FACULDADE DE MEDICINADA BAHIA apresentada, á faculdade de^meeictna da bahja EM 31 DE OUTUBRO DE 1906 POR fflansel hydi® Depeipa BpaRG© / Natural do Estado da Bahia DIPLOMADO EM PHARMACIA EM 1903 PELA WESMA FACU-LDADF WW DE OBTER 0 OW DE D o 1i1 o r em AI e d i c i i lj i ' ' • : : 5HG -- - * DISSERTAÇÃO Breves Ceów ferea de lafe SMegá» do Sonho (cadeira de clinica PSYCJHIATRICA E DE MOLÉSTIAS NERVOSAS) PROPOSIÇÕES Vo Tres sobre cada uma das "cadeiras do curso de Sciencias Medico-Cirurgicas J. BAPTISTA DE OLIVEIRA COSTA OFFICIXA TYPOGRAPHICA,GRADES DE FÉRRO-73 BAHIA .1906 FACULDADE DE MEDICINADA BAHIA . TB1S1 APRESENTADA Á FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA EM 31 DE OUTUBRO DE 1906 POR fRonoel Lvdio Pereira Prans© Natural do Estado da Bahia DIPLOMADO EM PHARMACIA EM 1903 PELA MESMA FACULDADE AW DE OBTER 0 GRRU DE Doutor em Medicina DISSERTAÇÃO Breves Considerações áccrca do Valor Semciologico do Sonho (cadeira de clinica PSVCHIATRICA E DE MOLÉSTIAS NERVOSAS) PROPOSIÇÕES T::s sobrecada uma das cadeiras do curso de 3cicias Medico-Cirurgicas J. BAPTISTA DE OLIVEIRA COSTA OFFICINA TYPOGRAPHICA, GRADES DE FERRO-73 BAHIA 1906 FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA Director.-Dr. Alfredo Britto Vice-director.- Dr. Manoel José de Araújo Secretario.- Dr. Menandro dos Reis Meirelles Sub-secretario.-Dr. Malheus Vaz de Oliveira Lentes Cathedraticos OS SNRS. DRS. MATÉRIA QUE LECCIONAM: PRIMEIRA SECÇÀO J. Carneiro de Campos . . . Anatomia desciiptiva Carlos Freitas . , . . , » medico-cirúrgica SEGUNDA SECÇÃO Antonio Pacifico Peieira . . . Histologia Augusto C. Vi anu a . . . . Bacteriologia Guilherme Peieira Rebello . . ' Anatomia e. Physiologia pathologicas TERCEIRA SECÇÃO Manuel José de Araújo . . . Physiologia José Eduardo Freire de C- Pilho . . Therapeutica QUARTA SECÇÀO Josino Correia Cotias . . . Medicina Legal e Toxicologia Luiz Anselmo da Fonseca . , Hygiene QUIN IA SECÇÀO Braz Hermeuegildo do Amaral . . Pathologia cirúrgica Fortunato Augusto da Silva Júnior . Operações e apparelhos Antonio Pacheco Mendes . . . Clinica cirúrgica, H cadeira Ignacio Monteiro de A. Gouveia . . » » 2ai » SEXTA SECÇÀO Aurélio R. Vianna .... Pathologia medica Alfredo Britto ..... Clinica propedêutica Anísio Circundes de Carvalho . . » medica cadeira Francisco Braulio Peieira ... » » 2a » SEPTIMA SECÇÀO Josv Rodrigues da Costa Dorea . . Historia natural medica A. Victorio de Araújo balcão . . . Matéria medica pharmacologia e arte de formular Josè Olympio de Azevedo . , . Chimica medica OITAVA SECÇÀO Deoclecia.no Ramos .... Obstetrícia Climerio Cardoso de Oliveira . . Clinica obstétrica e gynecologica NONA SECÇÀO Frederico de Castro Rebello . . Clinica pediátrica DECIMA SECÇÀO Francisco dos Santos Pereira . . Clinica ophtalmologlca DECIMA PRIMEIRA SECÇÀO Alexandre E. de Castro Cerqueira . Clinica dermathologlca esyphiligraph. DECIMA SECUNDA SECÇÀO J. Tillemont Fontes .... Clinica psychiatrica e de moléstias nervosas João K. de Castro Cerqueira Sebastião Cardoso .... Em disponibilidade Ia Secção José Affonso de Carvalho 2a » Gonçalo M. S, de Aragão 3a » Pedro Luiz Celestino 4a » 5a » Antonio Baptista dos Anjos 6a » João A. Garcez Fróes Lentes Substitutos-Os llbns. Snrs. Drs. 7a Secção Pedro da L. Carrascosa 8a » José Adeodato de Souza 9a » Alfredo P. de Magalhães 10a » Clodoaldo de Andrade 11a» . . . . . . 12a » Luiz Pinto de Carvalho N.B.- A Faculdade, de conformidade com o Art. 65 do Regulamento de 1901 não approva nem reprova as opiniões exaradas nas theses por seus autores. AO LEITOR O titulo do ponto, que hemos escolhido para o thema da dissertação que submettemos á apreciação da douta assembléa da Faculdade de Medicina da Bahia, dá idéa bem exacta do fim a que nos propomos com o presente trabalho inaugural. Que não se pt ocurem, pois, nestas linhas - o estudo do mecanismo, e a estructura intima do sonho normal ou pathologico-nem também se considere esta «These» como exclusivamente oriunda do nosso intellecto, por isso que temos consultado a diversos auctores sobre o assumpto. DISSERTAÇÃO DO VALOR SEMEIOLOGICO DO SOM O medico sem caridade é o mais pungente epi- gramma da civilisação hodierna; sua vida é unia lucta empenhada entre as misérias do homem e os thesou- ros da caridade. A cada grito de dôr deve corresponder uma voz de soccorro, a cada lagrima de desespero, uma palavra de consolação!... PR0kEG0ME^0'S O medico nem sempre tem elementos bastantes que o auxiliem no diagnostico, por vezes delicado e diincil; ordinariamente não dispõe de symptomas precursores que lhe permittam um prognostico exacto, muito principalmente quando se trata de certas aifecções graves. Ora, muita vez tem-se falado do sonho como fornecedor de preciosos elementos, quer para o diagnostico tão somente, quer mesmo para o pró- gno-stico; entretanto, porém, ninguém se recorda dos sonhos, para lhes aproveitar alguns dados de importância. Em geral o medico acha muito natural tomar o pulso e a temperatura ou mandar mostrar a lingua, e as mais das vezes descuida se de tudo o que não é estado puramente somático no doente, não levando em consideração o seu estado psychologico. 6 O sonho deve, effectivamente, ser tão omissi- vel sob o ponto de vista medico, ou os médicos têm aggravo âe recuar deante de uma deshonra para sua dignidade, desprezando desse modo um manancial tão precioso de elementos? De facto, não se pode falar, vel-o-hemos, de inexactidão absoluta neste dominio. Quantos symptomas indicados para os diagnós- ticos ha por ahi que são e permanecem vagos, irresolutos e vacillantes, e quantos ha que não se apresentam d'outro modo senão caprichosos, sem caracter de firmeza verdadeira e de constância? Não se pode, reconhecemol-o, todavia, considerar o sonho um elemento definitivo, nem necessário talvez, nem, principalmente, bastante. Pode, porém, o sonho dar indicações uteis, fornecer mesmo dados taes que outros symptomas não os tenham fornecido ainda? Eis dada a questão, e a solução responderá á ess'outra que acabamos de enunciar. Todo este nosso estudo irá demonstrar que o sonho é, e em que medida, um signal e pode sel-o no diagnostico, um symptoma pathologi- co, me^mo um manancial de indicações therapeuticas. Trataremos, pois, da semeiologia do sonho. Antes, porém, faz-se n^ister saber até que ponto esta se- meiologia é possível. Isso tem sido muitas vezes 7 alvo de acurado estudo da parte de auctores que se têm occupado da questão. Dividem-se geralmente os sonhos em diversas classes, segundo a sua origem, que póde ser me- ramente psychica, residir na associação das idéas; ou que, ao contrário, póde nascer de uma excitação sensorial, exterior, ou mesmo, e eis o que nos in- teressa, proceder de uma impressão interna, e organica. Sem negar, como o Dr. Tissié, que tem exagge- rado muito, os sonhos de origem psychica, deve-se reconhecer que ha sonhos suscitados, não só por excitações . sensoriaes, mas também por impressões organicas. Não se pode considerar o indivíduo que dorme, conforme se o tem feito alguma vez, como absolutamente destituído de sensações, como separado de alguma sorte, não sómente do mundo exterior, mas ainda do seu proprio corpo. Não se acreditou muito tempo que a alma deixava o corpo durante sO somno? Não ha, não existe esta ruptura das vias conductoras, que parecem implicar as theorias do somno, baseadas sobre a histologia. E mesmo, se é verdade que as sensações exte- riores são, pelo menos, bastante diminuídas quando se dorme, e que ha um isolamento relativo do indi- víduo em face do mundo exterior, parece, ao con- 8 trario, que as relações da consciência do homem com o estado de seu organismo, são mais intimas que durante o dia; como que ha uma especie de oscillação que se produz, e as sensações internas se i desenvolvem á Custa das sensações periphericas. E tem-se até considerado a conscienria de quem dorme, como uma consciência propriamente coenesthe- sica. E' preciso não exaggerar; o innegavel, porém, é que realmente ■ sensações organicas, de intensidade menor que durante a vigília, são percebidas com uma perspicuidade e delicadeza muitíssimo mais consideráveis. Disso tem-se podido fazer a experiencia, • particularmeftte para tudo quanto diz respeito ás perturbações mais ou menos ligeiras das vias diges- tivas. Em sendo assim, pode-se deduzir de alguma sorte, á priori, que, no caso em que sobrevier uma perturbação somatica, fraca ainda, inteiramente desper- cebida durante a vigUia, em que o homem se acha distrahido por preoccupações de mil especies, essa perturbação se manifestará logo durante o somno, então que a consciência permanece de alguma sorte vis-á-vis ao estado de seu organismo inteiro. A apparição desta sensação, que dará, por certo, origem a um sonho, servirá pois, si se a *■ conhecer .e souber interpretar, de poderoso auxilio 9 ao prognostico dessa perturbação, para o caso pro- vável em que ella se desenvolver. Como, porém, reconhecer esse sonho, ao lado de tantissimos outros em que não intervem esse pre- sentimento somático? Pois bem; este sonho é em geral bem caracte- ristico; vel-o-hemos no correr da nossa dissertação, onde, opportunamente, ficar esclarecida a importância diagnostica; desde já, podemos attribuir-lhe um caracter geral. Os sonhos, que se desenrolam segundo as leis da associação, como acontece na mór parte dos casos, se succedem mais ou menos rápidos, mas com a apparencia clara de uma grande espontanei- dade; elles se desdobram facilmente; quando porém, o sonho persiste, impõe-se e dá essa sensação de tenaz monotonia cuja intensidade, exaggero mesmo, apparece no pesadelo propriamente dito, é que ha ahi outra cousa que não um phenomeno psychologico ordinário: é necessário que haja nesse sonho um substratum persistente, que não passa de uma sensação organica, por isso que a sensação exterior geralmente se mantém durante certo lapso de tempo com uma intensidade bastante. E é nessa classe que entram os sonhos se- meiologicos. 