myo- pathicas: l.° começarem na segunda infancia; 2.° se- rem affecção familiar; 3.° apresentarem evolução mui- to lenta, caracter que na opinião de Dejerine, (2) é o mais importante de todos assignalados, para differen- ciarem as dystrophias musculares das atrophias mye- lopathicas. Esses tres caracteres não bastam, porém, para que eu faça o diagnostico de atrophia myopathica nesses dous casos. Faltam ahi os demais, que são os mais no- táveis, sobretudo o modo de inicio da affecção, que nes- ses doentes não se processou como quando a lesão des- nutritiva se assesta na fibra muscular. E' que aqui ella começa pelos musculos que rodeiam as grandes arti- (1) Leçons sur les maladies du système nerveux. Sixieme Serie. Professeur F. Raymond. (2) Dejerine ,- Semeiologie du systeme nerveux - Traité de Pathologie Générale de Bouchard - Vol. V. 65 culações, quasi sempre pela região escapulo-humeral ou pela cintura pelviana e mui raramente affectam a for- ma que se observa em José e João Pedroso. E' esta uma lei geral e que, como lei que é, soffre excepções em ca- sos archivados no registo scientifico. Mais ainda, os myopathicos não têm contracções fibrillares que o l.° doente mostra de maneira typica, apresentam retrac- ções tendinosas, maximé no tríceps sural, no biceps do braço e no quadriceps da coxa, que elles não mostram, e não se caracterisam, pelo exame electrico, pelo ap- parecimento da reacção de degeneração, que os doentes possuem. Esses caracteres são, como se sabe, relativos e ne- nhum ha de pathognomonico, mas basta que a grande maioria delles, e dos principaes, se insurja para que se afaste essa opinião. Não se trata, portanto, de atrophia muscular de origem myopathica. Eu já tenho visto al- guns casos dessa affecção e publiquei em 1907, na Ga- zeta Clinica, uma observação de paralysia pseudo-hy- perthrophica e cuja photographia reproduzo aqui (fig. n. 6). E' um doentinho typico da paralysia myoesclero- sica, tão bem desenhada e tão profundamente estudada pelo grande clinico francez Duchenne. Ahi se vê a sede do processo atrophico, que se mascara sob forma hypertrophica. Tenho ainda mais dous casos, que nun- ca foram publicados e que aproveito agora o momento. Um, é uma creança de 10 annos de edade e portadora da forma de myopathia, conhecida pelo nome de typo es- capulohumeral, forma juvenil de Erb. A atrophia se iniciou pelas espaduas insidiosamente, pois sua proge- nitora narra que elle nasceu inteiramente são. E' mo- léstia familiar porquanto tem outro irmão affectado: não tem pseudo-hypertrophia e os membros abodminaes se acham Íntegros. Pelas - figs. 7 e 8 - vê-se bem a atrophia da cin- tura escapular e as mãos, que revestem a forma, dita 66 de mão de cadaver. Presença de reflexos rotulianos, sensibilidade normal, ausência de retraeções tendino- sas. Não foi feito o exame electrico. Esse diagnostico é facil e nenhuma confusão pode existir com outra mo- léstia. O typo juvenil de Erb é, sem duvida, uma mo- dalidade clinica do mesmo estado morbido, que tem sido subdividido em vários typos, como sejam o de Duchen- ne, o de Landousy-Dejerine, o de Zimmerlinn e o de Leyden-Moebius - todos fructos de lesão muscular e cujos caracteres fundamentaes já ficaram ditos. O ou- tro caso é conhecido por atropbia myopathica, typo Leyden-Moebius. E', pelo menos, esta a minha opinião. A sua observação é assim: Manoel Rosa de Campos, brasileiro, branco, lavrador, de 16 annos de edade, solteiro, residente em Itapetininga. Paes vivos e fortes; sua mãe é "meia ruim da cabeça" Tem duas irmãs, doentes como elle, sendo que a pri- meira, que foi atacada ha mais tempo, já não anda e possue a mesma esthetica que o doente (fig. n. 9). São seis ao todo os filhos do casal e tres já se acham affectados (duas mu- lheres e um homem). Não se recorda de moléstia que tenha tido e que o haja retido no leito; soiffre de ancylostomose, de que está se tra- tando. Nunca teve rheumatismo e ignora o que seja syphilis. Não ha vestígios de heredo-syphilis. Ha mais de tres annos, (a observação foi tomalda em 19-10-907) sem dôres, nem traumatismo, foi vendo se encolherem os membros inferiores, com retracção no tendão de Achiles, que o impediu, desde logo, de andar, como todo o mundo, sobre a planta dos pês. Elle marcha apoiado sobre os dedos. Quando caminhava sentia repuxamentos até nos musculos lombares, que, a pouco e pouco, se foram atro- phiando, como os que já se achavam da cintura pelviana. O exame apura que o indivíduo soffre de ancylostomose (pallidez, descoramento das mucosas visíveis, palpitações dôres gástricas, malacia, sopro extracardiaco e presença de ovulos de ancylostoma nas fezes, como expulsão dos vermes - 800 da primeira vez e lombrigas - sob acção da medica- ção empregada). Atrophia da massa sacro-lombar, lordose lombar, re- tracção tendinosa do tríceps sural e bíceps crural, atrophia dos musculos da coxa e cintura pelviana, desapparecimento 67 do rsflexo rotuliano, ausência de contracções fibrillares e de pseudo hypertrophias. Não foi feito o exame electrico. Mar- cha digitigrada e o doente bambolêa-se todo para caminhar; marcha pendular. Nenhuma perturbação de sensibilidade; intelligencia sã, embora inculta; musculos da face intactos. A mensuração de suas pernas dá 23 centimetros ao ni- vel dos gemeos, que não existem; as coxas 27 centimetros, sete centimetros acima do joelho; cintura abdominal 60 cen- timetros; punhos 16 centimetros; cotovellos 20 centimetros. Nada nos outros apparelhos. O doente sabe da enferma- ria curado de ancylostomose, mas do mesmo modo quanto á atropina. O diagnostico que fiz, neste caso, foi o de atropina muscular progressiva, de origem myopathica, typo Ley- den-Moebius. Outro não pode ser o juizo a se formular. Com effeito, Leyden p) descreve um typo de atropina myopathica caracterisada por acommetter varias cre- anças da mesma familia, geralmente do sexo mascu- lino e começar por certa fraqueza dos lombos e mem- bros inferiores, a que suocede atropina das pernas ou bem ao nivel dos musculos do dorso. A marcha é lenta e só no fim de annos affecta as espaduas e os membros superiores. Não ha tremores fibrillares nem lesão para o lado da face, dos olhos e da pharynge, mas existem retracções tendinosas. Este typo, tão bem estudado por Leyden, o foi egualmente por Moebius, que o compara á atroiphia myoesclerosica de Duchenne, sem que haja, porém, a lipomatose que assignala a pseudo-hypertro- phia. E' por isso que elle é conhecido, em pathologia, por typo Leyden-Moebius. Como se vê é esse o quadro morbido apresentado pelo doente, que se verifica na fig. n. 9. Os typos de myopathia, que tenho observado me firmam no conceito que sobre esse estado morbido possuo, de que tudo é uma cousa só, com pequenas mo- dificações de localisação. Já Marineso disse que "a af- (1) Maladies des muscles, par le Prof. Marinesco - Trai té de inedecine et de therapeutique de Brouardel et Gilbert, vol. 38.®. 68 finidade das differentes formas de myopathia demons- tra de um modo invejável que ellas não devem ser con- sideradas como moléstias differentes, mas bem como modalidades diversas de uma unica e mesma moléstia, isto é, a myopathia progressiva primitiva ou a dystro- phia muscular." (1). E' argumento maior para essa convicção, continúa o illustre professor, a "coincidência de 2 ou vários ty- pos de myopathia no mesmo indivíduo. E' assim que Brissaud, em 1890, em uma conferencia feita na Salpe- trière, apresentou um doente em que a paralysia pseu- do-hypertrophica e a forma facio-escapulo-humeral se combinavam inteiramente." Os doentes não soffrem, portanto, de dystrophia muscular, que eu tenho já encontrado na clinica hos- pitalar. E' caso agora de ver si elles são portadores de atrophia de origem myelopathica. Também não- São esses os caracteres principaes delia: a sua topographia, pois que, em regra, o processo atrophico começa na ex- tremidade dos membros e caminha desta para a raiz, regra que por soffrer excepções, em raros casos, mais a confirma; a existência de contracções fibrillares, que se mostram nos musculos que vão em via de destruição; o estado dos reflexos, que varia muito desde o seu des- apparecimento até sua exaltação; a presença de reac- ção de degeneração, e a evolução da atrophia, que ou é lenta ou de marcha rapida. Taes são os principaes caracteristicos das atro- phias myelopathicas e meus doentes os apresentam de modo typico. Isto faria acreditar tratar-se de lesão dos cornos anteriores da medulla, si não existissem outros phenomenos - o ser moléstia familiar, e acommetter (1) Op. cit. 69 ambos os doentes na segunda infancia. Esses dous fa- ctos bastariam para que o diagnostico se affastasse des- sa idéa. Demais, nas myelopathias, que acarretam a atrophia, qual apresentam os dous Pedroso, não se pode encaixar o quadro symptomatico que elles desenham. Assim é que o processo dystrophico se encontra, entre outros estados, a) na polyomyelite chronica e na syndrome de Heine-Medin; b) na es- clerose lateral amyotrophica ou moléstia de Char- cot; c) na syringomyelia. Evidentemente não se trata de polyomyelite chronica, caracterisada por destruição lenta e progressiva das cellulas dos cornos anteriores da medulla, que é estado que se processa insidiosamen- te, e acommette em primeiro lugar os membros thora- cicos, acompanhando-se dos phenomenos que são indis- pensáveis na symptomatologia das atrophias myelopa- thicas. Raramente a dystrophia attinge os membros inferiores (aliás por onde ella se iniciou nos meus doen- tes) e quando o faz já os musculos do tronco e dos mem- bros superiores se acham reduzidos na sua constitui- ção, e eu já insisti sobre a robustez do thorax dos Pe- droso e a ausência da atrophia no terço superior do braço. Na polyomyelite chronica, como na aguda, este membro é sempre affectado por inteiro. Eu já vi um doente de polyomyelite chronica bem clara, em que o diagnostico se impunha e caso inteira- mente differente desses que agora estudo. Por se tratar de affecção rara, entre nós, (agora já não o tem sido tanto) aqui vae a observação detalhada: Francisco Zanotti, italiano, branco, ferreiro, 45 annos, solteiro, procedente de Campinas. Pae morto aos 64 annos, sua mãe existe e é sadia; tem dois irmãos vivos e fortes, tendo perdido, quando creanças, oito ou nove. Teve escarlatina aos 8 annos. Aos 23 passou 40 dias com febre intermittente; foi acommettido de febre amarella por duas vezes em Campinas. Já soffreu de ataques de 70 rheumatismo. Ha questão de 9 mezes (a observação foi to- mada em 23-8-907) foi acommettido por febre, que per- durou por espaço de 30 dias e começou a sentir, no fim do periodo febril, que não tinha mais força na mão direita, quando necessitava de tomar um copo ou fazer qualquer es- forço. Essa fraqueza foi se accentuando gradualmente, até que de novo foi preso de febre, que persistiu durante 10 dias. Ao cabo desse periodo, o que já sentia na mão direita se mos- trou na esquerda. O exame encontra diminuição accentuada da força muscular na mão direita mais que na esquerda, atrophia nas duas mãos, que se apresentam com a forma dita em "garra" como se pode bem ver da figura n. 10, em que se nota, apezar da má photographia, a atrophia dos interosseos. O processo desnutritivo dos musculos das mãos é muito mais pronunciado á direita que á esquerda. Atrophia do ante- braço direito mais visível que do outro lado. Não ha altera- ção nos membros inferiores; reflexos normaes. Nenhuma per- turbação de sensibilidade. Não tem dôres nem nos membros doentes nem em qualquer parte do corpo. Nenhuma perturbação a mais - a não ser que a escuta cardiaca encontra retumbancia da 2? bulha no foco aortico. Esse doente, que ia desenvolvendo sua affecção mui len- tamente, uma bella manhã apresenta-se com phenomenos de peritonite e succumbe. A autopsia encontrou ulcerações in- testinaes, e perfuração do intestino. Não se poude guardar a medula para exame, por não estar, na occasião, o Hospital preparado para investigações anatomo-pathologicas. Como se vê, o caso é muito diverso dos dous que aqui vou apreciando e não se os pode, de modo algum, filiar no grupo das atropinas musculares espinhaes pro- gressivas, que Charcot classificava em protopathicas, que eram as devidas a lesão localisada primeiramente nos cornos anteriores, e de que é typico esse caso que ahi vae descripto, e em deuteropathicas, em que a lesão só accommette esses cornos secundariamente, embora a sua séde primeira seja na própria medulla. Nesse ultimo grupo entram as atropinas que succedem á tabes, á es- clerose em placas, á pachymeningite cervical hypertro- phica, (affecções cujo diagnostico de maneira alguma pode ser feito nos meus doentes) e as duas outras que 71 vou estudar, para saber si elle pode ser feito nos casos em litigio. Refiro-me á esclerose lateral amyothrophica e á sy- ringomyelia. Não se pode pensar nem em uma nem em outra. A moléstia de Charcot requer augmento dos reflexos ten- dinosos, paraplegia espastica, phenomeno de Babinski e não se coaduna com a paraplegia flacida, com seu cortejo evidenciado nos meus casos. Só isto basta para se afastar a idéa da esclerose lateral amyotrophica, on- de os phenomenos de lesão pyramidal sobrepujam, nos membros inferiores, os da atrophia, que se processa nos superiores- O mesmo se póde dizer em relação á syrin- gomyelia, por ahi faltar o seu caracter mais impor- tante, que é a dissociação syringomyelica da sensibili- dade (conservação da sensibilidade táctil, coincidindo com analgesia e thermanesthesia). Verdade é que a sua ausência não infirma um diagnostico nem sua existên- cia o impõe. Razão de sobra tem Grasset p) para se revoltar contra esse phenomeno, que Kahler e Schultze suppunham caracteristico da gliomatose medullar, pois que casos existem em que ella apparece, confirmada a diagnose pela autopsia, e o symptoma se não mostra e outros em que este se apresenta e a necropsia não des- venda cavidade medullar, substratum anatomico desse processo morbido. Eu mesmo já tive occasião de confir- mar o diagnostico, feito pelo meu illustrado collega Dr. Delphino Cintra, de syringomyelia (dissociação da sensibilidade, nystagmus e cyphose) em que a autopsia, praticada pelo meu distincto companheiro de trabalho Dr. Alexandrino Pedroso, encontrou tuberculose ossea vertebral, que occasionava todas as perturbações obser- vadas. Era de mal de Pott o caso, supposto de syringo- (1) Diagnostlc des maladies de la moelle - Siège des lesions - par le Dr. Grasset - 1908. 72 myelia, juizo clinico que se impunha. De sorte que, para se firmar esse diagnostico, necessários se fazem outros symptomas, quaes as perturbações vaso-motoras (mãos e pés succulentos) as trophicas, as alterações articula- res, a existência de cypho-escoliose, de nystagmus e paralysia dos musculos occulares, emfim uma série de phenomenos morbidos que os doentes não apresentam. Portanto, elles não soffrem de atrophia muscular de origem myelopathica, não obstante se apresentar o processo atrophico com muitos dos caracteres de lesão medullar. Descendo mais profundamente no assumpto, cabe-me verificar si se trata de dystrophia muscular ligada a lesão no cylindro-eixo do neuronio motor peri- pherico, o que constitue um grupo clinico, conhecido pelo nome de atrophia muscular nevritica. E' claro que não. Basta observar a ausência de perturbações da sen- sibilidade, que coexistem nas nevrites, a presença de contracções fibrillares, que jámais ellas apresentam, a evolução do processo morbido, que caminha para a cura na polynevrite, ao facto de que a atrophia é consecutiva á paralysia, emquanto ella é a principal nos doentes observados, que não têm paralysia, para que se ponha de lado essa idéa. Não obstante, a marcha em "step- page" e a existência de reacção de degeneração são fa- ctos sufficientes para que o espirito do medico examine, em sua obra de analyse, todos os casos capazes de com- portarem o diagnostico. Mas, inda ha mais - a nevrite ou é toxica, ou infectuosa ou traumatica - factores etiologicos que não podem ser desprezados e que não se mostram nos nossos casos possiveis de impôr a dia- gnose. Pois si nos dous houve o traumatismo, elle poderia determinar a nevrite nos membros inferiores, mas nunca acommetter os superiores como elles se acham affectados- Qual é, portanto, o diagnostico a se firmar nestes dois indivíduos? Elles são portadores de uma forma de 73 amyotrophia familiar. Já insisti sobre esse ponto e, não sendo a affecção de origem myopathica nem myelopa- thica possivel de ser enquadrada nos dois grupos em que esta se subdivide (grupos de Charcot), qual será a opinião que se deva conceber sobre a entidade noso- graphica que mantém atrophiados os musculos dos irmãos Pedroso? Ha ainda tres typos nosologicos, que não estudei e que são familiares, o mais notável de seus caracteres. São a nevrite intersticial hypertrophica e progres- siva de Dejerine e Sottas, a amyotrophia familiar typo Werdnig-Hoffmann e a amyotrophia typo Charcot- Marie. Não posso pensar que se trate da primeira dessas affecções, descripta por Dejerine e Sottas em 1893, pois que si as perturbações atrophicas se succedem como nos casos apresentados, predominam sempre alterações da sensibilidade, e que se distribuem do mesmo modo que na tabes, acompanhando-se de dôres fulgurantes, de ataxia, do signal de Romberg, de incoordenação, muitas vezes de Argyll-Robertson, e se faz notar, como phenomeno saliente na symptomatologia, e ao qual deve a affecção o seu nome, a hypertrophia dos troncos ner- vosos (mediano, cubital, radial, sciatico poplitêo ex- terno, perfeitamente sentido na cabeça do femur e ner- vos cutâneos). Tal é, em largas linhas, o quadro clinico desse estado morbido, que não pode ser identificado, como querem Marinesco, Bernhardt e Raymond (1) á amyotrophia Charcot-Marie, pois que nesta não exis- tem os symptomas tabeticos, que sobrelevam na scena mórbida da nevrite intersticial hypertrophica, nem a anatomia pathologica permitte essa identificação, como (1) Op. cit., vol. cit. 74 dizem Dejerine e Thomas (x) "que a hypertrophia dos nervos e o processo tão especial de nevrite peritubular, as lesões intensas das raizes separam absolutamente as duas affecções." Portanto, não apresentando os doen- tes os phenomenos tabeticos nem a hypertrophia dos cordões nervosos, que eu procurei com cuidado, conhe- cendo, pelo trabalho de Raymond, sua opinião abalisa- dissima e assaz respeitável, não se os pode considerar affectados da nevrite de Dejerine e Sottas. Nem se pode consideral-os egualmente tomados da amyotrophia familiar do typo Werdnig-Hoffmann, pois que ella vem precocemente, se inicia por phase de pseudo-hypertro- phia, que logo desapparece, não se mostram as contrac- ções fibrillares, e a sua evolução é muito rapida, sobre- vindo em poucos annos a morte. Ora, os Pedroso não tiveram essa phase de hypertrophia, apresentam con- tracções fibrillares e a sua moléstia dura já bastante tempo, e tempo sufficiente para que se elimine essa hypothese. Por exclusão, fica o diagnostico de amyotrophia, typo Charcot-Marie, que, de facto, é o que se impõe. Em 1886, esses eminentes neuropathologistas des- creveram na Revue de Medecine essa nova variedade de atrophia, cujos caracteres são exactamente aquelles que se observam nos meus doentes. E' assim que dizem elles, como conclusão de seu trabalho: (2) "Em summa e para resumir, de todos os documen- tos contidos neste trabalho, verifica-se que os princi- paes caracteres da forma de atrophia muscular, que uos propuzemos isolar e descrever são os seguintes: Atrophia muscular progressiva, invadindo, a prin- cipio, os pés e as pernas, não se mostrando nos mem- (1) Maladies de la moelle épinière, ' par Dejerine et Thomas vol. 34 Traité de Brouardel et Gilbert 1909. (2) Revue de Medecine - VI année - 1886. 75 bros superiores (mão e depois ante-braço) senão vários annos depois; portanto evolução lenta. Integridade relativa dos musculos da raiz dos membros ou pelo menos conservação muito mais longa que para os das extremidades. Integridade dos mus- culos do braço, das espaduas e da face. Existência de contracções fibrillares nos musculos em via de atrophia. Perturbações vaso-motoras nos segmentos de mem- bros attingidos. Ausência de retracções tendinosas notáveis do lado das articulações, cujos musculos são atrophiados. Sensibilidade o mais das vezes intacta, algumas vezes, entretanto, alterada, de vários modos- Frequência de caimbras. Começo da affecção o mais ordinariamente na in- fanda, muitas vezes em vários irmãos e irmãs; algumas vezes também ella existiria não somente nos collate- raes mas egualmente nos ascendentes." Tal é o resumo mesmo dos symptomas observados em José e João Pedroso - casos, sem duvida, typicos de amyotrophia de Charcot e Marie. O diagnostico não pode ser outro e aqui se observa a affecção em duas épocas de sua evolução, mais avançada no primeiro doente e menos no segundo. Neste, só faltam as contrac- ções fibrillares; em ambos, não existem as caimbras. No mais, tudo egual á descripção de Charcot e Pierre Marie. Esta atrophia constitue, sem discussão, uma entidade mórbida á parte e já tem sido observada por muitos clinicos de renome. Ella é conhecida egual- mente pelo nome de "peroneal type of progressive muscular atrophy" de Tooth, que a encontrou em 1886 e a caracterisou perfeitamente e de "neurotische Pro- gressive muskelatrophie", que Hoffmann em 1889 des- creveu. Ha discussões ainda sobre a sua natureza. Char- cot e Marie em seu trabalho inicial, inclinam-se a admit- 76 tir a hypothese de uma myelopathia, embora, na ausência de autopsia, lhes seja difficil formar esse conceito. Tooth conclue ser affecção dependente de lesão dos nervos periphericos e assim diz: "Conforme as autopsias e a symptomatologia, pode-se concluir que esta moléstia é uma moléstia dos nervos periphericos" p). Hoffmann conclue affirmando existir, como lesão, "nevrite intersticial dos nervos motores com degenera- ção ascendente, mesmo degeneração dos nervos sensiti- vos com degeneração ascendente dos cordões posterio- res da medulla". Mas, os casos em que se baseia para sustentar essa concepção pathogenica, não podem ser, na opinião de P. Sainton, considerados como de amyo- trophia Charcot-Marie. Foi porém Marinesco quem mais profundamente cuidou de estudar o substracto anatomico dessa atro- phia, concluindo que a origem espinhal é absolutamente verdadeira, dando desfarte realce á opinião dos crea- dores da affecção. A these do Dr. Paul Sainton - con- tribuição ao estudo deste assumpto, que não pode dei- xar de ser attentamente lida, pois que expurga os casos que não devem figurar como de amyotrophia Charcot- Marie e no emtanto ahi se acham encaixados - con- clue, depois de critica severa das necropsias, que a af- fecção não convém ser considerada como lesão dos ner- vos periphericos. A lesão é sempre espinhal e se assesta nos cordões posteriores, sobretudo nos de Burdach e sobre as cellulas dos cornos anteriores e ganglios es- pinhaes. Como quer que seja, essa opinião não é geralmente acceita, bastando se diga que contra ella se insurge o espirito de Dejerine e Thomas, duas individualidades (1) Apud Paul Sainton, L'amyotrophie type Charcot-Marie Th. Paris, 1889. 77 em destaque em neuropathologia. Elles consideram mesmo a amyotrophia Charcot-Marie como nevrite fa- miliar. Em todo o caso, o que eu quero deixar aqui saliente é que nos doentes, que me foram dado observar, acre- dito existam lesões musculares (o caracter familiar, a joven idade, a evolução lenta) lesões medullares (a to- pographia da affecção, as contracções fibrillares, a re- acção de degeneração) e lesões dos nervos (a marcha em steppage, as perturbações vaso-motoras e a própria reacção de Erb.) A affecção traz, no seu conjuncto symptomatico, os principaes symptomas reveladores do processo atrophico de origem myopathica, myelopa- thica e nevritica, maximé aquelles que constituem o apanagio das lesões que primeiramente se iniciam em cada um destes orgãos. Quem sabe si a atrophia Charcot-Marie não serve de traço de união entre estas tres lesões - a muscular, a espinhal e a peripherica? Si o typo de Werdnig-Hoffmann é, no consenso geralmente acceito ,(1) o traço de união entre as myo- pathias e as myelopathias, o de Charcot-Marie pode ser tido como de ligação entre os tres grupos, confir- mando assim a doutrina unitaria de Duchenne. Novos estudos o dirão, e assim será esclarecida in- teiramente a questão pathogenica das atrophias muscu- lares progressivas, para mim, assumpto attrahente de pathologia nervosa, como talvez nenhum outro ha que mais o seja. Sobre prognostico e tratamento nada direi, pois que ha só uma opinião a respeito e que a natureza da affecção e sua symptomatologia deixam entrever. Máo o prognostico, peiores os resultados thera- peuticos. (1) E. Boix. in Traité de Medecine de Bouchard et Brissaud, vol. X, 1905. 78 (Fig. N. 1) (Fig. N. 2) (Fig. N. 3) (Fig. N. 4) (Fig. N. 5) (Fig. N. 6) (Fig. N. 7) (Fig. N. 8) (Fig. N. 9) (Fig. N. 10) Atrophía Escapulo-Thoracíca Como sígnal precoce da Tuberculose Pulmonar* No momento actual, quando em todos os pontos do globo se agita a propaganda a respeito da curabilidade da tuberculose pulmonar, quando é preoccupação, de todos os paizes cultos, o estabelecimento dos Sanató- rios, quando entre nós já se vae fazendo a reacção con- tra o terrivel flagello, que tantas vidas nos tem custa- do, não é demais todo o auxilio, todo o trabalho, que tenha por objectivo, que vise tornar conhecida a molés- tia no inicio de sua acção devastadora. Todos os signaes e symptomas que apparecem no seu descortino, que a principiam, devem ser coordena- dos, merecem ser apontados e especificados, requerem observação detida, para que assim o medico estabeleça, desde cedo, o seu diagnostico, que então aproveitará ao doente, e que talvez feito mais tarde não lhe traga tan- tos beneficios. Foi este o motivo que me animou a confeccionar e dar a lume o presente estudo, onde procuro realçar, 99 do melhor modo possível, como signal de diagnostico precoce para essa doença, a amyotrophia escapulo-tho- racica. Graças á extrema amabilidade do meu distincto amigo e preclaro clinico da Capital Federal, o Ulmo. Snr. Dr. Francisco Fajardo, de honrosa memória, que me cedeu quatro dos seus doentes de consultorio, conse- gui, reunindo suas historias clinicas, o fim almejado. As observações que constituem o esqueleto deste trabalho são sufficientes, por si sós, para mostrar o valor que o signal possuez para evidenciar que deve ser sempre bus- cado e pesquizado, tanto mais que em conflicto com outros de egual relevância auxilia muito o clinico em sua tarefa. Desde muito se tem observado a existência de per- turbações, na esphera nervosa, no começo da tubercu- lose; Peter mesmo já dizia, ha tempos, que a affecção se inicia pela sciatica rebelde. Outras vezes são alterações motoras; em muitos casos ha mescla de phenomenos sensitivos e motores. E occasiões existem em que de par com ligeiras manifes- tações pulmonares irrompem alterações psychicas; as- sim é que muitos doentes são tomados, desde logo, por melancholia, tornam-se neurasthenicos, acreditam pró- xima a hora da morte, facto este que contrasta com a phase adeantada do mal, em que elles crêm que estão fortes, ficam dispostos para todos os actos. E' o que desde Laennec é assignalado pela spes phthysicae. E' para as perturbações trophicas que se notam no cone escapulo-thoracico que chamo a attenção dos clínicos, não para as que se observam na phase da consumpção, porque então qualquer pessôa do vulgo se acha habilitada a formular um diagnostico mais ou menos plausível, mas para aquelle período em que toda a finura do medico tem de ser posta em pratica, em que todos os elementos devem ser utilisados. 100 Ao lado das dôres thoracicas que atormentam os tuberculosos, dôres que, no dizer de Bourdon "consti- tuem muitas vezes o primeiro symptoma da tysica" e que occupam de preferencia as regiões do concavo sub- clavicular, as fossas supra e infra espinhosas, nota-se desde os primórdios da affecção a atrophia dos mús- culos que revestem o cone escapulo-thoracico, atrophia que se revela pela deformação da região, perfeitamente apreciável, sobretudo quando a lesão está ainda limi- tada e confinada a um pulmão. Para a precocidade destas alterações trophicas chamou primeiramente a attenção Bompar, que as ob- servou na tuberculose incipiente, fazendo vêr que são idênticas ás que succedem aos pleurises. Paul Carcassonne p) reunio a este respeito um grande numero de observações próprias e de outros (Bompar, Boix, Carriére) tendentes a patentear a exis- tência da atrophia dos musculos escapulo-thoracicos, coincidindo com a evolução das lesões pulmonares. Chegou á conclusão de que esta atrophia é unila- teral quando a affecção também o é; no caso de esta- rem affectados ambos pulmões será ella mais pronun- ciada no lado em que estiver mais adeantada a lesão. Acha que, phenomeno precoce, adquire uma importân- cia diagnostica extraordinária, quer porque pode tra- zer ao espirito a idéa da affecção, de que até então não se suspeitava, quer porque pôde confirmar o diagnos- tico, ainda em litigio. Por minha parte, examinando vários individuos portadores de tuberculose em começo, cheguei a ficar convencido da maxima valia que o signal possue, e não cesso de divulgal-o até que posso agora dar, em quatro observações minuciosamente tomadas, a (1) Etude des amyotrophies scapulo-thoraciques au cours de la tuberculose pulmonaire - Th. Paris. 1900. 101 descripção exacta do que se nota. Sinto immensa- mente que se tratasse de casos da clinica civil, porque do contrario poderia illustrar as observações com a re- producção photographica dos musculos atrophiados. 1? OBSERVAÇÃO Tuberculose pulmonar incipiente do lado direito. Atropina dos musculos grande peitoral, supra e infra espinhosos, grande dentado, deltoide e biceps direitos. A G. branco, Hespanhol, 29 annos, alfaiate. ANTECEDENTES HEREDITÁRIOS - Tem os paes vivos, e, embora com adeantada edade, gozam saúde; não ha casos de bacillose pulmonar em sua familia. ANTECEDENTES MORBIDOS - Ausência de qual- quer infecção. Não é alcoolista. Sempre gozou boa saú- de, sendo porém, de quando em vez, atacado por consti- pações que se caracterisam por tosse com expectoração abundante. HISTORIA PREGRESSA DO MAL PRESENTE - De tres mezes a esta parte notou que o appetite, de que sempre foi possuidor, ia se dissipando, sendo acommet- tido de nauseas pela manhã e por occasião das refei- ções. Ligeira tosse perturbava o somno, até então tran- quillo, e que se terminava no meio de suores frios, so- bremodo accentuados no thorax. Grande fraqueza mus- cular; pouca vontade de trabalhar. Ha um mez e tanto começou a ter escarros sanguineos, rubros, que cede- ram á medicação apropriada, para apparecerem pouco mais tarde. ESTADO ACTUAL - (6-12-1900) Grande abati- mento de animo e fraqueza muscular nos braços. Vomi- tos provocados pela tosse (tosse emetica de Pidoux) no momento das refeições, onde pouco se alimenta. Lin- 102 gua normal; tudo o mais do apparelho digestivo func- ciona bem. Os escarros sanguineos diminuiram; tem, porém, expectoração muco-purulenta em abundancia. Ligeiras dores no pulmão direito, tanto anterior como posteriormente. Grande pallidez do tegumento cutâneo e, em me- nor gráu, das mucosas accessiveis ao olhar. Não tem vertigens, nem tremores, nem palpitações. EXAME OBJECTIVO - Thorax. A inspecção do thorax é immediatamente surpre- hendida pela desegualdade manifesta que existe entre o cone escapulo-thoracico direito e o esquerdo. Ha uma verdadeira asymetria. Assim é que existe grande achatamento da fossa humero-clavicular de Cantani do lado direito, contras- tando com o aspecto normal, mais cheio, da do lado opposto- Do mesmo modo a supra-clavicular direita acha-se mais funda que a do lado esquerdo, com encova- mento muito pronunciado, não em proporção com o tempo recente da affecção pulmonar. Atrophia dos musculos supra e infra-espinhosos da metade dextra, atrophia que se revela pela saliência da espinha do omoplata - o que não se observa do lado sinistro. Atrophia do deltoide e dos musculos do braço, o que torna muito accentuada e facilmente destacável a interlinha da articulação escapulo-humeral direita. Fa- cto analogo não se verifica na articulação symetrica. Ligeiro afastamento do omoplata direito, por atrophia do grande dentado, tomando o thorax, nesta metade, â forma de scapulae alatae... Esta atrophia do cone escapulo-thoracico direito, que se compadece com a fraqueza muscular sentida pelo doente, não é devida ao desapparecimento do coxim gorduroso, por ser localisada e contrastar com a gor- dura relativa do resto do corpo. 103 Não ha, nos musculos atrophiados, movimentos fi- brillares. A apalpação evidencia a menor resistência da massa muscular no lado direito. O frémito thoraco-vocal, normal em toda a area do pulmão esquerdo, acha-se exaggerado na parte superior do direito, tanto anterior como posteriormente. A percussão deste pulmão denota ligeira macicez no apice, mais notadamente na face anterior; o es- querdo responde normalmente á investigação plessime- trica. A auscultação, que no esquerdo só dá conhecimento do exaggero do murmurio vesicular, no apice, respira- ção pueril, supplementar, no pulmão direito revela, no fim da inspiração, estalidos crepitantes, finos, e audi- veis melhor com o exaggero do acto inspiratorio; a expiração é um pouco rude e prolongada. Os outros orgãos da economia funccionam com normalidade; o processo pathologico encravado no pul- mão inda não chegou ao ponto de perturbar todo o or- ganismo. 2? OBSERVAÇÃO Tuberculose pulmonar incipiente. Atrophia dos musculos 'deltoide, trapézio e supra e infra-espinhosos do lado esquerdo. S. A. R. branco, portuguez, 36 annos, empregado em casa de modas. ANTECEDENTES HEREDITÁRIOS-Tem o pae mor- to, tendo succumbido a um edema do pulmão. Mãe viva e sadia. ANTECEDENTES MORBIDOS - Não conta em seu acervo pathologico senão um accesso pernicioso (?) que o acommetteu em 1890. Não usa o álcool; apenas 104 toma vinho ás refeições. E' constantemente atacado de bronchites, mormente no tempo húmido. Fóra disto é trabalhador e de bôa saúde. HISTORIA ANTERIOR DO MAL ACTUAL - Ha dois mezes começou a sentir-se rouco, com dores na gargan- ta, e a ter pequenos escarros raiados de sangue. Procurou especialista de moléstias da larynge, que o medicou, aconselhando-o a tratar-se com medico que cuidasse dos seus pulmões, porque o mal estava aqui. Por esta occasião principiou a tomar-se de forte des- animo, a ficar abatido, esquecendo o trabalho, a tossir com frequência, sobretudo pela manhã, tosse acompa- nhada de expectoração abundante, a vomitar na occa- sião dos repastos e a ter dôres no peito. Ao mesmo tempo ficou sem appetite. ESTADO ACTUAL (13-12-1900). Pallidez excessiva, extrema magreza. Acha-se abatido, e no emtanto sente- se muito melhor, depois que está confiado aos cuidados do Dr. Fajardo. A expectoração é pouca, a tosse muito menor, os vomitos desappareceram, não tem tido mais os escar- ros hemoptoicos e o appetite está voltando progressiva- mente. Dórme bem, sem suores nem febre. Não tem tre- mores, nem palpitações. Nada para o lado de apparelho digestivo- Julgar- se-hia bom, si não fosse a fraqueza que sente nos braços e a inaptidão para os trabalhos manuaes. EXAME OBJECTIVO - Thoraa - A inspecção dá conhecimento da fôrma do thorax, que é achatado e asy- metrico, visto como ha atrophia bem pronunciada do cone escapulo-thoracico esquerdo. Neste individuo, po- rém, ao contrario do que se dá no primeiro, não se nota a depressão exaggerada da fosseta de Mohrenheim, nem grande afundamento da fossa supra-clavicular. Tanto esta como a fossa acromial de Concato são syme- tricamente deprimidas. 105 A atropina é predominante para o musculo del- toide e para o feixe do trapézio que se insere na cla- vicula, de modo que se nota o achatamento do braço esquerdo em sua face externa, como si não fosse reves- tido por gordura, e saliência daquelle osso, de maneira a tornar bem patente a interlinha da articulação esca- pulo-humeral. Este facto contrasta com a disposição normal, arredondada do cone direito. Atrophia dos musculos supra e infra-espinhosos esquerdos, em menor gráo. Os musculos atrophiados não têm movimentos fi- brillares, nem a reacção de degeneração. A apalpação dá conhecimento da diminuição de resistência destes musculos, mormente do trapézio, fa- cilmente accessivel. O frémito thoraco-vocal normal em toda a exten- são do pulmão direito, emquanto que muito exaggerado no apice do esquerdo. A percussão do pulmão sinistro revela no apice macicez, bem accentuada, manifestamente na parte an- terior; o direito normal em todo elle. Neste, a auscultação nada desvenda, ao passo que naquelle encontra a expiração prolongada e rude po apice, quasi soprosa, confundindo-se na intensidade com a inspiração. Normaes os outros orgãos. 3.a OBSERVAÇÃO Tuberculose pulmonar muito em começo. Atrophia dos musculos trapézio e biceps do lado esquerdo. J. K. M. branco, brasileiro, 22 annos, ex-emprega- do no commercio. ANTECEDENTES HEREDITÁRIOS - Paes vivos e 106 fortes. Não ha, entre os seus, casos de bacillose pul- monar. ANTECEDENTES MORBIDOS - Teve varíola por tres vezes; nunca teve rheumatismo nem syphilis. Affecções veneraes por vezes. Muito sujeito a bronchites, que passam com a menor medicação. Não bebe. HISTORIA PREGRESSA DA MOLÉSTIA - Conta que ahi pelo mez de Agosto principiou a sentir perturba- ções para o lado do apparelho gastro-intestinal, e de uma feita tão violentas foram que o levaram ao medi- co, que, nesta occasião, capitulou o mal de embaraço gástrico, receitando-lhe um vomitorio. Foi então que formidável hemoptyse o prostrou, e, combatida que foi, nem por isto deixou de repetir-se, e até o mez de Novem- bro com pertinácia o accommetteu. A tosse acompa- nhava esses accessos hemoptoicos e era seguida de ex- pectoração. Ao mesmo tempo dôres no peito impediam- n'o de tomar á vontade a respiração, dôres que mais se accentuavam nas costas. O appetite desappareceu e grande abatimento apossou-se de seu espirito. ESTADO ACTUAL (15-12-1900). O doente sente-se bem disposto; acha que o mal cessou, tal a differença que nota em seu estado. A tos- se e a anorexia são os únicos symptomas que ainda o incommodam e impressionam. Não tem suores nocturnos, não tem febre; nem as perturbações gastro-intestinaes mais existem. O seu aspecto é de um homem são; não está magro. EXAME OBJECTIVO - Thorax - A' inspecção ve- rifica-se que o thorax é bem constituído, largo, apresen- tando, porém, bem manifesta atrophia do cone escapu- lo-thoracico esquerdo, atrophia que predomina nos fei- xes do trapézio que se inserem na clavícula, de sorte que ha grande abaixamento do hombro neste lado e sa- liência do osso. 107 A interlinha articular é facilmente destacável e a cabeça do humerus pode ser contornada com o dedo. Estes phenomenos coincidem com relativa proeminên- cia da fossa humero-clavicular de Cantani. Do lado direito nada se observa de anormal, con- trastando com o opposto, de modo que a asymetria é bem notável e dá immediatamente nos olhos de quem inspecciona o thorax de J. K. M. Não ha movimentos fibrillares nos musculos atro- phiados. A gordura não desappareceu porque se a sente sob os dedos- A applicação da mão, investigando o frémito tho- raco-vocal, encontra-o exaggerado ligeiramente no ápi- ce do pulmão esquerdo, exaggero percebivel somente comparando-o com o lado symetrico, onde se acha normal. A' plessimetria o pulmão direito responde normal- mente, emquanto que no apice do esquerdo ha subma- cicez bem nitida. Respiração rude em todo o pulmão esquerdo e no apice respiração intercadente e fraca, perfeitamente caracterisada. No direito o murmurio vesicular não tem alteração alguma. Funccionam bem os demais orgãos. 4.a OBSERVAÇÃO Tuberculose pulmonar no 3.