DA RESPOfiSflBíliIDADE ÍDEDÍGA E DO EXERCÍCIO da medicina EM GERAL E ESPECIALMENTE NO BRASIL Faculdade de Medicina da Bahia r PT T T71QTA JL XI Jjjk5 Jjj APRESENTADA Á FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA Em 31 de Outubro de 1904 POR de @///i>eíta NATURAL DO ESTADO DA BAHIA Pharmaceutico diplomado pela mesma Faculdade, ex-interno de clinica medica (2.a cadeira), ex-membro da commisssão de medicina e sciencias accessorias do Grémio dos Internos dosHospitaes da Bahia e orador eleito para asolemnidade dacollação do gráo. AFIM DE OBTER O GRAO DE DOUTOR MEDIGINR DISSERTAÇÃO Cadeira de Medicina Legal Da responsabilidade medica e do exercício da medicina, em geral e especialmente no Brasil. PROPOSIÇÕES Tres sobre cada uma das cadeiras do curso de sciencias medicas e cirúrgicas BAHIA IMPRENSA MODERNA DE PRUDENCIO DE CARVALHO Rua S. Francisco n. 29 1904 faculdade de Medicina da Bahia Director—Dr. ALFREDO BRITTO Vice-Director—Dr. ALEXANDRE E. DE CASTRO CERQUEIRA Lentes cathedraticos 1. SECÇÃO OS DRS. MATÉRIAS QUE LECCIONAM J. Carneiro de Campos. ...... Anatomia descriptiva. Carlos Freitas Anatomia rnedico-cirurgica. 2. Secção Antonio Pacifico Pereira. . . . Histologia Augusto C. Vianna Bacteriologia, Guilherme Pereira Rebello. . . . Anatomia e Physiologia pathologicas 3. Secção Manuel José de Araújo Physiologia. José Eduardo F.de Carvalho Filho. . Thérapeutica. 4. a Secção Raymundo Nina Rodrigues. . . . Medicina legal e Toxicologia. Luiz Anselmo da Fonseca Hygiene. 5. a Secção Braz Hermenegildo do Amaral . . Pathologia cirúrgica. Fortunato Augusto da Silva Júnior . Operações e apparelhos Antonio Pacheco Mendes . . . Clinica cirúrgica, 1.a cadeira lgnacio Monteiro de Almeida Gouveia . Clinica cirúrgica, 2.» cadeira 6a Secção Aurélio R. Vianna Pathologia medica. Alfredo Britto Clinica propedêutica. Auisio Circundes de Carvalho. . . Clinica medica La cadeira. Francisco Braulio Pereira Clinica medica 2.a cadeira 7.a Secção José Rodrigues da Costa Dorea . . Historia natural medica. A. Victoriode Araújo Falcão . . . Matéria medica, Phahtnacologia e Arte de formular. José Olympio de Azevedo .... Chímica medica. 8a Secção Deocleciano Ramos Obstetrícia Climerio Cardoso de Oliveira . . . Ciinica obstétrica e gynecologica. 9a Secção Frederico de Castro Rebello. . . . Clinica pediátrica •10. Secção Francisco dos Santos Pereira. . . Clinica ophtalmologica. 11. Secção Alexandre E. de Castro Gerqueira . Clinica dermatológica e syphiligrapluc* 12. Secção J. Tíllemout Fontes Clinica psychiatrica e de moléstias nervosas. JoãoE. de Castro Cerqueirá ... ( Sebastião Cardoso s Em disponibilidade OS DOUTORES José Affonso de Carvalho vinterino. . . 1.' secção Gonçalo Moniz Sodré de Aragão . . . 2a » Pedro Luiz Celestino ...... 3.a » Josino Correia Cotias 4.» » Antonino Baptista dos Anjos . 5.a João Américo Garcez Froes 6.a Pedro da Luz Carrascosa e José Julio de Calasans 7.a J. Adeodato de Sou/a 8.a » Alfredo Ferreira de Magalhães ... 9.a » Clodoaldo de Andrade 10. » Carlos Ferreira Santos 11. » Luiz Pinto de Carvalho (interino 1 ... 12. > Secretario—DR. MENANDRO DOS REIS MEIRELLES Sub-secretario—DR. MATHEUS VAZ DE OLIVEIRA Lentes substitutos A Faculdade não approva nem reprova as opiniões exaradas nas the«e« pelos seus auctores. A' III111 nimba ftfu? m MEUS IRMÃOS E dentre estes especialmente ao Conego José Francolino Alves (1'Oliveira que me tem servido de pae. Que seja a minha these de pouca valia; representando, entretanto a concretização primordial do meu unico esforço devo dedical-a áquillo que neste mundo con- cretiza o meu sentimento. Diocleciano. BIBLIOGRAPHIA. Alejo Garcia Moreno. Texto y commentarios al có- digo civil del Império Aleman. Madrid. 1897. Alibert. Devoirs du médecin pratique. Discours sur les rapports de la médecine avec les Sciences physiques et morales. T. II. Paris. Richard. Autran (G.). Codigo penal dos Estados Unidos do Brasil. 