10 Assim, pois, a psychologia do sonho ensina-nos que essa especie de sonho é possivel e mesmo provável. Dadas estas circumstancias, não temos necessidade de chamar em nosso auxilio as aucto- ridades na matéria, se bem que numerosas, e que assignalaremos de passagem. Depois de Hippocrates, que a todos os sonhos attri- buia um valor medico, Galeno começou a distinguir claramente os sonhos susceptiveis de possuir esse valor; e as idéas dos dois eminentes sábios, quasi senão as mesmas neste assumpto, foram seguidas du/ante muito tempo, sem mais nem menos. Mencionemos o seguinte trecho de Durand: «Tem-nos mostrado a experiencia que todos os estudos psychicos capazes de dar origem a modificações somaticas determinadas, pódem por sua vez ser o resul- tado dessas mesmas modificações, quando ellas são primiti- vas. E' uma verdade esta sempre reconhecida. Particular- mente accusada nos phenomenos do somno, foi ella tomada por base do systema de diagnostico pelos sonhos, seguindo por uma das escolas da antiguidade, a de Crido». Moreau de la Sarthe declara que «quanto mais se reverberar sobre os sonhos considerados debaixo do ponto de vista semeiotico, tanto mais haverá occasiões de applicar-se-lhes as observações já por nós apresentadas, ácerca da relação que existe 11 entre o assumpto de muitos sonhos e a impressão interior, a affecção organica, que delles tem sido a causa occasional. Essas relações, verdadeiramente cu- riosas e instructivas, ás quaes importa conhecer, tem-nos feito comprehender o modo por que certas percepções, apparentemente illusorias, que sobrevêm durante os sonhos, eram verdadeiras em si próprias, ou, pelo menos, não eram mais que a expressão exaggerada de uma sensação real... Todos esses sonhos serão facilmente interpretados pelo medico, quando estiver já familiarisado com os menores detalhes da pratica, "muito principalmente se elle, nesta parte profunda e delicada destes estudos, empregar os dados de uma psychologia sã, e os hábitos do espirito pliilosophico.» Analysados acurada e iacionalmente estes dois trechos, vamos agora ceder a palavra aos differeutes autores, sendo que, em primeiro logar, faremos uma curta apreciação purameiite histórica, a proposito da evolução da importância dada ao sonho na medicina; e em seguida estudaremos o sonho a par de alguns ramos da pathologia; primeiramente a pathologia geral, depois a pathologia nervosa, na qual figurarão os estados de psychasthenia e de degenerescencia. RIS-TORICO Muito particularmente á concepção da impor- tância semeiologica do sonho sob o ponto de vista historico, vae referir-se esta parte do nosso trabalho. Nas primeiras escolas da Grécia, occupava o sonho um logar, no diagnostico, um logar mesmo capital. Foram os Pythagoricos os primeiros a relatar as praticas de advinhação onirologica no Egypto, e os primeiros também que delias fizeram uso e appli- cação medica. « Os espíritos que voltejam pelo ar, os demonios e os heroes dão, aos homens, sonhos que fornecem os signaes da moléstia e da cura, embora sejam indispensáveis explicações e purificações para inter- pretal-os »-diz Diogenes Laerte. Toda a escola de Cnido, que tinha raizes de origem egypcia, attribuio aos sonhos maior ou menor importância semeiologica. Ora, é a ella que se refere Ilippocrates.Este venerando sabio déra ao valor semeio- 14 logico do sonho uma importância tal que jamais lhe fôra attribuida, e nem o será provavelmente nunca. Dá a todos os sonhos, pouco mais ou menos, o papel de advertir o medico sobre o estado de saude dos homens, e isso o obrigou a estabelecer uma especie de chave semeiologica, baseando-se apenas sobre coustrucções phantasticas de sua ima- ginação, ao envez de factos precisos, permanecendo, dest'arte, tudo no mesmo e immutavel obscurantismo. Por isso, nada ha quasi a tirar, nada a recolher de importante e solido. E' sempre sobre analogias que se firma Hippocra- tes, á guisa dos advinhos, e quanto ao restante, é uma especie de advinhação analoga á outra, e cuja legi- timidade o proprio sabio reconhece. E' desse modo, que grande parte do seu livro Des songes é consa- grado aos astros, o que lembra a influencia, n'aquella epoea, da astrologia sobre as advinhações especial- mente sobre a onirologia. Dessas analogias muitas ha que podem ser verosímeis. Desta maneira é que « as fontes e poços denotam alguma cousa para o lado da bexiga; far-se-lia, pois, o emprego dos diuréticos; o negror do mar presagia moléstia intestinal.» A ex- plicação que dá a respeito de sonhos com os mortos é muito bizarra: « Ver mortos puros e trajados de branco é de bom agouro, do mesmo modo que 15 receber delles alguma cousa de puro, porque isso indica a saude do corpo e a salubridade do que nelle é introduzido. De facto, dos mortos é que vêm os alimentos e as sementes, e que isso entre puro, é indicio de saude.» Galeno, seu discípulo, não fez mais que repetil-o; a exemplo do mestre, escreveu um trabalho sobre diagnostico, onde de- clara que os sonhos nos revelam o estado de saude do corpo, e accrescenta que o sonho de incêndios presagia perturbações ictéricas; o de nevoeiros, fu- maça, trevas, annuncia atra-bilis, (melancolia que denominamos humor-negro;} a chuva indica humi- dade do corpo ; sonhar alguém achar-se entre fézes, é signal de humores pútridos e accumulo de matérias excrementicias no seu organismo, etc. E bem a proposito, menciona o auctor alguns exemplos nos quaes tem servido o sonho de ele- mento ao diagnostico e tratamento das enfermidades, havendo mesmo um methodo preferivel; seus exem- plos, porém, todos não são felizes, nem animadores, e a generalisação de um facto pode trazer deplo- ráveis enganos. Não poremos entre os sonhos semeiologicos, os dos adeptos da medicina advinha, praticada nos templos de incubação, onde os deuses» senão também os padres, mas de ordinário o espirito dos proprios consultores, suggeriam, nos sonhos, pa- 16 receres e medicamentos. Não poremos ainda no rol dos sonhos semeiologicos, os dos incautos, que, suggestionados sem duvida á primeira nova da chegada de um espirito mandado do céu, se deixam arrastar para o cumulo da exploração e vergonha da medicina, como aconteceu ultimamente, nesta capital, quando esteve entre nós o afamado professor Faustino. A opi- nião magistral de Sprengel é que « tem-se julgado que Hippocrates houvera lançado mão dos canhenhos votivos que se achavam nesses templos para esta- belecer esta matéria medica. Desses livrinhos existem mui poucos exemplares : uns mostram curas appa- rentemente milagrosas e em outros constam remedios revelados em sonhos e que debellaram o mal. Assim, também o sangue de gallo branco, de mistura com o mel de abelhas, curou em tres dias a um cégo, por fricções repetidas; escarros de sangue cederam á absorpção de sementes de pinhas, egualmente misturadas com mel ; uma applicação tópica de cinzas de mistura com vinho, combateu com efficacia a uma pleuresia.» Vejamos como têm um certo valor semeiologico, alguns sonhos narrados por Artemidoro, á guiza de avisos celestes e que também occorreram nos templos da antiguidade: « Um indivíduo sonhara que, no templo de Serapis, recebia de um inimigo um golpe de espada no 17 ventre, e que disso morria. O mesmo indivíduo tres dias após submettia-se á incisão de um abcesso' que lhe sobreveio no baixo ventre.» Se a predicção não foi exacta, pode-se, pelo menos, reco- nhecer a influencia das sensações organicas surdas e tornadas incógnitas na vigilía sobre a natureza e direcção do sonho. E' sempre um tumor, 11a maioria dos casos, o que dá mais presagios dessa ordem, e de egual modo, as anginas. Ainda Artemidoro obser- vou o caso dum indivíduo que sonhou levar em torno do pescoço á maneira de fita, uma lamina de metal onde via gravado o nome de Serapis; tempo algum depois, foi acommettido de uma angina, fal- lecendo