® período. Atrophia do cone esca- pulo-thoracico tanto á direita como á esquerda, mais pro- nunciada aqui. J. A. N., branco, portuguez, 31 annos, empregado no commercio. ANTECEDENTES MORBIDOS - Em creança - sarampão; quando adolescente - rheumatismo. Nega a 108 existência de syphilis, o que o exame objectivo confir- ma. Ha dons annos, violenta congestão hepatica quasi o victimou. Afora isto a sua saúde foi sempre "bella". Gostou muito de bebidas, sem comtudo embriagar-se. A conselho dos médicos abandonou o vicio. HISTORIA ANTERIOR DA MOLÉSTIA - Está doente ha quasi um anno. Como nos outros, na moléstia come- çou por bronchite - tosse com expectoração, que se perpetuou; desde então, suores pela madrugada, gran- de abatimento, anorexia, dôres no peito, aphonia, não o deixaram mais socegado e demasiado o incommoda- ram. Em principios de Dezembro teve forte hemoptyse, a que se seguiram outras, estando, porém, já restabe- lecido delias. ESTADO ACTUAL - O doente apresenta-se emma- grecido, portador fóra de duvida de um organismo em bancarrota; fala com voz rouca e com difficuldade, sentindo certo cansaço. E' perseguido por tosse que constantemente o mar- tyrisa, sobretudo á noite. Então, mal começam os ac- cessos, vomita tudo o que comera na occasião do jantar. Súa bastante á noite. O appetite é nullo; tem re- pugnância pela carne. Não tem palpitações, nem tre- mores, nem diarrhéa. Sente muitas dôres nas costas e peso enorme no peito. Grande fraqueza nos braços. EXAME OBJECTIVO - Thorax - E' cylindrico, com depressão infundibuliforme, muito emmagrecido. Ha atrophia dos dous lados, comquanto mais pronun- ciada á esquerda; ha desegualdade na queda dos hom- bros, achando-se o direito mais elevado que o opposto. Grande achatamento de ambos lados da fossa de Moh- renheim traduzindo atrophia considerável do pequeno e grande peitoraes; saliência da clavicula e da cabeça do humerus. Atrophia do biceps. 109 Ha desnutrição dos musculos intercostaes, perce- bendo-se com facilidade que a do hemithorax esquerdo está em gráo mais adeantada que a do direito. Não foi pesquizado o frémito thoraco-vocal por causa da extrema rouquidão da voz, que não permittiu que as vibrações fossem transmittidas á arvore bron- chica em estado de serem apreciadas. Sub-macicez no apice do pulmão direito e macicez ein toda a zona supra-escapular do esquerdo; sub-ma- cicez desta região para baixo. Respiração soprosa em todo o pulmão direito, com um ou outro estertor de bronchite; no apice a respi- ração é quasi um sopro. No esquerdo ha estertores mu- cosos, confluentes, de grandes bolhas, melhor audiveis anteriormente na fossa de Mohrenheim. Respiração bronchica após a expulsão do catarrho. Bronchophonia manifesta. Os outros orgãos sãos, comquanto não funccionem no máximo de sua capacidade. Em todos estes casos, cuja observação foi por mim esmiuçadamente tomada, verifica-se de um modo mui- to claro que a atrophia dos musculos que revestem o cone escapulo-thoracico é bem precoce, e, apreciada com escrupulo serve para elemento de diagnostico, confron- tada com os outros signaes e symptomas. E não pára aqui o nosso acervo de factos clinicos; dentre muitos outros que não ha necessidade de referir, basta assignalar o de um illustre medico do Rio de Janeiro, com quem muitas vezes confabulei a res- peito, e que já notára a frequência da asymetria dos musculos do thorax dos indivíduos phymatosos, caso deveras complicado, e em que o signal se mostrou pa- tente. Tratava-se de uma senhora enferma já ha bas- 110 tante tempo, cumulada de diagnósticos, assoberbada por terriveis prognosticos e condemnada ao repouso no leito, em que o exame da conformação do thorax re- velou desigualdade manifesta entre o desenvolvimento muscular de um e outro hemithorax, indo a ausculta- ção e a percussão desvendar em um dos pulmões a le- são tuberculosa em plena evolução. Este caso, e outros analogos, são sufficientes para que o clinico não despreze a importância do signal ora divulgado e revelado, sem que comtudo vá ao extremo opposto de querer encontral-o em todos os doentes. A ausência da atrophia escapulo-thoracica não pôde, de maneira alguma, infirmar um diagnostico que esteja baseado em outros elementos. Seria um absurdo; mas, quando ella se acha presente, quando é facilmente no- tável, tem o medico a obrigação estricta de perquirir do estado dos pulmões, tanto mais que, firmando cedo seu juizo, pôde cercar o doente de certos cuidados a assegurar-lhe a cura. Dos musculos thoracicos, aquelle que mais com- mummente soffre do processo atrophico, é o grande peitoral; esta atrophia é bastante para explicar o acha- tamento da região infra-clavicular, sobretudo o da fos- sa de Mohrehneim. Nem todos pensam dest'arte; as- sim Hérard, Cornil e Hanot (1) deixam para a segun- da plana a atrophia do peitoral, attribuindo o achata- mento subclavicular á applicação da parede thoracica ao apice do pulmão, consecutiva ao vacuo que ahi se es- tabelece em virtude da existência de cavernas. Ora, si esta é a razão para aquelles casos em que a tuberculose já chegou ao ultimo estádio, não pode convir para quando a lesão está ainda se iniciando. Nos meus doentes o achatamento é bem caracterisa- (1) La phthysie pulmonaire. 111 do, sobretudo em A. G. (l." observação) e coincide com atrophia pronunciada do grande peitoral, facilmente reconhecivel pela menor consistência de suas fibras e diminuição de seu volume constatadas pela apalpação. Não ha, portanto, necessidade de recorrer, para inter- pretar a depressão accentuada da região subclavicular ao que não existe, deixando á margem o que se acha evidente. Gomo admittir a acção do vacuo, si não ha no pulmão mais do que uma condensação dos alvéolos, si ha justamente o opposto do estado cavitario? Para as epochas em que o pulmão está escavado a inter- pretação de Hérard, Cornil e Hanot, é lógica, mas para os primórdios da affecção, nada tem de consentâ- nea com o raciocinio. Após os peitoraes, os musculos supra e infra espi- nhosos são os que mais se resentem, dando lugar á sa- liência extrema da espinha do omoplata, de modo a que elle fica quasi inteiramente a descoberto. E' preciso, porém, quando se trata de indagar si elles se acham ou não compromettidos, que o medico os examine com a maxima attenção, procurando to- mal-os sob os dedos, porque póde existir a atrophia e passar despercebida, em consequência do desenvolvi- mento do panniculo adiposo, que póde mascaral-a. Nos meus quatro casos, foi elemento que não faltou. O trapézio achava-se atrophiado nos doentes que constituem a 2? e 3.a observações. Esta ultima é in- teressante. A tuberculose, que se iniciou por manifes- tações para o lado do tubo gastro-intestinal, cuja cau- sa passava ignorada, e que irrompeu, em Agosto do anno de 1900, com formidolosa hemoptyse, como que paralysou a sua evolução, de sorte que quatro mezes depois, quando o vi pela primeira vez, elle julgava- se são, sem outros symptomas a não ser a tosse e a anorexia. Mas a lesão lá estava ainda, e, embora fosse lisongeiro o seu estado geral, a atrophia do trapézio 112 bastava por si só para chamar a attenção do investiga- dor para os orgãos respiratórios. De facto, foi o unico musculo, á excepção dos su- pra e infra espinhosos que estavam ligeiramente atro- phiados, que soffreu o ataque, caracterisando-se por notável abaixamento da espadua do lado esquerdo, em visivel asymetria com a do lado são. Mas, como mais digno de estudo ainda, é o primei- ro, pela atrophia, bem que em diminuto grao, do gran- de dentado. E é reparavel, porque os auctores que fa- lam do assumpto, dizem que ella só apparece no final da affecção, quando já o pulmão está no periodo da resolução cavitaria, dando ao thorax a forma de "sca- pula alatae", nome consagrado por Areteo. Neste doente tive occasião de verifical-a e, no emtanto, a tuberculose ainda se encontra nos primei- ros estádios de seu desenvolvimento. E A. G- é o exem- plo mais frisante da atrophia escapulo-thoracica no inicio da bacillose pulmonar, porque quasi todos os musculos ahi foram tocados, á excepção unicamente do trapézio. Por isto não se poderá dizer que tomei por "scapuke alatae" o que Boulland (1) assignala como consequência da atrophia do trapézio e que elle considera como signal da tuberculose fibrosa. Em A. G. não; este musculo ficou intacto, pelo menos até a epocha em que o examinei, emquanto que o grande dentado se achava atrophiado. Além destes musculos, os do braço e o deltoide atrophiam-se em muitos casos. Bompar (2) já tinha assignalado o facto, que tive occasião de verifi- car, como se vê da historia clinica de A. G. (1.* obs.) S. A. N. (2-a obs.) e J. A. N. (4.a obs.). (1) BOULLAND - Limousln medicai - 1894. (2) Cit. por P. CARCASSONNE - Th. Paris. 1900. 113 A razão de ser da atrophia escapulo-thoracica no inicio da tuberculose pulmonar inda não está de todo averiguada, ainda não é conhecida em todos os seus de- talhes, é questão que merece estudos e pesquizas demo- radas. Aventaram-se hypotheses mais ou menos racio- naes, buscaram-se interpretações egualmente possiveis, construiram-se theorias, algumas plausiveis, e no em- tanto ainda ha duvidas a senhorear o espirito do inda- gador, ha interrogações que ficam sem resposta, sem explicação. Adeantando a questão e ferindo um ponto para o qual não acho solução nas obras consultadas, qual o motivo porque em uns casos de phymatose a amyo- trophia escapulo-thoracica se apresenta no máximo de seu realce, na mais clara evidencia, se exteriorisa des- de cedo com todo o apparato, ao passo que em outros, a affecção se installa, caminha, e só quando o pulmão se escava, quando a consumpção se apresenta, a cachexia sobrevem, é que os phenomenos trophicos apparecem, merecendo então uma interpretação muito diversa da- quella que é dada para os primeiros casos? Porque não é constante a amyotrophia, si o motivo delia está na existência, segundo as idéas geralmente acceitas, das alterações pleuraes consecutivas á lesão pulmonar, al- terações essas que todos os auctores dizem serem (Ccons- tantes na tuberculose do pulmão"? (x). Ou por outra, porque em grande numero de doentes o pleuriz secco do apice se mostra interpretando a atrophia, emquan- to que em diversos outros a complicação não existe? São estes pontos de duvida que sombreiam e apa- gam um pouco o brilho das theorias levantadas, theo- (1) Fernet - Art. Plévre no Dicc. Dechambre. 114 rias aliás fundamentadas na observação e confirmadas pelos exames necroscopicos. Deixo, porém, de parte esta pequena differen- ça, este ligeiro não-nada, e procurarei traçar a patho- genia do signal que constitue o objecto deste estudo. A amyotrophia escapulo-thoracica que se estabe- lece em virtude da lesão bacillar assestada no pulmão, não pode ter como causa a mesma que têm as perturba- ções trophicas que apparecem no decurso da affecção ou na terminação delia. E' assim que fundamental caracter as dissocia logo. E' a generalisação do processo atro- phico nas ultimas eventualidades, em flagrante oppo- sição com o facto da localisação e systematisação que se observa na primeira delias. E' claro que a interpre- tação deve ser diversa uma vez que differentes são as manifestações do processo morbido. Para as atrophias cacheticas, bem como para as que succedem nos meia- dos da affecção e que cedo se diffundem, a explicação pathogenica é toda outra daquella que é dada para a amyotrophia escapulo-thoracica. No que diz respeito ás primeiras, nenhum traba- lho de compilação é melhor que o feito por Klippel í1), que tem a consagração dos entendidos e onde elle reuniu todas as causas capazes de as engendrar. Chega á conclusão de que as amyotrophias cache- ticas podem resultar: l.° da immobilidade, que acarreta a dystrophia, elemento por si só insufficiente; 2.° do emmagrecimento, em que ha diminuição da fibra muscular, de par com o desapparecimento da gordura; 3.° da alteração dos nervos periphericos por elle e Erb constatada; (1) Klippel - Th. Paris. 1889. 115 4.° da lesão das cellulas dos cornos anteriores da medulla; 5.° de esclerose vascular que origina a atrophia por falta de nutrição dos musculos. Klippel, em seus repetidos exames, encontrou, ao lado dos capillares in- tra-musculares lesados, as próprias fibras inteiramente degeneradas; 6.° de perturbação da crase do sangue, que, com- pletamente alterado, dá lugar á atrophia ou porque age directamente sobre o musculo ou por intermédio dos nervos e seus centros trophicos. O sangue pode ser o causador da amyotrophia não só em razão de sua inó- pia em elementos nutritivos como também porque pode conter as toxinas secretadas pelo bacillo da tubercu- lose, toxinas que têm a capacidade de agir sobre os musculos e sobre os nervos, com os mesmos direitos com que o fazem outros venenos e outras toxinas. E' facto verificado a affinidade que têm para os nervos periphericos as toxinas do bacillo de Koch. Esta attracção especial é de ha muito conhecida, e já tem sido mais de uma vez lembrada para explicar as nevrites que são tão communs durante a evolução da phymatose. Pitres e Vaillard (1) tendo observado, em tuber- culosos francamente acommettidos, perturbações moto- ras dependentes exclusivamente da alteração dos ner- vos periphericos e sem que nada houvesse para os cen- tros. e em que o exame necroscopico verificou a exis- tência da nevrite parenchymatosa, e confrontando os seus com os estudos de Strumpell, Joffroy, Vie- rordt, Oppenheim e outros, concluiram pela acção pa- thogenica exercida pela tuberculose sobre os nervos, acção directa e idêntica á das demais substancias toxi- (1) Pitres et Vaillard - Des nevrites peripheriques chez les tuberculeux - Revue de Medecine. 1886. 116 cas. Para elles a tuberculose actua como a febre typhoi- de, o typho, a diphteria, a varíola, o álcool, localisando seus effeitos sobre os nervos periphericos, que a anato- mia pathologica vae encontrar lesados com todos os caracteres da nevrite parenchymatosa. Nestes casos a atrophia é universal, generalisada, e, comquanto alguns musculos gozem predisposição para se desnutrirem, a diffusão delia é o principal ca- rácter "la diffusion est, ici surtout, le veritaile ca- ractère predominant" na linguagem de Carrière. (1) Não é assim a atrophia escapulo-thoracica, que ago- ra consigno como apparecendo no inicio da tubercu- lose do pulmão. Aqui, ha localisação do processo; a atrophia confina-se aos musculos visinhos á lesão. E' limitada e tem como caracteristico acompanhar a evo- lução da bacillose; não se estende a outros pontos, e pode também, pela maior ou menor accentuação, servir para marcar a phase da lesão pulmonar. Ha de ter evi- dentemente uma pathogenia diversa da assignalada por Klippel, Pitres e Vaillard. Qual será ? Aonde buscar o motivo da atrophia que vae se encantoar na região escapulo-thoracica? Vou por partes. Deante da coincidência da amyotrophia com a pre- sença de uma espessa falsa membrana ligando á pare- de thoracica o ápice do pulmão, notando a frequência das alterações da pleura concomitando com a atrophia, Fournet, e depois delle Bompar, concluíram que a atro- phia localisada aos musculos escapulo-thoracicos tem como causa estas alterações pleuraes, que são a conse- quência da lesão tuberculosa. Fundamentaram-se, para tirar esta illação, nas as- serções de Desplats, (1) que verificou serem frequen- (1) Carrière - Th. Bordeaux - 1894. (1) Desplats - Semaine Medicale - 1885. 117 tes os casos de atrophia dos peitoraes, intercostaes, grande dentado, grande dorsal, collocados nas visinhan- ças da pleura doente, inflaminada. E' a inflammação da pleura que se propaga aos musculos; é um traba- lho de nevrite de visinhança - "emfim, um pleuriz não se concebe sem nevrite de visinhança". Fica por saber qual o mechanismo porque este pleuriz determina a atrophia, visto como nem todos ad- mittem a explicação de Desplats, tal como está en- nun ciada. Pierre Parisot (x) foi quem abriu campo á ques- tão, comparando a genese da amyotrophia de origem pleural á que se observa em consequência de arthropa- thias. "En effet, diz elle, sans vouloir identifier la plè- vre et les muscles de la paroi thoracique à une articu- lation entourée de ses muscles, rien ne nous interdit, en nous plaçant à un point de vue général, de n'envi- sager là q^une séreuse offrant des rapports étroits de contiguité avec des masses musculaires. Aussi pense- rions nous volontiers que les differentes théories patho- géniques que nous avons passées en revue, à propos des amyotrophies d'origine articulaire, pourraient s'appli- quer à 1'atrophie des muscles thoraciques au cours de la pleurisie." Quasi que em tudo as atrophias que succedem ás perturbações articulares são analogas ás que occorrem em virtude de lesões pleuraes. Assim, antes que os mus- culos se tomem da atrophia se nota em ambos os casos phenomenos pareticos e espasmódicos; não ha, em ne- nhum delles, a reacção de degeneração, (2) e sobretudo (1) Pierre Parisot - Pathogenie des atrophies musculaires. Th. d'agregatlon - 1886. (2) Segundo os estudos de CHARCOT - Leçons du Mardi à la Salpetrière e de Plicque - Journal des Practiciens, 1895. 118 o que os unifica, o caracter que mais accentúa a seme- lhança e fal-os incidir em uma mesma condição patho- genica, é a systematisação da atrophia, é a tendencia que ella tem para occupar um certo grupo de musculos, para confinar-se a uma dada região, nas proximidades da lesão a que é tributaria. Assim, como cada articula- ção, quando soffre e se acompanha de atrophia, tem uns musculos que mais se compromettem que outros, no caso da atrophia que obedece á lesão pleural egual- mente uns musculos mais se resentem que outros, como se verifica da simples leitura das observações que apre- sento. E, para dar a este trabalho um cunho mais pra- tico. que outro valor não tem, consigno aqui mais uma observação, realmente interessante, colhida na 2.a enfermaria de clinica medica da Santa Casa, e que merece ser confrontada com as outras precedentes. E' caso digno de nota, porque tenho conhecimento de que ultimamente têm concorrido idênticos no® ser- viços hospitalares e da clinica civil de alguns collegas. Eil-o: Arthropathia, seguida de atrophia dos musculos grande dorsal, deltoide, supra e infra-espinhosos e do braço. C- C., branco, italiano, 50 annos, trabalhador, en- trou ha um mez para a enfermaria. Antecedentes hereditários - Paes mortos. Irmãos vivos e fortes; não ha tára nervosa nem escrophulosa em sua familia. Antecedentes morbidos - Aos 18 annos - febre typhoide; aos 29 - cancros molles, seguidos de ade- 121 nite suppurada. Não teve syphilis. Nunca soffreu de rheumatismo até a epoea de sua doença actual. Historia pregressa do mal presente - Em Março do anno passado depois de trabalhar por algum tempo sob forte pancada de chuva, retirando-se completamen- te molhado para casa, foi tomado de constipação que o levou ao leito, manifestando-se então dôres nas es- páduas com irradiação para os braços, dôres tão vio- lentas que o impediram de mover-se na cama. A arti- culação escapulo-humeral esquerda ficou ligeiramente deformada e tumefacta, voltando em poucos dias, po- rém, ao seu primitivo estado com o tratamento que ap- plicou. Quando se viu livre das dôres notou que se achava impossibilitado de mover o braço e antebraço esquerdos, conservando ainda os movimentos do punho e dedos. Por mais esforços que fizesse não conseguia sepa- rar o braço do thorax, ao qual estava chumbado. Do lado direito sómente sentia fraqueza nos mús- culos, podendo não obstante executar com braço e mão todos os movimentos desejados. Depois de guardar ainda o leito por alguns dias e vendo que nada adeantava o seu estado, continuou a trabalhar da melhor maneira possivel até que se resol- veu a dar entrada no Hospital. Estado actual (31 - 5 -1901) - Forte e bem dis- posto, ninguém dirá á primeira vista que é um doente, um enfermo na verdadeira accepção da palavra. Todo o seu organismo funcciona bem; anda com presteza e nada mais tem além do que já expoz em sua anamnese. Exame objectivo - O braço e ante-braço esquer- dos applicados de encontro ao thorax não obedecem á acção da vontade; ha verdadeira paralysia, mas que se reconhece ser devida á atrophia dos musculos, cuja des- nutrição é patente á inspecção e sensivel á apalpação. Assim os musculos do braço esquerdo acham-se todos 122 atrophiados e é franca a desegualdade que existe entre elle e o outro- Dos musculos no antebraço nenhum soffreu e esta é a razão porque persistiram os movimentos dos dedos, tanto os de flexão como os de extensão. Ha atrophia do deltoide e dos musculos supra e infra espinhosos, dando lugar á saliência do omoplata, da interlinha articular, com grande depressão das fos- sas supra e infra espinhosas. Mas, de todos os musculos, aquelle que mais acom- mettido se acha é o grande dorsal, determinando um encovamento na face lateral esquerda do thorax, como se pode verificar da figura que junto para melhor apre- ciação. Houve egualmente atrophia do trapézio. O grande peitoral, porém, está são, de modo que não ha asyme- tria no espaço sub-clavicular de um e outro hemi- thorax. A força muscular das duas mãos é egual, compa- rada ao dynamometro. A sensibilidade está intacta. Não ha reacção de degeneração, nem os musculos atro- phiados têm movimentos fibrillares. Examinados os pulmões com a maxima attenção, pesquizado o frémito thoraco-vocal com cuidado, per- cutido o thorax e auscultado o murmurio com escrú- pulo, não notei a minima discrepância em ambos, o que está de accordo com a historia clinica de C. C. que jamais accusou perturbações pulmonares. Este caso é assaz instructivo; o diagnostico que fiz foi o de uma arthrite seguida de amyotrophia. Nem sei que outro haja que possa ser formulado. A anamnese é ellucidativa; deixa bem evidente a causa da amyotrophia. Como disse, é um caso quasi iden- 123 tico aos quatro outros, e bastante razão teve Parisot quando os fundiu numa mesma formula, dando-lhes egual pathogenia. E' naturalíssimo; uma vez que as manifestações são analogas, a razão que as promove deve ter analo- gia egualmente. E' curial, portanto, que se indague porque mecha- nismo as arthropathias produzem a atrophia, para po- der-se chegar aonde quero - isto é, saber porque meios as alterações pleuraes trazem a amyotrophia dos musculos visínhos. Será como quer Cruveilhier, a immobilisação da articulação, a causadora da atrophia? Não me pare- ce, nem hoje ninguém mais tal admitte, porque como explicar a atrophia quando não ha dôr e por conse- quência a immobilidade não existe? Será devida á compressão dos vasos ou dos mus- culos pelo derrame intra-articular ? Mas não é admis- sível também, porquanto nem sempre ha derrame e tem- se visto arthrites com ligeira exhudação se acompanha- rem de atrophias bem pronunciadas. Mesmo no meu caso a simples compressão é sufficiente para explicar a tão manifesta atrophia do grande dorsal? Será tributaria da myosite por propagação como querem Duplay e Clado? Esta não é a opinião de Pa- risot nem a de Kahane (x), que aliás não acha ne- nhuma theoria capaz de explicar o facto satisfactoria- mente, porque nada se tem encontrado nos musculos quando feitos os exames histologicos. Demais, tem o grande defeito de não poder inter- pretar a atrophia dos musculos que se acham distan- tes do logar doente. (1) Sem. medicale - 1892. 124 Qual a razão então ? Para não repisar o que se encontra nos livros, emitto a minha opinião. Para mim a theoria que mais agrada é a de Vulpian - atrophia reflexa, por acção exercida á distancia sobre os centros trophicos da medulla, pela irritação não só articular como peri-articular. Esta theoria, que Char- cot abraçou com todo o enthusiasmo em suas memorá- veis licções da Salpetrière, que James Paget acceitou e Bouchard aproveita para interpretar as atrophias de origem gottosa, e que é tida como a mais capaz, é clas- sificada por Kahane de puramente hypothetica. No emtanto, as experiencias de Hoffa í1) (de Wurtz- burg) feitas repetidas vezes em cães, são concludentes em attribuir á acção reflexa partida da articulação doente as atrophias arthropathicas. Diz Charcot: "il s'agit d'admettre que les nerfs articulaires irrités transmettent suivant le mécanisme des actes réflexes, 1'irritation dont ils sont le siège par la voie des nerfs centripètes, jusqu'à la substance grise spinale ou elle affecte les cellules nerveuses des cornes anterieures. Ces cellules deviennent en consequence le siège d'un travail irritatif qui, dans une première pe- riode, produira Vexcitabilité réflexe du système neuro- musculaire, tandis que dans une période ulterieure, qui correspond à la phase d'épuisement de Vorganite "cel- lule ganglionaire" ce sont la parésie et Vamyotrophie qui s'accusent surtout". Esta theoria que as experiencias assignaladas de Hoffa e outras de Raymond valorisam, é confirmada pelos exames das peças medullares, hoje facilitados pe- los novos methodos histologicos. E' assim que Klippel tem uma brilhante observação em que, fallecido o doen- te, que em vida apresentava atrophia dos peitoraes con- (1) HOFFA - Sem. medieale - 1892. 125 secutiva a um pleuriz, a autopsia foi encontrar a me- dulb, do lado homologo ao da atropina muscular, com grande diminuição das cellulas do corno anterior. Além da theoria de Vulpian, que acceito por- que é a que melhor cabe nos moldes do meu enten- dimento, baseada na observação e na experimentação, ha a de Klippel e Durante (1) que explica a atrophia pela degeneração retrogada dos nervos periphericos, e a de Marinesco (2) que admitte uma acção á distan- cia, dando em resultado a dissolução dos elementos chromatophyllos da cellula nervosa. Tanto uma como outra, fóra de duvida, brilhan- tes na concepção, arrojadas nas conclusões, não podem ser approvadas sem que passem apuradas pela retorta dos dous methodos em que se esteia o moderno edificio da medicina - a experimentatio et observatio. Sendo assim, concordo com Vulpian e explico as atrophias, que succedem ás arthropathias, por uma acção, que, partida da articulação, doente, vae-se reflectir sobre as cellulas dos cornos anteriores da me- dulla, cellulas que soffrem do processo degenerativo. Pois bem; a amyotrophia escapulo-thoracica obedece a mechanismo idêntico. Aqui, são os filetes nervosos da pleura affectada, filetes que são fornecidos pelo plexo brachial, e também pelo cervical profundo, que, com- promettidos reflectem a acção mórbida sobre as cel- lulas de origem, que se acham na região cervical. Ora, estas cellulas mantém relações muito próximas de con- tiguidade com os neuronios motores a que estão subor- dinados os musculos escapulo-thoracicos, de modo que (1) KLIPPEL e DURANTE - Des dégénérescences rétrogrades dans les nerfs peripheriques et dans les centres nerveux. Revue de Medecine - 1895. (2) COMPTES rendus hebdomadaires de la Société de biologie. 1895 e 1896. 126 aquellas alteradas, transmittem áquelles a perturbação, degeneram, dando em resultado a atrophia dos mús- culos innervados pelos filetes que delles partem. Interpretando desta maneira a atrophia escapulo- thoracica, cuja presença no começo da tuberculose pul- monar é elemento para diagnostico a que se deve dar real importância e que o tempo ha de evidenciar, não deixarei entretanto de reconhecer que a theoria não é indestructivel e que será provavelmente reformada com ulteriores estudos. 127 Um novo sígnal da Syphilis Retumbancía da bulha no foco aortíco <'> Meus senhores: Existem na syphilis - moléstia que é flagello uni- versal e terrivel desorganisador da especie humana - symptomas e signaes objectivos que impõem ao medico o diagnostico da doença, capazes de firmal-o desde cedo, quando a therapeutica dá resultados maravilhosos. El- les vão desde o reconhecimento do treponema nas ul- cerações primitivas até á positividade da reacção de Wassermann, desde as roseolas, tão caracteristicas e tão próprias, até ás hyperostoses e ás exostoses, á cepha- léa noctuma, especial, typica. Mas, entre esses pheno- menos clínicos um não foi descripto, não foi assigna- lado, não é mencionado na litteratura. E' delle que me vou occupar. (1) Por proposta do prof. H. Roxo, o 1.® Congresso Medico Pau- lista acceitou a denominação de "Signal Rubião Meira" a este phe- nomeno na syphilis. 129 Estou certo de que não passou desapercebido aos clínicos, quero crêr que se impressionassem, como eu, com sua frequência, com os caracteres que apresenta, que o estudassem como o estudei. Mas, como o não vejo tratado nos auctores e não poucos que consultei, sen- do, aliás possível que a litteratura, que me foi dado percorrer o mencione, o que supponho, mas não posso affirmar, porque compulsei não poucos livros e revistas, chamo a attenção para esse signal, pedindo vossas vis- tas cuidadosas e dos collegas que o encontrarão amiú- de no circulo de suas observações. Signal e frequência - Notei sempre que ausculta- va o coração de indivíduos portadores de syphilis a re- tumbancia da 2.a bulha no foco aortico, retumbancia que ás vezes tem o caracter francamente metallico, que apresenta mesmo não raro o timbre clangoroso. E' este o phenomeno morbido que tenho verificado e que em cem casos de lues em todos elles se mostra - quer se trate de creança (syphilis hereditária) quer seja adul- ro e principalmente nos velhos. Tanto os homens como as mulheres apresentam essa modificação de timbre e de intensidade da 2.a bulha no foco aortico. A séde é especial- O clangor se ouve só no segundo espaço intercostal á direita, mesmo perto á linha es- ternal desse lado. E' inteiramente localisado, não soffre propagação, e, o que é mais, é preciso ser procurado com cuidado; um pouco que o observador se afaste des- se ponto assignalado já a bulha perde esse caracter metallico. Isto hei encontrado sempre e com a pra- tica que tenho do phenomeno costumo localisal-o com presteza, o que não fazem os demais que têm, commigo, assignalado o facto. Intensidade e timbre - A 2.® bulha aortica torna- se tympanica. Essa modificação de sua intensidade vae desde o simples reforço, tal qual se o encontra nos ca- sos de atheroma, até á retumbancia metallica, o "bruit 130 de crapaud" de Gueneau de Mussy e que já antes Tor- res Homem - o nosso mestre dos mestres - descrevera com o nome de "bulha de sapo" na ectasia aortica. Ha variações no timbre, mas o que é certo é que é a resonan- cia metallica que existe, a percussão metallica da 2.a bulha no foco aortico que apparece. Não existe com o cancro duro, mas, desde que um mez sobre a inoculação da lues tenha passado, já a 2.a bulha aortica se modifica no seu caracter. Nos 2.° e 3.° periodos da moléstia o signal se evidencia claro, patente, certo, indiscutivel, servindo, a meu vêr, na obra do diagnostico. E' frequente formular eu o dia- gnostico só pela existência dessa bulha metallica, que o exame posterior do organismo e a reacção de Wasser- mann confirmam e acertam. A observação tem me mostrado que os doente em que encontro o phenomeno, deixam de ter a retumbancia da 2.a bulha, uma vez submettidos ao tratamento rigoro- so da lues, tal qual o faço, quer dizer pelas inj. de neosal- varsan, mercúrio e iodeto de sodio, todas por via endo- venosa, que é o triumpho da medicação moderna. Esse facto tem sido frequentemente observado em muitos casos archivados, por mim, dessa evolução do signal. Quando não existem lesões no apparelho circula- tório, nada mais se encontra que possa interpretar o signal. A 2.a bulha no foco pulmonar não se altera, con- serva seu timbre normal, nenhuma modificação quan- titativa apresenta; não existe hypertrophia cardiaca; o ictus cardis bate onde normalmente deve bater. Este é o facto mais importante e para o qual cha- mo com particularidade a vossa attenção. Era na- tural que houvesse augmento da tensão arterial, uma vez existindo a modificação no timbre da 2.a bulha aor- tica. Esta é, pelo menos, a primeira impressão que deve chegar ao espirito do clinico e foi nesse sentido que fiz minhas indagações iniciaes. Si houvesse hypertensão, 131 era explicável logicamente a retumbancia, o caracter metallico da bulha, tal qual existe sempre que ha aug- mento de tensão arterial. E, o signal indicaria natu- ralmente que a syphilis é moléstia que augmenta desde logo a tensão das artérias, como o faz certamente quan- do determina o atheroma, occasiona a ectasia aortica ou produz a arterio-esclerose. Mas, não foi o que en- contrei. A tensão arterial, quando se não abaixa, não vae além do normal. Este é o ponto capital e que todos vós podeis, como eu, verificar. Tirei a tensão com o oscil- lometro de Pachon, que é, no momento, o esphygmoma- nometro em uso mais diffundido e mesmo o que merece mais confiança nos seus resultados. A tensão maxima ou systolica ficou sempre no nivel normal, e do mesmo modo a minima ou diastolica. Não ha portanto hypertensão - que, evidentemente - não é a causa da modificação da bulha assignalada. Antes de dar a pathogenia do phenomeno, qual eu penso, não sei si errado, mas com elementos seguros em mão, vou apresentar-vos dezenove observações, todas ellas de syphilis e todas com o diagnostico au- torisado pela symptomatologia e pela reacção de Was- sermann positiva. Depois direi qual a interpretação pathogenica que se deve impôr para o facto- I -A. L. D. Mx. 14 Mn. 10 35 annos, casada, brasileira. Teve 3 abortos. Cephaléa, nocturna e diur- na, dôres osteocopas nos braços, pernas e joelhos. Já teve albuminú- ria; presentemente não tem. Tibial- gia e esternalgia á pressão. G. epitr. Ret- 2.a b., foco aortico. 48 annos, casado, brasileiro. Ulcera- ção no nariz. Já teve ha 20 annos o cancro duro. Tibialgia, esternalgia, II -A. D. Mx. 14 Mn. 9 132 cephaléa. Ganglios ing. e epitro- chleanos. Wass. positivo. Ret. 2.a b., foco aortico. 21 annos, solteiro, brasileiro. Em Fe- vereiro de 1916 teve cancro duro que custou muito a cicatrizar, só o fa- zendo á custa de inj. de mercúrio. Depois, em Abril, teve cephaléa, do- res nas costellas e dôr supra orbita- ria, nocturna. Ganglios ing. e epitr. Wass. positivo. Ret. 2.a b., foco aort. 8 annos, brasileiro. Rheumatismo, no braço esquerdo. Heredo-syphilis, a mãe diz que logo depois de nascer apresentou feridas no corpo, que fo- ram diagnosticadas como syphiliti- cas. Wass. positivo. Clangor metal- lico da 2.a bulha, foco aortico. 48 annos, casado, italiano. Dôres ge- neralisadas a todo o corpo; cepha- léa nocturna. Tibial. e esternal. á pressão. Gang. ing. e epitr. Wass- positivo. Ret. forte, 2.a b., foco aort. 24 annos, solteiro, brasileiro. Dôres na nuca, braço, pernas, mais fortes ao se deitar. Estigmas francos de lues. Wass. positivo. Ret. 2.a b., foco aortico. 18 annos, solteira, brasileira. Cepha- léa, dôres ósseas, augmentando á noite, placas na garganta. Verti- gens. Ganglios epitr. e inguinaes. Ti- bialgia e esternalgia. Wass. positi- vo. Ret. 2.a b., foco aortico- 34 annos, casado, brasileiro. Cepha- léa. Neurasthenia profunda. Irmão III -H. M. Mx. 16 Mn. 10 IV -L. S. G. Mx. 14 Mn. 10 V - B. P. Mx. 16 Mn. 10 VI -L. P. Mx. 13 Mn- 10 VII - L. B. Mx. 12 Mn. 9 VIII -C. M. Mx. 13 133 Mn. 10 fallecido com gomma cerebral. Mãe teve ulcera syphilitica no braço. In- somnia permanente. Ganglios ing. e epitr. Ret. 2.a b-, foco aortico. 24 annos, solteiro, brasileiro. Esper- matorrhéa, impotência, grande neu- rasthenia. Dôres no estomago, cons- tantes- Cephaléa nocturna. Ganglios epitrochleanos grandes. Wass. posi- tivo. Ret. 2.a b-, foco aortico. 24 annos, solteiro, brasileiro. Teve blenorrhagia ha 1 anno e meio e cys- tite consecutiva. Estigmas francos de lues, maximé gangl. ing. muito hypertrophiados. Wass. posit. Ret. clangorosa 2.a b., foco aortico. 42 annos, solteiro, hespanhol. Tem syphilis ha annos; já fez o 914 e 606, tendo melhorado. Agora reappare- cem os incommodos, dôres ósseas, sobretudo na parte inferior da co- lumna vertebral. Não tem pert. uri- narias nem de sensibilidade. Gang. epitr., suboccipitaes e inguinaes. Wass. positivo. Ret. 2.a bulha, foco aortico. 32 annos, casado, brasileiro. Ulcera no veu do paladar. Batimento in- commodo da carotida esquerda, com palpit. de coração. Neurasthenia. Estigmas claros de syphilis. Wass. positivo. Ret. 2.a bulha, foco aortico. 25 annos, solteiro, italiano. Teve ul- ceração no penis. Um mez e meio de- pois cephaléa, roseolas. Wass. posi- tivo. Clangor 2.a bulha, foco aortico. IX -A. S. Mx. 12 Mn. 8 X - B. dos S. Mx. 15 Mn. 8 XI -c. o. Mx. 14 Mn. 10 XII - J. de C. Mx. 14 Mn. 10 XIII -S. L. Mx. 14 Mn. 10 134 XIV -T. C. Mx. 13 Mn. 10 24 annos, solteiro, brasileiro. Esti- gmas francos de lues. Gangl. epitr. e ing. Cephaléa diurna e noctuma. Wass positivo. Ret. 2.a b., foco aort. 26 annos, casado, brasileiro. Dôres nas costas, fraqueza geral. Não tem cephaléa. Dyspeptico. Gang. ing. e epitr. Wass. positivo. Ret. 2.a bu- lha, foco aortico. 30 annos, casada, brasileira. Verti- gens. Cephaléa. Ha 1 mez tem-n'a dia e noite; mais forte á noite. Pés lig. edemaciados. Não tem alb. nas urinas. Ganglio epitrocleano á es- querda, grande. Tibialgia forte á pressão. Wass. positivo. Ret. 2.a b., foco aortico. 49 annos, viuvo, brasileiro. Doente desde Janeiro deste anno. Teve con- gestão pulmonar. Pontada no cora- ção. Não tem cephaléa. Wass. posit. Gangl. ing. e epitr. Tibalgia e ester- nalgia á pressão, muito dolorosas. Ret. 2.a bulha, foco aortico. 33 annos, casado, brasileiro. Quéda de cabello, peso na cabeça, memória fraca. Todos os estigmas presentes. Wass. posit. Ret. 2.a b., foco aortico. 20 annos, solteiro, brasileiro. Em Abril teve o cancro, que se não fe- chou. Febre nocturna. Roseolas e papulas espalhadas no corpo. Cepha- léa e dôres rheumaticas. Ganglios ing. e epitr. Tibialgia e esternalgia. XV -J. F. Mx. 13 Mn. 10 XVI - E. M. B. Mx. 16 Mn. 10 XVII -G. M. Mx. 13 Mn. 9 XVIII - S. L. de B. M. Mx. 15 Mn. 9 XIX -F. A. Mx. 11 Mn. 8 135 Wass. negativo. Ret. 2.a bulha, mui- to accentuada. Ahi estão as observações sufficientes para confir- mar o facto. Desses doentes, o prof. Miguel Couto, que occupa na medicina brasileira posição impar, pelo seu notável descortino clinico e rara erudição, conhece a observação XVI, tendo concordado com meu diagnos- tico, que já a reacção de Wassermann confirmára. Em todos a retumbancia é patente, e, cabe-me assignalar, como acima ficou dito, que o signal é tão frequente ou mais frequente que os demais que servem para a dia- gnose da syphilis e sobretudo mais certo e mais cons- tante que a reacção de Wassermann. Nestas observações encontra-se sempre a retum- bancia da 2.a bulha e em 16 a tensão max. ficou nos li- mites da normalidade, tal qual a pede Martinet (13 e 16 paraissant les limites normales habituelles de la tension maxima} em seu livro "Clinique et therapeuti- que circulatoires". Houve 3 observações, a 7.a, a 9.a e 19.a em que a tensão mx- ficou um pouco abaixo, não se podendo, em todo caso, dizer que tivesse havido hypo- tensão. A tensão minima acha-se em todas as observações dentro das linhas normaes, pois que vae commummente de 8 a 10, conforme o pensar de Martinet, baseado em observações cuidadosas. Não ha, portanto, hypertensão - e este é, repito, o ponto que merece mais importância quando se pro- cura interpretar a pathogenia do phenomeno morbido que agora estudo. Com o que ficou explanado procurarei agora dar a interpretação pathogenica da retumbancia da 2." bulha, no foco aortico. Pathogenia - O segundo ruido, o segundo tom diastolico, na base, é devido ao fechamento das valvulas 136 sigmoides e á vibração das artérias. Este facto sabido, tira-se a conclusão de que quanto maiores forem a pres- são arterial e a vibração dos vasos tanto mais forte será o ruido, a sensação acústica que esses factos produzem. Dahi o reforço metallico da 2.a bulha nos casos de hy- pertensão arterial - de que elle constitue um signal certo e positivo - dahi o reforço metallico nos casos de atheroma pela vibração imperfeita do vaso, a que se junta naturalmente o excesso de pressão que coexiste com esse estado morbido. Si na syphilis apparece esse mesmo facto é porque fatalmente uma das duas condi- ções deve se mostrar: a) ou porque existe hypertensão &) ou porque haja alteração das valvulas sig- moides ou da aorta. Enclausurado o problema nesse circulo, parece-me facil a solução. A retumbancia não pode ser devida ao primeiro factor posto em scena, porque ficou clara- mente demonstrado que não ha hypertensão arterial na lues. As observações que apresentei affirmam positi- vamente a ausência delia, cousa que outros çlinicos, e quem quizer, podem verificar, com o Pachon em mãos. Logo, não é devida a retumbancia da 2.a bulha ao pri- meiro elemento pathogenico que puz em evidencia, por- que a esphygmomanometria prova eloquentemente não existir na syphilis a hypertensão arterial. Será que ha alteração das valvulas ou da aorta? Gertamente que sim, nem ha a fugir dahi, collocada a questão como foi por mim posta. Mas - agora é que as hypotheses entram em jogo - que especie de alteração é esta? Atheromasia? Absolutamente não. E não, por um critério muito simples. E' que o atheroma é pro- cesso que não é passivel de regressão, não é susceptivel de cura e eu já affirmei, como tenho verificado, que o 137 tratamento feito em tempo opportuno modifica o tim- bre metallico da bulha. Com este simples raciocinio não se póde cathegori- camente filiar a modificação de intensidade e timbre da bulha cardiaca a um processo de atheromasia loca- lisado, a um processo que altere definitivamente a constituição interna do vaso ou das valvulas sigmoides. Si houvesse atheroma, a 2.a bulha aortica deveria ficar perpetuamente metallica, indefinidamente clangorosa. Ora, como isto se não dá, manda a lógica mais ele- mentar que se procure outra causa para explicar o phenomeno anormal. Eu penso que se trate apenas de impregnação da aorta pelas toxinas syphiliticas, sem alteração na sua estructura, alteração que naturalmente se dá quando o individuo não se trata. Não existe, portanto, modifi- cação histológica de caracter permanente, apenas tran- sitória e capaz de soffrer regressão em sua marcha evo- lutiva- Não se pode pensar em outra hypothese. Agora, é admissivel que haja essa impregnação vascular pelas toxinas syphiliticas? Creio que sim, pois ha auctores, como Hallopeau e Fouquet (Traité de la syphilis, 1911) que a admittem perturbando o funccionamento do co- ração independente de fixação mórbida e occasio- nando desordens, attribuidas tão somente á "impre- gnação pelas toxinas emanadas de syphilomas em acti- vidade e lançadas na circulação." E' a esse processo que quero filiar a modificação de timbre da 2.a bulha aortica que existe na syphilis. Deste trabalho tirareis, commigo, as seguintes con- clusões : I. - Na syphilis, logo após o inicio da infecção, apparece retumbancia da 2.a bulha no foco aortico. 