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Imprensa economica. 1886. —Nestas notas vão mencionadas apenas as obras que se relacionam mais directamente com o assumpto; das omissões que nellas existem, podem algumas ser reparadas com as citações do texto. INTRODUCÇÀO «Não sabemos como possam ser en- caradas as nossas idéas sobre estes graves assumptos; emittimol-as sem temor, porque todas ellas são o resul- tado de uma convicção profunda e de longas meditações.» Trebuchet. «Não cede hoje em dia a convicção á autoridade, quando a autoridade lhe parece contrariar a razão.» Ruy Barbosa. este trabalho, que excusado era T dizel-o, sendo um primeiro ensaio, participa da incerteza, dos passos titubiantes daquelles que, claudicando, se aventuram á marcha, não tendo jamais arriscado sequer um movimento que os tor- nasse mais destros neste exercício, não ignora o seu auctor, antes confessa que deve estar inçado de muitos erros este fructo de seu labor. E deve sentir-se feliz quem se reconhece em seus defeitos, quem sabe ver primeiro que outrem as suas faltas, « quem não desfructa a inabalavel con- fiança em si, apanagio da imbecilidade. » 16 Todavia onde quer que se encontre a falta não é intrusa a indulgência que, no caso vertente, se jus- tificaria, se não com a fragilidade humana, ao menos, com o serem as theses feitas obrigatoriamente, em condições embaraçosas, para quasi todos, e porven- tura extemporâneas para muitos destes. E ainda mais, como se não bastassem estas diffi- culdades para empecer o bom acabamento deste opusculo, até a enfermidade se lhes quiz juntar para tornal-o remorado e imperfeito. Não mendigo, entretanto, indulgência porque nestes assumptos nunca se dá a quem pede. A despeito de tudo isto, porem, não quero col- locar-me acima de meu trabalho que, pelas razões enumeradas, não representando o máximo do que me era possível fazer, também não é o minimo, porque os esforços nelle empregados attestam sobe- jamente a minha boa vontade em cumprir ainda este ultimo dever. Resta agora saber se não esperdicei a actividade em coisa que, por inútil, dispensasse estudo; se, procurando o conhecimento das leis que concernem ao estado e ás funcções do medico, divaguei sem proveito; se trabalhando por saber qual a situação 17 da classe medica, occupei-me de coisa sem valia para a medicina. Será melhor deixar aos mestres o encargo de resolvel-o. « Considero que o homem de arte tem todo o interesse de conhecer a jurisprudência, para n’ella achar um guia seguro á sua conducta e para ter uma noção exacta das obrigações profissionaes.» (1) Brouardel (2) faz notar que ha vinte annos tem recebido muitos milhares de cartas pedindo conse- lhos a respeito da deontologia medica e ainda sobre a jurisprudência; conclue elle da leitura de tão grande correspondência qne os médicos terminam os seus estudos « sem conhecer as leis delicadas e complexas que regem a sua profissão. » Acaso será temerário suppor que tão grande numero de consultas denota cabalmente a impor- tância transcendental do estudo da jurisprudência medica e principalmente da responsabilidade f Não, absolutamente. Lamenta egualmente Morache (3) a ignorância (1) Dambre. Traité de médecine légale et de jurisprudence de la médecine, (2) Brouardel. La respohsabilité mêdicale, (3) Morache» La profession mêdicale, 18 de seus deveres, que mostram os médicos, o que os expõe a commetter faltas, que, apezar de sim- ples, são «desastrosas para elles mesmos e para toda a profissão. » Não vae muito longe, dois médicos aliás distinctos e competentes, de uma capital do norte, se debate- ram publicamente em uma discussão longa e ociosa, quasi interminável, porque ambos ignoravam a jurisprudência da profissão que exerciam. Se desta polemica, tenho razões para acredital-o, nenhum resultado adveio aos illustres contendores, muito menos á profissão medica, que teve sempre alguma coisa a perder. Escolhi, pois, para minha dissertação um ponto