sete dias após. O sangue, elemento que encontraremos como quasi effectivamente frequente no correr da nossa dissertação, serve de base ou thema á seguinte observação ainda feita por Arte- midoro: Trata-se de um indivíduo que, em sonhos, vira transformar-se em sangue o rio Xantho, e que succumbiu pouco depois, em consequência de hemor- rhagia cerebral. Se abandonarmos á parte a antiguidade, vemos que esta pesquiza da semeiologia dó sonho não foi transmittida ás épocas intermediárias como um legado sacro, como o são e têm sido outras muitas opiniões não poucas vezes menos racionaes, prudentes e menos 18 justas até. Ninguém mais occupou-se desse estudo e os médicos da edade medieval, com mui bem poucas excepções, lançaram nas trevas do esqueci- mento tudo quanto dissera a respeito Hippocrates. Nos tempos modernos, a questão, porém, passou novamente a occupar a attenção dos autores, e Zuckert fez da importância medica do sonho o alvo de longos annos de trabalho. Depois de algumas palavras de historico, onde lamenta o desprezo dado pela medicina medieval aos conselhos de Hippocrates, Zuckert faz a dis- tincção entre os sonhos psychologicos naturaes e os sonhos de origem corporal ou pathognomonica e faz menção das interpretações de Hippocrates e Galeno. A respeito do prognostico, menciona os factos já citados de previsão divina, narra os sonhos cele- bres de Villeneuve e Gessner e uma observação de Bautzmann acerca de uma hysterica, e faz larga apreciação sobre o olvido indevido em que puzeram a semeiologia do sonho, aliás digna do medico, ter- minando por censurar esse procedimento. Entretanto, convém não interpretar todo e qual- quer sonho, porque, ocioso é dizel-o, muitíssimos delles ha que não devem sua producção a pertur- bações pathologicas. Os sonhos que não têm causa 19 conhecida podem servir ao prognostico, observando-se á risca os sonhos precedentes e as circumstancias concumitantes. Cada edade, por exemplo, tem seus sonhos costumeiros, os velhos ou timidos sonharão, facilmente com a morte, ou com enfermidades, e assim por diante. Em taes circumstancias, o prognostico é possível, e sem taes precauções, é perigoso. Zuckert bem a proposito narra um caso de engano, observado por Galeno. Em 1806, Double fez na imprensa muitas considerações semeioticas ácerca dos sonhos. De accordo com as suas apreciações, não adviria inconveniente algum ao clinico em conhecer a onirocricia medica e a semeiologia, sendo que isso importaria melhor que cultivar a que consiste em saber o passado, o presente e o futuro. Referin- do-se á historia da questão, o auctor deprecia o tratado de sonhos de Hippocrates, considerando-o indigno d'elle, o que, para nós, não passa de ura processo ciitico historico, e peza-lhe que os se- meiologistas não dêm o devido apreço a esta parte da semeiotica. Divide os sonhos em 4 categorias: a) Sonhos que dependem da reacção do orgam pensante sobre si mesmo; b) Sonhos que dependem da acSão das sensações exteriores; 20 c) Sonhos que dependem da associação das idéas; d) Sonhos que dependem da acção das sensações internas e das funcções animaes. São estes últimos unicamente os que possuem um valor semeiologico. Em seguida o auctor faz a distincção dos signaes diagnósticos e prognosticos. Deixando á parte os signaes diagnósticos, menciona apenas os dados, que vamos citar: « Na hydropisia de peito, haverá sonhos mui fatigantes e de suffocação; nas affecções gastricas, manifestam-se quadros aterradores e instáveis que tornam agitado o somno; nas hydropisias e engur- gitamentos serosos do cerebró, os sonhos versarão sobre poços, rios e pantanos; no trabalho da den- tição nas creanças ou mesmo quando ellas te- nham vermes, os sonhos serão acompanhados de sustos e tremores. Os sonhos podem também revelar os temperamentos: desse modo, os sanguíneos sonha- rão de preferencia com a musica, dança, jogos, re- feições, combates, etc.; os phleugmaticos terão fre- quentemente sonhos de logares húmidos, agua, phantasmas brancos; os melancólicos sonharão com espectros, sombras, solidão, mortes, etc.; os biliosos verão em sonhos assassinatos, iucçndio, corpos negros, etc. «O autor recorre sem duvida a Galeno na mór- parte dessas opitfiões, porque o vimos já anterior- mente, que Galeno dá o fogo e as trevas para o bilioso 21 e a chuva com humidade para aquelles em que pre- domina a pituita. Vem muito a proposito esta passa- gem curiosa de um viajante arabe do século X:«A opi- nião da generalidade dos médicos nesta questão é que os sonhos são engendrados pelos humores fun- damentaes do corpo humano e que cada qual sonha conforme o seu temperamento e a sua força. Aquelles, cujo temperamento é de natureza biliosa, vêm em sonhos, fogos, edifícios ou cidades em chammas, mo- numentos fúnebres, e outros assumptos desse genero; nos pleugmaticos, ao contrario, os sonhos consistem em mares, rios, fontes e poços, ou ondas em que parece, ao sonhador, andar ou pescar; nas pessoas de temperamento melancólico, os sonhos versam sobre tumulos, mortos, gemidos, prantos, circumstancias medonhas, vestes de lucto, cadaveres amortalhados, assumptos fúnebres emfim; e naquelles em que pre- domina o temperamento sanguíneo, os sonhos con" sistem ern flores de perfume embriagante, palacios e bodas, vinhos e licores, dansas e gosos; toda casta de divertimentos, dos quaes uns mais especialmente, scenas extasiadoras, trajes de côres vivas e tudo emfim que se refere á alegria. E' digno de nota que as tradições dos médicos arabes sejam accordes neste ponto. D'ahi deduz-se muito logicamente, como Double 22 que-ou os médicos arabes conheceram a medicina grega, e delia inspiraram-se, ou, o que é mais provável ainda, essas tradições, de origem remota, vindas talvez do Egypto, transmittiram-se tanto ao mundo grego, donde vieram até nós, como tam- bém ao mundo oriental. Voltemos a Double, para analysar os sonhos prognosticos da sua classifica- ção. Pelo motivo de que não se deve sonhar du- rante o periodo profundo que advem ao começo do somno, a existência do sonho nesse período denota um desarranjo na economia geral; e os sonhos relativos a iguarias e bebidas, diz elle, são de bom agouro na convalescença, quando se tem fome e sêde; sendo em geral pouco favoráveis á origem das enfermidades ; os de appetites depravados indicam ordinariamente febres gastricas, biliosas e pútridas; os sonhos alegres são egualinente de bom presagio; os tranquillos constituem um sym- ptoma favoravel no delírio; os tristes e inquietantes são indicio de moléstia de solução difficil; a agitação e o pavor nas febres indicam que a moléstia será de longa duração; dôres violentas em parte determinada do organismo significam em geral, quando o sonho não é devido a uma acção exterior, uma lesão, inflammação ou gangrena da parte. Ora, Double narra dois exemplos bem curiosos: 23 um é o de Gessner, que sonhou ter sido picado por um ophidio, e que mais tarde, foi acçomettido de um anthraz nas iinmediações do local da supposta mordedura; o outro é o de Villeneuve que sonhou ter sido victima de um cão hydrophobo que lhe mordera o pé; ó mesmo não tardou a ter o membro inferior affectado de uma ulcera cancerosa exacta- mente no ponto indicado. Respeitaram-se por muito tempo as opiniões emittidas por Double. Nessa epoca, Choquet ainda que admittisse uma certa influencia semeiologica das sensações sobre os sonhos, todavia aconselhava que não mereciam credito os symptomas equívocos dos sonhos, embora cite a observação de um indivíduo que sonhara ter-lhe um soldado polaco atirado no sterno uma pedra, e que nessa região tivera dias depois apparecido um phleugmão. Faz menção ainda de Stahl, que declara os sonhos de objectos vermelhos e incêndios, como ordinariamente anteriores a uma hemorrhagia, mas elle proprio teve sonhos de egual natureza, antes de uma febre ephemera. «Os hydropicos, diz Haller, vêm lagos e poços,» e Boerhaave achou grande quantidade de serosidade no cerebro de homens que por vezes sonhavam nadando ou se lançando n'agua. 24 Moréau de la Sarthe observa que os escriptores que se têm occupado da semeiotica do sonho, têm demonstrado racionalmente que se faz mister encarar as preoccupações mentaes, a posição do sonhador e as excitações exteriores. «Em geral, diz elle, os sonhos terão tanto mais importância, sob o ponto de vista semeiotico, quanto menos subsistirem em suas causas as futicções de relação.» E assim, é que elle divide os sonhos propriamente ditos: a) Sonhos por irritação geral, febril ou não febril; b) Sonhos que deixam transparecer um estado morbido de differentes vísceras do abdómen e do peito; c) Sonhos que indicam uma indisposição mórbida mais ou menos grave do encephalo. a) Os estados febris são revelados por um somno perturbado, no qual apparecem visões de figuras amea- çadoras, como em um caso que elle observou, ou no qual uma idéa se reproduz e prolonga com uma per- sistência