138 II. - Essa retumbancia que ás vezes vae até o tom tornar-se francamente clangoroso, é localisada, não tem sede de propagação, e existe quaesquer que se- jam a edade e o sexo do paciente. III. - Ella melhora com o tratamento e chega a desapparecer contemporaneamente com a negatividade da reacção de Wassermann, outr'ora positiva. IV. - Não se acompanha de alterações outras para o lado do apparelho circulatório- V. - A tensão arterial, maxima e mínima, conser- va-se nos limites normaes, com tendencia antes a de- crescer que a augmentar. VI. - Essa modificação acústica da 2.a bulha é talvez devida á impregnação da aorta pelas toxinas sy- philiticas. VII. - Tem uma importância capital na diagno- se, podendo levar o medico a firmar seu juizo, offere- cendo tanto valor quanto a existência dos ganglios epitrochleanos e a própria reacção de Wassermann. VIII. - Dá noções uteis ao prognostico, com a di- minuição de seu caracter sob a influencia de therapeu- tica racional. Meus senhores - Tenho sempre constatado esse phenomeno physico agora posto em evidencia e quero crer que todos formem a mesma opinião com a procura cuidadosa delle, elemento de grande valia na obra do diagnostico desse mal, que tantos desastres causa e que é fonte de grande desbarato das raças. Daqui a algum tempo elle fará parte dos outros signaes que servirão á diagnose precoce da syphilis e quero que os meus alumnos sejam os primeiros a co- nhecel-o, em todas as suas minúcias, como aqui agora vos relato. 139 Contribuição ao estudo das alterações da Secreção Gastrica na Ancylostomíase "Das funcções gastricas e intesti- naes estudaram-se as manifestações mais apparentes, os desvios quantita- tivos e as perversões do appetite, os phenomenos subjectivos ligados ao tra- balho digestivo e, em certa maneira, as desordens da digestão intestinal e o es- tado de ampliação da cavidade gás- trica; mas nada ha conhecido no tocante á formula do chimismo gástri- co, suas modificações nas varias pha- ses da opilação e as relações porque se prende aos differentes aspectos das funcções digestivas". (DR. ALMEIDA MAGALHÃES. O fígado e baço na ancylostomiase). Assim falou um dos mais eminentes membros do magistério brasileiro, iniciando seu estudo sobre as alterações do figado e baço na ancylostomiase, que, pela sua extrema frequência entre nós, fornece campo a que de vez se liquidem as questões que lhe são attinentes. Sirvam estas palavras, repassadas do espirito critico e consciencioso do talentoso mestre, de justificativa ao nosso esforço, procurando afastar as sombras de uma questão até agora não estudada. 141 Pouco ha, certo é, a respeito do assumpto de que me vou occupar. Digo pouco, para não incorrer em erro dizendo que inda delle se não cogitou, porque não tenho a pretenção de estar a par de toda a. bibliogra- phia do meu objecto. Entretanto, naquella que me foi dado colligir lhe não vejo referencias. Dahi, o desejo de dar principio á tarefa de estudal-o, e são as premis- sas que colhi que apresento ao publico. São incompletos, por emquanto, os resultados a que attingi. Entretanto servem de base a que outros continuem nesses estudos. Nunca passaram despercebidos na hypohemia in- tertropical os padecimentos do estomago, muito ao con- trario sempre chamaram a attenção dos observadores. Tão pronunciadas são as desordens gastricas ás vezes, que muito justificada parece aos clinicos a desi- gnação porque era conhecida antigamente a moléstia. Mal d'estomac des nègres - assim a definiam aquelles que primeiro a observaram na África, suppondo-a par- ticular á raça preta e caracterizando-a pelas alterações mais frequentes. De facto, o opilado accusa sempre perturbações do apparelho digestivo, algumas das quaes se objectivam por signaes que o medico aprecia e analysa. Estas per- turbações são descriptas com minúcia nos tratados e o seu estudo não entra nos moldes deste trabalho. A lin- gua pallida, espalmada, conservando as impressões dos dentes, a gastralgia, a perversão do appetite (pica e malacia), os vomitos, phenomenos diversos de dyspe- psia, ao lado da dilatação do estomago e do catarrho chronico da mucosa gastrica com hypersecreção delia (A. Lutz) - são estudados com detalhe pelos auctores, que nada mais que isto adeantam- Não se buscou saber das causas dessas alterações tão importantes e que sempre se mostram com grande 142 realce. Não se quiz ainda interpretar a tão grande mo- dificação do appetite, que umas vezes é exagerado em extremo (bulimia), outras pervertido totalmente e não raras vezes sobremaneira diminuido. Porque dizer, como alguns, que são ligados á nevrose é dizer que inda nada se sabe de sua pathogenia. Certamente, que entre estes symptomas gástricos e os ancylostomas pregados ás paredes do intestino, deve existir alguma cousa mais, talvez violento desvio na secreção gastrica como ha perturbação na motili- dade do orgão. O facto é que, ha muito impressionado com a pre- ponderância das perturbações digestivas, na ancylos- tomiase, para ahi dirigi as minhas investigações, com o intuito de apurar o que se passa no orgão relati- vamente ás alterações do sueco gástrico. Desse estudo colhi a certeza de que este muito se perturba e mo- difica, certeza que o tempo assegurará com o accres- cimo de novos elementos de convicção. Antes, pois, de quaesquer outras considerações apresento as treze observações seguintes, em que me foi dado analysar o sueco gástrico dos doentes hypohemicos. Usei, em todos elles, o mesmo processo. O doen- te, em jejum, tomava o repas d'epreuve de Ewald (60 grms. de pão e 250 de chá) e 3/4 de hora a 1 hora depois retirava, com o tubo Faucher, o conteúdo gástrico, que submettia ao exame. Desse foi encarregado o habil chimico do Laboratorio de Analyses do Estado, Pharmaceutico José Frederico de Borba, que me auxi- liou immensamente, pondo ao meu dispôr sua compe- tência reconhecida, cabendo-me aqui agradecer seus inestimáveis serviços. Um ou outro exame foi praticado pelo meu col- lega, Dr. Caramurú Paes Leme, digno ex-chefe chimico do Laboratorio de Analyses de S. Paulo, a quem esten- do meus agradecimentos. 143 OBSERVAÇÃO 1? G. 0., colono, solteiro, de 25 annos, italiano, vem de Santa Rita de Passa Quatro e entra para o meu serviço de medicina na Santa Casa no dia 24 de Ou- tubro- Está doente ha cinco annos. A moléstia iniciou-se por debilidade geral e perda dia a dia do appetite. Verifiquei a symptomatologia toda da ancylostomiase. Batimentos carditcos, exaggerados e hyeresthesicos, dyspnea quando caminha, gastralgia, e dôr duodenal. A Jingua pallida, chata, com o signal dos dentes; esto- mago doloroso á pressão. Figado ligeiramente aug- mentado. Anemia muito pronunciada. Não tem mani- festações hydropicas. Nunca soffreu do estomago ante- riormente á actual moléstia. Nem constipação de ven- tre, nem diarrhéa. Jámais vomitou. Em 28 do mesmo mez submetti-o ao repas d'epreuve de Ewald e retirei apenas 10 grams. do liquido gás- trico. Foi este o resultado de sua analyse: Acido chlorhydrico livre 0. „ de fermentação 0. „ combinado a albuminoides 0,365 °/oo Albumina coagulavel 0. No dia 29 appliquei-lhe 6 grams de thymol, pelo processo clássico, que fez expellir 295 vermes (ancy- lostomas). Receitei após o xarope de iodureto de ferro. A 7 de Novembro tomou novamente o acido thy- mico expellindo apenas 38 nematoides. 144 OBSERVAÇÃO 2.a J. C., italiano, casado, colono, de 39 annos, vem de Ribeirão Preto e entra na enfermaria no dia 27 de Ou- tubro proximo passado. Doente apenas ha um anno e o seu estado geral é bom. Já teve impaludismo. A ancylostomiase é evidente. Tem muito appetite, mesmo exaggeradissimo, sem com- tudo me revelar si tem perversão delle. Dôr epigastrica accentuada. Grosta só de comer café em polpa. Nem vomitos nem diarrhéa. Nenhum phenomeno dyspeptico a não ser a dôr gastrica. Tomou o repasto de prova no dia 29 retirando-se 35 grams. de liquido escuro com o pão em suspensão. Eis o resultado da sua analyse: Acido chlorhydrico livre 0,146 °/oo „ de fermentação 0,657 °/Oo „ combinado a albuminoides 0, 80 °/oo „ total 1,603 °/oo Albumina coagulavel 0. Acido láctico 0. No dia 30 tomou 6 grams de thymol, tendo expelli- do 216 ancylostomas. Em 9-11 nova dóse com a pro- pulsão de 14 tão sómente. A 13 - novamente lhe foi applicado o acido thymico com a expulsão de 15 ver- mes- Em 17 - tencionando sahir de todo curado - tomou ainda o thymol. Não expelliu mais ancylostomas. Seu estado geral é bom. A applicação de ferro fez voltar as côres e não accusa mais perturbações. 145 OBSERVAÇÃO 3.a A. L. da S., lavrador, solteiro, 24 annos, brasileiro vem de Sabaúna no dia 3 de Novembro e entra na minha clinica. Ancylostomiase - o typo do individuo empala- mado. Ha 4 annos doente. Muito adeantada sua mo- léstia. Anemia extrema. Qualquer esforço - prostra-o. Não tem o minimo appetite. Dôr no estomago. Não tem vomitos, nem diarrhéa- Prisão de ventre. Penosa ex- tracção do liquido gástrico, que se effectuou a 4 de No- vembro, após a refeição própria, pela falta de forças. Retira-se ainda assim 20 grammas delle. O resultado da analyse foi este: Acido chlorhydrico livre 0. ■ „ de fermentação 0. „ HC1. combinado a albuminoides 0,152 „ láctico 0. Albumina coagulavel 0. No dia seguinte toma apenas 4 grams de thymol, porque não contamos muito com sua resistência. Entra em uso de ferruginosos e fica muito melhor. No dia 18 do mesmo mez toma novamente o thymol expellindo 215 vermes - a 26 nova dose, expellindo 445 ankylostomas. Em 11 de Dezembro mais 170, em 20 ainda 63; a 10 de Janeiro 24 e a applicação de mais 6 grs. de thymol em 17 do mesmo mez nada produz. Examinadas, em 20, as fezes não se encontram mais ovulos. Estado geral bom. Nada sente e sahe curado em 24- O exame feito novamente, do sueco gástrico, deu o seguinte: Acido chlorhydrico livre 0,584 °/00 „ de fermentação 0,292 „ combinado a albuminoides 0,580 Acidez total 1,456 °/oo 146 OBSERVAÇÃO 4 .a A. L., colono, casado, 28 annos, hespanhol, vem do Tombadouro e entra no dia 31 de Outubro na enferma- ria a meu cargo. Doente ha 8 ou 9 mezes - quando começou a sen- tir-se fraco, sem forças para o trabalho rural e com vertigens. Ancylostomiase. Dôr epigastrica muito ac- centuada, extremamente sensivel a região do estomago. Come bem, mas sem exaggero e depois que se alimenta tem vontade de vomitar, mas não consegue. Diarrhéa. Estado geral bom. Nenhum phenomeno sério. O que mesmo mais o trouxe ao hospital foi a gastralgia. A 5 de Novembro, após uma tentativa no dia anteriormente fracassada, tomou a refeição de Ewald e consegui retirar 50 grams. de liquido. Foi este o resultado da analyse nelle procedida: HC1. livre 1, 7 °/00 Ácidos de fermentação 0,71 °/00 Acido chi. combinado a albuminoides ... 1, 1 °/oo „ láctico existe Albumina coagulavel existe No dia 6 tomou o thymol, expellindo 45 ancylosto- mas. Em seguida foi-lhe administrado o preparado fer- ruginoso, tendo-se restabelecido. OBSERVAÇÃO 5.a M. M., colono, casado, italiano, de 57 annos, bran- co, vindo de Porto Ferreira, entra no dia 9 de Novem- bro no meu serviço. Doente ha um anuo. Ancylostomiase. Muita dôr no estomago. Appetite exaggerado. Anemia pronuncia- 147 da. Tem as pernas edemaciadas. Nem vomitos nem diarrhéa. Figado normal. Coração sem alteração nas suas bulhas, não só no seu valor phonico como na sua integridade- A urina examinada não revelou albumina nem assucar. No dia 10 retirei 60 grams. de liquido gástrico, após a applicação do regimen de Ewald, e foi o seguin- te o resultado da analyse nelle operada: Acido chlorhydrico livre 0,73 °/00 Acido de fermentação 0, 5%o Acido chi. combinado a albuminoides.. 0, 8%o Acido láctico 0 Albumina coagulavel 0 Toma o thymol a 11 e expelle 367 ancylostomas. Entra em uso do iodureto de ferro e melhora. OBSERVAÇÃO 6.a F. F. da S., lavrador, solteiro, 18 annos, vindo de Atibaia, brasileiro, branco, entra no dia 11 de No- vembro. Doente ha muito tempo. A moléstia está muito adeantada. Ancylostomiase, diagnosticada á distancia. Nada no estomago a não ser ligeira dôr á pressão. Ap- petite pouco, mas com vontade de comer cousas extra- vagantes, "comidas pesadas e ruins" na sua expressão. Está hydropico e muito depauperado. Não vomita, nem tem diarrhéa. A fraqueza é extrema. Não póde cami- nhar 10 passos sem se sentir offegante. Não ha albu- mina nas urinas- 148 No dia 12 tomou o repasto de prova e a sonda reti- rou 40 grams. de liquido, cujo exame apurou: HC1 livre 0 Ácidos de fermentação vestígios HC1 combinado a albuminoides 0,3 %o Acido láctico 0 Albumina livre 0 No dia 13 tomou o thymol, apenas 4 grams. e ex- pelle de uma vez 559 ancylostomas. Está em uso de preparado ferruginoso e melhor. Esse trabalho que ahi vae e sahiu estampado na Gazeta Clinica, em Junho de 1906, apresenta 6 obser- vações de ancylostomiase, com o exame do sueco gás- trico, indicativo de hypochlorhydria accentuada e mui- tas vezes de anachlorydria. Em um unico desses doen- tes foi-me possivel fazer dous exames, um antes de lhe ser applicado o tratamento que costumo e outro após a expulsão total dos vermes. Nesse doente reve- lou ao exame a melhoria considerável da secreção gastrica, que antes era inteiramente achlorhydrica, tor- nando-se depois quasi normal, embora ainda deficiente o grau de acidez total. Agora dou abaixo mais sete observações, em seis das quaes me foi possivel (não sem pequeno sacri- fício, luctando contra o desagrado que manifestam os doentes, com o uso da sonda gastrica) praticar esse exame duas vezes - chegando eu ao mesmo resultado das minhas primeiras pesquizas. Estas, acredito, são hoje sufficientes para que se possa dizer qual o estado do chimismo gástrico na ancylostomiase - podendo no emtanto serem verifi- 149 cados esses resultados novamente por outros experi- mentadores. Convém que assignale que foi ainda a illnstrado chimico José F. de Borba quem se encarre- gou desses exames com sua reconhecida habilidade. OBSERVAÇÃO 7.a L. V., branco, solteiro, 50 annos, italiano, residente em Pimenta. Doente ha 3 annos, com dores no ventre, palpitações, cançaço, anorexia- Este estado persiste até a data em que entra no Hospital (22 de Fevereiro de 1907) accusando mais, grande dyspnéa quando sobe um morro ou anda apressado. Não tem edemas, é pallido, mas não tem a côr caracteristica do hypoemico, con- junctivas occulares levemente coradas, denunciando ser pouco pronunciada a anemia, lingua caracteristica - branca, achatada, larga, com a impressão dos dentes. Acima do apice cardiaco, sopro systolico extra-cardiaco. No dia 23 de Fevereiro tomou a refeição de prova de Ewald e foi examinado nesse mesmo dia o sueco gástrico. Eis o resultado do exame: Acidez total 0,898 HC1. livre 0,511 Ácidos de fermentação 0,219 HC1. combinado á albuminoides 0,168 No dia 24 tomou 4 gr. de thymol, tendo expellido 252 ancylostomas; no dia 28 mais ' gr. com a expul- são de 8; no dia 4 de Março não expelliu mais, com nova dose do medicamento. No dia 12 de Março submette-se a nova prova e procede-se a óutro exame, de que é o seguinte o re- sultado : 150 Acidez total 1,955 HCL livre 1,241 Ácidos de fermentação 0,306 HC1 combinado á albuminoides 0,408 Acido láctico vestigios Albumina coagulavel ausência Teve alta no dia 12, julgando-se curado inteira- mente por nada mais sentir. OBSERVAÇÃO 8.a V. F-, branco, viuvo, 64 annos, italiano, residente em Pimenta, perto de Itú. Doente ha 10 mezes, com grande fraqueza e cançaço, palpitações. Come muito, está sempre com vontade de comer, nada negando do que se lhe dá, não tem vomitos e evacúa regularmente. O que mais o incommoda é a fraqueza; não tem ede- mas, mas já teve os maleolos edemaciados. A côr é a caracteristica do opilado, as conjunctivas occulares descoradas; a lingua não se apresenta como nos outros casos, é vermelha e fendida, nada no coração; não tem albumina nas urinas. No dia 23 de Fevereiro deste anno toma a refei- ção de prova sendo nesse dia examinado o sueco gás- trico, com o seguinte resultado: Acidez total 2,190 HC1. livre 0, Ácidos de fermentação 0, HC1. combinado a albuminoides 2,190 Acido láctico 0, No dia 24 toma 5 gr. de thymol e expelle 73 vermes; no dia 28, mais 6 gr. e expelle 10, nada mais expulsan- 151 do com nova dose que lhe foi administrada em 4 de Março. Em 8 deste mez retira-se, sem ser possivel novo exame do sueco. •I OBSERVAÇÃO 9.a B. A. P-, mulato, casado, 57 annos, lavrador, bra- sileiro, de S. Bernardo. Doente ha 2 annos quando começou com esmoreci- mento, grande cançaço, debilidade crescente que o im- pedia de trabalhar. Nunca vomitou, evacúa bem, não tem dôres no ven- tre, mas as tem nas pernas. Palpitações muito fortes, conjunctivas occulares inteiramente brancas, lingua própria do ancylosto- miasico. Toma a refeição de prova no dia 25 de Fevereiro, sendo nesse mesmo dia examinado o sueco gástrico, com o seguinte resultado: Acidez total 0,750 HC1. livre 0,000 Acido de fermentação 0, HC1 combinado a albuminoides 0,750 Acido láctico ausência No dia 26 toma a l.a dose de thymol, expellindo 380 vermes; no dia 4 de Março novamente lhe é minis- trado o remedio com a expulsão de 180 ancylostomas, e no dia 10 não mais expelle. Melhorou muito e sente-se mais forte, mas ainda se acha fraco. O exame do sueco gástrico é novamente feito em 15 de Março com resultado initeiramente analogo ao prece- 152 dente, apenas com a diminuição de miligrammas na aci- dez total que foi de 0,742. Sahe nesse dia por necessitar voltar para casa, de sorte que não pude examinar novamente a sua secre- ção gastrica. OBSERVAÇÃO 10.a S. P., branco, solteiro, 43 annos, hespanhol. Doente ha 13 mezes, quando começou a sentir-se muito fatigado sõb o mais ligeiro esforço e a ter muito appetite, notando que nunca se satisfazia com o ali- mento ingerido. Palpitações violentas que se incremen- tavam quando andava apressado. Já esteve neste Hospital em tratamento', tendo ex- pellido grande numero de ancylostomas, sahindo quan- do o medico não encontrou mais ovos nas suas fezes. Novamente, de 6 mezes a esta parte, lhe voltaram os mesmos incommodos e mais dôr no epigastro. Nada de anormal no figado, nem no coração. Pallidez excessiva do tegumento cutâneo e das conjunctivas, não tem ede- mas, não perde albumina. Toma a refeição para o exame no dia 27 de Feve- reiro e o resultado é o seguinte: Acidez total 0,621 HC1. livre 0,0 Ácidos de fermentação vestigios HC1. combinado a albuminoides 6,621 Acido láctico ausência No dia 28 toma 6 gr. de thymol que faz expellir apenas 5 vermes, e no dia 4, sob nova dose, nada mais expelle. Dahi por diante, sob a acção de tonicos ferrugino- sos, sente-se melhor. 153 Em l.° de Abril submetto-o novamente á refei- ção de prova; o exame do sueco deu o seguinte re- sultado : Acidez total 0,985 HC1. livre 0, Ácidos de fermentação 0,292 HCL combinado a albuminoides 0,693 Acido láctico 0, Albumina coagulavel vestigios Sahe nesse dia, ainda anémico, mas sem ovulos do ancylostoma nas fezes por mim examinadas. OBSERVAÇÃO 11a L. B. solteiro, 26 annos, italiano, oleiro, morador no Marco da Meia Legua. Entrou no dia 25 de Fevereiro e me diz que se acha doente ha 2 annos e tanto, tendo contrahido a actual moléstia quando residia em Guariba. Cançaço pronun- ciado, sobretudo quando sobe ladeira, palpitações car- diacas "como querendo o coração sair do peito", gastral- gia, dôr duodenal. Nunca vomitou, grande voracidade, não olhando qualidade de alimento, pallidez geral e das conjunctivas, batimentos da artéria temporal, que é flexuosa em tão precoce edade - facto a que aliás hoje se liga pouco valor. Em 27 toma a refeição para o exame do sueco gás- trico, que é feito nesse dia, com o resultado seguinte: Acidez total 0,468 HC1. livre 0,183 Ácidos de fermentação 0,124 HC1. combinado a albuminoides 0,161 Acido láctico 0, 154 No dia 28 toma 6 grs. de thymol expellindo 200 an- cylostomas; em 4 de Março mais remedio com a expul- são de 70 e no dia 10 não mais produz effeito o medi- camento. Sente-se muito melhor ao ponto de desejar sair; no dia 12. dou-lhe alta, mas faço novo exame do sueco gástrico que é o seguinte: Acidez total 1,022 HC1 livre 0, Ácidos de fermentação 0,708 HC1. combinado a albuminoides 0,314 Acido láctico existe Albumina coagulavel vestígios OBSERVAÇÃO 12.a N. A. branco, solteiro, de 18 annos, italiano, colono, vindo de Araras. Doente ha menos de 1 anno, tendo começado a moléstia com cansaço e palpitações. Não come quasi, não tem dôres no estomago, não vomita e evacua diariamente. E' gago, tem a côr caracteristica, mas pouco accentuada, revelando ter a moléstia o ata- cado pouco, lingua vermelha, cortada, conjunctivas oc- culares normaes. Caso não muito claro, tanto que foi necessário proceder-se ao exame das fezes antes de ser feito o do sueco gástrico - revelando elle a existência dos ovulos do parasita. O sueco gástrico foi extrahido após a refeição de prova no dia 27 de Fevereiro, com o seguinte resultado,, depois do exame: Acidez total 2,118 HC1. livre 0,840 Ácidos de fermentação 0,329 HCL combinado a albuminoides 0,949 Acido láctico 0, 155 No dia 28 é administrado o thymol, 5 grs., com a expulsão de 25 ancylostomas; no dia 4 de Março nova- mente toma o remedio nada expellindo então. Sente-se bom; no dia 11 de Março examina-se de novo as fezes, que dão resultado negativo e o sueco gás- trico, depois da refeição, e que dá este resultado: Acidez total 2,445 HC1. livre 1,533 Ácidos de fermentação 0,620 HC1. combinado a albuminoides 0,292 Acido láctico 0, Albumina coagulavel existe Sabe nesse dia. OBSERVAÇÃO 13? B. G., branco, viuvo, 52 annos, colono, vindo de Santa Rita. Doente ha 12 mezes; edema da parede do ventre e nas pernas; cançaço, gastralgia. Assim tem estado desde que adoeceu, com grande fraqueza e debi- lidade geral. Come bem, mas não muito, porque sente que a comida lhe pesa no estomago e o incommoda; pal- pitações. Tem côr pallida, lingua branca; não se póde fazer juizo do estado das conjunctivas por estar affe- ctado de trachoma. Não tem sopros nem alteração no coração, nem albumina nas urinas. No dia 20 de Março toma a refeição de prova e o exame do sueco gástrico é este: Acidez total 0,475 HC1. livre .?/. 0, Ácidos de fermentação 0,255 HC1. combinado a albuminoides 0,220 Acido láctico 0, Albumina coagulavel 0, 156 No dia 21 toma 6 grs. de thymol expellindo 400 ancylostomas; no dia 28 mais 6 grs. com a expulsão de 5; no dia 1 de Abril nada mais expelle. No dia 4 submette-se mais uma vez á refeição de Ewald e o exame do sueco é o seguinte: AcUdez total 1,752 HC1. livre 0,679 Ácidos de fermentação • 0,343 HC1. combinado a albuminoides 0,730 Acido láctico existe Albumina coagulavel ausência Sahe nesse dia, dizendo se achar totalmente curado, sem edemas e sem cançaço. A apreciação do exame do sueco gástrico destes sete últimos doentes e bem assim a dos outros seis do meu primeiro trabalho nos faz vêr desde logo que na hypo- hemia intertropical a acidez total se acha depreciada, bem reduzida, muito aquem de sua taxa normal- Assim é que dos seis doentes, cuja observação publi- quei em Junho de 1906, todos tiveram pronunciada hypochlorhydria, sendo que em dois somente - na obs. 2.a e na obs. 4.a, a acidez total attingiu a mais de 1 gr. E, um facto que desde já preciso accentuar e que é assaz instructivo e que se pode verificar bem do par aliei o entre as primeiras observações e as ultimas é o seguinte, para o qual chamo a attenção dos entendidos: a de- preciação do valor da acidez total é proporcional á quan- tidade de parasitas que o doente expelle sob a acção do thymol, isto é, quanto maior é o numero de vermes que o doente contem, tanto mais pronunciada é a anemia e tanto mais insignificante é a taxa da acidez total. 157 Foi um facto que tive occasião de verificar sem- pre, podendo ser considerado como uma lei - tal a constância mathematica com que elle se revelou em meus exames e de certo, acredito, o mesmo fará a ou- tros experimentadores. Assim no meu primeiro estudo verifiquei que na primeira observação, em que o doente expelle 333 vermes, a acidez total é de 0,365 - na 3.a, em que expelle 907, ella é de 0,152; na 5.a, em que expulsa 367, ella o é de 0,203; na 6.a, em que ha a expulsão de 559 - e de uma só occasião, a acidez total é de 0,3. Por sua vez, na segunda observação, em que houve a expulsão apenas de 245 com varias applicações do thy- mol, o exame revelou a acidez total de 1.603 e na 4.a, em que se nota apenas a expulsão de 45 ancylostomas, ten- do-se curado logo o doente, com a administração de uma unica dose de thymol, essa pesquiza apurou exaggerada cifra, denunciando antes tendencia á hyperchlorhydria que á anachlorhydria, pois ella foi de 3,51, cabendo notar que o doente me procurou por soffrer de gas- tralgia pronunciadissima. Infelizmente não posso sa- ber si essas dores epigastricas que o trouxeram ao hos- pital precederam a ancylostomiase ou eram consequên- cia delia. Mas, esses dons casos bastam para se notar o con- traste accentuado entre ambos os factos que pretendo ligar - a depreciação do chimismo gástrico e a quanti- dade dos vermes intestinaes- Vejamos que ensinamentos podem dar as observa- ções que agora faço para completar o meu estudo. O 7.° doente expelle 260 e tem acidez total egual a 0,898; o 8.° expulsa 83 e a acidez é de 2,190; o 9.° que a tem de 0,750 expelle 560; o 10.° expulsa 5 apenas, com acidez egual a 0,621; o 11.°, 270 e a acidez é de 0,468; o 12.°, que tem por acidez total a cifra de 2,118, expelle 158 somente 25 vermes - e o 13.° expulsa 405, tendo o exame revelado a acidez total egual a 0,475. Por ahi se vê que ainda nestes novos exames se veri- fica a mesma cousa que anteriormente tinha obser- vado. Não sirva para tirar o valor do que vou assigna- lando o facto do 10.° doente expellir tão poucos ancylos- tomas (5) sendo a acidez total insignificante. Basta que se veja que é esse um doente que já tinha soffrido, em outra enfermaria do Hospital o tratamento, para que se conclua que não ha ataque ao que quero consignar como uma lei geral attinente aos individuos affectados de ancylostomiase. Demais, dada a divulgação extraordinária da mo- léstia entre nós, no Brasil, é facil que outros façam o mesmo que eu fiz. Para emprestar a esses resulta- dos ainda mais um cunho de certeza roguei ao então collega e companheiro na minha enfermaria de medi- cina na Santa Casa, Dr. Alexandrino Pedroso, que fi- zesse pesquizas nesse sentido, que lhe deram idêntico resultado por mim verificado. Com effeito, na maioria, na quasi totalidade dos doentes por elle examinados, a acidez total foi sempre muito diminuida, com ausên- cia quasi sempre de HC1. livre - tudo de accordo com as observações que venho de apresentar. Um outro facto importante que se observa do proto- collo desses exames de sueco gástrico é que em quasi to- dos elles o HC1. livre não existe e, quando apparece, é em percentagem tão insignificante que não merece valor. Assim é que vemos nessas 7 ultimas observações, que aqui compendio, o seguinte, para cada um desses exames: 7.a HC1. livre 0,511 8.* „ o 9.* „ „ o 10-* „ „ 0 159 11? HC1. livre 0,183 32? „ „ 0,840 13? „ „ 0 Nesse grupo só o 12? doente tem HC1. quasi proximo da taxa normal, também doente em quem a moléstia se caracterisou mal. Nos 6 primeiros doentes que antes observei, e de cuja historia clinica apresentei o resul- tado acima, é o mesmo que se averigúa: No 1? HC1. livre 0 No 2? „ „ 0,146 No 3? „ „ 0 No 4? „ „ 1,7 No 5? „ „ 0,73 No 6? „ „ 0 Nesse grupo só 1 teve HC1. livre em proporções consideráveis - nesse mesmo doente, sobre que atraz fiz considerações. Inda mais, esse HC1. modifica-se egualmente para melhor, após a eliminação total dos ver- mes, isto é, quando o doente vae se restabelecendo. Esses factos demonstram todos a deficiência da se- creção gastrica na ancylostomiase dependente ella tal- vez da anemia de que se acha portador o doente, pois essa é a formula do chimismo nos individuos anémicos. Esse resultado a que cheguei, após os exames, con- corda exactamente com a supposição que têm os autores que escreveram sobre a moléstia. Assim fala Lutz, no seu "Ankylostoma Duodenal e Ankylostomiase", á pag. 53: "Ainda não se fez estudos chimicos da secreção gas- trica nesta moléstia; é provável que em certos casos haja diminuição do acido chlorhydrico"• Como se vê do meu estudo, parece que os exames actuaes confirmam essa hypothese, que, com certeza. 160 representa a verdade do que se passa no chimismo gás- trico dos hypohemicos. Em 1909, o meu interno, Dr. Oscar de Oliveira, apresentou á Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro sua these de doutoramento, dissertando sobre as "alte- rações da secreção gastrica na ancylostomiase" tirando conclusões idênticas ás que eu já tinha retirado- O Dr. Oscar de Oliveira examinou a secreção gas- trica nos dois periodos da moléstia, quando ella se inicia e quando se termina. Verificou que na primeira phase, coincidindo com o augmento de appetite que es- ses doentes accusam, existe excesso de acido chlorhydrico livre e em combinação organica. Ha, portanto, hyper- chlorhydria, augmento da acidez total e chloro total e diminuição dos chloretos fixos. Essa formula, diz o distincto medico "foi constante no inicio da moléstia". Posteriormente se observa a anachlorhydria, qual eu havia observado. Diz mais que a "citada hyperchlorhy- dria é de muito curta duração". Desses estudos, que foram feitos sob minha direcção, se conclue que ha, por- tanto, duas phases em que o exame do sueco gástrico apura alterações. Na l.a na inicial, em que ha hyper- chlorhydria, e na 2.a, naquella em que mais commum- mente os doentes vêm procurar o medico, e em que é a anachlorhydria que se mostra. 161 Syndrome mediastínal (Estudo etíologico) Meus senhores. Aqui tendes este doente, preto de 70 annos, brasi- leiro e que aqui veiu procurar o hospital por se achar acommettido de canceira e grande dyspnéa, que o inhi- bem de se entregar ao trabalho. Dyspnéa de esforço e tosse meitallica, sem expectoração, são os symptomas que mais o affligem. Basta ouvirdes esse homem tossir, com essa tosse tão typica, tão caracteristica, para sup- pordes que elle tem um aneurysma de aorta. De facto essa é a affecção que o immobiliza no leito. Tanto os symptomas como os signaes, e desses o mais importante a existência de deformação na parede costal ao nivel do 2.° e 3.° intercosto do lado direito, com pulsação vi- sivel - bastam para que firmeis a existência de grande aneurysma da aorta, que já determinou osteite das cos- tellas e já proeminiu, vindo se fazer sentir á simples ins- pecção e á apalpação, que vos dá a sensação typica do thrill. E, os raios X já vos mostraram que realmente esse é o diagnostico unico que tendes a fazer. 163 Pois bem, este indivíduo apresenta symptomas evi- dentes daquillo que, em 1898, Dieulafoy l1) chamou de syndrome mediastinal, quando estudou o pleuriz mediastinal e descreveu, com mão de mestre, a sua symptomatologia. Como encontrareis frequentemente doentes portadores dessa syndrome e precisaes conhe- cel-a bem, para que possaes fazer um diagnostico acer- tado, vou aproveitar a aula de hoje para discorrer sobre ella. Sabeis o que em anatomia se chama medias- tino. "E' o espaço comprehendido entre as duas re- giões pleuro pulmonares direita e esquerda, espaço que é cheio por uma serie de orgãos os mais importan- tes". (2) Os anatomistas dividem-no em anterior e posterior, limite este que é estabelecido por um plano passando pela bifurcação dos bronchios. Mas, elles mesmo reco- nhecem o que ha de artificio nessa distincção, pois que asseguram que, tanto acima como abaixo desse ponto, as duas porções se communicam francamente entre si, sem separação alguma. De sorte que, para nós clinicos, devemos considerar um só o mediastino e tratar de estudar os symptomas que offerecem as lesões ahi exis- tentes. Múltiplas são as causas dessas lesões e variados os processos morbidos que podem acarretar a traduc- ção clinica da syndrome mediastinal. Dou aqui a etiologia dessas lesões para que pos- saes ficar fazendo idéa exacta delias e procurar veri- ficar neste doente, como em outros, que se mostrarem, qual delias está em scena, porque o tratamento, que é o supremo fim da medicina, é inteiramente differente (1) Clinique Médicale de L'Hotel Dieu de Paris - III vol. •- 1898-1899 - por Georges Dieulafoy. (2) Traité d'anatomie topographique avec applications medico- cirurgicales por L. Jestut e O. Jacob - l.« vol., 1909. 164 nos diversos casos, indicando em uns a intervenção cirúrgica, em outros a medicação especifica e em mais alguns a expectação a mais absoluta. Adenopathias simples Adenopathias tuberculosas Adenopathias syphiliticas Adenia Lipomas Fibromas Cystos dermoides Bocio intra-thoracico Hypertropíhia do thymus Benignos Tumores solidos * Epithelioma Endothelioma Carcinoma Sarcoma Lympho adenoma-leucemico Malignos Aneurysmas da aorta Cysto hydactico Pleuriz encystado Abcesso Tumores líquidos Tuberculose Syphilis Actynomycose Emphysema Gangrena Deformação do esophago Vou dizer-vos algumas palavras sobre cada um desses elementos etiologicos, para que fiqueis conhe- cendo quaes delles os mais frequentes- As adenopathias simples são as mais communs nas creanças, que passam a segunda infancia, e se mostram habitualmente em consequência de bronchites, saram- pão, coqueluche, broncho-pneumonias, pneumonias. Os 165 lymphaticos da trachéa, dos bronchios e dos pulmões, como sabeis, vão desaguar nos ganglios mediastinaes e comprehendeis facilmente que qualquer inflammação nesses orgãos pode acarretar a tumefacção desses ganglios, que se acompanha de syndrome mediastinal typica. E' uma causa frequente, como vêdes, mas que o medico conhece desde logo, porque o processo morbido é recente e se esboça com toda a symptomatologia que chama sua attenção. Nos adultos essas adenopathias apparecem dependentes da anthracose, que é a pneu- moconise oriunda da infiltração do pulmão pelas poei- ras de carvão, pneumoconiose normal, das casas em que o ar é carregado de carvão e de certas profis- sões (mineiros). As adenopathias tuberculosas ou são primitivas, quer dizer antes que o pulmão seja acommettido, ou se- cundarias a lesões pulmonares. Já vos disse uma vez que no homem o ganglio lymphatico é, depois do pul- mão, o orgão que mais frequentemente é sede da bacil- lose de Koch, sobretudo nas creanças. Os ganglios tra- cheo-bronchicos e os mesentericos são os mais com- mumente lesados e comprehendeis que possa, na pri- meira das hypotheses, se traduzir a sua symptomatolo- gia pela da syndrome mediastinal. As adenopathias syphiliticas do mediastino não são raras p). E. Sergent fala que na autopsia de indi- viduos mortos de syphiloma tracheo-bronchico terciá- rio não é "raro constatar a existência de lesões especi- ficas, esclero-gommosas, nos ganglios do mediastino. Eu tive occasião, quando era interno do meu prantea- do mestre Gingeot, de recolher uma observação demons- trativa. N'um homem entrado de manhã cedo mesmo no serviço, uma ulceração terciaria em evolução sobre a (1) In Ia syphllis des viscères et de 1'appareil locomoteur, par E. Gaucher, 1909, I vol. 166 face dorsal do punho, uma leucoplasia buccal não dei- xavam duvida sobre a natureza dos accidentes respi- ratórios que o tinham levado ao hospital: tiragem su- pra e subesternal, cornagem, dyspnéa atroz com sopro de compressão bronchica. Pratiquei a tracheotomia; não foi seguida de alguma melhora e o doente succum- biu algumas horas depois, asphyxiado. Na autopsia en- contramos um enorme syphiloma mediastinal, compri- mindo os bronchios e a trachéa que, elles mesmos, eram sede de lesões esclero-gommosas estenosantes ainda em actividade". E, como esse, outros casos existem assi- gnalados na litteratura medica. Tanto os lipomas como os fibromas mediastinaes são opportunidades raras; dos primeiros, Langenbeck e Gessenbauer citam dons casos e do segundo Hoff- mann reunio sete factos. O mesmo relativamente aos cystos dermoides, de que a litteratura consigna 26 ca- sos. São todas hypotheses que devem vir á tela do diagnostico, quando eliminadas aquellas que são mais communs e mais encontradiças. Os bocios intra-thoracicos podem dar os sympto- mas da syndrome mediastinal em dous casos - ou quando ficam presos á thyroide por um pediculo e se desenvolvem para dentro do thorax ou quando neste mergulham em massa, aspirados. Em qualquer dos dous casos o diagnostico de sua existência é bem facil, por- que coincidem com a hypertrophia patente da glându- la. O câncer do corpo thyroide, desenvolvido ao nivel de esterno (Cramer 1887, Habion 1904) pode trazer o mesmo facto. A hypertrophia do thymus é rara. Entretanto, quando essa glandula não soffreu o processo de retro- gradação normal e se desenvolve e cresce e augmenta póde dar lugar á syndrome mediastinal. Alan Burns em em 1821 e Astley Cooper em 1832 demonstraram, pro- vas em mão, a possibilidade desse facto. 