cuja importância é cabalmente demonstrada. No estudo e desenvolvimento deste ponto, não por prazer em destruir e contradizer, mas por autono- mia de pensar, ouso algumas vezes,reluctando contra a minha timidez, esposar opiniões que, embora pertencendo a outros, têm contra si a maioria dos mestres. Mas, neste transe arriscado, me valerá a palavra de Trousseau: « Apressae-vos (4) em sacudir o jugo do mestre, (4) Trousseau (A.) Clinique médicale. Paris, Baillière» 190L 19 exercei vosso espirito e vosso entendimento, e esforçae-vos por systematizar vós mesmos, quer chegueis, pelo estudo, ás conclusões de vossos antepassados, quer julgueis a medicina noutro ponto de vista, que assim vos vem a ser pessoal.» Posso eu, deste modo, abroquelado em uma auctoridade e por seu proprio conselho, deixar de ceder á auctoridade que me parece contrariar a razão. * Esforço-me por seguir o aviso do grande sabio e por não engrossar o numero dos . Neste rápido excurso em que digressionamo-s nada, pois, fica a desejar á arte de curar, quanto á origem que lhe attribuiam e quanto a sublimidade de seus fins, muito embora tenha sido perfunctorio o nosso estudo sobre matéria tão escusa. Mas ainda não é tudo, nos princípios do sétimo século, Mahomet, o habil fundador de uma religião 27 em cujos preceitos era antevista a grandeza de um povo que elle julgava digno delia, doutrinava: «Ensinae a sciencia; quem a ensina teme a Deus; quem a deseja, adora a Deus; quem delia fala bem- diz a Deus;'quem peleja por ella combate por Deus; quem a espalha distribue esmola; quem a possue torna-se objecto de veneração e de affecto. A sciencia salva do erro e do peccado; ella aclara o caminho do paraiso; é a nossa companheira na jornada, nossa confidente no deserto, nossa sociedade na solidão; ella nos guia nos prazeres e nos soffrimentos da vida; serve-nos de ornamento entre os nossos amigos e de escudo contra o inimigo. E’ por ella qne o Omnipo- tente eleva os homens que destinou a decidir sobre o que é verdadeiro e sobre o que é bom. « Os anjos procuram a sua amizade e os abrigam com suas azas ; os monumentos destes homens são os únicos que perduram, porque seus altos feitos servem de modelos e são repetidos por almas grandes que os imitam. » (4) Ensinamentos de tal ordem não foram para os arabes coisa sem valia: os valentes guerreiros que dominaram terras da Asia, da África e aterrorizaram (4) Haditz. Conversations du prophète Mahomet. in Bran» thomme. Uexercice de la médecine en Algerie, Lyou. A» Sterck» (1897). 28 os europeos em seu proprio continente, em parte também conquistado, náo se mostraram valorosos somente no ferro. Assim o Alkoran ainda vedando aos seus sectários a dissecção do homem e dos ani- maes nao foi absolutamente estorvo ao desenvolvi- mento que na medicina adquiriram os sarracenos, entre os quaes se aponta Avicenne como um segundo Galeno. O propheta no constituir a sua religião revelou intuição perfeita da sciencia medica, que na edade media veio ainda a ser salva pelos seus religionarios do torpor da mais brutal ignorância. Se agora, a despeito do grande espaço de tempo que entremeia, considerarmos a medicina nos tempos actuaes, não me parece que fique a perder o seu alto conceito, comparada á luz do progresso e da civili- zação moderna, como que era nas remotas epochas de que nos occupamos. Em summa a medicina tem tido sempre um lugar muito elevado, entre todos os povos quaesquer que sejam as suas crenças e o seu estado de civilização; a profissão medica, por sua vez, como é consentâ- neo, gosou de egual reputação; (5) outrosim «o me- (5) Guardia. Histoire dc la médecine d’Hippocrate a Broussais est ses successeurs. Paris, Octave Doin. 1884. 