tenaz, fatigante e rebelde, como egualmente em outra observação. Considera que taes sonhos são de importância capital e particular nas convalescenças; indicariam a passagem de uma enfermidade a outra. Nas febres intermittentes, existiria a anciedade convulsiva; antes dos seus períodos cafameniaes, mórmente se são difficeis e irregulares, teriam 25 as mulheres sonhos trágicos, nos quaes predomina- riam o fogo, o sangue, ou a côr vermelha em geral. A.s hemorrhagias dariam logar a sonhos inteira- mente analogos, pois o auctor refere-se ao caso de um medico sujeito a accidentes desse genero, com a distincção unica de que os sonhos appareceram em edade bastante avançada; o assumpto dos sonhos nesse medico era sempre semelhante e versava sobre acções violentas: julgava bater-se em duello com alguém e receber ferimentos, marchar por sobre vulcões, ou precipitar-se sobre abysmos can- dentes. b) Os estados morbidos das vísceras do thorax ou do baixo ventre, cujo desenvolvimento, mesmo o mais fraco, o mais despercebido durante a vigilia, é muito bastante para transformar o somno e tornal-o menos profundo, mais agitado e menos tranquillo, occasionam grande numero de sonhos, aos quaes se dá, não sem motivo, muita impor- tância em semeiotica; a marcha e o thema destes sonhos apresentam as mais das vezes uma relação muito clara com essa origem e com sua causa determinante; para disso ter-se convicção plena, basta lembrar os exemplos que se topam tão commummente nas affecções do coração ou dos grandes vasos, nas affecções agudas ou chroni- 26 cas do peito, nas digestões laboriosas, nas gran- des hyperemias em geral, cujo desenvolvimento é tão constantemente acompanhado de sonhos desas- socegados, que se os póde encarar como symptomas desses differentes estados morbidos. Os sonhos, nessas diversas enfermidades, produzem-se mais ordinaria- mente durante o primeiro somno, circumstancia essa que já constitue um sinistro presagio. Assim, por exemplo, no hydrothorax, os pacientes, apenas adormecidos, têm sonhos os mais penosos, e se julgam collocados em posição as mais perigosas, a ponto de serem inhibidos de poder oppôr um mo- vimento de.defeza ou resistência ao obstáculo que os embaraça, ou ao inimigo que os ameaça. Os sonhos que sobrevêm durante os estados cardio-pathologicos são de ordinário muito curtos e promptamente se- guidos de um despeitar sobresaltado, e ás mais das vezes complicados do temor de uma morte próxima, em tragicas circumstancias. Quando as affecções do orgão cardiaco ainda não são de periodo avançado e quando observadores superficiaes não as suspeitam mesmo, eguaes sonhos, bastariam já para chamar a attenção do medico sobre os primeiros desenvolvimentos; nesses sonhos, tão penosos, quão assustadores, vêm-se de repente um concurso e uma successão de circumstancias e scenas 27 diversas, taes como nas imminencias de um pre- cipício, em um logar sombrio, ou debaixo de abobadas estreitas onde não é possível respirar, ou que amea- çam desabar sobre o paciente. Em um tal M... o auctor reconheceu a existência de uma pericardite chronica latente, por meio de sonhos dessa natureza, e faz menção ainda do cará- cter morbido dos sonhos em forma de pesadelo nos embaraços gástricos e nas perturbações intestinaes de toda especie, nos terrores nocturnos das creanças helmínthiasicas, ou nas quaes se está desenvolvendo o trabalho da dentição. Em seguida refere-se a Galeno, proseguindo a narração de outros exemplos clássicos. c) Varias nevroses, accrescenta, que não se tem ainda manifestado durante a vigília mas que se pre- param, que se desenvolvem durante uma especie de incubação lenta, latente e obscura, podem ser des- cobertas, ou pelo menos, grandemente suspeitadas pela existência de sonhos bizarros e extraordinários que dependem desta situação; taes, por exemplo, são a epilepsia, a apoplexia, a vinda periódica dos acccssos de febre, as febres ataxicas, as convulsões nas creanças, emfim, todas as affecçõcs da numerosa e importante classe das nevroses. «Não dá o auctor * detalhadas informações sobre estas differentes enfer- midades. 28 « Varias febres ataxicas e o typho têm sido por vezes precedidos desses sonhos, de alguma sorte pro- pheticos, e que teriam podido deixar reconhecer essas moléstias, n'uma epoca em que ellas não se tinham manifestado ainda senão durante o somno.» Vem a proposito citarmos o sabio Corona, de que faz menção Moreau de la Sarthe dando-lhe dois sonhos idênticos aos de caracteres precedentçmente descriptos com o intervallo de dois annos de um para outro, e imme- diatamente aos quaes succedia um accesso de febre ataxica; costumava sonhar com catastrophes, terre- motos, etc. Finalmente de la Sarthe considera sonhos que constituem uma enfermidade por si mesmos, os phenomenos diversos do somnambulismo. Franck no seu livro de pathologia, diz que os terrores nocturnos das creanças, são muitas vezes precursores de ence- phalite, variola ou sarampo. E accrescenta, relativa- mente aos sonhos máos: «Dans les songes... le sommeil... doiine plus de force au sens universel interne (a coenes- thesia).../ d est à cela que paraissent dévoir se réduire les prévisions et les suggestions qui se présentent dans les songes. Nous sommes en ejfet loin d'ajouter foi aux absur- dités débitées jadis sur ce point.^ . . . Mon ami, Niszkowski, autrefois professeur de chirurgie à V Université de Vilna, la muit avant sa 29 mort qni fut produite par tme rupture au coeur, reva qu'on lui perçait le coeur avec wh couteau.^ Lischwitz opina do mesmo modo: «Les rêves qui roulent sur des objects insolits aunou cent des maladies imminentes. A 1' approche d' une hémorrhagíe critique, les songes rou- lent dit-on, sur des objects rouges, sur des flammes.» Artigues, em sua obra «Essai sur la valeur semeio- logique du rêve,» demonstra não somente que o sonho póde apresentar um valor real sob o ponto de vista dos diagnósticos a estabelecer, como de- monstra também que este estudo não tem sido feito de modo preciso e succinto, havendo, por conseguinte na semeiologia, uma lacuna a preencher. Depois de haver falado da theoria do somno, e declarado que, a circulação, sendo retardada, o despertar de um orgão que soffre activa a circulação e dá ao sonho uma forma e intensidade anormaes, colloca elle os sonhos deste genero no primeiro período do somno ou período hypnagogico e no período do accorda- mento; nunca, porém no período profundo. Por fim, após um historico pouco minucioso, chega Artigues ao estudo dos sonhos morbidos em geral. O auctor encara a imaginação como sendo o microscopio da sensibilidade e denomina sonho morbido «o delirio do homem que dorme»... Alem de exposto, o proposito dos sonhos eroticos, 30 faz menção dos que são devidos a sensação" reaes, taes como a replecção seminal e dos que devem sua causa á imaginação libidinosa dos mastur- badores e divide os sonhos morbidos em: a) Sonhos prognosticos, vindos de sensações exaggeradas; b) Sonhos delirantes, symptomaticos de moléstias. Os sonhos dos alcoolatas são, de ordinário pesadellos, muitas vezes acompanhados, como nos delírios do mesmo genero, da visão de animaes taes como ratos, baratas, grillos, etc.; os sonhos dos loucos parecetn-1he dever ser caracteristicos da forma de moléstia mental; os de pessoas hystericas seriam verdadeiros romances, em que os factos prendem-se uns aos outros, continuando ás vezes de uma noite a outra. A proposito deste facto, faz ver as relações da menstruação com os sonhos que têm o sangue por thema; accessos de asthina seriam precedidos, segundo Macario, de medonhos pesadellos e nas lesões do coração, os sonhos seriam ao mesmo tempo muito curtos e assusta- dores. Nota o auctor os pesadellos da febre typhoide, entre as moléstias febris approximadas affccções do estomago; outras vezes mesmo o pesadello, voltando á hora fixa, revestiria o caracter de um accesso de impaludismo. 