167 Os tumores malignos (epithelioma, endothelioma, carcinoma e sarcoma) todos elles originam-se, no com- mum dos casos, nas glandulas bronchicas, infiltrando depois o tecido cellular do mediastino. Vezes ha em que tomam nascimento ou no mesmo thymus ou em seus restos. Em qualquer das hypotheses, o resultado é o mesmo. As adenopathias cancerosas são frequentes no mediastino e vós encontrareis dependentes de cânceres pulmonares as adenopathias cancerosas, peribronchi- cas, peritracheaes, periesophagianas, se traduzindo pe- los symptomas clássicos da syndrome que agora estudo comvosco. Os aneurysmas da aorta são a causa mais frequen- te, no adulto, das syndromes mediastinaes, não só por- que elles constituem affecção muito commum, em certa idade da vida, motivada pelas causas de que já em tem- pos vos fallei, a syphilis occupando a primazia sobre ellas, como também pela situação da aorta, que está em contacto com todos os orgãos mediastinaes, facilitando o apparecimento da symptomatologia, com o desenvol- vimento do sacco aneurysmatico. Vêde a sua situação: "Em sua origem, a aorta é situada entre a artéria pul- monar e a veia cava-superior, adiante da auricula di- reita, acima da qual elia cruza o ramo direito da ar- téria pulmonar, curva-se para o bronchio direito-, de- pois, a face lateral direita de sua porção horizontal en- tra em connexão com a face anterior da trachéa, con- torna o bronchio esquerdo, põe-se em relação com o eso- phago, o canal thoracico, o grande sympathico, que, com o nervo vago, formam os plexos nervosos cardio-aor- ticos; sua face lateral esquerda, crusada pelos nervos phrenico e pneumogastrico correspondentes, é recober- ta em parte pela pleura, que se separa da face interna do pulmão esquerdo; sua face inferior é abraçada pelo nervo recurrente esquerdo, que descreve uma alça de 168 concavidade dirigida para cima e contorna o bronchio esquerdo" (1). Comprehendeis bem que deve ser o aneurysma da aorta que traga a symptomatologia da syndrome me- diastinal mais completa, mais clara, melhor descripta, pois que pode se apresentar com todos os symptomas delia. E' a primeira hypothese em que deveis pensar quando suppordes a existência dessa syndrome. O cysto hydatico mediastinal é raro e em parte elle não pode ser reconhecido antes da operação. Já não se admitte mesmo que os cystos hydaticos pleuraes primitivos sejam observados; a regra é admittil-os se- cundários ou a um cysto hydatico do figado ou do pul- mão. A's vezes este ultimo descolla a pleura e simula, como diz Trousseau (2), um cysto pleural. Ha, em todo caso, observações de Simon, Rose, Molière, que o encon- traram, com todo o cortejo symptomatico da syn- drome mediastinal e é necessário que fiqueis sabendo da possibilidade de achal-o, para não mostrardes, pelo menos, ignorância desse facto. O pleuriz mediastinal foi bem estudado por Dieu- lafoy (3) que termina a sua licção, com as seguintes conclusões: "l.a - O pleuriz mediastinal é primitivo ou secundário; não invade a pleura mediastinal em toda sua extensão, é unilateral e se limita de preferen- cia ao mediastino posterior; 2.a - E' provável que vá- rios agentes possam determinar o pleuriz mediastinal, mas nos casos até aqui estudados bacteriologicamente o pneumoccocus foi o unico em causa; 3.a - O pus e as membranas do pleuriz mediastinal formam um tu- (1) E. Boinet, Anévrysmes de l'aorte, en Maladies des artères et de 1'aorte - Nouveau traité de medecine et de therapeutique, par Brouardel et Gilbert - 1907, vol. XXIV. (2) Clinique medicale de L'Hotel Dieu de Paris, par A. Trous- seau, Vol. 3 - 1898. (3) Op. eit. vol. cit. 169 mor que pode comprimir a trachéa, o esophago, os tron- cos nervosos, etc. e provocar o que eu chamei "a syn- drome mediastinal": accessos de suffocação, tiragem, cornagem, tosse coqueluchoide, desvio da trachéa e da larynge, constatavel ao laryngoscopio, perturbações vocaes, circulação thoracica complementar, syndrome commum a todos os tumores do mediastino. Ao mesmo tempo que a syndrome mediastinal, a percussão e a auscultação da região correspondente ao mediastino posterior, assim como a prova radiographica, dão ensi- namentos preciosos sobre a localização da lesão; 4.a - E' pelo estudo dos symptomas que annunciam o começo da moléstia, é pela analyse de sua evolução ajudada do sero-diagnostico, que se chegará a suspeitar da exis- tência do pleuriz mediastinal; 5a - A vomica parece ser uma terminação feliz do pleuriz mediastinal; ella é pouco abundante; 6.a - Si a compressão da trachéa ou dos bronchios torna a asphyxia ameaçadora, a cirur- gia deve intervir. A intervenção é ainda indicada si a infecção do foco se torna perigosa e tende a se gene- ralisar". Essas conclusões resistiram á obra do tempo e os factos accumulados têm, todos, dado razão ao grande Mestre. E' uma causa frequente da syndrome. Os abcessos mediastinaes, qualquer que seja a sua origem, podem se acompanhar dos symptomas mediasti- naes. A ulceração do esophago, um câncer ahi ulcerado, a suppuração de visinhança, podem dar lugar ao abces- so, cujo diagnostico differencial com as outras causas, não raro, offerece difficuldades. Lobstein observou õ caso de um menino em que tudo dizia tratar-se de um aneurysma da aorta, pois mesmo havia pulsação e tu- mor, acompanhados dos outros symptomas, até o dia em que o pús rompeu o abcesso que fez luz para fóra e elle reconheceu tuberculose esternal. 170 A syphilis mediastinal é rara, mas pode apresen- tar-se como mediastinite calosa, prendendo os orgãos do mediastino e dando lugar a confusão com outras causas capazes de se acompanharem dos phenomenos reveladores da syndrome. Ha observações registadas em que tumores syphiliticos do mediastino têm com- primido a veia cava superior, a aorta e a trachéa. A tuberculose age do mesmo modo que a syphilis, por mediastinite chronica fibrosa. Sergent e Combier í1) citam o caso de um doente que apresentava oblite- ração da veia cava superior por adenopathia tracheo- bronchica tuberculosa, com mediastinite chronica. Em todo o caso, esses factos são rarissimos e de observação muito difficil. A actynomycose é mais rara ainda e só faço men- cional-a porque casos ha em que pode originar a sym- ptomatologia classica da syndrome que agora percorro comvosco nos seus factores causaes. O emphysema pulmonar pode trazer como compli- cação emphysema mediastinal, accidente raro. Na- talis Guillot fala do emphysema de triplice sede - em- physema pulmonar, mediastinal e sub-cutaneo. Nestes casos, comprehendeis o diagnostico é facil, mas nem sempre encontrareis o processo morbido tão patente- O emphysema do mediastino traz os symptomas da syn- ârome, e a dyspnéa, que já existia, se incrementa e aug- menta, antes do apparecimento do emphysema subcu- tâneo. E' raridade clinica. A gangrena da esophago pode acarretar a do teci- do cellular mediastinal, facto de observação rarissima e que se acompanhará dos phenomenos mediastinaes. As deformações do esophago ou são congénitas ou adquiridas; a congénita não determina a syndrome por- (1) Emile Sergent e Combler - Soc. Med. des Hôp. - 1902. 171 que se encontra muito embaixo, é o pre-estomago de Henle, mas os diverticulos adquiridos, quando estão cheios de alimentos agem como tumores, podendo rea- lizar os symptomas mediastinaes que desapparecem com o seu esvasiamento. Eis os elementos etiologicos, as causas capazes de provocarem a syndrome mediastinal, cuja symptomato- logia fará o objecto da próxima licção. 172 Syndrome mediastínal (Estado clinico) Meus Senhores: Sabidos quaes os orgãos contidos no mediastino é facil comprehender-se como se retratam os tumores ahi contidos, uma vez não ignorando que o seu primeiro effeito é determinar a compressão delles. Pode-se reunir os symptomas do seguinte modo: l.° Compressão da veia cava superior 2.° „ do tronco venoso brachio-cephalico 3.° „ da veia azygos 4.° „ das veias pulmonares 5.° „ da aorta 6.° „ das artérias bronchicas 7.° „ do tronco arterial brachio-cephalico 8.° „ da artéria sub-clavea esquerda 9.° „ do canal thoracico 10.° „ do pneumogastrico 11° „ do recurrente esquerdo 173 12 ° Compressão do sympathico 13.° „ do phrenico 14.° „ do plexo cardíaco 15.° „ da medulla 16.° „ das raízes rachianas 17.° „ do esophago 18.° „ da trachéa e bronchios 19.° „ de outros orgãos 20.° Deformações thoracicas. Vou estudar, um por um, esses symptomas para que fiqueis conhecendo bem os elementos capazes de vos levarem ao diagnostico da syndrome mediastinal. l.° Compressão da veia cava superior - De um modo geral, a compressão dos troncos venosos é mais frequente que a dos arteriaes, porque suas túnicas são menos resistentes e se deixam mais facilmente apertar que as das artérias. A compressão da veia cava supe- rior acarreta tres symptomas fundamentaes: l.° a cya- nose; 2.° o edema; 3.° a circulação collateral - tudo isto na metade superior do corpo- Essa triade nem sempre é completa, nem sempre se mostra em toda a sua symptomatologia. Pode-se dar o caso de que ella se apresente de outro modo e podeis ver então: - l.° circulação collateral, unica, sem ede- na nem cyanose; 2.° circulação collateral somente acompanhada de cyanose, sem edema; 3.° somente cyanose, desacompanhada da circulação collateral e de edema. Discorrendo sobre a compressão da veia cava superior fala Boinet (op. cit.) : "As veias frontaes são tumefactas, as conjunctivas injectadas, os olhos salien- tes, em exorbitismo, em consequência da estase dos va- sos da orbita; os lábios azulados, cyanosados, as ma- çãs e as faces mascaradas de manchas violaceas ou ver- melho livido; as jugulares salientes e distendidas; as veias do pescoço e da parte superior do thorax são va- 174 ricosas e desenham, na superfície da pelle, cordões si- nuosos e azulados, relevos e redes consideráveis. Esta distensão venosa apaga os concavos supra e infra-clavi- culares que são mascarados por um edema elástico e re- nitente, designado por Stokes sob o nome de tumefacção em mantéo (Hppel like) e comparado, pelos autores americanos, a um collar de carne (collar of flech)". Ao lado desses symptomas primordiaes encontrareis cephalalgia, zumbidos de ouvidos, vertigens e epistaxis. Qualquer tumor é capaz de comprimir a veia cava su- perior; em todo o caso, vós encontrareis o facto como sendo mais habitualmente consequência de aneurysmas da aorta- Ha, na litteratura, um caso de compressão da veia cava superior, o de Balzer, em que o agente compressor não era tumor, nem affecção mediastinal, mas apenas bridas provenientes de lesões tuberculosas do apice do pulmão. Compréhendeis que em casos como esses, vós podeis tão sómente caracterisar o facto, sem especificar a natureza delle. 2.° Compressão do tronco venoso brachio-cephalico - A triade symptomatica (cyanose, edema e circulação collateral) aqui é unilateral e se assesta na metade da cabeça, do pescoço e membro superior, á direita ou á esquerda, conforme o tronco comprimido. E' mais fre- quente a compressão á direita. Quando ha aneurysma póde acontecer que o choque determine "levantamento em massa da jugular direita com edema rápido do tronco venoso, isóchrono com a expansão arterial" (Boinet, ibidem), simulando pulso venoso de insuffi- ciencia tricuspide - cousas de que precisaes ser conhe- cedores para não incorrerdes em falta e poderdes fixar o diagnostico exacto. 3.° Compressão da veia azygos - As consequên- cias dessa compressão dão como symptomas hydro- thorax, que vós reconhecereis pelos phenomenos phy- 175 sicos de percussão, apalpação, auscultação, e circulação collateral á direita. A compressão, quando é lenta me- lhora o prognostico, porque dá lugar ao comparecimento da circulação collateral, emquanto que o vaticínio é assaz grave nos casos em que ella se processa rapi- damente. 4.° Compressão das veias pulmonares - O resul- tado immediato é hydrothorax de ambos os lados e congestão passiva dos pulmões. 5.° Compressão da aorta - Nem sempre, é preciso fiqueis sabendo, a aorta é comprimida; ella póde ser repeli ida para cima, vindo pulsar atraz do manubrio esternal. E' necessário, portanto, não suppordes que é sempre obra de tumor mediastinal, a compressão da magna artéria. Quando ella é comprimida, si a com- pressão é em sua porção ascendente, haverá em ambas artérias radiaes diminuição da amplitude do pulso e atrazo delle em relação ao choque da ponta. Isto é importante e facto para o qual chamo a vossa attenção. Sempre que o encontrardes deveis pro- curar os outros symptomas mediastinaes, que falarão em favor da hypothese levantada. Quando a compres- são se faz entre a origem do tronco arterial brachio cephalico e a artéria subclavia esquerda, ireis notar, en- tão, esses mesmos phenomenos (diminuição de ampli- tude e atrazo do pulso) só do lado sinistro. 6.° Compressão das artérias bronchicas - A con- sequência deveis logo conhecer qual deva ser - é a gangrena pulmonar, com todo seu cortejo symptoma- tico, de que não ha necessidade eu esplane, que o en- contrareis bem descripto nos tratados. 7.° Compressão do tronco arterial brachio-cepha- lico - A diminuição do pulso e atrazo á direita é o que encontrareis nesse caso, como caracteristico dessa compressão. 176 8.° Compressão da subclavia esquerda - Esta dá como resultado a diminuição do pulso e atrazo delle á esquerda. Também a desigualdade dos pulsos radiaes é um dos signaes mais frequentes de syndrome medias- tinal e tel-o-heis occasião de verificar muitas vezes no decurso de aneurysmas da aorta. 9.° Compressão do canal thoracico - Quando o canal thoracico é aprisionado nas malhas compresso- ras de um tumor mediastinal, e em raras occa- siões isto se dá, como consequência mesmo de cânceres que nelle se assestam secundariamente, nota-se, desde logo, a existência de edema, duro, que não guarda a impressão digital e que se inicia pelos membros infe- riores, passa ao abdómen, á metade esquerda do thorax e membro superior deste lado. A metade direita do tho- rax, a cabeça e o pescoço ficam fóra desse phenomeno morbido. Não o encontrareis nesses lugares. Póde ha- ver também derrames chylosos, lactescentes, puramente mechanicos, tanto na pleura como no peritoneo. Ha ob- servações, guardadas em sciencia, dessas eventualida- des. Menetrier tem duas; em uma, como consequência de câncer do estomago o canal thoracico foi séde da mesma manifestação e por ella apertado; em outra, se- cundário a um câncer do utero. Antigamente dava-se como dependencia de compressão do canal thoracico o emmagrecimento e cachexia. 10.° Compressão do pneumogastrico - Aqui ten- des de observar duas phases, com symptomas oppostos. Na l.a, que é a de excitação, observareis - bradycardia e tosse coqueluchoide. Na 2.a, que é a de paralysia, em que observareis outra cousa - tachycardia e accessos asthmaticos. Além desses phenomenos primordiaes po- dereis encontrar outros. Si são os ramos gástricos desse nervo que são exictados, encontrareis vomitos e diar- rhéa, e phenomenos dyspepticos. De outro lado podeis encontrar, nos casos em que ha compressão, além do que 177 já vos disse, a diabetes inspida, como ha observações registadas. A excitação do pneumogastrico em casos de tu- mores aneurysmaticos tem dado lugar a infecções pul- monares, que se têm mostrado. Meunier reuniu em sua these apresentada á Faculdade de Medicina de Paris, ("Du rôle du systêma nerveux dans 1'infection de 1'ap- pareil broncho-pulmonaire") 35 casos, em que, devido á excitação do pneumogastrico, appareceram broncho- pneumonias, pleuro-pneumonias, pneumonia fibrinosa, caseosa, tuberculose granulica, etc. Mas, o que ha mais habitualmente são os phenome- nos cardiacos (brady e tachycardia) e os pulmonares (tosse coqueluchoide, espasmódica, ferina e accessos asthm áticos) • 11.° Compressão do recurrente esquerdo - A si- tuação anatómica do recurrente direito, abraçando a subclavea, põe-n'o fóra do acommettimento nas lesões mediastinaes. A causa mais frequente da compressão do recurrente é aquella variedade de aneurysmas, que o genio clinico de Dieulafoy baptisou de " aneurismas typo recurrente", que se desenvolvem na região da aorta que confina com a alça desse nervo esquerdo. Si qui- zerdes ter noção exacta dessa variedade de aneurys- mas, lêde a sua magistral licção, como aliás todas suas, e ficareis bem instruídos desse facto morbido. (^ São esses aneurysmas de dimensão muito pequena e que não passam quasi nunca o tamanho de uma noz. Esca- pam quasi sempre aos nossos meios de investigação e nem mesmo os phenomenos dolorosos trahem sua pre- sença. Elles têm sempre um prognostico mais terrível que as outras variedades de aneurysmas, porque ficam na região em que mais habitualmente as perfurações (1) Les lésions syphllitiques de l'aorte - in Clinique medicale de l'Hotel Dieu de Paris - par Georges Dieulafoy - 1.® v., 1898. 178 dos conductos aereos se fazem e a abertura delles na trachéa, nos bronchios, acarreta sempre hemorrhagias mortaes, que são a sua consequência. Para se conhecer bem a symptomatologia da com- pressão do recurrente é preciso que saibaes que elle emitte ramos diversos, que retratam então, conforme o caso, os symptomas das lesões recurrenciaes. Hirschfeld (cit. por Dieulafoy) dá os seguintes ramos promanados dos recurrentes: "l.° Ramos cardíacos - que nascem da alça de origem dos nervos recurrentes e que vão ao plexo-car- diaco, quer directamente, quer por sua união aos ramos cardiacos do grande sympathico e do pneumogastrico. 2.° Ramos esophagianos - que são fornecidos em maior quantidade pelo recurrente esquerdo e que se distribuem a todas as túnicas das partes superiores do esophago.. As partes inferiores deste conducto rece- bem seus nervos directamente do pneumogastrico. 3.° Ramos pharyngêos - destinados ao musculo constrictor inferior da pharynge. 4.° Ramos tracheaes - que nascem em parte do recurrente direito. 5 o Depois de ter atravessado o musculo cons- trictor inferior da pharynge, os recurrentes, por seus ramos terminaes, vão a todos os musculos da larynge, excepto aos musculos crico-thyroidêos, que são anima- dos pelo ramo laryngêo externo do nervo laryngêo supe- rior." p). Conhecida a distribuição desse nervo, é facil reti- rar-se agora a symptomatologia, quando elle é excitado ou quando comprimido. Quando é excitado haverá - accessos anginoides (ramos cardiacos), pharyngismo (ramos pharingêos), (1) Dieulafoy - op. clt. vol. cit. 179 esophagismo (ramos esophagianos), espasmo da glotte, contractura da corda vocal esquerda, que podereis vêr com o exame laryngoscopico (ramos laryngêos) e dys- pnéa (ramos tracheaes e os proprios laryngêos). Na phase paralytica existirá - de mais importan- te - e que vós verificareis pelo laryngoscopio - a po- sição cadavérica, posição de Ziemssen, intermediária entre a phonação e a respiração, da corda vocal es- querda. Em qualquer periodo, porém, a voz é rouca, bito- nal, as cordas vocaes não vibrando ao mesmo tempo. Em alguns casos, a phase de excitação passa intei- ram ente desapercebida. Durante muito tempo as perturbações dyspneicas foram mal interpretadas. Os auctores que as punham sob a dependencia do nervo recurrente estavam com a verdade, mas erravam attribuindo-as á paralysia do nervo e ao relaxamento consecutivo das cordas vocaes. Foi Krishaber í1) em 1866, em sua memória, que marcou época, tão notável e tão convincente se mostrou, o primeiro a dar a verdadeira interpretação. Disse que a secção de um nervo recurrente em um ani- mal adulto produz o relaxamento da corda vocal cor- respondente e a dysphonia, mas a respiração não fica perturbada. Quando, ao contrario, se excita, em um animal, os nervos recurrentes, os musculos intrinsecos da larynge entram em acção e, como os musculos cons- trictores sobrepujam o musculo dilatador, que é unico, a glotte se encontra estreitada e o animal suffoca. O mesmo se produz no homem. Dieulafoy pergunta em seguida, antes que lh'o perguntem: "Mas como é que a excitação de um unico nervo recurrente age sobre as duas cordas vocaes a um tempo e é susceptivel de (1) In Dieulafoy - op. cit., vol. cit. 180 produzir o espasmo glottico; como uma excitação uni- lateral tem um effeito bilateral? Porque, emfim, a para- lysia de um nervo recurrente, só, arrasta a paralysia da corda vocal correspondente, porque pois a exci- tação de um só nervo, como é o caso do aneurysma aortico ou em qualquer outro tumor do mediastino, produz o espasmo dos dois lábios da glotte, e accessos de suffocação, que são a consequência? Krishaber nos dá a explicação desse caso interessante, estudando o papel do musculo arythnoidêo. Este musculo arythnoi- dêo, musculo impar, que se implanta sobre as duas bordas das cartilagens thyroides tem sempre por effei- to, logo que se contrahe, de approximar suas duas in- serções. E' o unico musculo da economia que estende simultaneamente sua acção aos dois lados de um orgão symetrico." (x) A voz nos casos de paralysia recurrencial fica typica e não é raro encontrar-se aphonia, que tem o caracter de apparecer subitamente e desapparecer tàmbem rapidamente com a melhoria ou cura do tu- mor mediastinal. 12 ° Compressão do sympathico - Na phase de excitação haverá mydriase unilateral, vaso-constricção na cabeça e no pescoço do mesmo lado e hypothermia local- Na phase de paralysia encontrareis phenomenos oppostos, isto é, myosis unilateral, vaso-dilatação na cabeça e no pescoço do mesmo lado e hyperthermia local. A anisocoria é um signal importante nos casos de tumor de mediastino. Frequentemente encontrareis myosis da pupilla esquerda tão sómente, o que consti- tue bom elemento de diagnostico, associado aos demais que costumam se apresentar. Babinsky notou, em casos de aneurysma, além de desegualdade pupillar, abolição do reflexo luminoso, e (1) Dieulafoy - op. cit., vol. cit. 181 não liga esses phenomenos á lesão do sympathico mas á alteração luética do systema nervoso central. O desapparecimento da desegualdade pupilar, diz Boinet (2), no curso de um aneurysma, é de prognos- tico reservado, porque indica que a lesão do sympa- thico se torna bilateral e é o indicio possivel de uma ruptura aneurysmal, supprimindo a compressão ner- vosa e as perturbações pupillares. Guardae essa noção importante para que possais firmar, no trafego de vossa vida clinica, um prognostico approximado, que vos ele- vará como medico no consenso de vossos clientes. 13.° Compressão do phrenico - Póde-se encon- trar aqui os dois mesmos factos que vistes referidos aos outros nervos - a excitação e a depressão. A excitação acompanha-se de soluços e dôres em pontos fixos e que são: l.° botão diaphragmatico an- terior de Gueneau de Mussy, na intersecção de duas linhas, uma continuando a parte ossea da 10.a costella, outra prolongando o bordo do esterno; 2.° botão dia- phragmatico posterior de Peter, no ultimo espaço inter- costal contra a columna vertebral; 3.° pontos lateraes - entre os dois botões, nas inserções do diaphragma; 4.° pontos juxta-esternaes, no trajecto do phrenico; 50 ponto esterno-mastoidêo, atraz do esterno-cleido- mastoidêo e adeante do escaleno anterior. Essas dôres são expontâneas e podel-as-heis egualmente provocar com a simples pressão nesses pontos assignalados. A paralysia acompanha-se de hemi-paralysia dia- phragmatica do mesmo lado e dyspnéa. 14.° Compressão do plexo-cardiaco - Haverá como consequência accessosde angor pectoris que ficarão expli- cados por esse facto e que não deveis pensar em hypothe- se de coronarite. Serão accessos, entretanto, inteiramen- te eguaes aos que acompanham as lesões das coronárias. (1) Boinet - op. cit. 182 15? Compressão da medulla - Ha casos regis- tados e observados em doentes portadores de aneu- rysmas que ficam frequentes vezes indiagnosticaveis. E' necessário, deveis comprehender, para que haja com- pressão da medulla que antes exista uma osteite rarefa- ciente das vertebras. A consequência é a paraplegia espasmódica, com todos os symptomas, que já conheceis de quando estudei comvosco essa syndrome. 16 ° Compressão das raízes rachianas - Haverá então nevralgia intercostal, com os seus pontos de Valleix e que são em numero de tres: o l.° posterior ou vertebral, nas apophyses transversas, onde o nervo emerge do buraco de conjugação; 2.° o anterior ou es- ternal, a 2 ou 3 dedos do esterno, e o 3.° o medio ou lateral, na perfuração costal do nervo. A minima pres- são nesses pontos provoca e exacerba as dôres, que po- dem também ser expontâneas. 17.° Compressão do esophago - Existirá a dys- phagia, que ou será fructo apenas da compressão do esophago pelo tumor mediastinal ou dependerá de espasmo de sua túnica muscular. Em 100 casos de aneurysmas tem-se encontrado esse symptoma em 20 delles. A dysphagia geralmente é parcial e deixa passar os liquidos; ha só embaraço para os alimentos solidos. A's vezes é intermittente, em outras occasiões persis- tente. Não é raro que o individuo comece a alimentar-se e repentinamente o espasmo crie o obstáculo e a dys- phagia appareça. A sede de predilecção do obstáculo é no terço medio do esterno, ou um pouco mais abaixo- Commummente não ha vomitos, mas casos existem em que ha regorgitação e grande salivação, devida a um reflexo esophago-salivar. Esse phenomeno é muito im- portante e póde por si só trazer-vos ao diagnostico. Ha dias fui procurado, em meu consultorio, por um moço que apresentava só esses dois symptomas, ao lado de emmagrecimento. Tinha dysphagia accentuada e grande 183 salivação. Nada mais. Fiz o diagnostico de aneurysma da aorta, que foi confirmado pelos raios X. Com a me- dicação antisyphilitica, esse doente melhorou, tendo apenas ainda um pouco difficil a passagem dos ali- mentos pelo conducto esophagiano. 18.° Compressão da trachéa e dos bronchios - O primeiro facto que apparece é a dyspnéa, acompanhada de cornagem. Lêde Dieulafoy (x) e ahi encontrareis explanação detida desse symptoma, que é um dos cara- cteristicos da syndrome mediastinal. Vou resumir o que elle diz. A cornagem é um ruido ora de ronco, ora de raspagem, ora de serra (bruit serratique). E' uma respiração audivel devido á vibração de columna aerea ao encontrar um embaraço. E' mais intensa na inspi- ração que na expiração. Existem 2 variedades de cor- nagem - a laryngéa e a tracheal. Como causas da la- ryngéa que não é rara, tendes o edema da larynge e das dobras arythno-epiglotticas, o espasmo da glotte, a paralysia dos musculos crico-arythnoidêos posterio- res, o crup, as lesões syphiliticas, tuberculosas e can- cerosas da larynge, todas as causas que criam um em- baraço na passagem do ar através a fenda glottica. Como causas da cornagem tracheal encontrareis umas que são internas, residem no proprio conducto tracheal e que são a gomma syphilitica, polypos, estenose, e ou- tras que são externas, como quaesquer tumores solidos ou liquidos do mediastino, na porção mediana, e gan- glios e tumores thyroidêos na porção cervical. Esse ter- mo cornagem, diz Dieulafoy, foi tirado da veterinária para a medicina do homem. Certos cavallos, cuja respi- ração é normal quando em repouso, são tomados, du- rante a marcha a trote, de um embaraço excessivo de respiração acompanhado de ruido de raspa. Foi a esse ruido que se chamou cornagèm. (1) Dieulafoy - op. cit., vol. 3.° 184 Si a trachéa é comprimida e procurardes ouvir os pulmões de vosso doente vereis que ha diminuição do murmurio vesicular em ambos. Si é um bron- chio que fica apertado notareis esse facto de um lado só. Auscultando no dorso encontrareis aquelle phenomeno acústico conhecido por Gueneau de Mussy por sopro inter-escapulo-vertebral e que tem tonalida- des differentes, segundo o grau de compressão. Pode ser tubario, cavernoso ou amphorico. Ha além disso, nos casos de compressão da trachéa, tiragem, que pôde ser supra-esternal, epigastrica e in- intercostal e que, junta aos outros phenomenos, pode vos conduzir ao diagnostico. 19.° Compressão de outros orgãos - Raramente encontrareis. O coração póde ser desviado pela com- pressão de aneurysma grande e será então deslocado para baixo ou lateralmente. Convém que observeis bem si existe realmente esse desvio para não tomal-o por hypertrophia do orgão ou dilatação de suas cavidades. O figado e o baço podem egualmente ser recalcados para baixo em casos de grandes tumores mediastinaes ou que se assestem acima do diaphragma, augmentado a tensão intra-thoracica. 20.° Deformações thoracicas - Podeis encontral- as, mas são secundarias á compressão da arvore res- piratória, que determina uma atelectasia pulmonar e retracção do thorax. Haverá, então, mais tarde, desvio da columna. O typo mais frequente é o da escoliose, com quéda do hombro do lado correspondente. Mais rara- mente ha cyphose. O aneurysma, vós já o sabeis, deforma também o thorax, quando tem determinado o gasto das costellas e vem fazer saliência para fóra pulsando, e chamando, desde logo, a attenção do clinico para esse diagnostico. Ahi tendes a symptomatologia commum dos tumo- res, solidos ou liquidos do mediastino, todos se retra- 185 tando por essa phenomenologia mórbida tão complexa e tão variada- Em todo o caso, existem outros factos que podem fazer fixar vossa attenção na variedade da lesão me- diastinal e permittirem a distincção entre a adenopa- thia, o aneurysma, o pleuriz mediastinal, etc. Vou dar- vos esses elementos para que possaes chegar a uma conclusão que seja a própria verdade ou fiqueis pro- ximo delia. Si se trata de adenopathias, quaesquer que ellas sejam, simples, syphiliticas, tuberculosas ou cancero- sas, podereis muitas vezes apalpar os ganglios retro- esternaes atraz do manubrio esternal. Será já um bom guia para a diagnose. Demais disso, encontra-se em certos casos macissez na articulação esterno-clavicular á direita; quasi nunca á esquerda, porque ahi as relações anatómicas não são tão intimas e de mais a hypertrophia ganglionar attin- ge mais frequentemente os ganglios do lado direito. Si a adenopathia é muito volumosa, podereis encontrar também macissez no espaço inter-escapulo vertebral. Entretanto, si essas informações prestadas pela per- cussão, são boas e bastante adjutorias, são inferiores ás proporcionadas pela auscultação. O professor d'Es- pine dá como signal, conhecido com seu nome, e que é bastante precoce e muito constante, o seguinte: si aus- cultardes sobre as vertebras cervicaes, com um esthetos- copio, qualquer que elle seja, mas de bocal pequeno, ouvireis o ruído tracheal até á 7.a apophyse espinhosa cervical, isto nos indivíduos normaes. Si houver porém uma adenopathia, ou mais de uma, ouvireis esse mesmo ruido até á 4.a ou 5.a vertebra dorsal. Isso tem, como vêdes, real importância e serve, addicionado aos ele- mentos que a percussão forneceu, para fixar o diagnos- tico. 186 Tendes além disso a radioscopia e a radiographia que vos mostrarão as sombras dadas pelos ganglios en- tumescidos. E são esses mesmos raios X que têm des- coberto innumero casos de adenopathia syphilitica, que outr'ora, antes de seu advento, passavam desapercebi- dos. Todas as vezes que suspeitardes da existência de infecção luética e encontrardes symptomas mediasti- naes tendes obrigação de recorrer a esse methodo de diagnostico, que poderá elucidar bastantemente vosso caso. Si a historia pregressa do doente narrar a exis- tência de coqueluche, sarampão ou grippe recente, si elle teve bronchites repetidas, accesos de febre inexpli- cados, se viveu em meio tuberculoso, si apresenta o habito lymphathico, si tem vegetações adenoides ou hy- pertrophia das amygdalas, e micropolyadenopathias pe- riféricas, comprehendeis que o diagnostico de adenopa- thia mediastinal se impõe, uma vez o doente tenha os symptomas representativos dessa syndrome mediasti- nal, que agora vos mostro em toda a sua clareza. Muitas vezes o vosso diagnostico poderá ficar hesi- tante com a tuberculose, pois que os signaes de percus- são e de auscultação podem se confundir. Mas, deveis saber que é na visinhança da linha mediana, da colum- na vertebral e do esterno que se observam os phenome- nos nos casos de adenopathia, emquanto que o lugar de predilecção da tuberculose é propriamente o apice. Os proprios ganglios caseificados podem, ás vezes, forne- cer signaes cavitarios, de sorte que o diagnostico ficará então mais prenhe de embaraços. Eu já vos disse que os ganglios tumefactos se mostram como manchas aos raios X,mas ha casos, entre outros citados por Mou- riquad, em que elles se não mostram visiveis a esses raios, pois o estado de caseificação os torna transpa- rentes. Isto vem para vos dizer que deveis tomar a ma- xima attenção quando procurardes firmar vosso juizo. 187 Estudados os meios que tendes para firmar o dia- gnostico das adenopathias, vou dar-vos aquelles que poderão dizer si se trata ou não de hypertrophia thy- mica. í1) Tendes vários dados e que são: l.° O aug- mento da macissez. Sabeis que normalmente sua figura é a de um triângulo, com base horizontal, indo de uma a outra articulação esterno-clavicular, o bordo direito parai leio á margem dextra do esterno e o esquerdo pas- sando cerca de 6 millimetros o bordo sinistro desse osso. O apice corresponde ao apice da 2.a costella. Quando ha hypertrophia, a macissez é maior e chega ás vezes até a se confundir com a cardiaca. Esse meio diagnostico nem sempre é tão precioso porque se tem observado casos em que a hypertrophia do thymus é clara e patente e entretanto não existe augmento de macissez, qual acabo de vos apontar. 2.° Saliência do thymus, que se revela como pequeno tumor acima da furcula esternal. 3.° Dyspnéa thymica, que é sympto- ma importante, com cornagem, tiragem, augmentando quando se força a extensão do pescoço. Apparece geral- mente depois das primeiras horas de vida da creança e é um phenomeno básico na obra do diagnostico. Essa dyspnéa costuma ser permanente. Acontece ás vezes ella serenar e apparecerem verdadeiros accessos de suf- focação, que podem dar lugar a que se pense tratar-se de diphteria. Tenho um caso destes, em que a creança, que aos 8 annos soffria de insufficiencia quasi absoluta da thyroide e apresentava grande hypertrophia do thymus, repentinamente teve um accesso de suffoca- ção, que a matou, tendo sido diagnosticada a diphte- ria, quando o phenomeno estava puramente dependendo daquella hyperplasia. 4.° Vezes ha abaulamento do () Encontrareis estes signaes e symptomas no trabalho de Bourdillon - maladies du médiasin - vol. IV - La pratique dea maladies des enfants - 1911. 188 esterno em sua porção superior. 5.° Os raios X pode- riam dar a sombra thymica si as creanças deixassem pratical-a bem, o que é impossivel quasi, por causa da dyspnéa que costuma intervir e as impede desse exame. O diagnostico da hypertrophia do thymus é de todos o mais facilmente feito, maximè quando esses sympto- mas se condensam. Os tumores malignos mediastinaes não são também de difficil diagnostico. Si existem adenopathias visiveis, metastaticas, a sua biopsia pode firmal-o desde logo. De- mais, elles se acompanham quasi sempre de dôr pun- gitiva retro-esternal, constante e terebrante e signal que é muito precoce. O emmagrecimento, a anemia, a cachexia, chamam também desde logo a attenção. Si existe um câncer do esophago, que póde determinar symptomas mediastinaes e fizerdes a exploração, a pró- pria sonda póde trazer cellulas cancerosas, que reco- nhecereis facilmente. Um facto interessante e para o qual chamo vosso cuidado é o da época em que se mostram esses tumores malignos do mediastino. E' que elles costumam acommetter individuos relativamente jovens, pois sua edade mais propicia é a que vae dos 25 aos 30 annos. Si se trata de lympho-adenoma leucemico deveis saber que o exame do sangue, e os outros symptomas peculiares a este estado morbido, vos levam, desde logo, ao vosso certo juizo- O diagnostico dos aneurysmas será feito pelos signaes physicos, que já sabeis, e pelos raios X, que os demonstram flagrantemente. Mas ha casos em que um tumor do mediastino (um câncer por exemplo) está em contacto com a parede thoracica, onde dará macis- sez, e da aorta, da qual receberá as impulsões. O dia- gnostico ficará, então, um pouco mais arduo. Tendes, entretanto, alguns elementos para fazel-o e que vos vou dar, e que que são retirados de excellente trabalho de 189 Boinet. São elles. "1° A macissez dos tumores é mais extensa que seu centro de pulsação e não é estricta- mente limitada ao trajecto da aorta ou á séde habitual dos aneurysmas aorticos. 2.° Estes batimentos trans- mittidos são fracos, diffusos, únicos e não têm nem a rapidez de uma expansão em excesso, nem o fré- mito, nem a potência de elevação bem limitada das pul- sações aneurysmaticas, que succedem mais immedia- tamonte ao choque do coração. 3.° No câncer do me- diastino a extensão da macissez contrasta com a fra- queza dos batimentos e o sopro systolico não é seguido de um segundo ruido accentuado como no aneurysma. 4.° O tumor do mediastino transmitte, ao contrario do aneurysma, os ruidos respiratórios, as vibrações thoracicas; determina menos dôres e mais phenomenos geraes. 5.° Os tumores levantados pelos batimentos aorticos não dão os traçados graphicos dos aneurys- mos. demais a compressão do tumor diminue a ampli- tude do pulso, emquanto que a descompressão au- gmenta. 6 o Emfim, os tumores do mediastino são sempre acompanhados de desenvolvimento varicoso das veias das paredes thoracicas (Escarras, 1885) ; elles se desenvolvem progressivamente nos individuos moços, antes de 40 annos, de preferencia nas mulheres e nas classes pobres. (Byron Branwell) ; elles se generali- sam muito depressa; evoluem promptamente e se acom- panham sempre de derrames pleureticos, sanguinolen- tos, lactescentes ou contendo elementos neoplasicos; arrastam rapidamente engorgitamento ganglionar e a um estado cachetico." Nos casos em que o tumor é levantado pela aorta vós deveis fazer também para chegar ao diagnostico a prova de Concato, que já me tendes tantas vezes visto fazer para decidir de casos em que o juizo fica em duvida. O pleuriz mediastinal é de mais facil diagnostico. Elle ou é primitivo, quando a infecção pneumococcica 190 occupa a pleura mediastinal e nenhuma outra parte; ou secundário quando é consecutivo a uma pneumonia. Geralmente é unilateral, é mesmo raro que occupe toda a pleura mediastinal; é localisado commummente, na parte anterior, na posterior ou na inferior. Raramente sero-fibrinoso, purulento o mais das vezes. Aliás, vós sabeis, a purulencia é geral aos pleurizes encystados (mediastinaes, interlobares ou diaphragmaticos). Começa por dôr, febre e tosse. Existe congestão na porção visinha do pulmão, mas não é accessivel ao exa- me. Quando o liquido se accumula, apparece o syndro- me mediastinal e, si examinardes a região dorsal, en- contrareis, no lugar da dôr, submacissez e foco máximo do ruido de cornagem. A radiographia auxilia o diagnostico, mostrando a mancha occupada pelo accumulo de pus. A sua evo lução é para a vomica e o liquido costuma ser pouco abundante (cerca de 200 grammas). Antes de apparecer a syndrome mediastinal o diagnostico é quasi impos- sivel e o medico hesita sempre entre as hypotheses mais frequentes de tumor maligno, adenopathia, aneu- rysma ou abcesso. E' preciso que elle tome em consi- deração o começo, o inicio do processo, que apparece como uma moléstia aguda, febril e os demais sympto- mas bastam para que o diagnostico seja feito. O abcesso mediastinal ou é frio ou quente. Si frio, existirá lesão ossea e o juizo será promptamente esta- belecido. A macissez será extensa, e as dôres serão limitadas ao ponto em que as lesões ósseas se assesta- ren. Si quente, a affecção terá os caracteres de molés- tia aguda, com febre e o foco será facilmente percebi- do, sobretudo com anamnese bem cuidada. Si suppuzerdes que se trata de mediastinite syphi- litica, o individuo terá presentes todos os estigmas da lues, desde a quéda de cabellos, a cephalalgia typica até o onyxis dos dedos do pé - e a reacção de Wasser- 191 mann, a suprema prova, será positiva no sangue ou no liquido cephalo-rachidiano. E, todas as vezes em que pensardes na infecção hunteriana, devereis, para tirar a limpo a diagnose, recorrer á prova therapeutica, que melhorará o doente nos casos em que de facto ella se acha em acção. Não deveis pensar na tuberculose si não houver outros focos na economia e nessas occasiões as reacções á tuberculina, qualquer que ella seja, deverá ser pra- ticada. Si o indivíduo tiver um foco superficial de actyno- mycose e apresentar a syndrome mediastinal o vosso espirito deve se inclinar para essa hypothese. O emphysema mediastinal será facilmente reco- nhecível, pelo emphysema pulmonar. Um accesso de tosse violenta, um traumatismo vos ensinarão que as vesículas se romperam no mediastino e crearam a syndrome. Demais disso, como já vos disse na licção anterior, haverá emphysema secundário do tecido cel- lular, no pescoço, no thorax, etc. A gangrena do mediastino não se compadece com bom estado geral, e a febre e o conhecimento do foco primitivo são sufficientes para que firmem a attenção do clinico nesse diagnostico. Finalmente, si suppuzerdes deformação do esopha- go, sabereis que existirá a regorgitação dos alimentos e os raios X evidenciarão a deformidade, cujo diagnos- tico, com esses meios, é despido de difficuldades. Eis ahi os elementos de que podeis dispôr para a obra da diagnose quando encontrardes a syndrome mediastinal, situação clinica das mais interessantes e que despertam sempre grande argúcia do clinico e re- quer solido conhecimento para deslindal-a. 192 Das pulsações Abdominaes E' com grande frequência que tenho observado, entre nós, casos de pulsações abdominaes, que me têm prendido a attenção, pela diversidade de diagnostico que requerem, e pela manifesta divergência que assume o prognostico em cada um delles. Essa abundancia de individuos nos quaes um exa- me ligeiro, rápido, apura logo a presença de uma pul- sação, limitada á região occupada pela aorta abdomi- nal, ou de área mais diffusa, induziu-me a principio, em erro, que o tempo e a experiencia me ensinaram a sanar. A' primeira vista, tudo falava pela existência do aneurysma da aorta abdominal, affecção de grave pro- gnostico e minguados recursos therapeuticos; uma in- dagação mais minuciosa, salientados melhor os factos observados, cheguei, porém, á supposição opposta, que é uma verdade, da raridade das dilatações aneu- rysmaticas da aorta abdominal, entre nós, avultando, como em toda a parte, as palpitações nervosas como a quasi exclusiva causadora de taes pulsações. 193 Nesse sentido é muito favoravel a minha estatísti- ca ; dos muitos doentes em que presenciei a pertur- bação, nove décimos não tinham a minima alteração estructural do vaso supposto lesado, o que concorda inteiramente com a opinião de outros collegas. Não se diga que o que vae nos occupar seja sem importância; o assumpto, comquanto hem divulgado, é desses que merecem sempre explanações. Nunca é demais o que se disser sobre elle; pois ha sempre uma face nova para ser encarada. O seu alcance pratico é immenso. Basta assigna- lar que não é rara a occorrencia clinica em que se plei- têa um diagnostico differencial, entre a simples palpi- tação nervosa, expressão de uma desordem funccional, e o aneurysma aortico, significativo do mais alto ata- que á vitalidade arterial. E' sob este ponto de vista que vou respigar alguma cousa, salientando a ne- cessidade de se conhecer em seus detalhes a questão, que é de todos os dias. No estado normal, a inspecção do ventre não reco nhece a minima existência de movimentos, ondulações ou pulsações, afóra os que fazem parte da respiração, consecutivos ás excursões do diaphragma. Também, a ausculta anteriormente com o estethoscopio, que com- prime o vaso de encontro á columna vertebral, dei- xa perceber um tom, perfeitamente physiologico, se- melhante a esse outro, que se obtem sempre no es- tado hygido quando se applica o mesmo instrumen- to sobre qualquer outra artéria, a carotida ou a fe- mural. 