29 dico é um dos grandes bemfeitores da humanidade: todo o mundo o reconhece e lhe outorga um lugar de honra. As tribus barbaras vêm nelle o laço que une o mundo visivel ao invisível e, nas civilizações mais brilhantes, desde o tempo de Hippocrates, o- pae da medicina, tem sido mais respeitado que outro qualquer.» Mesmo a mulher, que, nas sociedades de rudi- mentar desenvolvimento, occupava um logar muito sensivelmente inferior, achava no instruir-se e exerci- tar-se na pratica da arte de curar, um modo de se elevar, adquirindo a alta estima dispensada aos que a exerciam. Com a transformação social operada pelo christia- nismo os médicos ainda têm as honras do delubro, onde sao venerados muitos d’elles pelos crentes: S. Cosme, S. Damião, Santa Theodosia, S. Eusebio e muitos outros têm esta gloria como recompensa de sua vida pura e dos grandes benefícios que pres- taram a humanidade. Assim, exaltavam a arte, talvez do unico modo porque podiam fazel-o porque «o sophista moderno que queria a medicina sem o medico, ignorava evi- dentemente tudo o que os médicos tem feito pelo bem commum. 30 « Um exame retrospectivo dos benefícios que se lhe devem é a melhor refutação deste paradoxo ( 6 ).» Em verdade assim é: o medico presta á sociedade favores, que nenhuma outra profissão poderia fazel-os de tão grande monta; impõe a si mesmo a obrigação de deveres cujos benefícios não se contestam, e que elle ainda reduplica. 2.—Do juramento como synthese de todas as respon- sabilidades do medico Desde o momento em que se inicia na pratica, o medico presuppõe-se moralmente obrigado a mui- tos deveres, dos quaes uma grande parte consta de um juramento prestado, que, não obstante as múlti- plas modificações porque tem passado no decorrer dos tempos, delata de modo eloquente a grandeza da profissão e o importante papel de que gosa o profissional. O juramento de Hippocrates, que vale a pena de se conhecer, por ser transumpto magnifico e sum- mula da deontologia medica, foi por muito tempo usado como o compromisso dos neophitos da sua arte. (5) Ibidem. 31 Diz-se entretanto que muito antes do illustre «pae da medicina», que não foi o seu auctor, já era o dito juramento prestado pelos Asclepiades, seus ascendentes. Vae elle, em seguida, trasladado, da versão franceza de E. Littre: (7) «Juro por Apollo, medico, por Hygia e Panacea, por todos os deuses e deusas, tomando-os por testemunha, que cumpri- rei, segundo minhas forças e capacidade o juramento e compromisso seguintes: Tratarei meu mestre na medicina como a meus paes dividirei com elle o que pos- suir e, sendo preciso, proverei suas neces- sidades; considerarei seus filhos , meus ir- mãos, e se elles desejarem aprender a me- dicina, ensinar-lh’a-ei, sem salario nem recompensa. Transmittirei os preceitos, as lecçÕes oraes e todos os ensinamentos aos meus fi lhos, aos de meu mestre, e aos discípulos ligados por um compromisso e juramento segundo a lei medica e maisa ninguém. Dirigirei o regimen dos doentes do modo (7) Hippocrate. CEuvres completes; traduit. par Littré. Paris Baillière. 1846. 32 mais vantajoso para elles, segundo minhas forças e minha razão, e abster-me-ei de todo o mal e de toda a injustiça. Ainda que m’o peçam, a ninguém darei veneno nem aconselharei que o tome; e do mesmo modo não empregarei em pessoa alguma um pessario abortivo. Passarei a minha vida e exercerei a mi- nha arte na pureza e na innocencia. Não praticarei a operação fjde talha; deixal-a-ei aos que disto se occupam. Indo em qualquer casa, ahi entrarei para utilidade do doente, preservando-me de toda a falta voluntária e corruptora e principalmente da seducçãodas mulheres e dos rapazes, livres ou escravos. Do que vir ou ouvir na sociedade, durante o exercido de minha profissão ou mesmo fora delle, calarei o que absolutamente não tiver necessidade de ser divulgado, olhando neste caso a discreção como um dever. Se eu cumprir este juramento sem infringil-o, seja-me dado gosar tranquillamente da vida e de minha profissão, honrado sempre pelo homens; se o violar ou perjurar, aconteça- me o contrario.» Não falando no que diz respeito ao compromisso de não praticar a operação de talha, não existe