31 Relatívamente, porém, a casos de prognostico exacto, ha em sciencia citados apenas dois, sendo um de Macario e outro de Galeno: « Uin antigo ministro da côrte de Luiz Philippe, morreu de apoplexia tres dias após haver sonhado que succumbia desse accidente» e havendo um indivíduo sonhado ter uma perna de pedra, foi accommettido de uma paralysia da mesma perna. Finalmente, Artígues, em um caso de sonho persistente, transformado n'uma abcessão e tendo levado á loucura, hesita entre duas hypotheses possíveis: a que faria do sonho um syrnptoma de um estado morbido e a outra que attribuiría o estado pathologico á influencia do sonho. A' medida os auctores citados endeosam o valor medico do sonho, em 1878, quando doutorando, Gui- lherme Rebello, hoje*emeríto cathedratico da Escola Medica da Bahia, e um dos patriarchas da medicina brazileira, e de opiniões acatadissimas, na sua these inaugural, apezar de, na apreciação que faz sobre o sonho, deixar entrever as conclusões lógicas acerca do valor semeiologico desse phenomeno, considera a semeiologia do sonho-um charlatanismo consignado... Tu duca, tu signorê, tu maestro! s.BRpk Em geral, no que toca aos elementos a haurir dos sonhos, não é abundante o domínio da patho- logia geral; muito poucas indicações ha, e ainda menos factos e observações. As medicinas indiana e chíneza, pretenderam tirar dos sonhos os elementos mais geraes da determinação das affecções geraes, segundo aflirma Larousse, no seu Diccionario. Assim diz o mesmo auctor: «A replecção caidiaca é assignalada por sonhos de phantasmas, ou monstros medonhos, e a inanição do mesmo orgão, por chammas, fogo, etc.; a replecção pulmonar, por combates, soldados, e a inanição, por planicies, mares, viagens difficeis, etc.; a replecção renal, por fadigas intoleráveis, e a inanição, pelo facto de nadar dificilmente, ou afogar-se o paciente; a replecção dos canaes splenicos dos sonhos alegres, de festas, cantos, prazo es, musica; a inanição dá-os de batalhas discus- sões, florestas emaranhadas, montanhas abruptas indicam 34 o estado de teplecção hepatica; a inanição é assignalada pelos de arbustos, arvoredo, etc.» Diemerbroeck cita um caso, em que o sonho presagiou a peste em um de seus clientes: «Um ca- valheiro da companhia de Douglas, á hora do costume recolhera-se ao leito e cerca de meia noite via em sonhos um pestoso, inteiramente nú, que após lucta incarniçada com el1e, vomitara-lhe na bocca... Tres dias depois, fallecia de peste.» Aqui, achamos que se devem fazer algumas reservas, porquanto sendo a peste epidemica de ordinário, (não em parte da Asia) pode preoccupar o espirito de qualquer e occa- sionar-lhe sonhos, independentemente do ataque do mal. E mesmo, se houvesse uma relação entre o so- nho e as moléstias, talvez que elle proprio podesse ser considerado como uma das causas predispondo á enfermidade, de accordo com uma lei conhecida do enfraquecimento pelo medo, em consequência da impressão determinada pelo sonho. Ao lado deste facto, estão muitos outros já ennumerados na parte histórica, sendo que vamos citar mais um interessante, não sob o ponto de vista exclusivamente semeiologico, pórém, que de- tnonstra a influencia das sensações organicas sobre o curso antes, do que sobre a natureza dos sonhos; 35 essas sensações são comparadas ao sonho, e interpretadas assim: «N'uma epoca em que, leitor assiduo de narra- tivas de viagens e aventuras, tinha eu o espirito preoccupado das idéas que ellas evocam, sonhei que me embarcara em uma náo cujo commandante teve commigo violenta discussão durante a viagem. Saltamos n'um bote e nos dirigimos para terra, afim de pormos termo á nossa pendencia. Aportá- ramos a uma ilha deserta, onde começamos o duello. Alvejei e disparei a arma sobre o adversário, que correspondeu com dois tiros, cujos projectis am- bos attingiram-me ao lado esquerdo da fronte. Depois de seis ou oito tiros no mesmo ponto, despertei com violenta nevralgia supra-orbitaria, cuja séde cor- respondia exactamente ao ponto imaginário, e os in- tervallos dolorosos, ao espaço de tempo que me- deiava entre um tiro e outro.» E' o proprio Bali, quem o refere em sua obra «Theorie des hallucinations » Sergueyeff também, cita, na sua de «Physiologie du sommeil et de la veUle* a observação que damos abaixo, e bem interessante. Prova que o sonho pode ser- vir de elemento -prognostico, mesmo com muita ante- cedência. Elle diz respeito á uma affecção ophtal- mica, e convém notemos, é nas perturbações ocu- lares principalmente que os sonhos têm uma im- 36 portancia semeiologica que não padece duvidas. Trata-se de um sabio francez que fez ao Egypto uma excursão, durante cujo percurso, foi acom- mettido de uma conjunctivite. Depois de voltar á patria e ter curado do mal, dez annos passaram-se e uma belia noite o francez sonhou ver o Egypto e diversas das suas localidades, visão que se repro- duzio com alguma frequência. Levou isso algum tempo, e logo se declarou novamente a conjunctivite. Além destes sonhos prognosticos, Hervey de S. Denis menciona muitos outros, dos quaes dois havidos em si proprio: « Na primeira vez sonhou duas noites consecutivas, que ia ter uma angina, o que lhe acon- teceu no terceiro dia; 11a segunda, diz elle: Tenho notado que, desde uma epoca em que estive sujeito a interrnittentes e caprichosas enxaquecas, a appa- rição delias é sempre precedida de sonhos, em que me julgo transpondo montanhas e precipícios com admi- rável facilidade.» Manacéine declara que os sonhos são signaes preciosos, sobretudo nas creanças, e attribue-lhes importante valor semeiologico. « E' um facto real que os sonhos graves e inquietos annunciam de ordinário a chegada de uma enfermidade. Si as creanças gemem, choram durante o somno, si se levantam sobresaltados á noite, e não podem aquietar-se, (são os denominados terrores noctur- 37 nos) tudo isso já indica um desarranjo serio no equilíbrio normal, e se torna necessário recorrer á assistência medica. De egual modo a ausência ou • raridade de sonhos é de máo agouro. Convém não esquecer que o surmenage cerebral de que soffrem em nossa epoca não só as creanças, mas os adultos também, principia por se fazer sentir nos sonhos.» Ao lado de factos isolados, acham se também ensaios de interpretação geral e estabelecimento de certas regras de symptomatologia. Neste assumpto Debacker estabeleceu que os sonhos, as allucinações noctur- nas e os terrores têm uma importância semeiologica, infelizmente mal determinada; podem indicar into- xicação de qualquer natureza, podem ser devidos á quinina, apparecer em consequência de indigestões, helminithiase, constipação, meningites tuberculosas, hydrocephalias chrouicas, etc.,quando não dependerem elles de uma depressão de convalescença, anemia ou onanismo, quando, emfim não forem devidos a causas puramente psychologicas. A persistência do sonho parece-lhe um presagio de demencia, e nelle haveria também signaes precursores de hysteria, epilepsia, taes como o somnambulismo. Para o auctor, os sonhos sobre animaes, podem apparecer hereditariamente (1) (1) Consideramos não deverem entrar aqui os estudos sobre a heredita- riedade do sonho, aliás muito interessantes, e que pode transmittir também caracteres pathologicos. Indicaremos apenas o trabalho de Gianelli uSullt et edita di alcuni fenomini onirici.» 38 nos filhos dos alcoolicos, que viriam ratos, gatos, etc. Etnfim podem existir nas creanças de peito, por intoxicação alcoolica transmittida pela nutriz. Apre- senta ainda o auctor uma observação que demonstra a importância da visão onirica de sangue na menstruação: « Uma moçoila, de 13 annos, come- çou a ter sonhos e allucinações inquietantes a principio durante a noite, e depois em pleno dia. Via ora florestas, e arvores cobertas de sangue, ora indivíduos trajados de vermelho, querendo assassi- nal-a. O desapparecimento desses phenomenos coin- cidio com a apparição do primeiro fluxo catamenial.» E a proposito de menstruação, Nelson chama a attenção para a quantidade enorme de sonhos nas mulheres, durante esse periodo da physiologia femi- nina. Tissié, também, dá algumas indicações acerca dos sonhos de origem circulatória, que tem para elle por caracterisco um , sentimento de medo, e de angustia, acompanhados de scenas especiaes, como incêndios, desastres, etc.; e os de origem res- piratória despertam no homem a sensação de afoga- mento e oppressão; para esta indicação vae uma observação da auctor: «S., 19 annos, pleuresia aguda; sonhos começados a manifestar-se dois dias depois de ser recolhida ao hospital; via-se encerrada em um aposento, sem portas nem janellas, cujas pa- 39 redes se approximavam umas das outras, e o tecto baixava gradualmente ; não podia respirar, tinha frio em todo o corpo, e não podia falar : a voz morria-lhe nos lábios . . . Feita a puncção, resta- beleceu-se a doente, e tudo cessou de apparecer. Para o lado do apparelho digestivo, Tissié recom- menda que os sonhos procuram imagens gustativas, e finalmente no quanto diz respeito á innervação, cita elle um exemplo de Faure, em que o sonho foi precursor de uma paralysia geral. O auctor refere-se ^também á influencia, sobre o sonho, da febre, do parasitismo do tellurismo, saturnismo, no mesmo sentido que Debacker, estando de perfeito accordo com este no que toca á zoopsia dos alcoolatas; acredita este, em geral, que as enfermidades começam por um trabalho pathologico, inconsciente ao estado de vigi- lia, e podendo determinar os sonhos. Na seguinte observação, o diagnostico foi poderosamente auxi- liado pelo sonho: «Ladreit de la Charrière vio uma creança que nada ouvia, senão de um modo obtuso. Concluio tratar-se de uma surdez cerebral, produzida por tubérculos, e o diagnostico baseou-se na existência de terrores nocturuos que apresentava a creança em grão elevado. Quasi completamente surda durante a vigilia, ouvia entretanto, vozes durante o somno. Tres mezes 40 