194 Posterior-mente a escuta é de todo silenciosa. Subjectivamente, nas condições de normalidade que supponho, o individuo não tem a menor noção si- quer da existência de uma artéria que, dentro do seu abdómen, pulsa, se contrahe e se dilata, nos dous movi- mentos constantes que constituem a essencia da própria vida. Múltiplas, porém, são as eventualidades, umas de caracter transitório, filiadas a méras perturbações ner- vosas, outras de feição permanente e subsidiarias a al- terações mais graves, que podem quebrar essa harmo- nia, e já, symptomas e signaes, dôres, pulsações, e so- pros, traduzindo esses desvios ou essas lesões, se mos- tram, para tormento dos doentes e cuidado dos médi- cos, que têm de formular, em condições tão oppostas, o «eu diagnostico. Palpitações nervosas da aorta abdominal, aneurys- mas deste vaso, corpos assestados sobre elle, transmit- tindo á superfície do ventre os seus movimentos de ex- pansão - taes as causas das pulsações percebiveis pela applicação da mão sobre a parede do abdómen e accu- sadas pelos doentes. Discernir umas de outras opportunidades, limitar- lhes as fronteiras, discriminar a symptomatologia de cada uma delias, tal o meu objecto. I o Palpitações nervosas da aorta abdominal. Os batimentos deste vaso podem, afóra toda e qual- quer perturbação, já de ordem material, já de ordem funccional, apparecer no individuo, unica e exclusiva- mente por causa do seu estado de magreza. A simples magreza physiologica, ou por causa pathologica qual- quer, póde permittir, pela inópia de paniculo adiposo e flacidez do ventre, que se vae esbarrar de encontro á columna vertebral, que se percebam as bateduras da magna artéria nesse trecho de sua passagem. Não é caso que requisite então muita perspicácia do clinico, 195 que sem mais hesitações reconhece o motivo das pulsa ções, podendo até verificar, atravez da tenue camada de tecido, a integridade do vaso e ausência de amplia- ções do seu calibre. Muito mais frequentes e de muito mais arduo dia- gnostico são as palpitações nervosas. Elias preenchem quasi que exclusivamente o quadro das pulsações do abdómen, deixando uma minima parte para o aneurys- ma da aorta. Tal a opinião dos mestres, que acorda com a minha observação: William Jenner, Francisco de Castro e Sansom. Aquelle, quando diz "deante de uma pulsação ab- dominal, a idéa de um aneurysma é a que deve occor- rer em ultimo lugar (1) ; Francisco de Castro discre- teando que "os aneurysmas no ventre são a excepção; as palpitações, a regra (2) ; e Ernesto Sansom falando, em sua mitifica obra "Diagnosis of diseases of the heart and thoracic aorta" da não existência de lesão material do vaso, "mas tão sómente de reforço do seu pulso, devido a desordens vasomotoras". Essas pulsações nervosas, dadas as causas que as produzem, são com muito mais frequência encontradas nos velhos, em que a esclerose, natural como processo de regressão, vem juxtapor-se á condição que as gera. E, na opinião de Douglas Powell, ellas obedecem á de- bilidade na tonicidade do vaso, com o accrescimo de desordem na sua innervação, que está a cargo do gran- de sympathico. Ora, esse facto da maior occorrencia nos individuos de idade avançada, das palpitações ab- dominaes, importa muitas vezes em erro, e erro grave. Admittida a existência da arterio-esclerose encaixada no individuo, depredando os seus orgãos, deante da (1) Apud Francisco de Castro, Tratado de Clinica Propedêuti- ca, l.° vol. (2) Francisco de Castro, op. cit. 196 pulsação, a idéa primeira que se apresenta ao espirito é a do aneurysma, si se desconhecer o facto que refe- ri e insisti da frequência maxima das palpitações nos indivíduos cuja idade vae adiantada e os tecidos regressando. Nos anémicos, mormente nas senhoras, nos indivi- duos neurasthenicos, dyspepticos ou não, essas palpita- ções são muito assíduas. O quadro clinico é quasi sempre o mesmo. Nos anémicos, essas pulsações geralmente são mui- to amiudadas, incommodam os doentes, coincidem com grande pallidez, vertigens, zumbidos de ouvido, mas não se limitam exclusivamente ao abdómen. Pulsam os vasos do pescoço - dança das artérias - e a própria agitação da aorta abdominal estende-se ás iliacas, tra- duzindo profundo desarranjo na innervação do sym- pathico. Nos neurasthenicos, a par da depressão de espi- rito que se manifesta de vários modos, pela melancho- lia, pelas obcessões, mais habitualmente pela pathopho- bia, pela impossibilidade de fixar a attenção e fadiga cerebral, as palpitações abdominaes apparecem, con- correndo assim para darem um cunho de verdade ás suppostas moléstias graves que elles julgam ter. Essas pulsações são o seu tormento e muitas vezes também o do clinico que os assiste. Um, observei em que tão vio- lentas e tão pertinazes eram essas palpitações, com re- percussões dolorosas, que hesitei em firmar o meu juizo. Tratava-se de um indivíduo arthritico, de 36 an- nos de idade, italiano, colono em uma fazenda em Cra- vinhos, deste Estado- A sua moléstia datava de um anno e consistiu sem- pre nos batimentos abdominaes com rebelde e tenaz constipação de ventre. Comquanto tivesse a referida idade, parecia ter passado dos cincoenta, tal o abati- mento e expressão soffredora de sua physionomia. O 197 exame apurou exclusivamente os estigmas do neuro-ar- thritismo, com integridade absoluta, tanto quanto possi- vel, dos orgãos vitaes. A constipação de ventre era a nota dominante, como quasi sempre em todos. Com o uso de medicamentos apropriados e repouso no leito, as palpi- tações diminuiram de frequência e de intensidade; e o que á primeira vista parecia uma lesão grave, não pas- sava de uma manifestação do grande quadro da molés- tia de Beard. A coincidência da constipação habitual, symptoma costumeiro da neurasthenia classica, com as pulsações abdominaes, tenho visto e revisto múltiplas vezes. E é um facto que o medico necessita sempre de perquirir na indagação do diagnostico. Mais ainda, o repouso no leito minora muito, em taes casos, a exacerbação das pulsações, que o clinico descuidado póde attribuir a ou- tra origem. Os individuos dyspepticos não raro soffrem do mesmo mal. As palpitações nervosas são observadas ainda, con- soante a licção do Professor Francisco de Castro (x), em "mulheres cuja menstruação é defficiente (mens- truatio parca) e nas amenorrheicas com o habitual mo- limen jluxionario, na epocha correspondente aos cata- menios, e bem assim o desapparecimento dessas palpi- tações depois de vencido o praso que estes costumam durar." Não tenho nesse sentido, a falar com o meu que- rido Mestre, a minha observação pessoal. Mas onde ella avulta e tem conseguido apurar de um modo notável a presença dessas pulsações, é nos individuos que ficam sob a acção do chloroformio, facto que tem passado despercebido dos auctores. (1) Op. clt. 198 Nesses indivíduos, quer durante a phase da narco ee, quer posteriormente a ella, a mão do observador col- locada sobre o abdómen reconhece a presença de fortes pulsações da aorta. Varias vezes a tenho verificado; em muitas delias antes da chloroformisação tenho pro- curado as palpitações sem as encontrar, o que prova ser o chloroformio que as origina. Em qualquer um dos casos que figurei de pul- sações nervosas abdominaes, o diagnostico differencial com o aneurysma, importando uma séria questão de prognostico e de therapeutica, não é facil. Mais por deante darei os elementos precisos para o conseguir- mos. 2.° Aneurysmas da aorta abdominal. Como já ficou dito, a dilatação aneurysmatica é uma affecção rara na aorta abdominal, muito mais que os aneurysmas que se assestam nos outros departamen- tos da grande artéria; isto porque as condições de vul- nerabilidade são alli muito menores. Não ha na aorta abdominal, como na ascendente, na crossa e na origem do tronco brachio-cephalico, causas naturaes de irritação e de maior fragilidade das túnicas vasculares, que as tornam mais frequentemente accommettidas pelo processo do atheroma, da esclerose e do aneurysma. Assim, os casos de aneurysma da aorta abdominal reconhecem quasi sempre como factor de sua existência um traumatismo, profissional ou acci- dental, mas que tenha se exercido de modo notável so- bre o vaso. Dos dous únicos doentes que vi affectados da lesão que estudo, um era um pobre tecelão, ainda moço, que no officio penoso com que provia a sua sub- sistência adquiriu a affecção grave que comprometteu a sua vida, e outro era misero trabalhador rural, cujo instrumento de trabalho, a enxada, levou-lhe a morte. 199 Ora, em ambos a influencia do traumatismo, len- to, mas persistente, brando, mas constante, é manifes- ta. Também esse ponto é hoje inconteste. Geralmente, antes do doente ter conhecimento da existência de um tumor pulsátil dentro do seu abdó- men, antes de perceber as suas bateduras, a dôr se ma- nifesta tenaz e pertinaz. E' esse um symptoma de im- portância capital, que não falha, não se ausenta. A dôr se assesta nos lombos com irradiações para os membros inferiores, e pode ser tomada por um lum- bago, ou pela sciatica. E é justamente a esta que pôde ser ella comparada na sua intensidade, na sua persis- tência e implacabilidade. A's vezes é sómente uma sen- sação de peso, outras dá idéa de uma cinta que aperta sem cessar; mas em qualquer de suas manifestações não obedece á medicação anti-nevralgica. Como elemento de diagnostico é um dos mais no- táveis, pois as palpitações de ordem puramente nervo- sa, quando se acompanham de dôres, essas são ligeiras, fugazes e cedem a um tratamento systematico. Também, no diagnostico dos aneurysmas de qual- quer trecho da aorta, haja ou não tumor que pulse, a dôr é um symptoma de maxima relevância. Dil-o o pro- fessor Francisco de Castro (1) "segundo a nossa obser- vação, a dôr fixa em uma região do tronco, com ou sem irradiações ou exacerbações nevrálgicas, não podendo filiar-se a causas evidentes, e sobretudo havendo re- sistido a um tratamento regular, é indicio positivo e, frequentes vezes, unico de um aneurysma da aorta". O doente tem conhecimento, além da dôr, com os caracteres taxativos delineados, de um tumor que bate dentro do seu ventre. E' uma sensação de presença de orgão que o atormenta, angustiosa e penivel. A bate- dura do aneurysma da aorta abdominal é muito diffe- (1) Op. cit. 200 rente dessa outra dos nevropathas e anémicos que es- bocei. Aqui, os movimentos são bruscos, sem ex- pansão. No aneurysma a pulsação é expansiva; o tumor pulsátil é circumscripto, facilmente percebivel, e deli- mitado pela mão que melhor aprecia a expansibilidade no sentido transversal, segundo Bamberger "Sondem die transversale pulsation í1). Essa pulsação, com o movimento francamente diffuso que a caracterisa, fica inalterável sob a acção dos actos respiratórios. E' pois inamovivel. A auscultação denuncia a existência de um bati- mento unico e de um sopro único egualmente, de mais facil audiência nas costas. Esse sopro pode desappare- cer quando o individuo fica de pé (Barié) (2), noção essa que ao medico não é dado desconhecer. São todos esses signaes de importância avultada, c que se avolumam de valia quando se trata de discer- nir o aneurysma da aorta abdominal das pulsações ner- vosas do abdómen, aorta abdominal pulsátil dos auto- res. Mas ha, entre todos, um que sobrepuja os demais pelo quasi caracter de pathognomico que possue - o re- tardamento do pulso femural sobre o das artérias ra- diaes. Esse retardamento, que nunca falta, e que sensi- velmente notei nos dous doentes que assisti e de que dei noticia, é naturalmente explicado pelo obs- táculo que a onda sanguinea aortica encontra em seu percurso, tendo que vencer as resistências offerecidas pelo bojo aneurysmatico. Mas, esse signal, cuja impor- tância é extrema, não tem razão para existir quando o aneurysma tem sua séde, não na aorta propriamente dita, e sim no tronco celiaco que d'ella é originário. (1) Bamberger - Lehrbuch der Krankheiten des Herzens, Wien 1857. (2) Er. Barié. Traité des mal/xdies du coeur et de l'aorte. 201 Não sirva, portanto, isto de objecção á proposição, que é verdadeira e incontroversa, da supremacia desse so- bre os outros signaes physicos. Ora, tenho assim evidenciado tanto quanto possi- vel oue a confusão, de que poucos clinicos terão esca- pado, entre o aneurysma da aorta abdominal e as pul- sações deste vaso, nas condições que bosquejei, si é possivel é também perfeitamente evitável. Façamos agó- ra um confronto ligeiro entre a symptomatologia de um e outro caso, e assim terei dado os elementos para o discernimento, a dichotomia do diagnostico. As palpitações nervosas da aorta apparecem em magros, anémicos, neurasthenicos, velhos, amenorrhei- cas e chloroformisados; nota-se, em cada um delles, apenas o batimento do vaso com a hyperesthesia que caracterisa a palpitação, sem dôres consideráveis, sem a existência da pulsação circumscripta, limitavel e com movimento de propulsão, sem sopro; não ha en- tão o atrazo do pulso crural, que bate perfeitamente synchrono com o radial. Demais disso, os symptomas geraes peculiares a cada estado se mostram, dando o fio para o diagnostico Na aortectasia, não; as dôres são tormentosas, per- sistentes, a pulsação é um batimento diffuso, cheio, do sangue que penetra no sacco aneurysmal; ha sopro, fa- cilmente audivel e bem caracteristico e a tardança do pulso femural, que um exame ligeiro pôde apurar, é manifesta, elucidativa, concludente. Com esses dados, é possivel o erro, mas difficil, e a questão que a prin- cipio apresentei como intrincada, que realmente tem dado em resultado muitos diagnósticos incertos, mui- tos prognosticos erroneos e tratamentos desaccor- des com a affecção existente, torna-se facilmente solú- vel, clara e simples. 3.° Corpos assestados ou adherentes á aorta abdo- minal, recebendo a impulsão deste orgão. 202 Múltiplas são ainda as occorrencias clinicas, afóra as palpitações nervosas, capazes de apresentarem, como os aneurysmas da aorta abdominal, um tumor pulsátil, francamente delineado e persistente, na area de dis- tribuição daquelle vaso. Os casos que agora vou res- pigar não carecem de serem discriminados das palpita- ções nervosas, que se exteriorisam de outro modo. E' sómente com o aneurysma, cuja physionomia clinica esbocei, que a confusão é possivel, e tem dado lugar a erros, até em maioraes da sciencia. O caso resume-se na existência de um corpo solido qualquer juxtaposto á artéria, e recebendo desta as impulsões naturaes de sua systole e diástole. Variadas são as cau- sas que podem permittir que as pulsações normaes da aorta sejam transmittidas, integral e reforçadamente, da profundidade do abdómen, em que se executam, á superficie do ventre. Ou sejam neoplasmas, de diversas naturezas, sar- comas, cânceres ou kystos, que se assestam no estôma- go, fígado, pancreas, mesenterio, peritoneo, e que, pelas propriedades adhesivas que têm, se apegam á aorta e acompanham-na em seus movimentos; ou se trate de orgãos. que, em virtude da frouxidão de seus ligamen- tos, congénita ou adquirida, se desloquem e venham pesar do mesmo modo sobre a artéria; ou aconteça que se formem, no interior da cavidade abdominal, collecções de varias especies, pela obstrucção de canaes excreto- res ou pela inflammação chronica da própria serosa peritoneal, e que se sobreponham ao vaso, em qualquer uma dessas situações, que a pratica tem sanccionado e os auctores verificado, observar se póde o movimento pulsatorio do abdómen, a franca palpitação da aorta, como si ella tivesse suas túnicas presas do processo do aneurysma. Inda não tive occasião de encontrar desses casos, e só os conheço por terceiros. 203 E não ha muito tempo li em um trabalho nacional do distincto collega Prof. Austregésilo a descripção de um tumor, sarcoma do mesenterio, que, applicado sobre a aorta, recebia delia sensiveis impulsos. "... Pela apalpação percebia-se na região hypo- gastrica, para a esquerda, um tumor do volume de um punho, movei, de consistência molle, irregular na for- ma e mantendo algumas adherencias, sobretudo com a aorta, de que recebia impulsões. A prova de Marey ou a de Concato, nos demonstrou não se tratar de um aneurysma. (x) O diagnostico não é muito complicado nesses ca- sos ; pode-se fazel-o sem grandes difficuldades, uma vez que se conheçam as noções que estou respigando. Basta que se attenda para a maneira por que pulsa o tumor para que se chegue, sem tropeços, ao fim al- mejado. No aneurysma, como em tempo disse, a pulsação é um "batimento largo, diffuso por toda a super- ficie explorarei do sacco aneurysmal, porque o sangue que neste penetra, communica-lhe ao conteúdo o movi- mento com que vem", (2) em quanto que na hypothese de um corpo sobreposto á artéria, ha antes um levanta- mento deste, uma impulsão de baixo para cima e numa nnica direcção. Foi Concato (3) quem deu a chave para a solução do problema, com uma manobra que inventou, bem simples e muito pratica, em que se póde verificar de um modo preciso a diversidade dos dous movimen- tos - um expansivo em todos os sentidos, de um sacco que se dilata e se retrahe pela entrada e sahida do san- (1) A. Austregésilo. Sobre um caso de Sarcomatose. Gaz. Cli- nica, S. Paulo, Abril, 1903 e In "Clinica Medica", 1917. (2) F. Castro, op. cit. (3) L. Concato, Diagnosi generali dei tumori abdominali, Mila- no, 1882. 204 gue, e outro mero abalo impresso ao tumor, num unico rumo, naquelle em que ha o contacto mais intimo do vaso com o corpo juxtaposto. Consiste o processo de Concato em collocar nos quatro pontos diametralmen- te oppostos do tumor pulsátil a extremidade de um esthetoscopio, que transmitte á outra, a auricu- lar, a impulsão que recebe. Vê-se então, quando se olha para esta, que, no caso do aneurysma, ella se movimenta em direcção opposta "áquella em que o fez quando applícada no ponto cardeal fronteiro." O que é devido á expansibilidade do sacco sob o influxo da corrente sanguinea, não me canso de repetir. Si se trata da outra hypothese, o esthetoscopio tem uma direcção sempre egual, sempre a mesma, para cima, decrescendo na sua intensidade á medida que se approxima da peripheria- O que quer dizer que a aorta não se dilata mais do que o normal e sim abala o corpo com o qual se acha ligada. Esse abalo é muito mais vigoroso no ponto de contacto, como disse, razão por que é mais intenso no centro que nos rebordos. Ao envez de se utilisar nessa manobra o esthetos- copio, pode-se fazer a mesma pesquiza com quatro ban- deirolas que se collocam sobre o abdómen, no ponto da pulsação, fixando-as com pequenas bolas de cera. Qualquer das duas praticas é fecunda em resulta- dos e dá ao clinico excéllente elemento para firmar o seu juizo. Afora o symptoma que estudei, da pulsação ab- dominal, os tumores encravados na cavidade peritoneal € as lesões que ennunciei como capazes de trans- mittirem os impulsos da aorta, se retractam diversa- mente, cada um com sua symptomatologia própria. De sorte que, assim fica muito facilitado o diagnostico. 205 Acredito ter fornecido os elementos para uma diagnose perfeita nessas eventualidades que não raro se mostram ao clinico. Pela apresentação que fiz das variadas occorrencias que se exteriorizam por um unico phenomeno, fica bem patente a necessidade de um diagnostico preciso, para que o prognostico não saia erroneo e a therapeutica tenha razão de ser. Poucos são os médicos que não contam, no seu acervo clinico, casos dessa natureza; esses saberão dar o devido valor á singella exposição que acabei de fazer, no intuito antes de mais nos instruirmos para não incorrermos em erro, que para ensinar aos outros. 206 Sobre um caso de Leucemia Myeloide(,) Não só por apresentar qualquer cousa de anormal ou interessante o caso que agora trago ao conhecimento dos collegas, mas também para deixar archivada a ob- servação de taes doentes em S. Paulo é que publico a historia clinica do indivíduo, que me foi dado observar. Elle soffre de leucemia myeloide, moléstia rara entre nóts, como na Europa, hoje lá, porém, mais frequente- mente encontrada. No Brasil, poucos têm escripto sobre ella, cabendo-me assignalar que conheço os trabalhos dos professores Austregesilo, Miguel Pereira, A. Porto e do pranteado Dr. F. Fajardo- Muitos collegas têm visto, quero acreditar, taes casos, mas ou a natural in dolência os não deixa publicar ou a falta de exame de sangue impede o façam. O facto é que sei ter já sido encontrada, nesta Capital, a leucemia myeloide, com (1) Com. feita â Sociedade de Med. e Cirurgia de S. Paulo em 16 de Outubro de 1911. 207 exame de sangue completo, e no emtanto a observação nunca veiu a lume. E' este o motivo pelo qual publico o meu caso, aliás o primeiro que tive occasião de en- contrar, sendo de sentir que este seja da clinica parti- cular, o que me impede leve ao termo os estudos com a necropsia elucidativa. A forma lymphatica da leucemia é mais frequente e eu mesmo já consegui ver dous doen- tes, affectados dessa moléstia. Antes do mais, eis a observação: O. R., branco, brasileiro, 30 annos, casado, lavra- dor abastado, residente em Minas, vem me consultar, enviado pelo distincto sextannista de medicina Pedro Dias da Silva, que já houvera feito o diagnostico exacto, contradizendo, com razão, a opinião dos médicos que o tratavam e que suppunham ser o caso de cachexia palustre. Antecedentes hereditários. Pae forte, de 66 annos de edade e ainda cuidando de suas terras e haveres; mãe, de 60 annos, soffre de terrivel enxaqueca e ma- nifestações darthrosas. Tem 4 irmãos e uma irmã, sen- do que esta tem filhos sadios e ha um daquelles que tem ataques epilépticos. Antecedentes morbidos. Aos 6 annos, sarampão; aos 15, catapóra. Nunca teve febre palustre; insisti so- bre esse dado anamnestico, mas a resposta sempre foi negativa. Jamais manifestações de syphilis, nem de rheu- matismo. Nunca soube o que são moléstias venereas. Todo o seu passado morbido resume-se, portanto, nes- sas duas moléstias vulgares e sem importância - d sarampo e a catapóra. Foi sempre robusto e trabalha- dor, constante auxiliar de seu pae na lavoura. Historia anterior da moléstia actual. Seu mal data de Março deste anno. Anteriormente, vinha soffrendo do estomago, de "azedume" somente. Em Março, ap- pareceu-lhe dôr de cabeça dia e noite, continuada, que lhe trouxe muito desanimo. São os primeiros sympto- 208 mas de anemia que apparecem; fica impossibilitado de cuidar de seus interesses, como desejava e necessitava. Em Abril soffreu um golpe de vento e sobrevem uma paralysia do facial, do lado direito, que desapparece ao cabo de dez dias. Accentuam-se os seus incommodos gástricos, que o doente classifica de gastrite; lançava tudo que ingeria, estado que permaneceu por 23 dias, acompanhado de rebelde constipação de ventre, que se não dobrou a alguma medicação. Tudo isto passou afi- nal e chegou o momento, em que de novo começou a se alimentar. Foi então que notou um tumor do lado es- querdo do ventre, vindo do hypochondrio sinistro; per- cebeu que era o baço que se hypertrophiava. Diariamente a febre o tomava desde pela manhã até á tarde; apparecem epistaxis repetidas, dôres os- teocopas constantes nos ossos do quadril e nas tibias, edemas nos pés se mostram e o seu estado o impossi- bilita de andar, pelo que procura a medicina. Estado actual. (2 de Outubro). O doente se apre- senta muito pallido, inteiramente descorado, com côr de cera muito branca; con junctivas sem pinga de san- gue, cançado, incapaz de movimento um pouco acce- lerado. Lingua espalmada e esbranquiçada, edemas nos pés e face, ventre muito crescido. Palpitações, ta- chycardia. Está apyretico, raciocina bem e comquan- to de pouco cultivo intellectual mostra ser intelligente e conversado. Alimenta-se bem. O exame encontra: Figado augmentado de volume passando de 4 de- dos o rebordo costal. Baço em accentuada esplenome- galia- O tumor esplenico está perfeitamente desenhado na photographia que vae juncta. Vê-se o orgão sahir de sua situação normal e atravessar obliquamente todo o ventre, apparecendo na fossa iliaca esquerda. Duro, de consistência muito resistente, não apresenta bosse- laduras; é lisa e egual sua superficie. Ha apenas na 211 sua parte superior, ao uivei da linha mediana do corpo, uma pequena depressão angular, que está muito bem figurada na photographia, o hylo do orgão. A pressão sobre o tumor não provoca dôr. Deita-se mal dos dous lados, por causa da esplenomegalia que estorva. Edema molle pretibial e na face - congestão nas bases dos pulmões; á direita ella é bem caracterisada, explicando a tosse, que o incommoda. Sopros extra-cardiacos na base e no apice. Ausên- cia de ganglios enfartados, a não ser os inguinaes que rolam sob os dedos, mas muito pequeninos. Dôres á pressão nas tibias, na união do terço inferior com os dous terços superiores. O exame do sangue, que dá a nota para o diagnos- tico, e que é obrigado todas as vezes que se depara, na clinica, com a esplenomegalia, foi feito pelo meu dis- tincto collega e amigo Dr. Alexandrino Pedroso, chefe do laboratorio de anatomia pathologica da Santa Casa. Eil-o: Numero de globulos vermelhos: 2.576.000. Leucocytos, 550.400. Hemoglobina, 37 % (normalmente é de 100 %). Poucos poikilocytos- Ha polychromasia. Não fo- ram vistas granulações basophilas, nem acidophilas. Normoblastos (0,2 %) e megaloblastos (0,2 %) ; não ha formas intermediárias. A contagem differencial dos leucocytos, feita em 500 globulos brancos, com o corante de Ehrlich, encon- trou • Polymorphonucleares 58.2 % Basophilos 4.8 % Eosinophilos 4.2 % Lymphocytos pequenos 2.4 % Lymphocytos grandes 2. % Mononucleares 2. % 212 Myelocitos neutrophilos ........ 23.4 % Myelocitos eosinophilos 1.8 % Myelocitos basophilos 0.8 % 99.6 Corno se vê, ha escassez no numero de globulos ver- melhos, que, normalmente variam de 5 a 5 milhões e meio por millimetro cubico, e augmento colossal dos leucocytos (7.889 entre nós, na opinião de Ezequiel Dias), diminuição grande da quantidade de hemoglo- bina, existência de formas normalmente não encontra- das no sangue (normo e megaloblastos) e grande abun- dancia das formas anormaes, (myelocytos neutrophi- los e eosinophilos) que marcam a natureza da leucemia- As cellulas de Turk não foram observadas. O exame do sangue basta para que se firme o dia- gnostico. A urina foi egualmente analysada. Procedeu a esta pesquiza o pharmaceutico Malhado Filho, com- petente e abalisado. Eis o resultado desse exame: Côr amarella clara; cheiro activo, pouco fluido, aspecto turvo; muito acida, densidade 1025, deposito abundante e crystalino. Extr. secco a 100.° 55,00; acidez total em H2 S04 2,20: uréa 16,50. Acido urico - 2,00 (normalmente é 0,47 a 0,65) acido phosphorico total em P 205 l,7Ô; chloruretos - 12,00. Ligeiros traços de albumina, urobilina pathologi- ca; grande quantidade de indican e skatol, ausência de assucar e bile. As relações urologicas são: uréa acido urico 30 % 12,0 extr. secco uréa 213 acido phosphorico (normte. 2,5 %) 10 % uréa chloruretos 72,7 %. uréa O exame microscopico encontrou uratos em gran- de quantidade, crystaes de oxalato de cálcio, muco, cel- lulas epitheliaes, cylindros hyalinos, raras hematias e alguns leucocytos. A urina contem grande quantidade de nucleo-albu- mina. Firmado o diagnostico de leucemia myeloide, que se impunha pelo exame do sangue, pelos seus antece dentes (ausência de infecção luética, palustre) pelo exa- me das urinas, pela symptomatologia, submetti-o ao tratamento arsenical e ferruginoso em altas doses e á applicação dos raios X sobre o orgam hypertrophiado. O doente teve occasião de soffrer quatro applicações, com o melhor exito possivel. O tumor esplenico dimi- nuio de metade, como todos os collegas presentes po- dem verificar. Mas, o seu estado geral contiuúa peior e a febre, que ha tempos o não importunava, agora o prende dia e noite com alta temperatura, (40.°) a evolução da mo- léstia está agora se processando de modo febril e o des- enlace fatal é certo em poucos dias. * , * ♦ Ahi está a observação. Não ha necessidade de in- sistir sobre o diagnostico differencial das esplenomega- lias uma vez que o exame do sangue impõe juizo segu- ro sobre o mal do doente. 214 Não quero também repisar algo sobre a symptoma- tologia da leucemia myeloide; basta-me dizer que a corrente actual é para se adoptar o modo de encarar de Lazarus e Ehrlich que, em hematologia occupam a pri- mazia, pelos seus primorosos estudos. Apenas quero abordar, ligeiramente embora, o estudo do tratamento, começando por salientar a necessidade do exame do sangue antes de qualquer tentativa operatória. A leu- cemia não comporta a esplenectomia. Leia-se a bella li- ção de Hartmann, publicada no n. de 30 de Setembro deste anuo na "Presse Médicale" e ver-se-á sua opinião incisiva, aliás adoptada já pela maioria dos cirurgiões conscienciosos. E' assim que elle diz, com a sua auto- ridade de Mestre abalisado: "Para ella (a leucemia) o prognostico da esple- uectomia é desastroso. Bessel Hagen reuniu 42 casos, com 38 mortes immediatas pela hemorrhagia. Dos 4 que sobreviveram á operação 1, publicado por Fran- zolini, corresponde provavelmente a uma moléstia ou- tra que a leucemia; quanto aos 3 casos, si não morre- ram immediatamente da operação, nenhum se curou de sua leucemia. E' affirmar que todas as vezes que vos achardes em presença de uma esplenomegalia, vós de- vereis fazer o exame do sangue, e si existe leucemia, vos abster de qualquer tentativa operatória. Nós pos- suimos, além disso hoje, nos raios X, um meio de obter a regressão destes baços leucemicos, como mostrou Sewn (de Chicago)". Faço questão de transcrever litteralmente a opi- nião do professor de Pariz para que seja esta a nor- ma, nem sempre seguida, dos nossos cirurgiões. A radio-therapia tem influencia notável sobre a evolução da leucemia. A myeloide cura-se mais rapida- mente que a lymphatica, mas as radiações perdem a sua acção efficaz pouco a pouco- Von Decastello e Kien- bock estudam a questão com minúcia e affirmam que 215 o prognostico não depende tanto da antiguidade do mal como da acuidade do processo morbido. Basta ir- radiar, dizem elles, o baço, fonte principal dos leuco- cytos e toxinas, para obter melhoria geral e de todos os focos leucemicos. A morte é muitas vezes consequên- cia da transformação do processo, que fica de evolução aguda após a applicação dos raios curativos. Entretan- to, é preciso assignalar a sobrevida, que, segundo a es- tatistica daquelles auctores, é de 3 annos para a for- ma myeloide e de cinco para a lymphatica (x). Falo destes trabalhos e dessa opinião, porque acre- dito que o mesmo facto se deu com o caso que obser- vei. Quero crer que a radio-therapia transformou egual- mente a evolução do processo morbido de meu doente. Transformou-o de leucemia myeloide chronica, que evo- luia sem febre, em forma aguda, pyretica. E' esse tam- bém o juizo de (Ettinger, Noel Fiessenger e Sauphar. Em seu trabalho, publicado nos "Archives des Maladies du coeur", n. 5 de 1910 (des anemies et des processus leucolytiques survenant dans les leucemies au cours du traitement radiotliérapique) elles estudam essa ques- tão e concluem que os raios X agem como destruido- res leucocytarios, apresentando casos em que o resulta- do do tratamento não foi o que se devera esperar. Tal qual o que observo. O tratamento das leucemias, con- cluem elles, é pois particularmente delicado; necessita um grande habito e extrema prudência. Essa eu a tive, por já conhecer esses escriptos, mas, não obstante a ma- xima cautela deu-se a transformação do caso de chro- nico em agudo e precipitação da evolução do mal - aliás irremediável, pelo adeantado grau de anemia do doente. (1) Archives des maladles du coeur, des vaisseaux et du sang, 1908, pag. 327. 216 Um caso de Typhose Syphííitíca (Estndo clínico) Meus senhores: Aqui se acha um doente, affectado de mal rara- mente descripto entre nós e que merece seja conhecido de vós outros, que agora começaes vosso tirocinio cli- nico. Pela historia que acabo de ouvir, narrada por elle proprio, pelo quadro apresentado, pelo seu aspecto, a curva febril, a physionomia adynamica, a attitude crucial de abandono no leito, concluo, desde logo, estar deante de uu indivíduo em estado typhico. Mas, ao lado disso, essas roseolas disseminadas pelo corpo e que não deveis, de modo algum, confundir com as manchas peculiares á febre typhoide, raras entre nós, posso dizer-vos mesmo raríssimas, essas pa- pulas perdidas aqui em seu tegumento cutâneo, essa ulcera ainda aberta que se desenha no penis deste indi- víduo, os ganglios inguinaes crescidos, entumescidos, tu- do isto basta para que possaes firmar o diagnostico de 217 syphilis. Estaes, portanto, deante de um caso de typho- se syphilitica. Vou discutir o diagnostico e dar-vos o motivo porque cheguei a esta conclusão, que tem gran- de realce sob o ponto de vista da therapeutica a se em- pregar. Primeiramente, a observação. Chama-se A. F., de 26 annos de edade, portuguez, solteiro e entrou para a enfermaria no dia 13 de Fe- vereiro do corrente anno de 1917. Nada ha de notável em seus antecedentes hereditá- rios. Diz-nos que seus paes são vivos e gosam saúde; tem cinco irmãos egualmente fortes e perdeu um quan- do apenas tinha um anno de edade, fallecido de mo- léstia ignorada. Nos seus antecedentes pessoaes fala-nos que teve sarampão em creança e que aos 17 annos esteve com uma febre, que ignora qual tenha sido, que o reteve no leito durante cinco mezes. A sua moléstia actual data de época recente. Ha mais ou menos um mez que contrahiu um cancro, loca- lisado no prepucio, unico, que ainda aqui está, apre- sentando todos os caracteres da ulceração hunteriana. Este cancro, que suppura um quasi nada, se acha co- berto de uma crosta amarellada e inda não cicatrisou como podeis bem averiguar. E' uma ferida ainda aberta. Não fez tratamento algum, nem interno nem local. Ha 10 dias appareceu-lhe uma adenite na região inguinal direita, com calefrios, febre, grande prostração e ce- phaléa, o que motivou trazel-o ao Hospital, onde entrou no dia 13 deste mez de Fevereiro. Como vêdes, o doente conserva-se em decúbito dor- sal, profundamente abatido, numa attitude de aban- dono, mantendo, porém, os olhos vivos e brilhantes e respondendo, com clareza, ao que se lhe pergunta. Lingua secca em sua parte media, húmida e aver- melhada nos bordos. Anorexia. Cephaléa intensa e con- tinua. Tibialgia grande á pressão, esternalgia expon- 218 tanea, que se incrementa quando se aperta o esterno. Ganglios hypertrophiados, os inguinaes, os epitrochlea- nos, os juxtamaxillares, os axillares e os sub-occipitaes. O tronco, dorso e costas, cobertos de papulas e roseolas. Pulso filiforme, com 80 pulsações por minuto. Cancro no prepucio em plena evolução. No app. circulatório podeis bem notar hyperpho- nese da 2.a bulha no foco aortico, caso typico este em que podeis vêr aquillo sobre que já vos falei, e que, a meu vêr, é um excellente signal no diagnostico da sy- philis. A 2.a bulha aortica tem clangor metallico ac- centuado, bem perceptivel no 2.° espaço intercostal á direita, junto da linha esternal. Tensão arterial ma- xima 10 e minima 7. Não ha, vêdes pois, hypertensão. Nada de anormal no apparelho respiratório; no digestivo, além da anorexia, elle se queixa de sêde viva, tem soluços continuados, e de quando em quando rejeita vomitos amarello-esverdeados. O figado não excede o rebordo costal, guardando seus limites nor- maes. Baço ligeiramente augmentado de volume. Não tem diarrhéa, não existe gargarejo na fossa iliaca. Urinas escassas, muito vermelhas e contendo tra- ços accentuados de albumina. Nas margens do prepucio existe uma ulceração superficial do tamanho de uma ervilha, de bordos in- clinados, sem dôr e de consistência dura. • Na virilha esquerda os ganglios inguinaes hyper- trophiados, rolam sob o dedo e ahi podeis vêr o ganglio chefe, o ganglio anatomico de Ricord. Na direita, um pouco acima da arcada crural, existe a adenite satellite do cancro, já mencionada, que foi, como vêdes, incisada e drenada, dois dias depois que o doente deu entrada no hospital. Os exames de laboratorio que mandei fazer di- zem que a reacção de Widal é negativa, não só para o Eberth como para os paratyphicos A e B, macro e 219 microscopicamente. O Wassermann é negativo também, no sangue, mas positivo no liquido cephalo-rachidiano. O exame cytologico desse liquido inteiramente normal. Resistência globular augmentada. Esses exames foram feitos pelo chefe de Laboratorio, Dr. Ludgero da Cunha Motta. O quadro thermico é este: Fez-se-lhe uma injecção de 914, dóse pequena, no dia 15 e podeis vêr que a temperatura baixou para não mais se elrvar. Ahi está o caso que vindes de examinar commigo. A infecção syphilitica está patente e facilmente dia- gnosticada. Si já não bastassem as roseolas e as pa- pulas, as dores osteocopas, os ganglios entumecidos, 220 sobretudo aquelles, como os epitrochleanos, que são o pulso da syphilis, tínhamos para fundamentar o nosso juízo a existência do cancro, com todos os caracteres do cancro duro, como apreciastes bem, e além disso, ou, por outra, sobre tudo isso, a positividade da reacção de Wassermann. Não entro nos elementos com que temos de jogar quando procuramos firmar o nosso juizo de in- fecção luética, porque já os conheceis e sabeis que o dia- gnostico pode ser feito com os dados que a clinica nos offerece, com aquelles que a bacteriologia nos propor- ciona e com os que as reacções serologicas nos impõem. Todos elles aqui se accordam para robustecer a vossa convicção, que se mostra avigorada deante de todas essas provas, que nem sempre tereis occasião de vêr reunidas. O Wassermann positivo no liquido cephalo-rachl- diano foi a pedra de toque, deante da qual baqueiam todas as outras opiniões, que, porventura, possam appa- recer na tela da discussão. Resta que eu vos explique como esse indivíduo apresenta esse estado typhico, que, á primeira vista, *em mais exames, sem apuro semeiologico, pôde vos fa- zer pensar em hypothese de febre typhoide, que sa- beis, é morbo costumeiro na nossa cidade. Ha aqui, evidentemente, situação de typhismo, clara e absoluta. Mas, esse estado não é unívoco da dothienenteria. Vós ireis encontral-o acompanhando a syphilis, como no caso presente, como o vereis ao lado da tuberculose. E' o estado typhico uma syndrome, que se pode encaixar na evolução de outras situações mórbidas e que pre- cisaes conhecer para não incidirdes em erro. De sorte que temos aqui um indivíduo que apresenta, d* um lado a sua infecção syphilitica perfeitamente caracterizada e, de outro lado, symptomas e signaes que devem ser catalogados na rubrica dos estados typhoidêos, como a febre continua, com remissão matinal, a adynamia, 221 esse torpor que se vos mostra tão typico, a seccura da lingua. E' o que se chama, desde Fournier, a typhose syphilitica. O primeiro facto que nos prende a attenção é a febre. Foi Fournier o primeiro que estudou a curva thermica na lues. (1) Elle considera a febre syphi- litica apresentando-se sob duas formas essenciaes. Ou ella é symptomatica, que se apresenta raramente e que não obedece a typo definido, pois que depende da causa que a motivou, embora seja mais vezes continua, de duração ephemera e de intensidade media, ou ella é essencial, syphilitica propriamente dita. E' a mais frequente de todas as manifestações pyretogenas da lues e evolue sob tres typos principaes: l.°) forma intermittente 2.°) fôrma continua 3.°) forma atypica. O typo intermittente é o mais commum de todos. Assemelha-se o accesso aos do impaludismo e muitos casos ha em que o diagnostico differencial é impossivel. Lembro-me de um caso, de um moço, que morava no Rio de Janeiro e que começou de apresentar esses accessos febris, com seus tres estádios typicos - frio, calor e suores. Nunca tinha sahido do Rio, onde a doutrina, na occasião, repellia a existência da infec- ção malarica. Não apresentava esse individuo manifes- tação alguma de lues e affirmava mesmo não ter sof- frido a inoculação desta moléstia. A pesquiza do hema- tozoario era negativa, a tuberculose, capaz de explicar esse typo febril intermittente, não se patenteava por nenhum de seus symptomas, nenhum de seus signaes (1) Traité de la syphilis, par A. Fournier. Paris 1906, l.