diffi- 33 culdade no interpretar os dizeres desta promessa. Witkowski que a transcreve em um de seus livros (8), vê na parte referente á dita operaçáo apenas uma prova da existência de especialistas, já naquelles tempos; Littré (g) não contente com esta significação, empresta-lhe outra, ao mesmo tempo contestando o que pensam aquelles que explicam o facto pela falta de conhecimentos anatómicos entre os antigos. Em verdade, diz elle, os gregos, que executavam opera- ções mais graves, não se temeriam de praticar a de talha. De qualquer modo, porem, que se interprete, o en- sinamento é de alto proveito: ou manifesta o respeito pelas attribuiçÕes dos especialistas, prevenindo atri- tos sempre desastrosos, ou, o que não é menos im- portante, incita os médicos, em beneficio da saude publica, a não emprehenderem curativos pata os quaes não estejam habilitados. Atravessando épocas tão diversas como numerosas, este precioso documento veio até nossos dias como o mais eloquente ensinamento da ethica medica; e até edade não muito remota era usado como compro- misso dos iniciados na pratica medica, sem outras (8) Witkowski et X. Gorecki La médecine Litteraire. Paris. G Steinheil. (9) E. Littré CEuvvês completes d’Hippocrate. Paris. Bailliêre 1846 34 modificações, a não ser, a insignificante de uma adap- tação ás idéas correntes. Hoje ainda, na Faculdade de Montpellier, no jura- mento inserto no fim de todos as theses se vê um extracto do de Hippocrates. E assim também succede entre nós, onde presentemente, em uma promessa ainda mais lacónica, o recipendario assegura ser sempre discreto, caridoso e honesto. «Promitto me in exercenda medendi arte, fidelem semper exhibiturum honestatis, charitatis, scientise- que prseceptis. Lares ingressus, oculi mei tamquam coeci erunt, mutumque os ad commissa secreta rite servanda, quod jpro munere honoris pra>cipuo ha- bebo : nunquam etiam disciplina medica ad mores corrumpendos, fovendave crimina, utar.» O uso constante até os nossos dias dos juramentos como o de Hippocrates é prova irrefragavel de sua alta importância e valor inestimável, embora a sua acção seja restricta ao campo da moral; é verdade que esta ultima circumstancia deve ser a que mais influe para augmentar o seu valor, pois sobrepujando ao codigo medico, a moral entrepoe-se em todas as rela- ções dos homens entre si, influencia sobre todos os seus actos, de modo que não é dado ás leis humanas fazei-o. Podem muitas vezes ser burladas as garantias de 35 um direito que a lei vela, mas nunca se apagará um preceito de moral que a consciência guarda. Se os recipiendariosnáo attentam na importância do compromisso que assumem, não meditam sobre a pequenez em que se arrojam infringindo-o, pouco vale, ou melhor, nada importa um exiguo artigo de lei que lhes imponha deveres. Até, coisa notável, de todos os deveres a que elles se adstringem na promessa do doutoramento, por uma singular contradicção ás leis, um existe, que, sobre ser do numero dos de maior importância, o é também nos casos communs dos de mais facil execu- ção; entretanto, em que pese a muitos que o levam a serio, geralmente a violação do sagre do medico attin- ge entre nós tão grandes proporções que um medico passaria toda uma vida de dezenas de annos mettido em prisão cellular, se, por hypothese, se lhe podesse applicar, multiplicados pelo numero de reincidên- cias durante dez annos de pratica, os poucos mezes de pena que o artigo 192 do codigo penal commina. 3. Situação aotual da olasse medica E’ reservada esta parte do primeiro capitulo ao estudo especial da classe medica, particularmente da do Brasil, no que diz respeito ás suas condições so- ciaes e económicas. 