após, morria deiuberculos cerebraes.» Eis ainda algu- mas notas geraes devidas a Onanoff e Blocq: «Nas affecções do apparelho circulatório, os sonhos são curtos de ordinário, e rapidamente terminados pelo despertar sobresaltado, e constam de occurrencias tragicas, acompanhadas de anciedade, e dominados pela idéa de morte; as affecções das vias respirató- rias, dão logar a sonhos pavorosos, e nellas é que mais frequentemente se divisa a existência do pesadelo, no sentido pathologico da palavra. O sonho consta sempre de animaes que o paciente julga ver sen- tar-se-lhe sobre o peito acrescendo em seguida a presença de sensações dyspneicas, e de suffoeações insupportaveis. Tal ou qual categoria de sonhos é egualmente mais ou menos habitua! nas moléstias das vias digestivas, nas quaes o sonho é ordinaria- mente ladeado das sensações de peso no epigastro. Mais recentemente, os terrores nocturnos têm sido alvo de estudo acurado de Graham Little, que de- termina e delimita-lhes a verdadeira significação semeiologica. Em virtude de pesquizas pessoaes, firmou elle a opinião de que esses pheuomenos são produzidos por uma excitação reflexa, determinada quasi sem- pre por uma dyspnéa moderada, embora duradoura, e que surgem nas primeiras horas do somno da 41 creança.Os indivíduos examinados, apresentam signaes cardíacos em grande escala, porém, nenhuma affecção das vias respiratórias, talvez porque, cremos, os terrores dão logar a symptomas muito grosseiros e violentos, emquanto a dyspnéa cardíaca provoca a essas incitações reflexas subtis que jazem na subconsciencia, desenvolvendo um sentimento de pavor. Eis as conclusões finaes de sua obra «The causation of night terrors:» T. Os terrores nocturnos são devidos, na gran- de maioria dos casos, a desordens produzidas por uma dyspnéa moderada, posto que prolongada; II. Numerosos exemplos se encontram nos rheu- maticos accommettidos de cardiopathias precoces; III. Proporção considerável de casos é devida á obstrucção das fossas nasaes; IV. As perturbações gastricas não merecem a importância que lhes têm sido dada; V. As relações entre a apoplexia e os terrores nocturnos são diminutissimas; VI. As crises sobrevêm na subconsciencia do primeiro somno, e são particulares aos indivíduos ainda não chegados á puberdade. Mais recentemente ainda, Klippel e Lopez falam do sonho como symptoma para o diagnostico. Lembram os antigos caracteres: as perturbações cir- 42 culatorias se manifestando na hyperemia pela vi- sagem de pliantasmas, e, na ischemia, pela visão do fogo; as affecções renaes se manifestando por obstáculos intransponíveis; as do fígado por mon- tanhas abruptas e florestas emaranhadas, etc. Os auctores acham uma vereda mais scientifica no estudo das toxinas e pôem os sonhos do alcoolis- mo no rol dos das affecções toxi-infectuosas. Desfarte, conclue-se que a zoopsia, considerada geralmente como caracteristico do alcoolismo, pode apparecer na pneumonia, na grippe, febre typhica, sem que se possa suspeitar o alcoolismo em doentes que não bebem senão agua, e, doutro lado, o sonho profis- sional, é ainda mais frequente nas moléstias agudas e citam, a proposito, um typhico não alcoolico, que teve delirio profissional perfeitamente typico. O ul- timo caracter deste genero de que fazem menção nas affecções infectuosas, é o sonho prolongado, não raro nos hystericos e semi-alienados, que foi verificado particularmente na febre typhoide. E' o exemplo d'um homem de 25 annos, ty- phico, que delirava á noite, dizendo-se desertor do exercito e prestes a partir para o Transvaal. Klippel e Trenaunay publicaram, ha tempos, uma observação interessante a respeito de accidentes cerebraes, sobre- vindos no decurso de um violento rheumatismo, la- deado de desgostos moraes. Eil-a na integra: 43 « 16 Juin.-Nous lisons dans le rapport du veil- leur; Le numéro 30 a été pris, cette nui á 2 heures d'um accès de folie. 11 s'est leve et comme je lui de- mandais pourquoi, il mia répondu que le président Caruot (1) venait le chercher dans sou landau. 11 a ajouté : « Entendez-vous le^ beau discom s qu'on lui fait?» Je lui dis de dormir. «La nouvelle loi qui vient de passer, repondit-il, est de ne pas dormir» Dcux ou trois heures plus tard, je 1'ai entendu dire: «f ai serre la main Eu président. C'est à lui ce mouchoir. C'est à mon cher Caruot, dest lui qui me ía donué. D' ailleurs je suis de l' haute noblese . . . Le matin, la soeur lui présent une assiette de soupe: « Non, non, ou m'a défendu de manger...» Concebe-se que a attenção dos auctores tenha sido vivamente attrahida por esse facto. Vaschide cita egualmente duas observações: «F . . . , 30annos, fôra accommettido de blennorhagia; sonhou que tinha os testículos cheios de grâns de chumbo e atraves- sados por agulhas, com intervallos, mais ou menos regulares. Ao amanhecer consultou o medico, e uma orchite declarou-se durante o dia ...» «A ... 15 annos, bastante nervosa, sonhou ter sido pedida em casamento, por um moço a quem detestava. Como recusasse formalmente, elle para (1) Nessa epoca o presidente Caruot, já nào existia. (1900) 44 forçal-a a acceitar, derribou-a e pondo-lhe o joelho na garganta, encheu-lhe a bocca de lenços para impe- dil-a de gritar. Quatro dias após, deu-se a appariçâo de uma angina.» Em levarmos taes observações em consideração, deverá deduzir-se, acaso que. o pequeno numero de factos neste dominio da pathologia, ou melhor, o pequeno numero de factos bem observados, nos per- mitta offerecer conclusões exactas ? Certamente não. Não podemos dizer que, sonhar sobre este ou aquelle assumpto, queira significar ou ser sympto- ma de tal ou qual enfermidade, e -mesmo não é raro observarem-se factos semelhantes a outros que precedem a moléstias que não foram seguidos de estado morbido algum, se bem que, para Vaschide, isso pareça um fraco incommodo actual ou de perturbações abortadas. E para dizer com exactidão, em medicina ha muito poucos prodromos ou ^ymptomas, cuja appariçâo isolada, de por si, baste para fazer presagiar ou diagnosticar com segurança uma moléstia deter- minada. De outro lado, pode-se ainda menos affirmar que, sendo dada uma moléstia qualquer, um sonho preciso deverá acompanhal-a ou precedel-a infalli- velmente. Ha disso quantidade enorme de observações, mesmo porque, é provável, senão certo, que o sonho 45 não é um prodromo, nem um symptoma, nem ne- cessário, nem bastante. Em regra geral, devemos attender ao sonho, ora para o diagnostico, ora para o prognostico, paí^icularmente nas molés- tias infectuosas, em que seu papel é dos mais importantes. Assim, é que o sonho profissional,azoopsia,a dura- ção prolongada do sonho se manifestam na febre typhica,por exemplo: nas affecções localisadas, como as dos intestinos,coração, pulmões,etc.,o sonho representa um papel saliente e capital,pelo menos para esses aucto- res. Na observância dos sonhos, é natural olvidarem-se ou passarem sem inf^ortancia os detalhes minuciosos, o trama desse phenomeno de alguma sorte, o que é mister, porém, é que se não deixem omittir certos e determinados pontos de relevo, taes como a natureza da dôr, o orgão ou região em que parece localisar-se, a im- pressão feita sobre o sonhador, etc. Particularmente fa- lando, sempre que alguém despertar sobresaltado por um sonho no qual forem intervindos elementos somáti- cos, quer acompanhando-o (suffocação, ancia), quer nelle integrados, (lucta, desastres) e que essa pessoa tiver tido a sensação penosa do phenomeno que se faz impôr, sem que possa o paciente evital-o, tal suc- cesso deve merecer um certo gráo de consideração, principalmente porque não padece duvidas possuir esse 46 sonho um substratum physico, porque no somno houve algo de phenomeno pathologico. Não afastamos a hypothese de,ás vezes,ser esse phenomenomeramente accidental e passageiro, em consequência de uma • digestão má, de uma posição defeituosa no deitar, de aeração insufficieute da alcova, etc.; mas, póde ser mais grave e dar idéa de um verdadeiro estado morbido, para o lado de um orgão importante. Os sonhos que dão idéa de uma affecção em ponto determinado do corpo, esses são mais fáceis de interpretar: ou nesse ponto produzio-se um choque exterior, ou ha nevralgia, ou então desenvol- ve-se ahi uma perturbação mais^grave, phleugmão, cancro, etc. Tal é o que diz Vaschide. A natu- reza do sonho, accrescenta, é então, de ordinário, uma interpretação symbolica da dôr, mais clara muitas vezes que as explicações embaraçadas dos pacientes, os quaes, não sabem de que modo exprimir o que sentem, mórrnente a dôr, o que o sonho se incumbe de fazer; os choques por armas de fogo, quando repetidos, podem indicar uma nevralgia; os produzidos por armas brancas podem indicar a dôr de certas ulceras, etc. Emfim, a séde exacta da dôr é muitas vezes mais bem percebida que durante a vigilia, em que essa séde existe, porém vaga e obtusa á percepção. 