° volume. 222 precoces. A reacção de Wassermann não existia ainda. Tudo isto levou o profissional que o tratava, aliás astro de primeira grandeza na medicina nacional, a ficar sempre duvidoso sobre a causa daquella rebelde reacção febril. Isto durou cerca de quatro mezes até o dia em que repentinamente o corpo desse jovem se cobriu de roseolas e papulas, e placas mucosas se assestaram na garganta, clareando o diagnostico e firmando-o em bases seguras. E, o emprego da medicação mercurial e iodetada bastou para curar esse doente, que já, havia tempos, vivia em uso quotidiano de saes de quinino, sem o minimo resultado. Como vêdes, ás vezes o dia- gnostico se torna impossivel, não devendo contardes muito com o auxilio da reacção de Wassermann, que muita vez é negativa nesse periodo da moléstia e que pouco concurso póde, então, trazer á obra da diagnose. Fournier diz que, entretanto, ha differenças entre o ac- cesso palustre e o syphilitico. São ellas: l.a) Que o accesso palustre é mais completo, quer dizer é "sempre constituído por tres estádios bem cla- ros e bem distinctos" emquanto que o dependente da lues o não é, faltando ou o periodo de frio ou o de suores, ficando unicamente o calor, que é o "phenomeno essencial da febre intermittente syphilitica". Ora, já vistes que, por infelicidade, o doente, sobre que acabo agora de vos falar, tinha o accesso typico, tão completo como o que acompanha a malaria. 2,a) O accesso syphilitico é menos regular, menos methodico como evolução, não evoluindo a seu tem- po nem a sua hora como o accesso palustre -factos esses com os quaes não se pode muito contar em clinica, pois que nem todos os doentes têm discernimento ca- paz de verifical-os. 3.a) O accesso febril syphilitico é mais variado co- mo symptoma, tem physionomia geral mais mobil, mais diversa, apresenta modificações de um a outro dia, não 223 só na sua duração como nos phenomenos que o acom- panham. Entre os outros caracteres que Fournier attribue ao accesso febril syphilitico vê-se que elles são quasi sempre quotidianos e vesperaes ou nocturnos, rara- mente diurnos. Esse doente assignalado tinha os seus accessos durante o dia, de sorte que este caracter não é sufficiente para se eliminar a hypothese da infecção palustre. Como o doente, que aqui se acha, não apresenta o typo intermittente e sim o continuo, vou estudar com- vosco mais detalhadamente esse typo, deixando dito sobre o intermittente o que aqui está. A forma continua, diz Fournier, é muito menos frequente que o typo intermittente. E' uma febre que dura vários dias, caracterisada por elevação de tempe- ratura, acceleração do pulso, mal estar geral e pertur- bações gastricas (lingua cinzenta, inapetência, consti- pação de ventre), ao lado de symptomas nervosos ligei- ros ou mais intensos (insomnia, dôres moveis e vagas, espasmos, etc.). Quem não pensa na hypothese de sy- philis diagnostica um embaraço gástrico ou uma des- sas infecções paratyphicas, tão communs em nosso meio. Eu já tive occasião de verificar aqui dous casos destes. Um delles era um homem de negocios, forte, musculoso que foi ao leito acommettido daquella moléstia que o nosso espirito faceto cognominou de urucubaca e que eu demonstrei não ser mais do que o dengue. Mas, ao contrario do mal se terminar ao cabo dos tres dias, como é o costumeiro nessa entidade clinica, prolongou- se por mais de 15, acompanhada a febre, e esses symptomas acima descriptos, de intensa cephaléa. Essa era caracteristica da lues, nocturna, encephalalgica, terebrante, com insomnia absoluta. Não me foi difficil fazer o diagnostico do caso, deante dos estigmas da sy- philis, que se achavam presentes, todos elles, attestan- 224 do a natureza daquelle estado morbido. Não era a urucutaca nem embaraço gastro-intestinal, como pen- saram alguns collegas, que viram esse homem,, e sim syphilis cerebral, acompanhada de febre continua sy- philitica. O emprego da potente medicação de Ehrlich foi só por si bastante para fazer terminar aquelle qua- dro morbido, sem deixar o minimo vestigio, cabendo- me assignalar-vos que logo após a primeira injecção a febre desceu, a cephalalgia desappareceu e o doente se restabeleceu inteiramente. Até hoje nada mais tem tido e o facto data de dois annos a esta parte. O outro caso foi mais interessante. Trata-se de um moço que vae ao leito com sympto- mas de infecção intestinal, febre continua, e o caso é capitulado de infecção typhica, não obstante ser negativa a reacção de Widal. Ao cabo do 3.° septenario, como a moléstia não declinasse, fui vel-o em conferen- cia com o collega que o tratava e confesso que a minha opinião foi de accordo com a sua. O estado geral era bom e não havia perigo de qualquer accidente, que com- plicasse a evolução da moléstia. Dias depois, quando já o doente se achava no leito, havia mais de 45 dias, vou visital-o novamente, a chamado do clinico assis- tente, que se achava intrigado com o apparecimento das manchas cuticulares typhoideas naquelle periodo. A febre continuava sempre, á tarde, elevada a 38°,5, 39°, com remissão matutina 37, 37°,5. Verifiquei que as maculas não eram mais do que roseolas, e acompa- nhando-as se encontravam outros signaes que me leva- ram a modificar a primitiva opinião. Tratava-se de in- fecção syphilitica, com febre continua, e assim se acha- va explicado o facto da negatividade de Widal. A reac- ção de Wassermann foi positiva e o tratamento adequa- do empregado com o mais estrepitoso successo. A curva thermica baixou logo, as maculas desappareceram e o doente entrou logo em convalescença. O que houve 225 aqui de interessante foi o não ter tido antes esse moço, o cancro inicial. Naturalmente, passou desapercebido. Como vêdes, o diagnostico nesses casos reveste-se sem- pre de alguma difficuldade e não pode ser estabelecido com tanta presteza como a desejada. A duração dessa febre não deve servir como ele- mento de diagnostico, pois que neste ultimo de meus doentes foi além de 45 dias. Fournier cita um caso em que a duração do periodo febril foi de cincoenta dias, com a pequena differença de que em seu cliente o ther- mometro não passou senão raramente de 38°. Era uma febre manhosa, impertinente e que cedeu com a thera- peutica anti-syphilitica - e Fournier, quando estuda o seu caso, conclue com estas palavras que eu vos trans- mitto para que impregnem o vosso entendimento, como uma lição de que não deveis nunca vos esquecer de pro- curar a syphilis quando encontrardes moléstia com py- rexia prolongada. "E' possivel, pois, que a syphilis, moléstia que tem o habito de se representar como es- sencialmente apyretica, determine estados febris pro longados, prolongados até o ponto de egualar ou mes- mo de passar a duração media das affecções as mais francamente pyreticas". Foi a essa febre syphilitica continua que Fournier, nome que ficou perpetuado em syphilographia, chamou de typhose syphilitica, quando a ella se ajuntam phe- nomenos adynamicos, lembrando a physionmia clinica da febre typhoide. Os symptomas e signaes, que elle dá para caracterisar essa modalidade clinica da lues, são justamente aquelles que observaes neste doente que aqui se acha Não preciso repetil-os. Basta que eu vos chame attenção para a adynamia, essa verdadeira prostracção, essa asthenia, em que está o doente, para que não vos esqueçaes do principal symptoma caracte- ristico da typhose syphilitica. Dir-se-ia a febre ty- phoide em scena, a genuina, a verdadeira, como já 226 tivemos occasião de verificar aqui mesmo em São Paulo, quando ha dois annos ella assolou esta cidade. De sorte que o diagnostico com a dothienenteria nem sempre é facil e o medico tem de recorrer ao laborato- rio, ao mesmo tempo que ao exame de seu doente para firmal-o certo e seguro. Fournier dá os seguintes ele- mentos para o diagnostico, elementos que eu vos apre- sento aqui. São os seguintes: Febre Typhoide. I. Nihil. II. Epistaxis iniciaes mui- to habituaes. III. Adynamia geral; pros- tracção verdadeira, indo ás vezes até ao abandono. IV. Fácies caracteristica, estupor e fácies man- chada. V. Seccura caracteristica da lingua. Fuliginosi- dades. Typhose syphilitica I. Antecedentes de sy- philis recente. Quasi sempre, também, co- existência significati- va de accidentes es- pecificos contemporâ- neos (syphilides, pla- cas mucosas, adeno- pathias, myosalgias, periostites, alopecias, nevralgias, perturba- ções de sensibilidade e especialmente anal- gesias , perturbações nervosas, algidez pe- ripberica, etc. II. - Nihil. III. Asthenia antes que adynamia verdadeira; enfraquecimento an- tes que prostracção. IV. Fácies alongada, aba- tida, mas sem estu- por, - pallidez. V. Lingua húmida, cin- zenta ou esbranquiça- da. Não ha fuliginosi- dades. 227 VI. Não ha seccura da pelle, que está quasi sempre com calor hú- mido. VII. Intelligencia não af- fectada. Conversação sempre possível. Res- postas precisas. VIII. Nem subdelirio nem delirio. IX. Não é assim. X. Nihil. XI. „ XII. XIII. XIV. XV. Desconfiar das erup- ções especificas (pa- pulas miliares), po- dendo simular as man- chas róseas lenticulares. XVI. Nihil. XVH. Nihil. VI. Seccura ardente da pelle. VII. Torpor do intellecto - Conversação diffi- cil, impossível mesmo. Respostas vagas, in- certas. VIII. Subdelirio nocturno, muito habitual. A's vezes delírio. IX. Curva thermica espe- cial, primeiro estádio com oscillações ascen- dentes, 2.° estádio, com oscillações esta- cionarias. X. Meteorismo. XI. Dôr illiaca: gargare- jo illiaco. XII. Diarrhéa. XIII. Estertores de bron- chite. XIV. Desenvolvimento do baço. XV. No começo do 2.° sep- tenario, manchas ró- seas lenticulares. XVI. Possibilidade de acci- dentes múltiplos; al- buminúria, hemorrha- gias intestinaes, peri- tonite por perfuração, enfartamento pulmo- nar, broncho-pneumo- nia, escarros, etc. etc. XVII. Reacção agglutinati- va de Widal. 228 Além destes signaes e symptomas capazes de leva- rem ao diagnostico differencial entre a typhose syphi- litica e a febre typhoide, Perrin, Benech e Masson (x) apresentam mais os seguintes, um dos quaes Fournier não podia ainda conceber, porque o seu apparecimen- to na sciencia é posterior á obra classica e magistral do grande syphilographo francez. Refiro-me, bem de- veis saber já, á reacção de Wassermann, que pode dei- xar de ser negativa na dothienenteria, porque o indivi- duo poderia ser um syphilitico antigo e adquirir a in- fecção typhica, mas que deve ser, de ordinário, positi- va na typhose syphilitica. Precisaes também não ignorar que, embora o indi- viduo esteja affectado desta ultima doença, pode ter o Wassermann negativo, o que depende da época em que appareceu a typhose. No caso que se acha deante de nós ella foi negativa no sangue, mas fortemente positiva no liquido cephalo-rachidiano. Os outros factos, sobre que Perrin, Benech e Mas- son se estribam para o diagnostico, são os seguintes: F. typhoide I. Cephaléa penivel e con- tinua, não provocando queixumes. II. Discordância do pulso e da temperatura. III. Evolução muitas vezes caracteristica. IV. Nenhuma influencia do tratamento antisyiphili- tico. V. O Wassermann pode ser negativo. Typhose syphilitica I. Cephaléa intensa, terrí- vel com exacerbações nocturnas. II. Pulso elevado. III. Nenhuma evolução ca- racteristica. IV. Influencia immediata do tratamento. V. O Wassermann é de or- dinário positivo. (1) La typhose syphilitique, par Maurice Perrin, Jean Benech et Jules Masson - Paris Médical, n. 36 - 18 Aoút 1914. 229 Ahi vêdes como se complasmam tantos elementos que servem, quando presentes, á feitura da diagnose, que tem um valor capital, sabido como é que uma the- rapeutica efficaz, em tempo empregada, é sufficiente para fazer restabelecer o doente. Si eu quizesse accrescentar qualquer cousa de pro- prio a esses dados de diagnostico poderia vos assigna- lar o facto da retumbancia da 2.a bulha aortica na ty- phose syphilitica, facto esse que acabastes de verificar em toda a sua pujança, ao ouvir o clangor metallico do 2.° tom no fóco aortico, emquanto que na febre typhoide não ireis encontrar essa alteração de timbre, sendo que, frequentes vezes, ouvireis mesmo, ensurdecimento da bulha. Quem procura firmar um juizo clinico, não ne- cessita de se abroquellar nem de se armazenar com a somma de symptomas e signaes que aqui vão expostos, nem, e já me ouvistes dizer, o doente repete sempre o que os tratadistas assignalam. Nem todos esses symptomas apresentados, tanto por Fournier como por Perrin, Be- nech e Masson, são categóricos, mas é a sua reunião, é c modo de se mostrar o caso, são os antecedentes do doente, são os exames de laboratorio que bastam para que se fixe opinião e se decida por esta ou aquella hy- pothese. A typhose syphilitica está claramente evidente no caso que tendes aqui á vista. Não precisava mais que o se saber da existência desse typo febril em syphili- tico para se firmar o juizo, pois este doente ainda tem o cancro em plena evolução, e as roseolas e papulas em seu corpo clamam bem alto pela idéa, que agora dis- cuto comvosco. Esta observação tem interesse, senhores, por ou- tros motivos, que não este de vos mostrar tão simples- mente um caso de typhose syphilitica e de chamar a 230 vossa attenção para a reacção febril que costuma acom- panhar a lues. E' que os casos registados em sciencia têm sido em pequeno numero e precisava que nós o mostrásse- mos em toda a sua manifestação, para que ficás- semos conhecendo seu quadro clinico, tão bem estudado por Fournier, De mais, este abalisado professor diz que a predominância dos casos é excessiva na mulher e Perrin, Benech e Masson apresentam tres observações igualmente de mulheres, confessando mesmo elles terem tido "1'occasion de voir un grand nombre de syphili- tiques et jamais nous n'avons rencontré chez l'homme ce type clinique". Eu vos confesso também que é a pri- meira vez que tenho a opportunidade de encontrar este typo morbido e no emtanto a minha clientela entre os avariados é um pouco numerosa. Este facto é suffi- ciente para vos assignalar o interesse que este doente provoca, pois que sahe da linha commum do que regista a clinica. Elle é uma licção que vale mais que os livros e podereis ver aqui manifestada a symptoma- tologia classica da lues e da syndrome typhica. Não ha necessidade de estudar o outro typo febril que Fournier apresenta para a lues, nem fazer o dia- gnostico com a typho-bacillose de Landouzy, e peço não esquecerdes este caso que se ha-de fixar para sempre em vossa retina, como o de uma raridade clini- ca, desenhada em todas as suas côres, com brilho tão intenso e tão claro. 231 Um caso de Typhose syphilitica (Estudo anatomo-pathologíco) Meus Senhores: Aquelle caso que acompanhastes commigo, de ty- phose syphilitica, não seguiu a evolução benigna que se devera esperar e como assignalam os auctores que ci- tei e que falam da pouca gravidade do mal, uma vez haja intervenção apropriada. O doente falleceu e vós assististes como decorreu o acontecimento. Após a l.a injecção de neosalvarsan, em dose pequena, praticada no dia 15 de Fevereiro, a febre só subiu dois dias, mais baixo ainda que anteriormente, sendo a 38 em 16 e a 37,4 em 17, tendo cahido depois até o momento em que elle succumbiu. Foram feitas, após o emprego do 914, injecções de mercúrio, para completar o tratamento. Com a applicação do neosalvarsan as suas melhoras fo- ram instantaneas e reflectiram-se, não sómente sobre a curva thermica, mas egualmente, sobre os outros phe- 233 nomenos. Desappareceram as papulas e as roseolas que manchavam o seu tegumento cutâneo. O seu estado ge- ral tornou-se lisongeiro, a sua physionomia perdeu o ar estuporado que apresentava, estava mais animado, con- versava melhor, apenas se queixando de um peso sobre as orbitas. Tudo indicava o proximo restabelecimento. Até o dia 21 nada de anormal se produziu, conservando- se, entretanto, o doente ainda preso do abatimento e sempre com o mesmo gravame na região frontal. Nesse dia, porém, sobrevêm soluços repetidos e o doente cahe em profunda somnolencia. O meu assistente adminis- tra-lhe uma poção com agua chloroformada, mas ape- zar disso os soluços continuam, espaçando-se um pou- co mais, mas sobrevem o coma, que o acompanha até o desfecho fatal, que se realisou ás 2 horas da tarde de 22. A autopsia foi feita no dia 23 pelo professor Wal- ther Haberfeld, emerito cathedratico de anatomia pa- thologica e seu assistente, Dr. Ludgero da Cunha Mot- ta, que me forneceram o laudo seguinte, que vos passo a lêr: "Atrophia vermelha de ambas as capsulas supra renaes. A sua consistência é quasi nulla. O aspecto destas glandulas é o de um tecido amorpho, a estructu- ra normal mostrando-se ao corte totalmente desappa- recida e substituida por um tecido molle, de côr ver- melho-escura, encerrando pequenas cavidades. A su- pra-renal direita pesa 4 grs. e a esquerda 8 grs. Ha de- generação parenchymatosa muito accentuada dos rins, figado e myocardio. Os rins apresentam o volume muito augmentado, a- consistência pouco diminuida; ao corte mostra-se muito succulento, de côr cinzento-vermelha, com medul- la muito rubra e a córtex muito larga. O figado está augmentado de volume, com a sua consistência diminuida, a estructura quasi invisi- 234 vel, mostrando ao corte uma côr cinzenta e fornecendo bastante sangue. O myocardio apresenta-se com uma côr cinzento- parda e com a consistência também diminuida. O baço mostra-se augmentado de volume e com a consistência apoucada. Ao corte revela-se a polpa molle e saliente, com os foliculos lymphaticos bastante visi- veis. Os pulmões estão hyperemicos, sendo que o esquer- do se apresenta adherente em sua base. O coração está dilatado em todas as suas cavida- des, sobretudo no ventriculo esquerdo; Existem ecchy- moses na parte posterior do epicardio. O estomago possue ecchymoses e a mucosa é pal- lida e lisa e recoberta de mucus. No intestino grosso encontram-se pequeninas ul- ceras folliculares, na região do coecum. O pancreas revela uma côr vermelha, de consistên- cia diminuida. No cerebro encontra-se edema agudo. Na pelle existem papulas pequenas de côr verme- lho-preta e do tamanho de uma lentilha, principal- mente no tronco. O penis possue uma ulcera quasi cicatrizada, do ta- manho de um pequeno feijão. Os ganglios lymphaticos possuem o seu volume augmentado. Na região do thymus foi encontrada uma massa, que, na occasião da necropsia não foi possivel ao autop- siador affirmar si se tratava da glandula thymica per- sistente, dependendo a solução deste problema dos cor- tes histologicos, que ulteriormente devem ser pratica- dos". Antes de analysar esse documento que a necropsia fornece, vou dar-vos os resultados que o exame his- 235 to-pathologico, praticado por esses mesmos collegas, me proporciona. "Capsula supra-renal - Estructura normal muito pouco conservada. A córtex não deixa ver a distribui- ção normal das cellulas devido a uma proliferação do tecido inter-cellular, que muitas vezes separa as cellu- las uma por uma. Este tecido inter-cellular é muito rico em cellulas de inflammação chronica, em lymphocytos e em capillares muito dilatados, que se acham bastante carregados de sangue e se reúnem, sobretudo no limite cortico-medullar e dentro da córtex, em massas gran- des, de forma oval, occupando todo o campo (grande augmento). As cellulas corticaes estão, na sua maio- ria, destruidas ou em via de destruição. A pequeno augmento, esses focos dão a impressão até de verda- deiras hemorrhagias. Em outros pontos ha verdadeira hemorrhagia. Emquanto que a inflammação e a necrose, na maior parte da capsula, não mostra lesões caracteristicas para informações especificas, porém apenas para inflamma- ção chronica, pode-se observar, em um ponto da glân- dula, um foco caracteristico de um tubérculo casei- ficado, com caseificação grande central, cellulas epi- thelioides, gigantocytos de Langhans caracteristicos e lymphocytos. Contrasta muito a ausência de vasos neste foco com a riqueza acima mencionada. Diagnos- tico: tuberculose chronica em capsula atrophica. Rins - Cyanose accentuada. Figado - Hepatite parenchymatosa (inchação turva, hyperemia, infiltração parvi-cellular). Baço - Hyperplasia aguda muito accentuada. Pequenas hemorrhagias. Pancreas - Necroses bastante accentuadas, pro- vavelmente post-mortaes. Ilhotas de Langerhans não vi- siveis 236 Pelle - Pigmentação melanica da camada basal da epiderme; só execepcionalmente nas outras camadas do corpo mucoso de Malpighi e em chromatophoros sub- epidermaes. Esta pigmentação falha em certos lugares da epiderme. Em um dos cortes da pelle, de apparencia da papula, encontra-se uma infiltração parvi-cellular peri-vascular muito pouco accentuada. Não se verifi- cam lesões que justifiquem o diagnostico histologico certo da papula. O methodo de Levaditi não revelou a existência de espirochetas. Diagnostico: pelle de mor- bus addisonii. Pelle do penis - Cicatriz suspeita de cancro. As camadas basaes sem pigmento melanico. Só pouco pigmento nos chromatophoros. Esta epiderme falta em um lugar onde o derma se encontra exposto, o qual até muito dentro é a séde de uma inflammação chronica caracterisada por lymphocytos, plasmazellen, cellulas epithelioides, raros gigantocytos e leucocytos e vasos capillares muito dilatados, repletos de sangue. Nas par- tes mais fundas, onde a inflammação não é tão diffusa, nota-se uma distribuição peri-vascular das cellulas in- flammatorias. Diagnostico: cancro syphilitico. Testículo - Espermatogenese muito diminuida. Thymus - Restos quasi sem estructura thymica caracteristica, com corpúsculos de Hassal, ás vezes cal- cificados. Hypophyse - Capillares muito injectados. As cel- lulas de aspecto e relação normaes. Thyroide - Degeneração colloide muito pouco ac- centuada. Ganglio lymphatico abdominal - Tuberculose chronica." Eis os elementos com que tenho de jogar para dis- cutir comvosco esse caso, tão instructivo em todas as suas particularidades. Como vistes, as lesões princi- paes por elle apresentadas, tanto macro como microsco- 237 picas, se assestam nas glandulas suprarenaes - A olho nu é a atrophia de ambas as capsulas, deixando apresentar-se como um tecido amorpho e o desappare- cimento da estructura normal, quando se faz o corte anatomico. Ao exame histo-pathologico noções mais profundas são fornecidas. Assim é que então se vê o quasi desapparecimento das cellulas corticaes, e aquellas que ainda existem estão em via de destruição, com proliferação de tecido inter-cellular, que é muito rico em cellulas de inflam- mação chronica, lymphocytos e capillares muito dila- tados. Ha além disso, sobre a disseminação de lesões inflammatorias e de degeneração, que não apresentam caracteres especificos, em uma das capsulas, um foco de tuberculose caseifiçado, o que levou o anatomo-pa- thologista a diagnosticar, deante da peça que lhe foi presente, a existência de tuberculose chronica em capsu- la atrophica. As demais lesões nos outros orgãos não merecem grande valor - são aquellas que geralmente acompanham todos os processos morbidos agudos e que se terminam pela morte. Mas, ha ainda a notar o que se encontrou na pelle e no penis - eu reuno isto para tirar comvosco uma conclusão elucidativa e que nos permitta chegar a um resultado aproveitável. No tegu- mento cutâneo o exame histo-pathologico encontrou, em alguns pontos, faltando, porém, em muitos outros, a pigmentação melanica da camada basal da epiderme - o que fez com que se concluisse, na necrotheca, pela existência da pelle do mal addisoniano. Mas, no penis, naquella cicatriz suspeita de cancro - as pesquizas microscópicas concordaram com o diagnostico clinico, estabelecendo realmente a veracidade delle, quando af- firmou ser syphilitica aquella lesão alli estabelecida. Ora muito bem. Estes dados, que reuno dos dois proto- collos apresentados, vão nos servir para entrever a pa- thogenia da adynamia grande que acompanha a typho- 238 se syphilitica e que, ao lado da febre typica, continua, com remissão matinal, constitue o phenomeno funda- mental dessa syndrome. Falando deste conjuncto symptomatico - a ady- namia - dizem Perrin, Van Benech e Masson, em seu artigo: "São os phenomenos de adynamia que domi- nam a scena. Os doentes estão em estado de abatimento profundo, de somnolencia continua, de que elles não sabem senão para se queixarem de sua dôr de cabeça in- tensa; esses queixumes são ás vezes continuos e como instinctivos. O abatimento é tão notável, muitas vezes, que os doentes não têm coragem de comer, emquan- to que nelles o appetite é quasi sempre bem conservado. Elles queixam-se também de alquebramento, elles são como si os tivesse "roués de coups" (moídos de panca- das). O olho, entretanto, é vivo, brilhante e o olhar não apresenta este aspecto vago que existe nos typhicos. O rosto é pallido, é o de um anémico; e isto, afinal nada tem de admiravel, porque em seu periodo de invasão, a syphilis traz lysis intensas dos globulos vermelhos. As viciações humoraes juntas á fixação provavelmente intensa do treponema sobre os centros cerebraes e par- ticularmente sobre as meninges, podem facilmente ex- plicar a symptomatologia da typhose syphilitica. Seria interessante, pensamos, para esclarecer a sua pathoge- nia, estudar o liquido cephalo-rachidiano, dos doentes em plena infecção, estudar as variações da resistência globular e procurar as hemolysinas contidas no sangue; nós sentimos vivamente ter, ao exemplo de nossos an- tecessores, omittido fazer estas differentes investi- gações" A opinião desses clinicos não foi baseada em factos anatómicos, foi mera supposição que elles construíram e levantaram para explicar a adynamia tão intensa que se mostra na typhose syphilitica. No caso que agora discuto tive a opportunidade de verificar a pathogenia 239 dessa syndrome, ligando-a ás lesões das capsulas supra renaes. Os clínicos devem partir, para concluir com acerto, desse facto que o que se encontra na typhose sy- philitica (o abatimento, a adynamia, a hypotensão, o grande torpor) é o mesmo que se encontra caracterisan- do a dothienenteria. Ahi, sob esse ponto de vista, tudo é uma cousa só, quer se trate de uma, quer de outra in- fecção. Partindo dessa noção, posso chegar a concluir qualquer cousa, que agora se acha abroquellada com esta necropsia, ajudada do exame histopathologico. Em 1899, Emile Sergent e Leon Bernard estudaram os ac- cidentes que elles entendem depender de insufficiencia supra-renal, inteiramente idênticos aos que foram assi- gnalados experimentalmente por Brown Sequard, com a destruição das capsulas. E' o que se chamou, desde então, syndrome de insufficiencia supra-renal aguda e que está hoje admittida pela maioria dos autores. Essa insufficiencia supra-renal se encontra moti- vada por infecções e intoxicações diversas e, falando so- bre isto, disse Sergent em 1902 textualmente o que se segue: "As moléstias infectuosas podem intervir na producção da syndrome da insufficiencia supra-renal de dois modos differentes, segundo que as capsulas es- tavam sãs até então ou que ellas estavam já acommet- tidas de lesões chronicas. No 1.® caso, a moléstia infe- ctuosa, determinando a supra-renalite aguda faz nascer a insufficiencia supra-renal. No segundo caso, o meca- nismo é mais complexo; convém procurar si esta insuf- ficiencia, até então latente, resulta de lesões agudas super-ajuntadas, das supra-renaes, ou si ella não é senão a consequência da impotência das supra-renaes alteradas, para exercer um trabalho antitoxico exa- gerado." p) (1) Emile Sergent - L'insuffisance surrénale aiguê et les ma- ladies infectieuses, Presse Médicale, ler, Octobre 1902. 240 Este facto da insufficiencia supra-renal, nas molés- tias infectuosas e nas intoxicações, é hoje acceito e Ser- gent accrescenta que "tive a satisfacção de vêr minhas idéas e minhas investigações confirmadas pelas obser- vações particulares do professor Hutinel na escarla- tina, de L. Martin e Darré na diphteria, etc., e, recen- temente do prof. Delbet a proposito dos accidentes ope- ratorios e post-operatorios devidos á acção do chloro- formio sobre as supra-renaes." p). Ora, si isto é um facto geral e obedece a uma verdadeira lei pathologica, não temos o direito de excluir a syphilis, moléstia que ataca toda a economia, não se localisa, e antes tem tendencia para acommetter todo o organismo, do nume- ro daquellas infecções capazes de provocar a insuffi- ciencia supra-renal. E a prova de que avanço uma pro- posição escoimada de vicios, antes baseada em provas anatómicas bastante elucidativas, ahi temos no que a autopsia encontrou neste caso que agora nos serve de licção. As lesões capsulares poderiam ser antigas, em uma delias foi encontrado mesmo um fóco de tubercu- lose, mas o que não resta duvida é que foi o ataque directo da infecção luética sobre ellas, que motivou os phenomenos graves de asthenia apresentados pelo paciente e foi essa insufficiencia supra-renal que acar- retou a morte do doente. O que se deve concluir deste caso é que, si não fôra a infecção syphilitica, o doente inda estaria vivo, são e perfeito, pois que, si é verdade que existiam essas lesões chronicas, ellas se achavam em estado latente e não atirariam o doente ao leito. A prova do que avanço é que elle se considerava antes inteiramente sadio, trabalhava sem repouso, jámais procurou a cama para se tratar de alguma moléstia grave, não tinha o minimo phenomeno asthenico, era, (1) Sergent - Etudes cliniques sur l'insuffisance surrenale, 1898-1914 - Paris, 1914. 241 emfim, um indivíduo em condições normaes de saúde. Foi a syphilis que encontrou o orgão em estado de locus minoris resistentiae e atacou-o de modo energico, acar- retando sua morte. Deste caso unico nós podemos tirar a illação clinica de que os phenomenos adynamicos e asthenicos na typhose syphilitica correm por conta de lesões da glandula supra-renal. Tiramos egualmente uma conclusão prognostica importante e é que a ty- phose syphilitica não é destituída de valor na prognose da lues, ao contrario, faz temer sempre se desencadeiem os phenomenos graves da insufficiencia suprarenal. Isto quer dizer que, todas as vezes que encontrardes um typhoso syphilitico, deveis formular prognostico severo. Tiramos ainda mais uma conclusão therapeutica t é que se deve dar ao indivíduo nesse estado a adre nalina, tal qual se dá em casos de febre typhoide, afim de evitar um desastre que se realisará fatalmente. E, mais ainda, se não deve applicar as injecções de sal- varsan, sabido como é que alguns dos casos em que houve insuccessos com essa medicação elles foram ex- plicados pela acção desse remedio sobre as capsulas suprarenaes. Ora, si a syphilis por um lado affecta esses orgãos e quero crêr que na typhose syphilitica os phenomenos são dependentes do ataque ás capsulas supra renaes, e si o salvarsan e o neo-salvarsan têm acção toxica evidente, segundo alguns observadores, sobre essas glandulas, claro está que o medico deve inhibir-se de applical-o para não cumular as duas into- xicações. Bem razão têm por isso Perrin, Benech e Masson quando em seu artigo dizem: "Uma unica indicação a reter, é uma grande prudência no emprego do salvar- san ou do néo-salvarsan em razão dos phenomenos de Herxheimer; é preciso pois, si se recorre ao arsénico, empregal-o em doses pequenas no começo, e mesmo fazer algumas injecções de um sal mercurial solúvel 242 antes de começar o tratamento arsenical". Eu vou além, meus senhores, acho nesses casos de typhose, de accordo com o que vos disse, inteiramente contra-indi- cado o emprego dessa medicação, que tem, ás vezes, toques de maravilha. Concluo estas duas lições chamando a vossa at- tenção para os seguintes pontos: 1 °) A typhose syphilitica, com o ser mais fre- quente na mulher, apresenta-se egualmente no homem. 2 °) As lesões das capsulas supra-renaes podem explicar os phenomenos adynamicos tão cara- cteristicos dessa entidade mórbida. 3.°) O prognostico da typhose syphilitica deve ser sempre reservado. 4.°) Da medicação deve fazer parte a adrenalina. 5.°) Nunca se deve empregar o arseno-benzol. 243 Da tuberculose Ganglionar Hypertrophíante Nenhum capitulo ha da pathologia que precise ser revisto e sofrer analyse cuidadosa como o das affecções ganglionares. Tudo ahi se acha ainda envolto nas do- bras da duvida, quando não nas do desconhecido. Os compromettimentos desses orgams - de funcção ainda não inteiramente revelada, prenhe de pontos obscuros e pouco nitidos - são muito frequentes e cada vez mais se mostram, para perturbar o espirito do clinico, perplexo deante de tantas hypotheses controversas, de tantas idéas differentes. E' que o assumpto não anda bem estudado, apesar das conquistas modernas da sciencia, não obstante os progressos da hematologia e o adeantamento das reacções biológicas. Não é preciso cavar muito fundo para se verificar a veracidade dessa proposição. Ella é uma verdade que sobrenada no espirito dos investigadores. Basta se olhar para essa affecção, agora em começo de fixação clara na téla do diagnostico, e que é conhe- cida pelo nome de moléstia de Hodgkin, desde 1832. 245 Sabeis que esta expressão taxonomica tem sido inter- pretada de multifarios modos. Todas as hypotheses pa- thogenicas têm-lhe sido alvitradas, desde a idéa que faz da inflammação ganglionar um producto especifico, uma neoplasia, até á que a considera unica e simples- mente reacção inflammatoria. Desça-se ao amago da questão e ahi se verá o choque das opiniões em campos adversos, sem que o accôrdo se mantenha numa unica noção pathogenica. Varias e múltiplas têm sido, por isso, as designações porque é conhecida essa syndrome, assim: lymphosarcoma (Virchow), sarcoma dos gan- glios (Langenbeck), lymphoma ganglionar anémico (Lancereaux), lymphoma maligno (Bilroth). A tuber- culose mesma foi durante muito tempo considerada como o factor dessa granulomatose, havendo quem a tivesse reproduzido na cobaya, pela inoculação dos ba- eillos de Koch. Mas, esses estudos não foram confir- mados, elles nem sempre deram o mesmo resultado, falharam em muitas occasiões, de sorte que a opinião do clinico se não satisfez. A syphilis foi egualmente invocada; nem poderia deixar de ser assim. Renegada a hypothese de neoplasma maligno, combalida a theo- ria da tuberculose, a syphilis teria de ser, natural- mente, procurada para dar a chave do problema. E' um dos tramites legaes da sciencia moderna. A syphilis explica tanta cousa, é causadora de tantos desarranjos orgânicos, infiltra-se de tal modo na economia inteira, tem predilecção para acommetter os tecidos gangliona- res, porque não interpretar também a syndrome de Hodgkin? E' que os trabalhos de laboratorio revoltam- se contra essa hypothese, é que as reacções biológicas não condizem com essa idéa, e necessário foi mudar de rumo. Hoje, a ultima palavra da sciencia faz desse estado morbido apenas uma affecção inflammatoria, especi- fica. accentuando tão sómente que se desconhece o 246 agente morbido que lhe é particular. Ora, ahi está ao que se chegou após tanto tempo gasto em explorações, des- pendido em tantas pesquizas. E o que se verifica para essa syndrome, encontra-se para as demais affecções ganglionares. A natureza de muitas delias acha-se im- mersa ainda no cahos. São affecções não raras, mas que ainda escapam aos actuaes meios de investigação. E' verdade que muitas são conhecidas em todos os seus tramites, mas o seu numero é tão limitado, que se póde dizer, sem receio de incidir em erro, que esse estu- do ainda está quasi todo por fazer. E' que, como disse, a physiologia dos ganglios não é conquista firme da sciencia. Que é que se sabe do seu papel na economia? Que se affirme, nada ou quasi nada, que é a mesma cousa. As discussões sobre as suas funcções não apla- caram ainda. A própria constituição histológica dos ganglios não está a salvo de controvérsias. Leia-se Do- minici, que tem estudado o assumpto com raro carinho, e a convicção é essa. Ignora-se mesmo a origem certa da lympha, e, para se cobrirem do erro, os investigado- res invocam duas especies delia, uma hematica, que é nutritiva, outra histica, que é producto de excreção, aliás, duas variedades que não podem ser separadas, uma vez que é commum o seu desaguadouro. Si é pro- ducto de filtração ou de secreção discute-se ainda, que ella não é sempre idêntica a si mesma é facto compro- vado, variando si recolhida num território ou em outro. Ora, como se conhecer exactamente a pathologia, si a physiologia se debate ás cegas, em torno de questões capitaes como essas? Como conhecer a reacção gan- glionar nas affecções sanguineas, si se discute ainda o modo de formação dos leucocytos nos ganglios? Quaes as especies delles que se originam nos folliculos? Será exacto o pensamento de Besançon e Labbé que não admitte não se formem no ganglio os leucocy- tos polynucleares neutrophilos, que elles açertadamente 247 chamam "a verdadeira cellula branca do sangue"? Nada podemos responder com segurança. O que sabe- mos, e isto já é alguma cousa, sendo ainda muito pouco, é que os ganglios representam, na economia, uma bar- reira, intransitável muitas vezes, aos corpos extranhos e aos germens. Ha mesmo certos destes que têm affini- dade própria para elles. Basta falar do virus pestoso, que quasi sempre reveste clinicamente a fórma bubo- nica: basta citar o bacillo de Ducrey, que occasiona frequentemente, ao lado do cancro molle, a adenite clas- sicamente conhecida; basta referir o bacillo de Koch, que tem predilecção particular para os ganglios, sobre- tudo nas primeiras edades da vida. E' que esta questão de affinidade encerra duas condições, quaes a da atte- nuação do germen, de um lado, e, de outro, o terreno, que influe egualmente. Sabeis que a peste bubonica deixa de ser bubonica, para ser pneumonica ou septicemica quando a virulência da infecção é accentuada e mali- gna, ez do mesmo modo que na primeira edade, se acom- panham geralmente as infecções de forte reacção gan- glionar. Assim é que são frequentes as adenopathias nos casos de sarampão, escarlatina, diphteria, erysi- pela e outras moléstias infectuosas. A actividade reac- cionaria ganglionar é sempre muito grande na infancia, pela actividade funccional dos orgams hematopoieti- cos, maximé dos ganglios lymphaticos - motivo pelo qual a localização ganglionar é de regra e faz habitual- mente parte dos processos morbidos infantis. Esses conhecimentos de pathologia, sobre que não póde haver discordância, provam uma das faces da physiologia ganglionar, isto é, seu papel de retensor dos germens introduzidos na economia, de destruidor mesmo del- les quando não dotados de grande virulência. Nos casos em que o ganglio não offerece condições de resistência á invasão, dá-se a sua passagem na circulação, com todas as suas consequências. Mas, o que se sabe é que 248 a retenção dos germens nos ganglios tem a particulari- dade de diminuir-lhes o poder maléfico, attenuar suas condições morbificas, facto observado innumeras vezes no laboratorio e no individuo, em relação a alguns del- les e ainda a de destruil-os, como já affirmámos. Por- tanto, os ganglios devem ser considerados como prote- ctores da economia, como guardas avançadas desses combates em que a vida entra em jogo a todos os mo- mentos, considerando-se a sua funcção dirigida não só- mente contra suas toxinas, não só determinando a sua destruição, como produzindo anti-toxinas, originando a immunização. Eis o pouco que se sabe de sua physiolo- gia, não sómente no que entende com os actos normaes como com os pathologicos. E' pouca cousa, e motivo pelo qual ainda se não póde ao certo fixar a symptoma- tologia ganglionar em quadros definidos, se não póde catalogar as affecções dos ganglios em linhas firmes como de habito se faz para as outras localizações mór- bidas. Póde-se, entretanto, estudar as affecções ganglio- nares, encarando-se-as nos seguintes grupos: a) lesões ganglionares nas infecções agudas e chronicas; õ) neoplasias ganglionares - primitivas e se- cundarias; c) lesões ganglionares nas affecções hematicas; d) lesões ganglionares nos estados dystrophicos. Não me proponho percorrer esses quatro grupos clinicos, que me afastaria notavelmente do objecto deste trabalho. Apenas respigarei algo sobre cada um desses typos morbidos, começando pelo ultimo. Desde já accentuo que o derradeiro - lesões gan- glionares nos estados dystrophicos - accrescento aqui para ahi compendiar a syndrome conhecida por adeno- 249 lypomatose symetrica diffusa, cuja natureza inda é por demais ignorada. Ha quem queira ver nella apenas uma dystrophia dependente do desapparecimento do corpo thyroide, emquanto outros pensam ser a traduc- ção