36 Comquanto seja universalmente reconhecidas as difi culdades e a crise em que se diz debaterem-se as classes liberaes em todos os paizes da civilização europea, apezar de dizer Brouardel que é a profissão medica a mais prejudicada em toda esta transfor- mação, não parece dever ser inteiramente applicada ao Brazil a affirmação deste auctor, feita em relação á França. Seria, entretanto, imprudente assegurar que, para os médicos do Brasil, tudo corre ás mil maravilhas; pelo contrario a sua situação, em verdade tolerável, mostra-se, todavia, algo prejudicada por certas causas dependentes dos proprios médicos, de algumas condições de meio e da falta de cumprimento das leis. Quanto ás causas que dependem dos proprios mé- dicos deve ser dito que existem realmente, embora isto não seja agradavel. Brouardel (i o), a este respeito, ja disse que « a responsabilidade medica será o que os médicos quizerem.» Por isto e por outras razoes que em seguida serão desenvolvidas, pode-se dizer que, pelo menos em parte, o medico é o creador da situação em que vive, ou melhor o medico é o creador da situação em que vive a profissão medica. E’ bom fazer-se esta distincção porquanto muitos entendem de crear uma (10) La responsabilité médicale. 37 posição avantajada para si embora em prejuízo da classe; entre estes se acham os charlatães, especies de monstros que, com o alvião da mentira cavam na desgraça os sul:os por onde tem de correr o oiro para as suas algibeiras. Elles existiram em todos os tempos e têm prati- cado a sua arte de todos os modos, modernamente, porem, se aponta um instrumento mais terrivel do charlatanismo que anteriormente não existia — a quarta pagina dos jornaes. E’ este, no dizer de Tre- buchet (11), o charlatanismo mais temivel, que não pode ser pela lei reprimido. Nao é só isto, está na consciência de toda a gente õ effeito desastroso proveniente das retaliações dos médicos entre si; é desnecessário demonstrar que se- melhantes praticas são nocivas para o confrade visa- sado, para a classe e para o seu auctor. Vem a pro- posito repetir um caso interessante que Brouardel narra.. Um medico é chamado para cuidar de uma creança em sua própria residência; depois indo a doente ao consultorio do mesmo medico e expli- cando-lhe a sua mãe, que a acompanhava, o trata- mento seguido, exclamou o doutor: «Qual foi o burro que vos receitou isto? (11) Jurisprudence de la médecine, de la chirurgie et de laphar- macie en trance, 38 A sua pergunta foi respondida com a apresentação da receita. Deveras causa dó que sempre não aconteça assim. A leviandade dos médicos dá ainda á profissão prejuízos de outros modos que por menos impor- tantes não serão mencionados, sem falar na violação do segredo medico que em outra parte já foi estudada. A bem da verdade e da justiça deve ser decla- rado, primeiro, que as aífirmações acima feitas não foram produzidas com o intento de melindrar a classe medica brasileira, segundo, que esta, apezar dos defeitos enumerados, que, é verdade, melhor seria não tel-os, possue titulos de benemerencia de tal ordem que a fazem sobresahir entre todas as demais corporações. Agora, tendo sido examinadas as condições em que os médicos podem concorrer para peorara situa- ção da classe, devem ser apreciadas também as con- dições que dependem do meio. Dentre estas deve ser destacada a que resulta da relação entre o numero de clínicos e de clientes. Em França, segundo os estudos de Brouardel e Morache, augmenta sensivelmente o numero de mé- dicos nos últimos annos, o que faz peorar a situa- ção. E’ verdade, entretanto, que, segundo um estudo comparativo leito pelo auctor deste opusculo, se é exacto que o numero de doutores em medicina au- 39 gmenta, o dos que exercem a arte medica se conserva o mesmo, porquanto o accrescimo é compensado pela diminuição constante e progressiva dos officiaes de saude. De accordo com algumas informações obtidas nos estudos de Brouardel, deduz-se que em França, sem falar nas colonias, existe para cada medico apenas 2431 individuos na media (12). Segun- do Branthomme, mesmo na Algeria a proporção é de 1/1070 (i3). Vê-se pois que a situação é em verdade intolerável. Mas depois