47 Também o sonho é precioso para dar noções valiosas acerca das perturbações que em principio permanecem vagas ao conhecimento do clinico. O grande interesse do phenomeno é que, quando existe como prodromo, elle é que apparece em primeiro logar. Ora nas affecções em que ha necessidade de fazer-se um diagnostico ligeiro, como no crup, na meningite, o sonho não deixa de ser um elemento evidentemente precioso. Também fora necessário que o medico recommendasse aos clientes que, quando taes sonhos viessem a se produzir, nas creanças espe- cialmente, não hesitem em consultal-o, muito princi- palmente se, depois do sonho, o estado do sonhador não é o absolutamente normal. Ha ahi uma grande precaução muitas vezes util, mas, que outras vezes em nosso meio especialmente, jaz nas trevas do abandono. I?STC!WPOrfiflS Consagremos esta parte do nosso estudo a casos de influencia anormal do sonho sobre a vida da vigilia nos individuos evidentemente chegados aos confins da loucura verdadeira, que delia muita vez pouco se afastam, mas não considerados ainda como alienados, e que em geral não dão alta dos asylos, porém são psychastenicos, degenerados, impulsivos, e obsessos, mysticos e escrupulosos. Chabaneix demonstra que as manifestações sub- conscientes do espirito, são mui frequentes nos que se dão á cultura intellectual, que eram por elle par- ticularmente interrogados, e d'entre ellas, as que resultam do sonho, são as mais frequentes e de maior importância. Prova, desse modo, a influencia inconteste do somno sobre a vigilia, outro sim, reconhecendo-lhes a influencia reciproca. Paul Farez tem se occupado mui recentemente 50 da suggestão durante o somno natural; a isso chega por processos, graças aos quaes faz-se ouvir ao paciente e suggere-lhe então os sonhos que julga úteis. Corning, de urn outro modo, porém basean- do-se sobre o mesmo principio, tendo observado que o sonho é produzido muita vez por sensações exteriores que precedem ao somno, tentou agir sobre elle por meio de vibrações musicaes, antes do somno, e desfarte, agir pela repercussão sobre a própria vida da vigilia.Esta moda de invasão não é estranha aos trabalhos de Nacke.Em criminologia,não é raro, vêm se actos incendiarios, devidos á acção suggestiva dos sonhos. E Nacke mesmo, cita um caso de crime perpe- trado na sornnolencia do semi-somno, consecutivamente a um sonho que o determinara, e accrescenta que o suicídio pode ser devido á amplificação de pequenos incommodos da vida normal, no somno. Para elle, o sonho representa o caracter do indivíduo: *Dis moi ce que tu rêves, je .te dirai qui tu es;* Tem-se occupado elle também das relações do sonho cora a sexualidade e faz considerar como uma men- struação masculina a apparição periódica de sonhos eroticos no homem, isto é, de 28 em 28 dias. Era continuando, refere a relação das polluções inconscientes com a epilepsia não convulsiva, e por fim a importância do sonho propriamente sobre os 51 pontos de vista psychologico (ckarakterohgtscJi) e diagnostico. A inversão, e a perversão sexuaes re- fletem-se no sonho «como em um espelho» e o sonho erotico gosa importantíssimo papel sob o ponto de vista medico-legal, no que interessa ás falsas accusações dos hystericos. «Estes, diz Pitres, nos sonhos de união carnal, experimentam grandes dôres nas partes genitaes, e as mulheres especialmente por causa de uma contractura vaginal persistente.» «F/ sobretudo nos sonhos, diz Feré, que a inversão se caracterisa; esse facto é frequente, senão constante, nos invertidos precoces; parece existir mesmo nos casos em que a inversão é exclusivamente limitada aos sonhos.» Alem de Feré, Charcot e Magnan, aflir- mam a importância notável do sonho no curso das inversões sexuaes, e, mais, a sua manifestação natu- ral, e referem dois factos de observação.-Faure, para confirmar os trabalhos criminologicos de Nacke, de- clara que o effeito produzido por um sonho em um espirito debil, pode occasionar uma determinação fatal; assim é que cita observações de suicídio, assassinatos, kleptomania e de delírios, especialmente. Ora, por ser realmente interessante, vamos transcrever a seguinte, dentre as muitas observações de Faure, referente a um caso mui proximo do delirio, e no qual, o sonho por sua reproducção continua, assemelha-se a um 52 verdadeiro delírio systematisado, limitado ao período do somno: «Trata-se de um pintor, que, achando-se e a esposa em precarias condições, soffreu fome por algum tempo. A esposa não resistiu por muito tempo á inanição e disse-lhe ao approximar-se a morte: «Come-me, se tiveres fome.» D'ahi por diante o pobre homem sonhava quotidianamente que ia exhumar e devorar a defunta.» Ora, essa obsessão do sonho influe muito natural- mente sobre o caracter do pintor durante a vigilia. O auctor chama a attenção para o facto de que muitos exemplos de feitiçaria e vampirismo deviam ser desses delírios, e Chaslin dá observações desse genero em que o sonho tem influencia sobre os actos da vigilia. Ha casos que parecem muito interessar á categoria de doentes que Paul Janet designou sob o nome generico de escrupulosos e nos quaes a obses- são está em relação com os sonhos que muita vez localisam e precisam de alguma sorte o conteúdo dessa obsessão e delia fornecem os primeiros sym- ptomas. Ao lado dos escrupulosos de Janet, podem figurar os mysticos que delles se approximam muitas vezes. Na Revista mensile de neuropatologia e psichiatria, publicou Marianí em 1900 um estudó relativo a- um sonho mystico tido por um indivíduo que, subindo 53 em balão, conseguira chegar ao terceiro céo, onde vio Deus e a Virgem, o paraiso em festas, musica e danças. Nelle, accrescenta, as preoccupações tech- nicas de respiração, oxygenio, do perigo de queda, etc., mesclando-se com as impressões mysticas, o sonho deixou um estado de prostração que durou tres dias. A recordação do sonho permaneceu estereoty- pada em todos os seus detalhes... Havia ahi, para Mariani, uma verdadeira modalidade de alienação, ou pelo menos um delírio em inicio n'um candidato á loucura. Elle e de Sanctis são unanimes em procla- mar os sonhos-reveladores do estado psychico mais impenetrável do indivíduo. Régis, que se occupou por largo tempo do estudo dos delírios e allu- cinações oníricas, analogas aos sonhos em certas affecções, fez um trabalho muito importante sobre os degenerados mysticos, ornado de observações em grande copia, no qual, figura uma classe, a dos regicidas, que, a seu ver, são degenerados mysticos hereditários^ Assim, Ravaillac vê sahirem hóstias de um brazeiro; Jacques Clement recebe, durante o somno, a visita de um anjo que elle traz a incumbência de matar o rei de França, promettendo-lhe a corôa da victima; Staaps, que quiz victimar a Napoleão I em Schoenbrunn, escrevera a seu pae: «Ainda esta noite, Deus appareceu-me transfor- 54 mado em lua e disse-me não desanimasse e levasse a cabo o meu intento... Joanna d'Arc, a donzella de Orléans, durante 4 annos ouvio vozes divinaes e teve visões sobrenaturaes que a decidiram a deixar o lar da familia e partir para a guerra, na convicção de expulsar os Inglezes de Orléans e sagrar rei em Reims a Carlos VII. O auctor, na divisão do somno, mostra que essas allucinações se produzem muita vez no periodo hypnagogico, como egualmente no periodo hypno- pompico, dando por exemplo a visão do coronel Gardiner que converteu-se, de atheu que era, em virtude de uma apparição emocionante de Jesus. Mas, acontece também que essas allucinações se produzem durante o dia, e portanto em um periodo de extase muito, analogo ao somno e em que ha sonhos verdadeiramente, como já o dizia Maury, no seu livro «Le sommeil et les reves.» Régis attribue a essas allu- cinações o qualificativo, muito bem escolhido aliás, de oníricas. Para ellas, como para o sonho, ha inter- mittencia, o que permitte não confundirmos egual delirio com meras vesanias. Entretanto, porém, ellas podem persistir, como os sonhos, até depois do acordamento, como uma observação do auctor, relativa a um anarchista, a quem o anjo S Miguel vinha ditar planos regi- 55 cidas e que, mesmo ainda depois de accordado, jul- gava ver o anjo, etc. E a vida dos religiosos é bem fértil em casos semelhantes. Factos, porém, eguaes são relativamente excepcionaes. Emfim, essas alluci- nações oníricas intermittentes reproduzem-se sempre idênticas, como estereotypadas. Muito differentes das da alienação, ellas se en- contram não só nos degenerados, como em geral em todos os delírios toxicos. Não faltam auctores que o confirmem. E' ainda uma obser' ação de um mystico que Klippel e Trenaunay publicaram sob a denomi- nação de delirio systematisado de sonho a sonho. E o delirio está ahi em connexão intima com os phenoinenos do sonho. « Trata-se de A... que appa- receu no hospital e que, interrogado, disse ter sonhado com o Padre Eterno, e em seguida descreveu a sua longa historia de allucinações e outros sonhos. « Não