de uma trophonevrose, outros ainda o effeito de perturbação nas glandulas sebaceas da pelle e outros alteração dos ganglios lympathicos, que seriam o inicio do conjuncto morbido. Não insisto neste grupo cli- nico, porquanto o diagnostico é facil e a confusão com outras affecções ganglionares, muito rara. Sobre as lesões dos ganglios nas affecções hema- ticas, todos sabem das relações existentes entre esses dois grupos morbidos. A leucemia traz no seu quadro clinico a hypertrophia dos ganglios lymphaticos, mas ella acompanha-se egualmente de alteração dos outros orgams do apparelho hematopoietico. A esplenomega- glia. a perturbação de funcção da medula ossea, tradu- zindo-se por dôres, as lesões intestinaes, correm pare- lhas com as adenopathias. De sorte que o diagnostico não fica tarefa difficil, facilitado desde logo com o exame do sangue, quando o exame do doente não traz elementos de convicção. Basta dizer que na leucemia a formula sanguinea tem o aspecto clássico que todos conheceis, emquanto que na tuberculose ganglionar e no lympho-sarcoma ella fica sensivelmente physiologica. Esse critério é sufficiente para afastar duvidas, si porventura existem. As leucemias têm quadro clinico e hematologico á parte, e ninguém as desconhece, não deixando que se esbocem na tela do diagnostico sinão quando a confusão é difficil de evitar. Os neoplasmas ganglionares são mais duros de discernir. Sobre as neoplasias secundarias a tumores assestados no trajecto da rêde lymphatica servida pelos ganglios, todos sabem de sua frequência. Geralmente os tumores malignos se acompanham de hypertrophias ganglionares typicas. Nem todos os tumores têm, en- 250 tretanto, esse cortejo clinico. Dá-se para com elles o mesmo que com as infecções, pois nem todas ellas tume- fazem ganglios. Assim, os fibromas não se acompa- nham de adenites e do mesmo modo os sarcomas, cuja propagação se faz pela via sanguinea. A predilecção para acommetter os ganglios pertence aos cânceres, sobretudo aos carcinomas. A anatomia pathologica vae encontral-os séde do mesmo processo vizinho ou porque houve periadenite cancerosa, ou porque houve uma lymphangite da mesma natureza ou porque se tenha dado uma embolia de cellulas cancerosas. O facto é que nos casos de cânceres as adenopathias fazem parte do seu apparelho morbido, mostrando-se ou como sim- ples ganglios endurecidos, indolentes, moveis, ou gran- demente hypertrophiados, cheios de bosseladuras, adhe- rentes. Segundo a localização delles, servem de muito para a obra do diagnostico, assim a supra-clavicular para os cânceres abdominaes, maximé do estomago, não obstante haver discordância no espirito dos autores sobre o seu valor. Ha assim quem queira ver nas ade- nopathias supra-claviculares importância semeiologica excepcional, sendo que é preciso se considerar o exag- gero dessa opinião, uma vez que outras causas podem determinar o seu apparecimento, como a própria tuber- culose e a syphilis. Os tumores primitivos dos ganglios não são raros, mas é preciso que ahi, nessa designação, se compen- diem os estados conhecidos em clinica pelo nome de lymphoadenomas, que não são mais do que tumores ma- lignos, cujo inicio é o tecido reticulado. Desses o mais estudado, não só clinica como anatomicamente, é o lymphosarcoma, quando o reticulo que entra na cons- tituição da neoplasia é pouco denso. Os ganglios affe- ctados ficam duros e tomam volume considerável e o processo morbido tem tendencia a generalizar-se, pela infecção dos ganglios vizinhos e pelo facto de occorre- 251 rem embolias que levam o producto morbido a grandes distancias. E' o motivo mesmo da alta gravidade desses tumores a sua rapida generalização. Mas, o que é pre- ciso fique archivado, como um elemento importante para o diagnostico, é a ausência de perturbações do sangue, de sorte que a formula hematica se conserva como no padrão normal. Os ganglios mais frequentemente affectados são os do pescoço, iniciando-se a lesão pelo sub-maxilar de um lado, ganglio que augmenta logo colossalmente de volume, sendo desde cedo acompanhado de tumefacção dos vizinhos. Elles se fundem então, se conglomeram em massa de proporções grandes, distendem a pelle e occasionam, naturalmente pela compressão, desordens nos orgams proximos, traduzindo-se por symptomas impressionadores. A evolução da affecção é differente, segundo a fórma histológica dos tumores; os lympho- sarcomas caracterizam-se pela rapidez, e a cachexia e morte em pouco tempo liquidam o doente, ao passo que a fibro-adenia tem evolução mais lenta e pode permittir que a vida se prolongue por algum tempo mais. Os tu- mores ganglionares, quando se assestam nos ganglios mesentericos, no mediastino, no intestino, trazem sym- ptomas a mais, que são explicados pela localização. O diagnostico do lympho-sarcoma é ás vezes difficil, não com a leucemia, pois que o exame do sangue tira as duvidas, mas com a tuberculose ganglionar. Apenas, como elementos de diagnostico, cabe-me chamar a attenção para a evolução do mal, muito mais rapida nos casos de lymphadenoma, para a localização do processo, geralmente unilateral nestas ultimas op- portunidades, para a presença de febre na tuberculose, para o tamanho dos ganglios invadidos, muito maiores na hypothese que estudo. Ainda ha mais; não se póde deixar de recorrer, nos casos de duvida, a provas biológicas, ás reacções que a tuberculina occasiona no 252 organismo, não obstante o pouco valor que se póde esperar delias. Não estudarei aqui, para não alougar demais este trabalho, as lesões dos lymphaticos nas infec- ções agudas. Todos sabem da tumefacção dolorosa dos ganglios nas moléstias infectuosas, não só regio- naes (erysipela) como nas generalizadas. Na diphteria, na febre typhoide, na peste bubonica, em que a hypertrophia ganglionar constitue a peça de mais realce no conjuncto symptomatico, no mormo, no cancro molle, no sarampão, em quasi todas as infecções, maximé nas crianças, as adenopathias são por demais conhecidas, para que haja necessidade de insistência. Também, afóra o que se passa na peste, ninguém póde, nesses casos, só por esse simples compromettimento ganglionar, estabelecer diagnostico. Das infecções chronicas sobrelevam a syphilis e a tuberculose, que é o escopo deste trabalho. A adeno- pathia é a companheira inseparável da infecção luética. Desde o periodo primário se mostra em scena e fica sempre como estigma indelevel do mal. Póde-se mesmo dizer que nunca falta e é um dos bons symptomas que conduzem cedo ao diagnostico. Não descreverei os caracteres dos ganglios, não só na syphilis primaria co- mo na secundaria; elles São muito conhecidos e o ver- dadeiro clinico de hoje necessita nunca os ignorar. Tra- duzindo e representando o grau de resistência orgâ- nica, sempre que a reacção ganglionar fôr intensa, tem- se noção da pouca gravidade da infecção. Talvez seja por isto que ella é quasi sempre mais benigna na in- fância, onde se vê serem as reacções dos ganglios sem- pre mais promptas, mais rapidas e mais energicas. Dahi, todas as vezes que a infecção não se acompanhar de adenopathias múltiplas, mais reservado deve ser o prognostico e mais forte a acção therapeutica. Os pre- 253 parados de Ehrlich, o salvarsan e o neosalvarsan, serão então, empregados com a maxíma dóse. E' uma noção prognostica retirada de um dado diagnostico. Agora, a syphilis póde também, no periodo terciário, ser puramente ganglionar, não que as gom- mas ahi sejam frequentes, mas como producto ainda de reacção organica, ou como séde de lymphoma espe- cifico O diagnostico, então, com o lymphoma tubercu- loso, não é facil. O tratamento poderá, nesses casos, servir para discernir as duas affecções. E' o emprego do velho aphorismo, que nunca deve ser olvidado na clinica (naturam morborum curationes ostendunt), so- bretudo quando o pensamento do medico se inclina para a idéa da syphilis. Chego finalmente ao ponto - á tuberculose gan- glionar. O ganglio é innumeras vezes séde de tuberculose, noção antiga como o tempo. Elle reage no homem de idêntica maneira que a cobaya, o reactivo especifico da tuberculose. A herança tuberculosa, quando se não ma- nifesta pela localizada nos pulmões, denuncia-se fre- quentemente pela adenopathia, maxirné nas crianças. Vários são os caminhos pelos quaes se póde dar a infec- ção ganglionar - ou pela própria via lymphatica, quando existe uma tuberculose cutanea, mucosa ou vis- ceral, não deixando muitas vezes signal de sua passa- gem, havendo tão sómente dois pontos lesados - o de origem (o pulmão, o mais habitualmente) e o ganglio, emquanto os vasos e os trechos equidistantes se acham indemnes de todo processo, ou pela via sanguinea, cou- sa mais rara e que tem levantado discussões sobre o seu mechanismo, ou a tuberculose é realmente primi- tiva. accommette primeiramente o ganglio sem que at- tinja outro ponto da economia, sem que haja outra loca- lização mórbida. Estes últimos casos, que não são ra- ridade, constituem os mais interessantes. Está demons- 254 trado, pelo laboratorio, que o bacillo de Koch tem a propriedade de atravessar tecidos sem deixar vestí- gios, sem assignalar marca de sua passagem, enxertan- do-se então sobre um ganglio, naturalmente em estado de locus minoris resistentiae. Mas, o que é preciso contar-se é que muitas vezes a tuberculose ganglionar é só na apparencia primitiva; ha lesão em outros pontos ou ha bacillos em regiões circumvizinhas e que passam desapercebidos. Como quer que seja, esses casos não deixam de ser tidos como localisação primeira do mal, uma vez que se não descobrem outros pontos infectados. O professor Gil- bert, em magistral licção que sobre o assumpto profe- riu no Hotel Dieu em 1911, viu 9 casos de tuberculose ganglionar, 5 dos quaes positivamente se apresentaram sem a predecessão de lesão em outros orgams. Anatomicamente, a tuberculose ganglionar póde-se apresentar sob vários caracteres; ou ha a caseificação do ganglio, com inflammação de tecido em redor delle. constituindo a periadenite, processo que se extende até a pelle, com suppuração e a formação de fistulas, pro- cesso muito commummente encontrado na clinica - ou se dá a transformação fibrosa ganglionar, acompanha- da de grande hypertrophia do ganglio. Este fica aug- mentado de volume, de consistência firme e jámais sup- pura. E' justamente a fórma hypertrophiante. O pro- cesso se localiza e não soffre as outras transformações. E como diz Gilbert, "os ganglios uma vez attin- gidos, ficam attingidos; uma vez volumosos, ficam volumosos; uma vez firmes, ficam firmes; si são susce- ptiveis, espontaneamente ou sob influencia do trata- mento, de soffrer modificações, estas ficam limitadas e incompletas, sem vir a cura. O processo fica activo andef inidamente. " Si se fizer um córte histologico nesses ganglios, ver-se-á que elles são constituídos por nodulos com 255 todos os caracteres dos folliculos tuberculosos, cerca- dos de tecido ganglionar intacto e hygido e, o que mais é, sem que exame cuidadoso e profundo ahi desvende a presença de bacillo de Koch, do mesmo modo sem que haja reacção da parte da cobaya, em que se inocule uma porção desse tecido. E' por isso que muitos casos de tuberculose hypertrophiante entraram, durante muito tempo, em grupos clinicos differentes, como na moléstia de Hodgkin, no lymphosarcoma, na adenia, etc. O caracter mais importante dessa localização da bacillose é o de só affectar um ganglio do organismo. Mais frequentemente o são os do pescoço e da axilla; mas, nem sempre o processo fica adstricto a uma só região, póde extender-se aos vizinhos ou mesmo a todos da economia. Aqui, então, todos os ganglios são affe- ctados, tanto os superficiaes como os profundos, os cer- vicaes, os axillares, os inguinaes, os mediastinaes, os mesentericos e até o proprio baço soffre nesse acom- mettimento a toda a economia. O sangue pouco demonstra. E' verdade que existe não raramente ligeira leucocytose caracterizada por polynucleose, que nem sempre é constante, pois ás ve- zes é substituída por mononucleose, mas formula he- matica incapaz de, por si só, servir de elemento de dia- gnostico. Além desses symptomas ganglionares nada mais o doente sente, a não serem accessos febris, que muitas ve- zes passam despercebidos. A nutrição faz-se normalmen- te e, a não existir o demasiado volume dos ganglios, nada denotaria que o individuo se acha affectado de molés- tia tão séria. E' muitas vezes, depois de longa duração, com moléstia intercorrente qualquer, ou a compressão da trachéa ou de nervos importantes, quando não a cachexia, que a morte se dá, cortando assim a exis- tência. 256 Tal é, em linhas geraes, a figura clinica da tubercu- lose ganglionar hypertrophica, cujos estudos vão agora surgindo, depois que se começou a fazer o desmembra- mento de grupos antigos e se principiou melhor a co- nhecer as affecções ganglionares. Fiz estas considerações para collocar em fóco uma questão ha pouco tirada do cabos da pathologia dos g anglios e ao mesmo tempo para sustentar o diagnostico de um doentinho, que tive occasião de obser- var. E' um menino, de 7 annos, brasileiro, e morador no interior do Estado. Apresentou-se á consulta pelo facto de ter grande desenvolvimento dos ganglios cer- vicaes. De facto, o seu pescoço é enorme, todos os gan- glios se acham tumefactos, duros, do tamanho de ovo de gallinha ou mesmo maior, moveis, indolentes, dando á criança uma figura typica. Ha 2 annos iniciou-se a affecção, com a hypertrophia primeiramente de um dos ganglios juxta-maxillares. Logo em seguida os demais ficaram tomados e todos os ganglios se acham em estado de notável hypertrophia. O quadro é clássico. Quem conhece a symptomatologia da tuberculose gan- glionar hypertrophiante desde logo estabelece o dia- gnostico. Não obstante, entrei em maiores investi- gações. A reacção de Wassermann foi negativa e seus paes são sadios, indemnes de infecção luética. O exame do sangue apurou 4.150.000 hematias, 6.300 leucocytos e 75 % de hemoglobina. A contagem especifica dos leu- cocytos revelou 61 % de polynucleares neutrophilos e 12 % de mononucleares, 17 de pequenos lymphocytos e 5 de grandes lymphocytos. Ha, pois, ligeira mononu- cleose. De quando em vez apresenta-se febril, tempera- tura que não attinge a elevado grau. O seu estado geral não é mao, nada existe nos pulmões, a percussão cui- dadosa não encontra traço de bacillose incipiente, os intestinos funccionam como normalmente. Existem ainda ligeiros ganglios inguinaes e axillares tumefac- 257 tos, e o baço mostra-se ligeiramente perceptivel á percussão. O diagnostico de tuberculose ganglionar hypertro- phiante impoz-se ao meu espirito. De facto, qual outra hypothese poderia surgir na téla de meu pensamento? A leucemia achava-se eliminada pelo exame do sangue, a syphilis pela reacção de Wassermann negativa, pelos antecedentes morbidos paternos, pela ausência de ou- tros symptomas, a lymphosarcomatose pela marcha da affecção e pela localisação bilateral delia. Restava se- parar o caso da syndrome de Hodgkin, mas esta é ca- racterizada pela hypertrophia generalizada a todo o systema lympathico e a todos os orgams lymphoides, motivo pelo qual se hyperplasiam o baço, as amygda- las, o thymus, pela existência de notável prurido inten- so, que se extende a toda a superficie cutanea, reves- tindo sempre grande importância na semeiologia, pela febre que é constante, embora tenha typos differentes e pelo exame do sangue, onde se encontra sempre leuco- cytose exaggerada, com polynucleose. excessiva. Não poderia, por isto, pensar nessa hypothese, quando o exame do sangue, a ausência do prurido e da febre me faziam tirar dahi o juizo. E\ pois, sem contestação um caso de tuberculose ganglionar hypertrophiante, como prognostico reser- vado, pois que infelizmente a therapeutica desse capi- tulo nosologico ainda está por fazer. Assim se possa algum dia conhecel-a, que se terá livrado a humanidade de poderosa força destruidora, implacável flagello e tortura das raças que se abatem sob os tentáculos desse polvo cruel e terrivel. 258 Um caso de Aneurysma da Aorta, de origem rheumatísmal Em um menino de Í5 annos Caso interessante esse que apresento e digno do archivo scientifico, pelo duplo facto da raridade da af- fecção na idade do paciente e da causa que a provocou, do elemento pathogenico que, a meu vêr, justifica a sua existência. Relativamente á idade, facto etiologico de alto valor, em se tratando de aneurysmas aorticos, é cor- rente em pathologia cardio-arterial que o máximo da frequência é de 35 a 45 annos. Elle é raro na infancia. Trago para justificar esta asserção as palavras com que Boinet, em seu magistral trabalho, no tratado de Gilbert e Brouardel se refere ao assumpto: í1) "O aneurysma da aorta é raro na infancia. Jacobi delle reuniu 30 factos, dos quaes um em creança de 5 annos, que apresentava um aneurysma consecutivo a lesões tu- berculosas agudas das paredes aorticas. (1) Anévrismes de l'aorte. - E. Boinet. Traité de medécine et de tberapeutique. - Vol. XXIV - 1907. 259 Como exemplos de aneurysmas da baixa edade, pode-se citar o caso de Willet (4 annos) de Macheen (4 V2 annos)- Alexeff viu um aneurysma da aorta ab- dominal, em uma creança de 6 annos e Phenomenow observou sobre um feto um tumor aneurysmatico do mes- mo vaso muito volumoso para tornar uma causa de dys- tocia. De 10 a 14 annos, o numero dos aneurysmas aor- ticos cresce (Broca, Breschet, Crisp, H. Roger, Her- vieux, Marfan, Sauné, Money, Hadden). Outros factos são assignalados para a adolescência na idade de 17 annos (Ziberge) 18 annos (Sahli) 19 annos (Tuffnel) 21 annos (Andrews)"; S. Buli, em 76 casos, com au- topsia, não encontrou um abaixo de 20 annos; (2) a estatística da mortalidade na Noruega, de 1887 a 1901 não dá um em pessôa de menos de 20 annos (3) ; Lis- franc poude apenas reunir 3 casos de aneurysma de 15 a 20 annos e 1 de 13 annos. (4). Barié (5) é da opinião geralmente propalada. - Elle diz: "A titulo inteiramente excepcional o aneu- rysma da aorta foi encontrado nos dous periodos ex- tremos da vida: aos 80 annos (Corvisart) e na infân- cia (creança de 10 annos) (Breschet, Roger) ; de 6 an- nos (aneurysma de aorta abdominal; Alexeff. 1898). A seu ver a frequência maior é entre os 30 e os 40 an- nos, e em menor grau entre 40 e 50. No mesmo sentido fala Oettinger (6), accrescen- tando que a affecção é rara na infancia e mais com- mum entre 50 e 60 annos, baseando-se em estatística de Lebert e em outras, que, na sua opinião "pare- (2) Ibidem. (3) Ibidem. (4) Ibidem. (5) E. Barié. - Traité pratique des maladies du coeur et de l'aorte, 1.» edição - 1900. (6) A. OEthinger, in traité de medecine. - Bouchard, Brissaud. Tomo 8 - 2.» edição - 1902. 260 cem se approximar bastante da verdade." Renault é mais preciso quando diz: "Breschet, Broca, Her- vieux viram casos na segunda infancia; Smith, Thi- bierge, na adolescência; Oorvisart num velho de 80 annos, mas são factos excepcionaes!" o aneurysma da aorta é uma moléstia da edade madura. Os doentes têm em geral de 50 a 60 annos, após com uma frequência um pouco menor de 30 a 50, conforme as estatisticas de Lebert e Broca" (7). Debove e Sallard opinam do mes- mo modo (8). Emfim, não querendo me demorar na citação de todos os auctores que sobre o assumpto têm escripto, basta que apresente ainda a opinião de Hu- chard, sem duvida um dos mestres mais auctorisa- dos em cardio-pathologia, não obstante muitas vezes sua opinião ser diametralmente opposta da acceita ge- ralmente, e a de Piazza-Martini. E' assim que Huchard diz: "A idade na qual apparece o aneurysma é submetti- da a regras bastante fixas, assim como Lisfranc o esta- beleceu : Sobre 120 casos, houve de 25 a 35 annos-36 aneurysmas-expontaneos - - ,, 35 ,, 45 ,, 35 ,, - - „ 45 „ 55 „ 28 - - „ 55 „ 70 „ 9 - - „ 70 „ 80 „ 3 - - „ 20 „ 25 „ 5 - - „ 15 „ 20 „ 3 - - „ 13 annos 1 „ Estas estatisticas não têm senão uma importância relativa, a questão da edade é secundaria, pois que a syphilis adquirida pode produzir aneurysmas aos 20 ou 25 annos, e a heredo-syphilis desde a vida fetal, du- (7) Jules Renault - in Manuel des maladies de l'appareil cir- culatoire et du sang - par Debove Achard, 1905. (8) Trai té elementaire de Clinique Medicale, 1905. 261 rante a infancia ou a adolescência, pois que elles po- dem succeder promptamente a uma moléstia infectuo- sa; pois que os aneurysmas nos alcoolicos e nos gotto- sos sobrevêm em uma edade mais adeantada (9). Do mesmo theor é o modo de se exprimir de Vicenzo Piaz- za Martini, professor de Propedêutica na Universidade de Palermo, que discorre com fluência sobre o assum- pto, apresentando a estatistica de Crisp, Lebert e Lid- del - na l.a sobre 551 casos, ha 1 abaixo de 10 annos e 5 entre 10 e 20; Lebert observou, em 324 doentes, 16 abaixo de 20 annos e Liddel (de New-York) apura 2 casos abaixo de 10 annos e 8 entre 10 e 20, isto num total de 213 (10). Do que se vê, dos dados estatisticos colligidos pe- los auctores citados, e o que se lê em outros que concer- tam com esses aqui assignalados, verifica-se que o meu doente, creança ainda de 15 annos, se acha cedo acommettido de affecção arterial, para cujo precoce ap- parecimento concorreu com certeza poderosa causa. Qual foi ella é o que vou em breves termos indagar desvendando o segundo motivo pelo qual apresento esse doente ao publico medico. E' regra geralmente acceita que a syphilis, o alcoolismo e para alguns (Lan- ceraux) o impaludismo, são as causas que mais habi- tualmente provocam o aneurysma da aorta. Entretan- to, é bom que fique assignalado que todas as infecções, desde que tenham capacidade de alterar a túnica vas- cular são capazes de produzir a affecção. E outras cau- sas inda existem, de cujo concurso resulta o aneurys- ma aortico. Mórmente na infancia. Assim é que o trau- matismo é um poderoso agente não só efficiente como (9) H. Huchard. - Traité Clinique des maladies du cceur et de 1'aorte - vol. 2 - 3* edição - 1899. (10) Trattato italiano di pathologia e terapia medica, prof. Can- tani e Maragliano - vol. IV, P. II. 262 predisponente, fazendo despertar lesão anterior do vaso e que se desenvolvia sem manifestação apparente, ori- ginando a ectasia vascular. Mas quem estuda e aprecia a estatística da etiologia do aneurysma desde cedo se convence do alto valor da syphilis, que, alterando as túnicas arteriaes, provoca o apparecimento de tão gra- ve affecção, para a qual infelizmente os recursos thera- peuticos ainda são de pouca monta, apezar dos recentes trabalhos relativos ás applicações electricas. E é pre- ciso assignalar que a syphilis o produz não só como infecção, presente ou passada, pelas toxinas derrama- das na circulação e cujo ponto de predilecção para actuar maleficamente é a parede vascular, provocando as endarterites (das quaes as mais communs são as das artérias cerebraes) e as aortites - seguidas ou não de ampliação de calibre do vaso, mas também age como factor hereditário, e a heredo-syphilis é, em mui- tos casos, o factor de sua existência. Do meu doente indaguei, com cuidado, da exis- tência do mal hunteriano. Não encontrei, porém, um só estygma que o denunciasse. Não houve a precedencia do cancro, (e a idade não serve aqui para objecção á procura da causa, pois já o encontrei nitidamente desenhado e seguido dos clássicos accidentes secundá- rios em um menino de 13 annos) nem se verificou a existência dos estygmas do periodo inflammatorio ou viralento da syphilis, que é o segundo. Nunca sentiu dores ósseas, nunca apresentou roseolas, nem cephaléa, nem outras manifestações communs entre nós, como se- jam as placas mucosas na lingua e na pharynge. Não tem ganglios hypertrophiados, tanto inguinaes como maxillares, sub-occipitaes e axillares. Manda, porém, a verdade que se diga que nelle en- contrei um ganglio epitrochleano bem desenvolvido no braço direito. E' o unico signal que guardar podia da syphilis adquirida e signal a que os autores todos 263 ligam grande valor. Entretanto, não se pode dar-lhe o valor pathognomonico, pois não é a primeira vez que o encontro em caso onde a infecção não existiu. E, a esse respeito, acredito, a opinião acceita pelos cli- nicos deve ser a mesma; assim como a sua ausência não infirma um diagnostico preciso de syphilis, a exis- tência delle não faz o espirito do clinico afastar outras hypotheses para só acceitar essa. Não tem os caracte- res da syphilis hereditária, nem o exame a encon- trou em seus paes. O seu progenitor é sadio, apenas rheumatico. Não accusa antecedentes syphiliticos nem apresenta estigmas indicativos de que a infecção por elle tivesse passado. A mãe é, porém, epiléptica. Soffre do grande mal, tendo ataques repetidas vezes; não foi, entretanto, acommettida pelo mal que Hunter assigna- lou em linhas tão firmes e tão claras. Mas, a origem do aneurysma do doente é, pelo menos me parece, demasiado clara. E' de origem puramente rheumatis- mal, provocado pelo rheumatismo articular agudo, que o originou e o fez desenvolver. Antes de dizer porque assim acredito convém repisar algo sobre o assump- to. Quem delle trata com vantagem é Renon (J1) em seu livro sobre moléstias do coração e pulmões, onde publica uma observação analoga a esta e egualmente considerável pelos dois motivos que tornam também notável a que vou apresentar. Com effeito, elle ahi descreve a affecção de um menino de 16 annos, sem tara em seus antecedentes pessoaes nem nada digno de importância nos antecedentes hereditários, e que foi accommettido de um aneurysma da aorta, que se desen- volveu a seus olhos, rapidamente, no decurso de uma poussée de rheumatismo - aneurysma facilmente reco- nhecivel não só pelos signaes physicos apurados e sym- (11) Luiz Renon - Conferences pratiques sur les maladies du coeur et des poumons, 1906. 264 ptomas revelados, como também pelo exame radiosco- pico praticado pela competência consagrada de De- Iherm. Esse menino succumbiu repentinamente pela ruptura do sacco. O prof. Renon afasta desde logo a hypothese de syphilis. Assim é que elle diz: "Apesar de todas as nossas investigações, nós não podemos en- contrar no caso actual traço nem de syphilis adquirida nem de heredo-syphilis; fóra do pequeno talhe do doen- te, imputável aliás a uma outra affecção, nenhum esti- gma, nem do lado dos olhos, nem do lado do ouvido, dos dentes, do systema osseo poude ser considerado. O exame dos reflexos, feito por Babinski, mostrou que to- dos estavam conservados, tanto os reflexos occulaires como os rotulianos e acchileanos. Meu interno Verliac, praticou a puncção lombar e o liquido cephalo-rachi- diano não continha lymphocytos". Também no meu doente, já disse, não encontrei o que me auctorizasse a pensar na syphilis. O paciente é um menino vivo, intelligente, dotado de olhos limpidos, com audição sã, dentes perfeitos, intactos e de altura bem regular, em proporção com sua idade. O doente de Renon soffria de rheumatismo articular, tenaz, ao qual elle attribuiu o seu pequeno desenvolvimento e o aneurysma aortico, baseado tam- bém nas palavras com que Vaquez sustenta que a infec- ção rheumatica produz a periarterite originaria da ectasia vascular. Vaquez discreteia: "Eu não vejo, de outra parte, razão absoluta para recusar, em casos ainda excepcionaes, ao rheumatismo a possibilidade de realisar uma periarterite que conduza ao aneurysma. Isto deve se ver sobretudo na creança. Nella o rheuma- tismo é especialmente grave e produz lesões profundas e diffusas, sobretudo na visinhança dos orifícios val- vulares, e o aneurysma deve assentar então, e é o caso do doente de Renon, na origem mesma da aorta. Mas eu penso ainda assim que estes casos constituem 265 a excepção". (12) E' justamente o que se observa em meu doente - a ectasia se assesta desde a origem do vaso até o meio da crossa - facto esse que veiu mais uma vez me confirmar nessa hypothese, levantando a idéa do rheumatismo articular agudo como elemento etiologico do aneurysma aortico. Esses casos, diz Re- non, sendo pouco frequentes não são entretanto tão raros assim, e elle consegue apresentar 5 factos da affecção em creanças, observados por Marfan, Glery e Guillemot, Zuber, de la Riie e Comby - que tiveram occasião de presencear, consecutivos ao rheumatismo, aneurysmas da magna artéria. O professor Renon termina essa sua lição, notável como todas as que produz, clara, concisa, elucidativa, cora as seguintes palavras, que não posso deixar de publicar, tantos são os elementos de convicção que ellas acarretam ao espirito do clinico: "Si eu tanto insisti sobre esta discussão, senhores, é porque élla vos provará que o aneurysma é as mais das vezes syphilitico no adulto e rheumatismal na creança. Parece mesmo, si se pensa na dilatação enorme de cora- ção observada na myocardite rheumatismal aguda, que possa existir uma acção particular de dilatação rheu- matismal, não só sobre o myocardio como também sobre os vasos". Ora, deante a estatistica e a linguagem de Renon e perante a ausência de signaes de syphilis própria ou hereditária apresentados pelo meu doente e em frente a um caso clássico, caracteristico de rheumatismo ar- ticular agudo, que ha longos annos e de modo tenaz vem atormentando o paciente, em crises dolorosas e duradouras, não hesitei em attribuir a elle a enorme dilatação da grande artéria, que ha tres annos appro- ximadamente appareceu. (12) Cit. por L. Renon - obra citada 266 Desde a edade de tres annos soffre o paciente desses ataques de rheumatismo, que lhe inhibem os movimentos articulares e o prostram no leito. A sua historia clinica traz logo a confirmação dessa hypo- these - que, acredito, é a expressão da verdade. Co- mo se vê, dessas considerações que faço, o caso deve ser archivado; tudo nelle é digno de estudo. Também, não o tenho poupado ao exame de outros collegas e dos es- tudantes de medicina que frequentam a Santa Casa em ferias, e onde mandei o cliente para ser apresentado e examinado por todos. E' assim que já o viram os Drs. José Luiz Guima- rães e Julio Xavier, os primeiros que tiveram a oppor- tunidade de examinar o doentinho, Drs. Nicolau Mo- raes Barros, Delfino Cintra, Xavier da Silveira, Wal- ter Seng, F. Espinheira, Antonio França, Horacio Hur- pia, Oscar de Oliveira, Mario da Cunha Canto, Léo de Oliveira, André Pio da Silva e outros muitos. OBSERVAÇÃO: J. R.; brasileiro, filho de paes portuguezes, branco, de 15 annos de edade, solteiro, residente em S. Paulo. E' empregado no negocio do pae, a quem ajuda. Antecedentes hereditários. - O pae é homem ro- busto, musculoso e gordo, mas soffre de rheumatismo, que ultimamente o tem abandonado. Mãe epiléptica, coin grandes ataques que se reproduzem de distancia em distancia. Tem 11 irmãos, sendo todos sadios, a excepção de uma irmã que é doente e muito fraca, para a qual tenho receitado emulsão de Scott. Antecedentes morbidos. - Soffreu de rheumatismo articular agudo na edade de 3 annos, com ataques ao joelho e cotovello, acompanhado o accesso rheumatis- mal da sua classica symptomatologia. Desta idade em 267 deante tem sido varias vezes acommettido do insulto rheumatico, que nunca o abandonou totalmente. Tem sido tratado nestes últimos annos pelo nosso collega Dr. José Luiz Guimarães que foi quem me trouxe o doente. Teve sarampão em creança. Historia pregressa da affecção actual. - Ha cerca de 3 annos, quando sob a influencia de forte crise do rheumatismo, começou a sentir-se dyspneico com pal- pitações cardiacas e batimentos arteriaes violentos, tudo isso acompanhado de fortes dôres na região pre- cordial. Esse estado se caracterisava mais ainda pela im- possibilidade de conciliar o somno; Em 1916, num idên- tico momento, em que o rheumatismo o tolhia de dores, os Drs. Julio Xavier e José Luiz Guimarães percebe- ram o desenvolvimento de um tumor pulsátil, que se sente acima da furcula do esterno e constataram pela ausculta a existência de sopro no foco aortico, o que os levou a firmar o diagnostico de aneurysma aortico, em- bora a pouca edade do paciente. Estado actual. - O doente é magro, mas tem ex- cellente aspecto e quem o vê vestido não é capaz de suppor que traz tão seria affecção. E' corado, vivo e intelligente e dotado de agilidade, que se suppõe in- compatível com o seu estado de saúde. Houve tempo até, quando não estava sob meus cuidados médicos, em que se entregava ao uso do jogo de foot-ball, que, como todos sabem, necessita de grande esforço e pro- voca quasi sempre cansaço considerável. Mas, nessas occasiões a dyspnéa se apresenta e as noites elle as passa com insomnia e dôres no peito e costas. A ascen- ção de escada já o fatiga nestes últimos tempos, como teuho frequentemente observado. Tem appetite, não tem tosse, nem suores nem nada que indique affecção pulmonar, como se poderia suppor deante de sua ma- greza e dyspnéa. Tem a altura de 1,55 centimetros e 268 pesa 45 kilos e 500 grammas, vestido com paletot e collete. Exame objectivo. - apparelho circulatório. - A inspecção da zona anterior do thorax e pescoço veri- fica desde logo, mesmo ao espirito menos indagador, a existência de batimentos arteriaes muito accentuados, em ambos os lados, de abaixamento e desvio para fora do ictus cordis, pois que se acha então entre a linha mamillar e a axillar anterior e no 6.° espaço intercostal, e a presença de um tumor do tamanho de um ovo de gallinha, pulsátil, acima da furcula esternal e bem saliente entre os dous feixes esternaes dos musculos sterno-cleido-mastoideus. O facto desse tumor salientar- se, acima do furcula do esterno é indicativo de que a séde do aneurysma occupa a parte supero-convexo do arco aortico. A applicação da mão na area precordial nada aprecia de anomalo, sentindo apenas a forte im- pulsão com que é projectada contra as costellas a ponta do coração, que se acha desviada da sua séde normal, indicando grande hypertrophia do ventriculo esquerdo. Mas, quem applicar sobre o tumor pulsátil as extremi- dades digitaes percebe claramente manifesta, e tão cla- ramente que serve para exemplo clássico, a alumnos e médicos que nunca a tenham apreciado, a existência do thriTl - dessa sensação que se compara habitualmente a um frémito vibratório, como si myriades de grãos de chumbo se agitassem sob os dedos do observador e fos- sem levados por uma corrente impetuosa. E' caracte- ristico esse phenomeno da existência do aneurysma, e na phrase de Bermont (13) é "um phenomeno de aus- cultação percebido pelo tacto". Esse thrill é constante, não se modifica com a respiração, nem com esforço que o doente emprega. Nota-se a expansão do tumor perfeitamente nitida, indicando a sua intima relação (13) Cit. in E. Boln«t, Anévrysmes de l'aorte. Traité de medé- cine de Brouardel. et Gilbert. 269 com a corrente sanguínea, de que o facto do thrill já denuncia. A percussão no caso não tem o mesmo valor que naquelles em que a affecção é latente, em que não ha batimentos, nem existe tumor apreciável á vista e perceptivel á apalpação. Mas, ella denota em J. R. a existência da macicez na zona preaortica, além da que se observa percutindo o tumor pulsátil. Posteriormente a percussão foi negativa, mesmo porque ella dá resul- tado nos casos de aneurysma da aorta thoracica des- cendente, se denunciando por zona de macicez, que chega, ás vezes, a se confundir com a nota que se obtem quando existe pleuriz com derrame - facto de que dão noticia Potain e Huchard. A auscultação percebe no foco mitral a existência dos dous ruídos cardíacos normaes, senão um pouco mais fortes que quando o indivíduo é são. Nada no foco pulmonar. Mas, no foco aortico percebe-se a existência de dous sopros - um systolico, rude, aneurysmal, pois que nasce sobre o tumor - e outro diastolico, franca- mente diastolico, que substitue totalmente a 2.a bulha, apículado e se propagando para o appendice xyphoide onde se o ouve bem claro. Esse 2.° sopro é indicativo de insufficiencia aortica concomitante, enunciativo de que a lesão antes de attingir a endarteria se iniciou no endocardio. De sorte que esse doente tem lesão arterial, que no caso é a mais importante, pelo seu desenvolvi- mento progressivo, e lesão cardíaca, incompetência da valvula aortica. Pulso. - Pulsos eguaes em tensão e em tempo. Não ha retardamento no pulso esquerdo sobre o direito, como existe nos dois terços de casos. A tensão arterial é egual a 16, apreciada pelo esphygmomanometro de Potain; não a tirei com o tonometro de Gartner por não o possuir; 77 pulsações por minuto; pulso cheio, (1) Cit. in E. Boinet Anévrysmes de l'aorte. Traité de medécine de Brouardel et Gilbert. 270 dando a principio a sensação do de Corrigan, caracte- ristico da insufficiencia aortica. O traçado, porém, nos demonstra que elle não é assim - como se pôde ver nos que aqui estão, mas onde se nota o gancho proprio do pulso da insufficiencia valvular: Exame radioscopico e radiographia. - No gabi- nete do Hospital de Santa Catharina, de raios X, o Dr. Walter Seng fez, em minha presença, o exame ra- dioscopico, notando-se perfeitamente o volume do sacco nos seus dous movimentos de systole e diástole. Nota-se então que o vaso se acha ampliado de calibre na zona supero-convexa do arco aortico e um tanto na aorta ascendente. 271 A radiographia deixa ver perfeitamente o que o exame clinico apurou. Infelizmente, não é possível apresentar as placas photographicas, que não sahiram muito nítidas. O doente nada apresenta nos outros apparelhos, não tem compressão de trachéa nem do esophago, nem dos nervos recurrentes, nem do sympathíco. Não tem mesmo symptomas de compressão. A sua urina, que é abundante, citrina, límpida, não tem albumina nem assacar. Perde 18 grammas de uréa. Aqui está, em sua minúcia, a observação desse doente, que continúa, apparentemente são, a gozar as venturas e desventuras da vida, no meio de sua illusão. Ella demonstra que nem mesmo as creanças são pou- padas pelas terríveis enfermidades, que escolhem os adultos para o seu acommettimento e que, por assim dizer, não ha edades para immunisar, mas indivíduos para soffrer. 272 "Urucubaca" Gríppe ou Dengue? Dengue Reinou ha tempos, de modo epidemico, em S. Paulo, uma entidade mórbida, com caracteres clinicos perfei- tamente definidos e que o povo, na sua ingenuidade e agora, quiçá malignidade, appellidou de "urucubaca", nome que até os proprios clinicos subscreveram. Essa moléstia veiu do interior do Estado; em qua- si todas as localidades appareceu, quasi sempre com caracter benigno, de sorte que não chegou a impressio- nar as auctoridades sanitarias. Em Ribeirão Preto, em Jahú, em S. Carlos, em Campinas ella se mostrou e gras- sou por muito tempo, sem, comtudo, motivar accres- cimo na mortalidade. E' por este motivo que nada se soube ainda, de certo e positivo, sobre a natureza dessa doença. Como já tenhamos tido, com o "alastrim", um exemplo, que ficou registrado, do erro da acção sanita- ria, considerando-o manifestação differente da variola, c só mais tarde aconselhando a vaccinação anti-vario- lica, é natural que não se tenha o Serviço Sani- 273 tario manifestado sobre a maneira por que se deve con- siderar esse morbus. Foi a "grippe" como pensou gran- de numero de clinicos? Foi o "dengue" como julgaram outros tantos? Foi uma moléstia nova, importada do extrangeiro, como quizeram mais outros? E' o que vou ver daqui a pouco. Antes mostrarei como se revela cli- nicamente a infecção - porque ella o é, tudo indicando que o seja - procurando traçar-lhe o quadro morbido, do melhor modo possivel. Vi innumeros casos e me sinto auctorizado e capaz de descrever como se apre- senta a moléstia, desenhando a sua physionomia clinica. Quero porém, desde já, assignalar um facto que não tem, eom certeza, passado desapercebido aos collegas, que labutam, como eu, na vida de medico. E' que todas as moléstias agudas, que então iniciam seu circulo morbido com febre e cephalalgia, são rotuladas com o titulo de urucubaca, rotulo a que não fogem mesmo clinicos de renome. Isto que se deu nesse momento com essa doença, dá-se sempre com as outras infecções, quando em incursões epidemicas. No Rio de Janeiro no tempo em que a febre amarella campeava forte, toda pyrexia, por ligeira que fosse, todo embaraço gás- trico, por rápido que se apresentasse, era capitulado de typho icteroide. O mesmo, quando ali appareceu a peste bubonica, em que qualquer bubão, venereo ou não, era motivo de pavor e de crença da existência da ter- rivel infecção. Isto é de regra, mas não se póde deixar correr como cousa sã em matéria de epidemiologia. E' aos médicos que cabe a resistência. E' a elles que con- vém impôr o diagnostico verdadeiro, quando possivel, afastando o erro e fazendo a verdade surgir e sobre- nadar. A opinião publica tem sempre tendencia para o esquisito, para a novidade, motivo pelo qual tudo que se viu, tudo que se observou em S. Paulo nessa occasião era urucubaca. 