disto, veja-se qual é a situação do me- dico brasileiro, o que é mais util para ella. Nada se possue organizado a respeito e todas as difficuldades se guardam para assaltar aosque pretendam organizar. Disto temos a prova pelo pequeno resultado que obtivemos, desenvolvendo embora grande actividade e empregando não menor esforço. Procurçi obter das inspectorias de saude dos diversos Estados as informações necessárias para fazer uma estatística regular, e poder-se-ia dizer que tudo foi baldado se dos Estados do Ceará, Paranás Santa Catharina não fossem remettidos mappas que, (12) Segundo o ultimo livro deste auctor sobre o assumpto-- La profession médicale au commencement da siécle XX é de 15,770 o numero de médicos clínicos em França. (13) JJcxer cicie de lamédecine em Algeme. D, O. 40 apezar de minuciosos eperfeitamente arranjados, pa- recem incompletos, não podendo ter ainda mais utili- dade pela falta de indicações referentes aos demais Estados (14). A respeito da Bahia, as indicações se resentem dos mesmos defeitos. Nos outros Estados, apezar de pedido insistente nada foi obtido, a não ser o Rio Grande do Sul de onde me foi remettido como resposta um exemplar da Constituição Politica do Estado trazendo assignalados os paragraphos 5, 6 e 17 do art. 71: «§ 5.° Não são admittidos também no serviço do 'Estado os privilégios de diplomas escolásticos ou académicos, quaesquer que sejam, sendo livre no seu território 0 exercido de todas as profissões de ordem moral, intellectual e industrial. § 6.° Os cargos públicos civis serão providos, me- diante concurso, ao qual serão indistinctamente ad- mittidos todos os cidadãos, sem que aos concurren- tes seja exigivel qualquer diploma. O provimento dos cargos médios será feito em virtude de accesso por antiguidade e, excepcionalmente, por mérito. Os 14)) Devo agradecer aos meus collegas e amigos que me au- xiliaram obsequiosamente na tarefa trabalhosa da obtenção de dados sobre a situação dos médicos do Brasil, e muito es- pecialmente agradeço também ao Dr. Nina Rodrigues que do mesmo modo me coadjuvou como lhe era possível. — Dioele- ciano Alves de Oliveira. 41 cargos superiores serão de livre nomeação do governo, com exclusão também da exigencia de diplomas. § 17. Nenhuma especie de trabalho, industria ou commercio poderá ser prohibida pelas auctoridades do Estado, não sendo permittido estabelecer leis que regulamentem qualquer profissão ou que obriguem a qualquer trabalho ou industria. Em taes condições vê-se que é inteiramente im- possível fazer-se uma idéa da questão. Restava ainda um meio e deste lancei mão desde o principio: procurei obter das Faculdades do paiz uma lista, dos que se têm até hoje habilitado a exer- cer a profissão medica. O trabalho foi menos infructi- fero mas o resultado não foi completo; do Rio de Janeiro nada se alcançou, apezar do Dr. Nina Ro- drigues intervir com o auxilio do seu prestigio. E que provavelmente não existe lá nenhumas notas a respeito como certos factos o têm demonstrado. Na Faculdade da Bahia felizmente o contrario se deu, o sub-secretario, Dr. Matheus Vaz, prestimoso e correcto forneceu-me um indice trabalhosamente organizado do qual consegui formar um quadro nas condições desejadas. 42 Diplomas concedidos pela Faculdade de Medicina da Bahia OOOOGOOOOOOCOCGOOOOOOOOOOCOOOCCOOCOCOOOOOOOOGOOOOOOOOOOOOOOOCO wwwwwwwwoíwm k> ko ko w ko ko k> K> ko O VO OCKO Ci cn4o oo kO — O '-O 00**J C k oo ko — O VO C Cn44 03 k>9 « o Annos U' '£> >- H-< _ _ _ >- «-H ~ 1- 03<0 +L^VikiCiOO'£|«"OíH que se for- j « maram g* \ pi 03 44 oji- to w »4\vj to m feO 03 ——■—— ( v (, o que verifica- < o ram titulo \ “ kO kO Bacharéis em medi' cina que verifi- caram titulo - Officiaes desaude que verificaram titulo •■O kO 03 — k3 k3 — 40 03 que se for- ; «o maram ? £* C _ - - - - ( OQ que verifica- g; ram titulo \ g 1 22 1 C >-i QC U' OO kC k3 o Cl 03 03 — 03 03 —. 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