só, dizem, o nosso doente não recebe ha- bitualmente suas concepções delirantes senão nas allucinações do somno, mas também o exemplo que citamos demonstra que, si ás vezes o paciente tem podido desembaraçar-se delias no estado de vigília, nenhuma outra expressão poderia ser-lhe applicada, senão a de homem que sonha sem estar dormindo. E' uma successão de sonhos extensivos ao estado de vigília que se reproduz com intermissões mais 56 ou menos longas, e engrenando-se mutuamente para constituir uma systematisação. Toda a expressão do seu delírio é como envolvida de «vapores do sonho.» Esta parte do nosso estudo oscilla entre os limites do normal e os confins da loucura. Podem-se caracterisar esses estados de psycho- pathias, neurasthenia, degenerescencia, etc., pela ex- pressão generica de desequilíbrio nervoso, e, de facto, * a preponderância desmedida tomada pelo sonho, sua influencia enorme sobre a vigilia são systematicamente manifestas e notáveis. Eis-nos, porfim, chegados ao cimo da jornada académica Desejaríamos algo dizer a respeito do sonho em relação á hysteria, epilepsia, etc.; infelizmente, po- rém, circumstaiicias altamente alheias á nossa vontade não nos permittem, ao lado do praso estricto de sessenta dias, apresentar á egregia congregação me- dica do Brasil, na Bahia, um trabalho superior á nossa obra inaugural, como um testemunho de ha- bilitação para o doutoramento. Passivel de critica como é, não queremos ultrapassar os factos que nos servem de premissas ás conclusões que podemos dar; não receiaremos affirmar que no sonho ha um manan- 57 ciai importante, de elementos sobre o nosso estado psychologico, como sobre o physiologico, mais intima- mente ligados ao nosso eu, o quaL de alguma sorte, se reflecte livremente durante o somno sobre os dominios subconscientes do nosso espirito. Ha ahi uma mina inexplorada, porque se prefere em geral voejar á superfície da consciência a descer mais profundamente ás regiões que ella oculta e donde emana. Para receberem-se honras de profissional; para fazer jús a um pergaminho ambicionado; para pos- suir-se no index um aro encimado duma pedra verde, basta tão somente este esforço terminal das lidas académicas. PROPOSIÇÕES TRES SOBRE CADA UMA DAS CADEIRAS DO CURSO DE SCJENCIAS MEDICO-C1RURGICAS ANATOMIA DESCRIPTIVA I. A cabeça divide-se em craneo e face. II. O craneo compõe-se de 18 ossos, inclusive os lo ouvido. III. A face compõe-se de 14 ossos. ANATOMIA MED1CO-CIRURGICA I. O costureiro divide a região inguinal em duas porções: externa e interna. II. A porção externa semelha um triângulo, de yertice para cima que corresponde á espinha iliaca intero-superior. III. A porção interna semelha um triângulo, de rertice para cima, que se chama de Scarpa. HISTOLOGIA I. Tecido conjunctivo é uma substancia, elastica : semi-transparente. II. Consta de filamentos e laminas mais ou menos consistentes e mesclados irregularmente, de modo a 62 deixar entre si lacunas ou espaços vasios de forma e tamanho variaveis. III. E' o mais universalmente espalhado dos ma- teriaes constituintes dos nossos orgãos. BACTERIOLOGIA I. Parece terminantemente descoberto o microbio da syphilis. II. E' elle a spirochoeta pallida de Schaudinn. III. Por ser animal, não se adapta aos meios de cultura ordinários. ANATOMIA E PIIYSIOLOGIA PATHOLOGICAS I. A suppuração é um dos modos de terminação da inflammação. II. Caracterisa-se pela producção de um exsudato liquido, que encerra numerosas cellulas necrosadas. III. Essas cellulas chamam-se pyocytos. MEDICINA LEGAL E TOXICOLOGIA I. O medico é obrigado á inviolabilidade do si- gillo profissional. II. Revelal-o, importa muitas vezes em um acto seriamente compromettedor. III. E' permittido, porém, em certas e determi- nadas circumstancias. 63 HYGIENE I. Vaccinação é o meio mais commum, porém não o unico, de que usa o hygienista para tornar o homem resistente a um estado morbido determinado. II. Tmmunisação é o processo por que o homem se torna ínaccessivel ao desenvolvimento em seu orga- nismo dos germens pathogenos. III. Immunidade é o estado, conferido por vacci- nação ou immunisação, que põe o homem ao abrigo do contagio de certos e determinados estados pathologicos. PHYSIOLOGIA I. O coração é o orgão centra! da circulação sanguínea. II. Ha dois systemas de circulação sanguínea: - arterial e venosa. III. Impellido pelo coração nas artérias, o sangue volta a elle pelas veias. THERAPEUT1CA » I. Ingeridos os ferruginosos, transformam-se em protochloreto no estomago. II. Penetram na circulação sob a forma de albu- minato. III. Em geral não são toxicos. 64 OPERAÇÕES E APPARELHOS I. Amputação em geral é a operação, feita na continuidade do osso, por meio da qual se separa do organismo, um membro, ou porção de membro. II. Desarticulação é a operação em que a separa- ção se pratica na contiguidade do osso, ao nivel da sua articulação. III. A amputação é extensiva a todos os membros, ao passo que nem toda articulação é passível de desarticulação. PATHOLOGIA CIRÚRGICA I. As fracturas da base do craneo são pouco communs. II. Occasionam-n'as em geral as quedas de cabeça para baixo. III. São de prognostico gravíssimo, senão mortaes. CLINICA CIRÚRGICA (ia Cadeira) I. As uretrites gonococcicas são contagiosas pelo coito. II. Dão logar muitas vezes a apparição de con- junctivites. III. Muito lhes aproveita um tratamento adequado. 65 CLINICA CIRÚRGICA (2'Cadeira) I. Varizes são o resultado da dilatação das veias. II. As do recto e anus chamam-se cominummente hemorrhoides. III. São susceptiveis de cura. Cl INICA PROPEDÊUTICA I. Symptoma é o phenomeno particular provo- cado no organismo por um estado morbido. II. Reconhecidos os symptomas e apreciados pelo clinico, torriam-se os signaes sobre que se fundamenta o diagnostico. III. Diagnostico é a escolha, que faz o medico, de uma entidade mórbida, para adaptal-a tal ou qual o caso que se lhe apresenta, observado systematica- mente o exame clinico. PATHOLOGIA MEDICA I. A ankylostomiase é uma moléstia das regiões tropicaes. II. E' errónea a theoria que exclue o dochmins ankylostoma da responsabilidade dessa affecção. III. A applicação do thymol constitue a base do tratamento da ankylostomiase. 66 CLINICA MEDICA (ia Cadeira) I. A trypanosomiase é uma affecção commum na África. II. E' a chamada moléstia do somno. III. O trypanosoma gambiense agente productor, communica -se aos animaes pela picada da mosca tsc-tsé. CLINICA MEDICA (2a Cadeira) I. A bilharziose é o resultado da invasão do organismo pela bilharzia hematobia. II. A hematúria é o symptoma mais pronunciado. III. A bilharzia, levada pelas aguas de bebida, é ingerida no estado larvario. HISTORIA NATURAL MEDICA I. O culex pipiens (morissoca) é um insecto diptero, II. As suas larvas, que frequentemente se encon- tram nas aguas, têm o nome vulgar de cabeças de prego. III. Habita de preferencia ás regiões pantanosas. MATÉRIA MEDICA PHARMACOLOGIA E ARTE DE FORMULAR I. O histogenol é um composto arseniophosphatado. II. E' um medicamento preciosíssimo e hoje de grande voga. III. Em geral usa-se na dóse de 20 a 30 grammas pro die. 67 CHIMICA MEDICA I. A anályse chimica é um poderoso recurso para o medico. II. Faz-se por via secca e húmida. III. Em ambos os casos, pode-se obter a diagnose do genero e da especie. OBSTETRÍCIA I. Em virtude das revoluções cardíacas do feto, pode-se distinguir o seu sexo. II. Admittem-se em geral 145 pulsações para um feto feminino e 135 para um masculino. III. Esta regra falha ás vezes na pratica. CLINICA OBSTÉTRICA E GYNECOLOGICA I. E' mister, sobretudo nas primiparas, examinar frequentemente a urina desde a segunda metade da gravidez. II. Reconhecida a albuminúria, o regimen lácteo absoluto é indispensável para evitar a eclampsia. III. Seria preciso provocar o parto, se apezar dessa dieta, a albuminúria persistisse além do sétimo mez. W CLINICA PEDIÁTRICA I. A primeira dentição apparece do quinto ao decimo mez, após o nascimento. 68 II. Entretanto, podem nascer creanças munidas dos primeiros incisivos. III. Na dentição, os terrores nocturnos podem revelar uma bradypepsia intestinal. CLINICA OPHTALMOLOGICA I. Presbytia é a difficuldade de ver bem os objectos a distancia proporcional do globo ocular. II. Resulta da diminuição da amplitude da acómmodação. III. Acommette aos velhos, sobretudo. CLINICA DERMATOLÓGICA E SYPHILIGRAPHICA I. Nenhuma medicação tem ousado supplantar a efficacia mercurial na syphilis. II. Deve ser systematicamente banido o xarope de Gibert do tratamento da syphilis. III. O enesol é o remedio da moda. CLINICA PSYCHIATRICA E DE MOLÉSTIAS NERVOSAS I A epilepsia é uma nevrose. II. Pallidez facial, grito, perda de conhecimento e queda-constituem o quadro inicial do ataque. III. Após a crise, o epiléptico de nada se recorda do que se passou. /^/ú. ^Scczetazia, da C^acazdade de <^?Zcdzcina da t^Badia, 31 de ©atzidtG- de C936. O Secretario