274 Ella era febre typhoide, ella era grippe, ella era em- baraço gástrico, ella era até o rheumatismo. Tudo foi de embrulho e a nosologia foi se prejudicando e se perturbando. Como se caracteriza clinicamente a "urucubaca"? Varias são as formas clinicas pelas quaes ella se mostra, mas, em qualquer uma delias, dois elementos morbidos são constantes - a febre e a dôr. A febre reveste o typo continuo, com remissão ma- tutina e raramente ascende a 40°; o mais habitualmente o thermometro eleva-se a 39°, 39°,5. Ella não é precedida de calefrios e não se acompanha, no seu declinio, de su- dação. Falo dos casos geraes, porque todos sabem que os organismos se defendem de modo differente e não tem sido raro encontrar o calefrio inicial e a sudação terminal. Mas, o mais frequente é a falta des- ses dois symptomas. A febre, que é o que mais assusta ao doente, dura quasi sempre tres dias, motivo pelo qual alguns também chamam "a urucubaca" de "febre de tres dias". Tsto é, entretanto, um erro, porquanto, em innu- meros casos ella dura seis, sete e mais dias, como sym- ptoma unico do morbus, todos os mais tendo cedido, desapparecido. Eu já vi um moço em que o ther- mometro marcou elevação de temperatura durante oito dias, sem que mais nada houvesse que indicasse a exis- tência de moléstia. Geralmente, no segundo dia, a febre não é tão ele- vada, desce de um grau, descida que se accentua no ter- ceiro, para desapparecer de todo ao quarto dia. E' uma moléstia que, thermometricamente falando, começa com estrepito e ruido para acabar surdamente, lentamente. Ha, como disse, constantemente, remissão matu- tina, mas convém assignalar que o thermometro nun- ca marca abaixo de 37°, pela manhã. E' 37°,5, 37°,4 275 para elevar-se, de novo, durante o dia, ali pelas 13 horas. A dôr varia em sua séde. O mais frequentemente o doente tem dôres em todo o corpo. E' nas pernas, nas costas, no thorax, nos braços e na cabeça. Elle é todo dôr. Este symptoma incommoda-o por demais. Ao lado da febre faz pensar em qualquer doença grave. A cephalalgia é a mais frequente, ella é caracteris- tica da urucubaca. E' uma dôr supra-orbitraria, cons- trictiva, demorada, e que cessa com o aperto da região. E' dôr extracraneana. Não ha sensação de pulsação; é, antes, a sensação de um arroxo, de angustia. Essa dôr é constante e delia todos se queixam e se lamentam. As demais são banaes. A rachialgia vem egualmente, mas mais supportavel que a cephalalgia. Não tem o caracter intenso com que apparece na febre amarella e na variola. As outras localizações são supportaveis, não obs- tante muitas vezes o doente chamar a attenção do me- dico para a dôr nas pernas, nas articulações e nos lombos. Elias cedem, porém, desde logo, com uma pe- quena dose de aspirina ou de salicylato de sodio que me parece ser o remedio de eleição desta doença. E' pelo menos com elle que tenho obtido curas mais rapidas. Mas, ha outra séde da dôr que merece especifica- ção - é o epigastro. A epigastralgia é uma fôrma de dôr que caracteriza ás vezes o quadro morbido. Ha casos em que o doente só tem febre e dôr no epigastro, mas dôr incommoda, dôr que não deixa o individuo alimentar-se, dôr que não cede á medicação analgésica. Eu mesmo tive essa manifestação e posso dizer, por experiencia própria, dessa sensação exquisita e fati- gante. E' uma contracção dolorosa. Nada mais. O que se dá na região supra-orbitaria dá-se no epigas- trico. E' a mesma sensação. Esta epigastralgia dura 2 276 e 3 dias e retira desde logo o appetite. A anorexia a mais absoluta se mostra então, e a lingua se carrega, desde logo, de saburra branca. Essa lingua saburrosa existe também nos outros casos, em que não ha a dôr epigastrica. Não existe, eu pelo menos inda não vi, dôr nos intestinos. O que apparece é, quasi sempre, constipação de ventre. Ahi estão os dois principaes symptomas por que costuma se mostrar a "urucubaca". Mas, ha mais. Frequentemente, em quasi todos os doentes, ha uma erupção, generalizada a todo o tegu- mento cutâneo, com predilecção, porém, para a face e para os membros. Dir-se-ia, em alguns casos, o saram- pão; é a mesma erupção. Em outros, ella é menos con- fluente, mais disseminada. No começo desta epidemia, a erupção era mais habitualmente encontrada. Depois, já não se a observou com tanta facilidade. Mas ainda existiu. A erupção dura também 3 e 4 dias e não raro é pruriginosa. Esse prurido incommoda bastantemente o doente. Vi um em que elle foi tão persistente, nas palmas da mão e nas plantas do pé, que, pelo attricto forte do paciente, houve edema dessas regiões. A's vezes ha placas gran- des como de urticaria, acompanhando-se egualmente de fortes sensações pruriginosas. A erupção, ou desapparece sem descamação ou esta existe, caso que é mais habitual. Todos os doentes que vi com erupção tiveram o periodo descamativo. Estes são os casos mais ligeiros por que usa se apresentar a chamada "urucubaca". Mas ha casos mais sérios. São aquelles em que a syndrome hemorrhagica intervem. Eu já não quero falar das epistaxis, que são communs sobretudo nas creanças. Refiro-me a hemorrhagias mais importantes e mais graves. Vi uma creança, que apresentou a cias- 277 sica symptomatologia da moléstia-febre, cephalalgia, dores no corpo, anorexia, e que, ao lado de epistaxis, teve hematemeses. O caso foi de assustar. Mas, no dia seguinte, a uma simples medicação pelo chio reto de cálcio, tudo cessou, inclusive a febre e as dôres espa- lhadas pelo corpo inteiro. A symptomatologia, como se vê, foi séria na irrupção da moléstia. Dir-se-ia que ella ia ser grave e pôr em risco a vida do doente, quando tudo serenou e, ao cabo de tres dias, a convalescença era franca. Um collega, dos mais distinctos e conscienciosos, narrou-me ter visto um doente, com a mesma scena mórbida de sempre, em que repentinamente a suffusão hemorrhagica, que acompanhava a erupção, se generali- lizou, se incrementou, sobreveiu estado adynamico, myocardite e o paciente falleceu. Tudo no espaço de 3 dias, e sem symptomatologia maior. De sorte que aquillo, que se mostrava com o caracter benigno, tendo acommettido outras pessoas da casa sem maior gra- vidade, repentinamente levou á sepultura o doente, ata- cado da mesma infecção que os demais. Eis ahi a intercorrencia de uma syndrome grave, que pode produzir, como produziu, a morte dos porta- dores de uma infecção, conhecida como de prognostico levíssimo. Como se vê, não é tanto assim, e todo caso de "urucubaca", mesmo sem phenomenos morbidos mais accentuadamente sérios, deve ser visto com cui- dado, para se evitarem surpresas. Muita vez, também, á phenomenologia simples des- sa moléstia se ajunta a symptomatologia da febre ty- phoide, que então se declara em todo o seu apogeu. E, o que a principio parecia uma banalidade clinica, tor- na-se uma moléstia grave, porque, confesso, a dothienen- teria é das mais graves que pullulam em S. Paulo. Eu mesmo já assiti a doentes dessas condições. Em um caso, desappareceu a "urucubaca", o doente 278 julgou-se curado e são e, no dia seguinte, a febre typhoide manifestou-se, com symptomas assustadores, e por um pouco não liquida com a vida do doente. A "urucubaca" não tem complicações, afóra as que assignalei e que se referem á intercorrencia da syndrome hemorrhagica. Mas, é preciso ainda que se considere um outro facto, para o qual chamo a attenção. Como a grippe, ella deprime muito o individuo, abate bastante suas energias, debilita frequentemente o systema nervoso. Irrompe, então, a neurasthenia, sob todas as suas fôrmas. Demais, frequentemente, e também como a influen- za, sacode com o organismo do doente e expelle para fóra moléstias de que o individuo é portador. Assim os cardiacos, em phase de compensação, entram em asys1- totolia, após o apparecimento da "urucubaca", como os portadores de insufficiencia renal se tornam uremi- cos. Vi, ultimamente, um caso destes últimos em que o doente, depois do acommettimento pela infecção, teve todos os symptomas de uremia e por um pouco não se vae. E' por isto que convém, em todos esses doentes, o exame apurado das urinas, e dos demais orgams, afim de evitar surprezas, o que é sempre desagradavel em clinica. E, ellas, se manifestarão sempre, si o medico não anda avisado e com as lanternas accesas. Eis ahi, rapidamente descripta, a figura clinica dessa entidade mórbida que nos visitou com assidui- dade. Moléstia rapida, bem caracterizada, de evo- lução benigna e prognostico lisongeiro, capaz, porém, de trazer complicações que a sombreiem, ella merece, como se vê, a attenção dos clinicos. Agóra, o que é esta infecção? Grippe, dengue ou moléstia de origem desconhecida? Vou dar minha opi- nião, que de nada valendo, cem o mérito da sinceridade. Demais, falo porque a observei muito. 279 Infelizmente, ella é daquellas infecções em que o exame clinico só é que tem valor e em que o laboratorio não é chamado a falar. O exame do sangue, e dos de- mais liquidos orgânicos, as outras pesquizas, com que o diagnostico costuma se enriquecer nas outras molés- tias, aqui não têm importância e de nada adeantam. E' talvez por isso que, não se tenha ainda chegado a ima conclusão unica e certa e motivo pelo qual as opiniões divergem e não combinam. A epidemia que tivemos á vista não é, absoluta- mente, de grippe. E' esse, pelo menos, meu juizo, que vou justificar do melhor modo possivel. A grippe, todos sabem, tem um caracter polymor- phico accentuado, reveste innumeras manifestações e sua descripção clinica não póde entrar e ficar limitada em um quadro de dimensões acanhadas. Ella invade todos os orgams e apparelhos e se confunde com innu- meras doenças. Mas, ha um elemento que, nella, quasi nunca falha. E' o elemento catarrhal. Nem é por outro motivo que em sua synonomia, se contam tantos nomes em que a attenção a elle é manifesta. Assim é que ella é conhecida por febre catarrhal epidemica, catarrhus a contagio, rheuma epidemicum, catarrho epidemico, bronchite epidemica, catarrho russo, Epidemischer husten. O elemento catarrhal é quasi sempre a nota predominante. O grande mestre, que se chamou Potain, definia a grippe como caracterizada por catarrho das vias digestivas; o eminente professor Dieulafoy en- tendia que ella interessa sobretudo o apparelho respi- ratório, apresentando, ao lado disto, innumeras locali- zações; o velho Audral, cuja opinião é ainda seguida, por ser um chavão em medicina, dizia que ella não é mais do que uma variedade de bronchite; modernos auctores se imbebem ainda nessa lição e consideram-n'a também do mesmo modo, bastando citar Fiessinger, G. André, de Toulouse, Bergé e tantos outros. 280 Assim, é á predominância do catarrho bronchico ou gástrico que os auctores attribuem a phenomenolo- gia da influenza. Ora, nos casos que observei o que justamente faltou foi o elemento catarrhal. As vias respiratórias ficaram indemnes e a tosse não veiu á scena As bronchites não se mostraram e acho que não ha dois médicos que tenham observado doentes dessa moléstia que ahi andou e tenham visto a existência do elemento catarrhal em jogo. Elle não se apresenta em nenhum caso. Agora, é preciso que se diga que ao lado da "urucubaca", existe em São Paulo a grippe, a mesma influenza que aqui reside do modo endemico, acommettendo sempre grande numero de doentes. Mas, a symptomatologia é outra e o diagnostico differencial póde ser feito, á vista, simplesmente, das provas clini- cas. Demais, a erupção qual existe na "urucubaca" é differente daquella que, raramente se mostra na grippe Aqui, a erupção é polymorpha; ella ora se as- semelha á da escarlatina, ora á do sarampão, ora é pityriasiforme, ora lichenoide. Frequentemente, appa- recem vesículas numerosas, muito diminutas, que se tornam purulentas. Mas, o que é preciso se saiba é que esse erythema, tão variado, se acompanha sempre de catarrho das mucosas, das conjunctivas oculares, da pharynge, associando-se frequentemente a phenomenos de ordem nervosa. E' necessário dizer, entretanto, que a erupção é, na gripe, muito raramente encontrada, quando na epidemia que estudo raríssimos são aquelles casos em que se a não encontra. Na "urucubaca" o que a observação me tem apon- tado é o facto do apparecimento da erupção no fim da evolução mórbida. E' quasi constantemente, ao cabo do 3.° dia, que ella intervem. O rubor que a constitue é formado pela reunião de papulas muito pequenas, ás vezes acuminadas. Ao cabo de dois, tres ou quatro dias elle desapparece ou simplesmente, sem haver descama- 281 ção cutanea, ou acompanhada delia, havendo não raro, como disse, grande prurido. O que ha a notar nessa epidemia que analyso é a maneira pela qual o ery- thema se manifesta; é quasi sempre a mesma cousa, os casos são approximadamente muito semelhantes, de modo que se póde affirmar que a erupção reveste um caracter typico. Não é como na influenza, em que múl- tiplo e variado é o aspecto que ella apresenta. Este facto é importante na obra do diagnostico, porque póde levar o medico a formar juizo sobre a doença que elle tem á vista. Uma outra cousa que se tem mostrado e que não tem o mesmo cunho do que se vê na infecção grippal é a séde das dores. Elias se localizam, na mo- léstia que estou observando, mesmo nas articulações, não havendo, embora, nem o rubor nem o edema pró- prios das arthrites. Convém, entretanto, que assignale ter visto um caso em que, ao lado da symptoma- tologia já descripta - febre, cephalalgia supra-orbi- taria, dôres generalisadas, erupção, gastralgia - o doente teve arthrites francamente typicas, com edema das articulações tomadas e que eram o joelho e as phalanges, acompanhado egualmente do rubor. A pri- meira idéa era que se tratava de rheumatismo articular agudo; mas não só a evolução da moléstia repelliu esse juizo, como egualmente a concomitância dos ou- tros symptomas e a rapida cura impunham tratar-se de "urucubaca". Ora, na influenza, comquanto as ar- thralgias possam apparecer, porque todos sabem ser moléstia proteiforme, que apparentar pode todas as outras moléstias, ellas são rarissimas. O que ha fre- quentemente são myalgias, dôres esparsas nos musculos, dôres que parecem muito graves e que contrastam com a relativa benignidade dos demais symptomas. Isto não foi o que se verificou na epidemia de S. Paulo, onde a localização dolorosa é mais articular e onde não se apresentam os phenomenos de deperecimento geral. 282 Por todos estes motivos não posso admittir que a "urucubaca" seja a grippe, que tomasse agora este caracter quasi pandémico, porque raras são as pessoas que não estiverem atacadas do mal. Demais, por que razão nós, que sempre tivemos em S. Paulo a infec- ção grippal, com todas as suas modalidades, tão varia- das, tão differentes, nunca a observamos talqualmente agora, com o mesmo aspecto quasi constante, com sua evolução quasi idêntica, com esse caracter tão brando e tão lisonjeiro? Por que teria havido essa modificação na sua symptomatologia, ella que é moléstia quasi nunca egual a si mesma? Qual teria sido o factor que a teria influenciado para vestir agora sempre as mes- mas roupas e afivelar a mesma mascara, ella que tem normalmente physionomia tão multifaria? Só este raciocinio era o bastante para que se afastasse da tela do diagnostico a grippe e se procurasse vêr qual a enti- dade mórbida que nos visitou, estudando-lhe os cara- cteres clinicos, a sua evolução, afim de se poder fixar a sua especie. Pensam, por isso, alguns outros clinicos que é uma epidemia de dengue a que tivemos á vista. Colloco -me entre estes últimos. No meu modo de entender não pode haver duas opiniões quanto a isto e basta abrir-se qualquer tratado de pathologia exótica e lêr-se a descri- pção do dengue para que essa idéa fique firme no espi- rito. Tudo fala em favor do dengue. Os autores definem essa doença como sendo "uma moléstia aguda, febril, epidemica e contagiosa, cara- cterizada por sua evolução cyclica e cujos symptomas mais notáveis são as dôres articulares e musculares violentas de uma parte e uma erupção polymorpha de outro lado." A descripção que os tratadistas fazem do dengue é a mesma que eu fiz da moléstia paulistana. E' tudo a mesma cousa, não só quanto ao caracter pandémico, 283 como quanto ás manifestações clinicas, á evolução da doença e á extrema benignidade delia. Em 1872 houve nas índias uma epidemia de den- gue e em 7.435 doentes só um falleceu; a mortalidade é de um para mil nos logares que elle invadiu. E' o mesmo o caso de S. Paulo. De mortes só conheço o doente que citei atraz. Ha de dengue uma fórma que os auctores chamam de perniciosa e que mata por edema super-agudo do pulmão ou por hyperpyrexia, mas esta não foi, que eu saiba, observada em São Paulo E' tudo uma cousa só - a descripção dos tra- tados e a que fiz agora da moléstia que se alastrou em S. Paulo - motivo pelo qual o meu espirito não póde deixar de subscrever o diagnostico de dengue para a mencionada moléstia. Como raros são os casos de morte, as autopsias nada podem dizer, motivo pelo qual falha esse ele- mento de confronto, que seria preciosíssimo, do mesmo modo que o microscopio de nada serve por estar ainda ignorada qual a causa exacta do dengue, tudo que se sabe pairando ainda no terreno movediço das hypo- theses. Como se trata de moléstia que acommette quasi todos e de evolução muito rapida, a prophylaxia é nulla, porque não se póde isolar toda gente nem perturbar a vida inteira da cidade. O que é preciso, porém, se saiba é o grande grau de contagiosidade que ella gosa, para que as pessoas sãs evitem o contacto com as doentes e visitas a casas onde existem affectados de "urucubaca". Este nome deve, portanto, desapparecer, que nada ex- prime e os médicos têm o dever de dar o nome certo que a literatura consagrou, chamando a epidemia de S. Paulo de epidemia de dengue. O tratamento que faço é o mais simples possível, repouso no leito, dieta alimentar, purgativo salino no primeiro dia, seguido de poção com salicylato de sodio. 284 Si ha a gastralgia, magnesia fluida com elixir parego- rico. Na convalescença administro sempre um vinho tonico qualquer, agua ingleza ou Quinium Labarraque. Si as dôres são muito fortes e não cedem ao sali- cylato, o que é raro, aconselho a antipyrina e a bel- ladona. Ahi está francamente exposta a minha maneira de vêr no caso presente, pondo de lado a opinião dos que julgam não se tratar de grippe nem de dengue e sim de moléstia nova. Qual é ella? E' o que não sei. Demais, sempre fui infenso a novidades e não pdsso deixar de lado o que já se viu e observou para abraçar idéas phantasticas, quiçá absurdas, que não entram nos moldes scientificos. Póde ser que eu erre, mas o erro com sinceridade é sempre respeitável e merece acatamento. 285 0 **606** na syphílís(I) O 1.® doente em quem appliquei o "606" era do hospital e fil-o por via muscular. Tratava-se de um syphilitico, affectado de rheumatismo e entrevado no leito. No dia seguinte á injecção do medicamento, já tinha movimentos nos membros, e dois dias após conse- guia subir a escada, que vae da enfermaria á Pharma- cia. Curou-se inteiramente, com uma única injecção e sahiu do hospital. Havia anteriormente feito a medica- ção mercurial, sem resultado. O facto foi testemunhado por académicos de medicina e pelos drs. Luiz Hoppe e Vicente Graziano, que conhecem quasi todos os casos que vou referir. Os outros doentes em que pratiquei a injecção intra muscular obtiveram o mesmo resultado. Abandonei, porém, essa maneira de applicar o re- medio, porquanto os trabalhos europeus aconselham a via endovenosa. (1) Este trabalho foi publicado em Dezembro de 1911. Tenho outras observações que farão parte do outro vol. de cl. medica. 287 Mas, tenho dois doentes em que fiz injecção pelas duas vias e que necessitam archivo. 2.° Um, é moço do Bananal, affectado, ha longos annos, pelo mal luético e que uma vez por outra se tem submettido ás injecções mercuriaes. Tem suas pernas como uma chaga viva, ulceras que se estendem ao longo delias até os tornozellos. Grande edemacia, mau estado geral, grande eminagrecimeuto. Fiz-lhe uma primeira injecção intra-muscular e outra endovenosa. O aspecto das ulceras modificou-se, cicatrizaram ellas e o edema desappareceu. Apresentava esse moço grande tumor no ventre, cuja natureza e séde não me foi possível pre- cisar. Após a injecção intra-venosa não consigo mais encontral-o. Desappareceu totalmente e até agora não mais reappareceu. O tratamento foi suspenso por ter seguido para sua cidade, mas sei que vai bem, sem apresentar mais os phenomenos que o haviam obrigado a procurar-me. 3.° O outro, é um sapateiro de Jundiahy, homem intelligente, italiano. Hemiplegia por endarterite sy- philitica. Entra para a minha enfermaria da Santa Casa, sem poder andar. Hemiplegia completa (face, braço e perna). O tratamento mercurial já havia sido feito e as melhoras eram quasi nenhumas. Foram-lhe applicadas varias injecções musculares de salvarsan e a melhoria foi prompta. Começou a andar, levanta o braço á altura da ca- beça, tem movimentos completos nos dedos da mão. Conserva ainda exaggerados os reflexos rotulianos, mas anda bem, muito livremente. Faço-lhe duas injecções endovenosas, que lhe dão o resultado mais lisongeiro. Hoje, comquanto arraste ainda um pouco a perna, não se assemelha o seu estado ao anterior á medicação. Que- ro crer que tudo desapparecerá com a insistência das injecções endovenosas, que nada lhe produzem, a não ser diarrhéa. Com o emprego dessa medicação por mais 288 algumas vezes readquiriu todos os movimentos e hoje é um indivíduo que ganha sua vida por si mesmo. Os demais doentes são: 4.° Um moço que contrahiu, ha pouco tempo, a syphilis, assistindo eu á manifestação primaria e ás secundarias, ao cancro, ás roseolas, ao rheumatismo, á quéda do cabello, á cephalalgia. Fica impossibilitado de trabalhar e sob grande anemia, a anemia syphilitica. Faço-lhe o tratamento mercurial e em seguida uma injecção de "606" intra muscular. Posteriormente outra endovenosa. Hoje julga-se bom, trabalha sem desanimo e nenhum outro phenomeno appareceu. 5.° Uma doente, moça, contrahe a syphilis. En- contro-a com pequenas ulcerações na face interna das coxas, cephalalgia persistente e nocturna, ganglios sub- occipitaes muito desenvolvidos. Após a applicação da primeira injecção intra-muscular, os ganglios desappa- recem e as ulcerações cicatrizam. Não a vi mais; sei, porém, que vae bem, não tendo ainda applicado outra injecção, que será agora intra-venosa. 6.° Outro doente, tem syphilis, provavelmente he- reditária, porque nunca teve manifestações do mal. Ap- parecem-lhe ganglios inguinaes, túrgidos, dolorosos. Faço-lhe uma injecção endovenosa e elles desappare- cem. Esse moço teve perturbações sérias após a injec- ção - rubor do rosto, conjunctivas oculares rubras e em seguida pallidez accentuada - phenomenos incom- modos para si e para a familia, mas que desapparece- ram ao cabo de pouco tempo. 7.° Um italiana, de 30 e poucos annos de edade, contrahe ha 5 annos a syphilis de seu marido. O dr. Moraes Barros conhece esta doente do tempo em que ella frequentava o nosso escriptorio. Todo o quadro do periodo secundário ella o apresentou. Fica- ram-lhe umas ulceras nas pernas, que afinal cicatriza- ram com o emprego longamente feito da medicação 289 mercurial. Largo tempo esteve ella em uso desses me- dicamentos. Agora reappareceram as manifestações, maximé ulcerações nos braços e pernas, maculas e pa- pulas no rosto e thorax. O meu distincto collega, e en- tão sexto-annista Luiz Barbosa, faz-lhe, á minha vista, uma injecção intra muscular de "606", com ampolas de Billon. O resultado foi excellente. As ulcerações cica- trizaram e as outras alterações do tegumento cutâneo desappareceram. Essa mulher é um typo completo da mulher infeccionada. Depois que adquiriu o mal lué- tico concebe regularmente, dá á luz o producto da concepção, que morre sempre ao cabo de 1, 2 e 3 mezes, com phenomenos de moléstia banaes. Eu já tive occa- sião de assistii' a 2 desses casos, francos de heredo-sy- philis. As creanças são, aliás, o que não é raro, bem conformadas e bem dispostas. Actualmente ella está gravida e vamos vêr qual o effeito que o remedio provoca sobre seu filho. Vou-lhe fazer um destes dias a injecção intra-venosa. 8.° Um italiano, que esteve muito tempo na mi- nha enfermaria, entrou hemiplegico, com impossibili- dade absoluta de mover com o braço (lado direito) que estava em contractura. Assim já se achava ha 10 mezes. Faço-lhe duas injecções endovenosas e o resultado é patente e pode ser verificado pelos collegas. Logo de- pois elle põe o braço á altura da cabeça. Pretendo fa- zer ainda mais injecções, que elle supporta bem, sem apresentar nenhum dos accidentes frequentes como con- sequência da injecção. 9.° Em um tabetico, em estado adeantado, egual- mente fiz uma injecção endovenosa. Diz elle que se sente melhor, mais forte e que engordou. 100 Em outro, portador de erythema syphilitico, abrangendo todo o rosto, foram feitas, egualmente, duas injecções endovenosas com o melhor resultado 290 possível, tendo o erythema se localizado ao redor do nariz A primeira injecção foi-lhe, então, de effeito real- mente maravilhoso e a diminuição do rubor, foi gran- de. Essas injecções foram applicadas pelo meu assis- tente dr. Luiz Hoppe. 11.° Um italiano affectado de myelite syphilitica é tratado pelo quintanista Eduardo Monteiro. Faço-lhe uma injecção intramuscular de "606". A melhora foi franca e evidente. Elle, que mal caminhava, que estava com ligeira paraplegia espasmódica, poz-se a andar bem. Mas, co- mo a injecção foi dolorosa não quiz repetil-a, nem mes- mo pela via endovenosa, de sorte que o mal tornou a engravescer. Estou certo de que, si insistisse no trata- mento, o resultado seria efficacissimo, como no caso, que daqui a pouco apresentarei. 12.° O mesmo então doutorando E. Monteiro me traz uma doente em que o diagnostico de syphilis se impunha, portadora de manifestações cutaneas e cri- vada de ganglios engorgitados, maximé os sub-occipi- taes e supra-claviculares. Faço-lhe o tratamento mercurial e em seguida uma injecção endovenosa de salvarsan. Os ganglios desen- gorgitam-se e as manifestações da pelle cedem. Agora, voltam novamente estas, que creio desapparecerão com- pletamente, sob outra injecção, que será brevemente feita. 13.° Um nosso collega contrahe, ha anno e meio, a syphilis e eu o vejo com phenomenos do periodo se- cundário - roseolas, placas mucosas na garganta, ce- phaléa intensa. Faz o tratamento mercurial, não só pela via gastrica como pela hypodermica e endovenosa. Eu mesmo lhe applico algumas injecções de cyanureto de mercúrio por essa ultima via. 291 Tudo desapparece, mas permanece a intensa ce- phaléa nocturna e diurna, que lhe traz grande emma- grecimento e abatimento. Resolve-se afinal a fazer o tratamento de Ehrlich e eu lhe faço uma injecção endo- venosa de 606. Ficou, como por encanto, livre do seu tormento constante e sua saúde recomeçou a florescer. Um mez depois reapparece ligeiramente o peso na cabeça, como annunciando a volta da cephaléa. Applico-lhe nova injecção e o nosso collega e amigo se acha restabelecido inteiramente. Pretendo renovar ainda a injecção. Esse moço tinha albuminúria, que o perseguia ha muito tempo, mas apezar disso fiz a injecção. Reconheceu elle que a albuminúria ora apparece ora desapparece, é orthosthatica e não influiu, de modo algum, sob o tratamento pelo 606. 14.° Um rapaz, empregado no commercio, acom- panha um seu amigo ao meu escriptorio. Esse amigo ia submetter-se á injecção endovenosa de 606, que tanto assusta a população ignorante. Elle tinha dôr de ca- beça, intolerável ha tempos, dois ou tres mezes, reacção de Wassermann positiva, e perturbações oculares; já um collega lhe tinha feito injecção intra-muscular de salvarsan, sem que o resultado fosse aproveitável. Queria ver o que soffria seu amigo para adquirir coragem. Adquiriu-a. pois que dois dias depois volta, com as mãos sobre os olhos, agarrando a cabeça, tão intensa era a dôr que nella sentia. Estava impossibi- litado de trabalhar. Faço no dia seguinte a injecção de 606. endovenosa. Não o vejo mais, quando ha dias, na praça Antonio Prado, o encontro e tenho o prazer de saber que nada mais soffre. Eu tirei-lhe a dôr com a mão, é a sua phrase, que o dr. Graziano também ou- viu. Insisti na necessidade de outra injecção, que elle vae fazer. 292 15 ° Sobre a inocuidade do tratamento quando ha albuminúria, possuo egualmente mais um caso e que foi visto pelos que frequentam a terceira enfermaria de medicina. E' um turco, que apresentava todas as manifesta- ções de syphilis e perdia diariamente grande quanti- dade de albumina pelas urinas. O tratamento mercu- rial não dava resultado. Diagnosticada a nephrite (pois que elle tinha os demais symptomas dessa affecção) como syphilitica aconselhei-o ao uso do 606. Fiz-lhe uma injecção e tenho que communicar o desappareci mento, nos dias subsequentes, desta albuminúria, que era a sua maxima preoccupação. Sei que ella voltou dois ou tres mezes posterior- mente mas não lhe fiz ainda outra injecção, por não me ter procurado - o que vem mais uma vez falar pela necessidade da repetição das injecções, uma só não sendo sufficiente. 16.° Tenho casos mais interessantes. - Assim, recordam-se os meus collegas do doente portador de ulceras intestinaes e que cicatrizaram sob a acção de duas injecções de 606. Fiz-lhe, por desencargo de con- sciência e para assegurar a cura, mais uma, e faz tres mezes que elle se acha totalmente curado e entregue hoje a seus affazeres, de que se achava afastado ha annos. E' um dos mais bellos triumphos da medicação de Ehrlich. 17.° Uma senhora, casada, brasileira, de 37 annos de edade, vem do interior do Estado tratar-se de affec- ção que ha 3 annos a martyrisa. E' nervosa em excesso, mas seus incommodos são de natureza organica. Para- plegia espasmódica, marcha quasi impossível e quando possível espastica, dormência nas pernas e mãos, exag- gero dos reflexos tendinosos, phenomenos de Babinski, ausência de perturbações de sensibilidade, trepidação epileptoide do pé - me levam ao diagnostico de mye- 293 lite. Faço o exame do sangue e a reacção de Wasser- mann é positiva, confirmando o juizo que o exame da doente já me houvera dado. Trata-se, pois, de myelite syphilitica. Faço-lhe o tratamento mercurial e applico-lhe uma injecção intra- muscular de 606. Um mez depois nova injecção intra- muscular. Continuando sempre com o uso da medicação ioduretada e mercurial, observo que os phenomenos não desapparecem. A doente continúa sem poder andar, e cada vez mais abatida. Faço-lhe então uma injecção endovenosa, que repito trinta e dois a trinta e tres dias depois. Desde a primeira, o effeito foi notável. A doente já começou a andar, e com a segunda considera-se cura- da. De facto hoje anda, sobe escadas, a marcha é natu- ral e não tem mais a dormência que tanto a incommo- dava. Toca piano, o que julgava impossivel fazer. Pre- tendo repetir a injecção endovenosa. E' preciso accres- centar que entre as injecções, appliquei-lhe pontas de fogo sobre o rachis. Aqui nesta doente se verifica o effeito do 606 pela via endovenosa contrastando com o mesmo pela via intra-muscular. Esta maneira de appli- car o remedio eu não uso mais, desde que nessa doente observei um facto excessivamente desagradavel. Essas injecções suppuraram, tendo aliás eu me utilizado de soluções esterilizadas, bem como de todo o instrumen- tal. Foi preciso abrir os abcessos, o que fiz com o meu presado collega de S. Carlos, dr. Seraphim Viei- ra, que dá testemunho do resultado da therapeutica de Ehrlich. No fundo da matéria purulenta encontrava-se tecido muscular, denegrido, em estado de completo esphacelo. E o que se deu por um lado, verificou-se do outro. Ambas injecções suppuraram com o mesmo aspe- cto, que é sempre o mesmo quando ellas suppuram. Isto é iucommodo para o medico e mais ainda para o doente. Essa doente é outro successo da therapeutica que agora estudo 294 Tenho outra idêntica, que o dr. Côrte Real conhe- ce, pois foi em sua doente que appliquei o remedio. 18° Mulher que estava entrevada no leito, com paraplegia espasmódica, exaggero dos reflexos tendi- nosos, trepidação epileptoide, phenomeno de Babinski, affectada de myelite syphilitica e sob o uso de medica- ção mercurial e iodurada. Faço-lhe uma injecção de 606 e a doente sahe da Santa Casa marchando por seus proprios pés e hoje está como si nada houvesse tido. 19.° Num moço syphilitico, que apresenta ha tem- po, paresia do véo do paladar, com reacção da Wasser- mann positiva, faço-lhe uma injecção de 606 endove- nosa, não sabendo até hoje qual o resultado. Entretan- to é de esperar que tenha obtido melhoras. 20.° Um homem de 37 annos, mineiro, vem me consultar apresentando phenomenos de tabes incipien- te. Desapparecimento dos reflexos tendinosos, signal de Abbadie e Romberg e dôres fulgurantes. A syphilis se acha bem diagnosticada pelos estigmas que deixou - ganglios epitrochleanos, inguinaes, dôres na tibia e esterno, zoadas nos ouvidos. O doente é um pouco surdo, mostra-se magro e bem abatido. Faço-lhe uma injecção endovenosa de 606 com o melhor resultado. Engordou, sahe á rua, sente-se outro e, embora os phe- nomenos traductores da tabes persistam, seu estado geral é excellente. As dôres fulgurantes não mais vol- taram. Isto ha quasi um mez. A injecção vae ser reno- vada um destes dias. O dr. Bonifácio de Castro, de Espirito Santo do Pinhal, conhece este caso. 210 Um moço me é trazido pelo académico de medicina Enrico Dias, com placas na garganta, gan- glios inguinaes entumecidos, dôres ósseas e maculas na pelle. Dois dias após a primeira injecção endovenosa de salvarsan as placas e os phenomenos traductores da infecção desappareceram. Faço repetir a injecção 295 para persistência do effeito curativo. E' um doente que affirma o exito da medicação de Ehrlich. 22.% 23.° e 24.° Tenho tres doentes ainda em que pratiquei tres injecções de 606, pois que a reacção de Wassermann se mostrou positiva e seus antecedentes syphiliticos se acham evidentes. O seu estado geral ficou excellente e tudo leva a crêr que fiquem inteira- mente restabelecidos do mal hunteriano. 25 ° Um outro moço não tem sido feliz com o em- prego do remedio de Ehrlich. Reacção de Wasserman positiva, signaes claros de infecção syphilitica, estig- mas certos do mal luético, mas as injecções endoveno- sas de "606" tres que já foram feitas, não lhe tiraram o seu maior incommodo, que é a existência continuada de zoada nos ouvidos, dia e noite, que não o deixa trabalhar nem repousar. Espero obtenha resultado com o medicamento, agora que lhe fiz (antes de hontem) a 4.a injecção. 26.° Num individuo, com ulcerações bronchicas ab- solutamente de natureza não tuberculosa, com escarro purulento, fétido e sanguinolento, com presença degan- glios epitrochleanos e inguinaes, dôres na tibia, noct ur- nas, ulceras no pé, grande emmagrecimento, pratiquei ha 4 dias a injecção de Salvarsan, esperando faça des- apparecer esse estado e lhe restitua a saúde. Eis ahi alguns dos casos, em que pratiquei o trata- mento de Ehrlich. Elle resolveu, sem duvida alguma, o problema da syphilis. Assim o possamos vêr resolvido tão brilhantemente para os dois outros flagellos da humanidade - a tuberculose e o cancro. Concluo, do que tenho visto com isenção de animo e espirito observador: l.% que o "606" póde curar a sy- philis, necessitando porém, seja a injecção repetida por mais de uma vez. 2.° A injecção por via endovenosa deve ser sem- 296 pre a preferida, é indolor, não traz as consequências da suppuração e em nada incommoda o doente. 3.° Dos phenomenos que se lhe seguem observei como frequentes - os vomitos, a cephalalgia, febre, diarrhéa, e sobretudo turgencia do rosto e injecção das conjunctivas oculares, que cedem ao cabo de 15 a 20 minutos. 4.° As ulcerações syphiliticas cicatrizam sob a sua influencia, quer as cutaneas quer as visceraes. 5.° A cephaléa e as nevralgias syphiliticas des- apparecem desde logo, e obedecem á medicação com a maxima presteza. 6.° Das lesões nervosas que mais se curvam ao "606" cumpre-me insistir na paraplegia por myelite syphilitica. Os meus casos são eloquentissimos. 7.° Quero crer que o "606" pode curar a tabes no principio de sua evolução, confirmando a opinião de Si- card, Blach e Camous, que verificaram o facto em doen- tes que datavam de 6 mezes. Em todo caso faz desappa- recer as dôres fulgurantes e melhora o estado geral. 8.° A albuminúria syphilitica não é contra-in- dicação para o seu emprego. 9.° Contra as hemiplegias antigas com esclerose do pyramidal não dá resultado, mas contra a endarte- rit^ syphilitica que as origina e no inicio da affecção o seu resultado é digno de nota. 10.° A contra-indicação unica em face do emprego do "606" parece-me residir na existência de lesões car- diacas e vasculares quando houver certeza absoluta de que não são de natureza syphilitica. Quando a reação de Wassermann fôr positiva, o tratamento deve ser tentado. 11.° Não observei conseauencia alguma ainda funesta com o uso do Salvarsan. 12.° As dóses devem ser massiças, nunca inferio- res a 60 centg. no adulto. 297 ÍNDICE I - Licção inaugural na Faculdade de Medicina de S. Paulo 7 II - O Laboratorio e a Clinica 33 III - Dois casos de amyotrophia typo Charcot Marie 59 IV - Atropina escapulo thoracica como signal pre- coce da tuberculose pulmonar 99 V - Um novo signal da syphilis 129 VI - Contribuição ao estudo das alterações da secreção gastrica na ancylostomiase 141 VII - Syndrome mediastinal (estudo etiologieo) . 163 VIII - Syndrome mediastinal (estudo clinico) 173 IX - Das pulsações abdominaes 193 X - Sobre um caso de leucemia myeloide 207 XI - Um caso de typbose syphilitica (estudo cli- nico) 217 XII - Um caso de typbose syphilitica (estudo ana- tomo-pathologico) 233 XIII - Da tuberculose ganglionar hypertrophiante. . 245 XIV - Um caso de aneurysma da aorta de origem rheumatismal em um menino de 15 annos. . . 259 XV - Urucubaca. Grippe ou Dengue? Dengue.... 273 XVI - O "606" na syphilis 287 299 Qo mesmo autor: 1 ESTUDO SEMEIOTICO DO COMA - Th. inaugural - 1899 II TRATAMENTO DA ARTHRITE BLENORRHAGICA - in Rev. Med. S. Paulo - 1901. III PATHOLOGIA INTERTROPICAI - ANCYLOSTOMOSE ; 1'ORMAÍ CLINICAS E TRATAMENTO - in Gazeta Clinica - 1903. IV MENINGITE E MENINGISMO - Trab. de critica - in Gaz. Clinica - 1903. V SOBRE DOIS CASOS DE SCIA- TICA COM ESCOLIOSE HOMO- LOGA - Com. á Soc. de Med. e Cirurgia de S. Paulo - in Rev. Med. de S. Paulo - 1903. VI UM CASO GRAVE DE DYSEN- TERIA - CURA - in Gaz. Cli- nica - 1904. VII DO EMPREGO DO THYMOL COMO ANTIPARASITARIO 1 - in Gaz. Clinica - 1904. VIII MEDICINA PRATICA - ELE- MENTOS DE DIAGNOSTICO DO COMA - ELEMENTOS DE DIA- GNOSTICO DA ICTERÍCIA PE- LA RETENÇÃO - in Gaz. Cl. - 1905. IX LIÇÕES DE CLINICA PROPE- DÊUTICA DO PROF. FRANCIS- CO DE CASTRO, com prefacio do Prof. Aloysio de Castro - 1 vol. cart. 114 pag. - 1905. X MANEIRA DE COMEÇAR DA TUBERCULOSE - in Gaz. Cli- nica - 1907. XI COM O DR. ALVES DE LIMA - CONTRIBUTION A' L'ÉTUDE DE L'ETIOLOGIE DE L'AI- NHUM -■ in Gaz. Clinica - 1905. XII ESTUDO SOBRE A PHYSIOLO- GIA E PATHOLOGIA DAS GLANDULAS DE SECREÇÃO INTERNA - 1 vol. com 134 pag. - 1910. XIII VALOR DOS NOVOS METHO- DOS E PROCESSOS DE DIA- GNOSTICO EM CLINICA ME- DICA - Trabalho apresentado * á livre docência perante a Fa- culdade de Medicina do Rio de Janeiro - 1 vol. de 101 pgs. - 1912. TRABALHOS DE HYGIENE : XIV A FEBRE TYPHOIDE EM S. PAULO (MOTIVO DE SEU DE- CREÇCIMENTO) - in. Gaz. Cli- nica - 1904. XV AS MOLÉSTIAS INFECTUOSAS E A HYGIENE EM S. PAULO - Com. apresentada ao 3.° Con- gresso Scientifico Latino-Ameri- cano - 1905. XVI O CÂNCER EM S. PAULO - in Gazeta Clinica - 1905 e Rev. de Medicina do Rio - 1906. XVII M ALARIA EM S. PAULO - in Annuario Demographico de 1907 e Gazeta Clinica - 1908. XVIII DE COMO SE DEVE COMBA- TER O ALCOOLISMO - Com. a Sociedade de Medicina de S. Paulo - Gaz. Clin. - 1912. DISCURSOS - CONFERENCIAS SCIENTIFICAS: XIX DO USO E ABUSO DO FUMO - Conferencia na Associação Chris- tã de Moços - in "Correio Pau- listano", 3 de Fevereiro de 1903. XX ABASTECIMENTO D'AGUA DE S. PAULO - Discurso proferido na Sociedade de Med. e Cirurgia de S. Paulo, 1906 - in Gazeta Clinica. XXI O CONTINGENTE BRASILEIRO NO PROGRESSO DA MEDICINA - Conf. realizada no Centro Os- waldo Cruz, da Fac. de Med. e Cir. de S. Paulo, em 1916. XXII A MEDICAÇÃO DE BRLIOH NA THERAPEUTICA DA SY PUILIS - Idem - 1916. XXIII PERFIS E LUCTAS - 1 vol. de 110 paginas. EM PREPARO: TRATADO DE SEME1OTICA DO APPA- RELHO CIRCULATÓRIO, em collaboração com o Dr. Eduardo Monteiro, assistente voluntário da Faculdade de Medicina. AS SYNDROMES CIRCULATÓRIAS - Idem, idem.