Faculdade de Medicina da Bahia THESE APRESENTADA A FRCUltMDE DE (DEDICIRA DR BRfllR Em 31 de Outubro de 1908 PARA SER DEFENDIDA POR fyosí Somes da Hyl-aia 3/Condeiro Pharmaceutico pela mesma Faculdade Natural do Estado de Pernambuco AFIM DE OBTER O GRAU DE DOUTOR R7vy ju\EDIC1NH DISSERTAÇÃO Cadeira de Clinica Psychiatrica e de Moléstias Nervosas PHYSIO-PSYCHOLO&IA MÓRBIDA DOS GRANDES HOMENS PROPOSIÇÕES Tres sobre cada uma das cadeiras do curso de sciencias medicas e cirúrgicas BAHIA Tyj). e Encadernação do Lyceu de Artes Prudencio de 'Carvalho, direotor 1908 Faculdade de Medicina da Bahia Director —Dr. AUGUSTO CESAR VIANNA Vice-Director —Dr. MANOEL JOSE’ DE ARAÚJO Lentes cathedraticos OS DRS. MATÉRIAS QUE LECCIONAM I. SECÇÃO Carneiro de Campos : Anatomia descriptíva. Carlos Freitas Anatomia medico-cirurgica. 2. Secção Antonio Pacifico Pereira Histologia. Augusto C. Vianna Bacteriologia. Guilherme Pereira Eebello. . . . Anatomia e physioiogia pathologieas. 3. Secção Manuel José de Araújo Physioiogia. José Eduardo F. de Carvalho Filho . Thérapeutica. 4. Secção Josino Correia Cotias Medicina legal e toxicologia. Luiz Anselmo da Fonseca .... Hygiene 5. Secção Braz Hermenpgildo do Amaral . . Pathologia cirúrgica. Fortunato Augusto da Silva Júnior . Operações e apparelhos. Antonio Pacheco Mendes .... Clinica cirúrgica, 1.» cadeira. Ignacio Monteiro de Almeida Gouveia. CliDica cirúrgica, 2.» cadeira. 6. Secção Aurélio R . Vianna Pathologia medica. Alfredo Britto Clinica propedêutica. Anisio Circundes de Carvalho. . . Clinica medica, Pa cadeira. Francisco Braulio Pereira. .... Clinica medica, 2.a cadeira. 7. a Secção José Rodrigues da Costa Dorea . . Historia natural medica. A. Victorio de Araújo Falcão. . . Matéria medica, pharmacologia e arte de formular. José Olympio de Azevedo .... Cnimica medica. 8. » Secção Deocleciano Ramos Obstetrícia. Climerio Cardoso de Oliveira . . Clinica obstétrica e gvnecologica. 9. a Secção Frederico de Castro Rebello . . . Clinica pediátrica 10. Secção Francisco tios Santos Pereira . . . Clinica ophtalmologica. II. Secção Alexandre E. de Castro Cerqueira . Clinica dermatológica e sypbiligrapliita. 12. Secção Luiz Pinto de Carvalho Clinica psychiatriea e de moléstias nervosas. João E. de Castro Cerqueira . . . Sebastião Cardoso Era disponibilidade Substitutos OS DOUTORES José Allonso de Crrvalbo 1.' secção Gonç.alo Moniz Sod ré de Aragáo . . , J oa , Julio Sérgio Palma J Pedro Luiz Celestino 3.® » Oscar Freire de Carvalho 4.a » Antonino Baptista dos Anjos .... 5.? » João Américo Garcez Fròes 6.a * Pedro da Luz Car aseosa e José Julio de Calasans . 7.» » J. Adeodato de Sousa 8.a » Alfredo Ferreira de Magalhães ... 9.a * Clodoaldo de Andrade 10. » Albino A. da Silva Leitão 11. » Mario G. da Silva Leal 12. » Secretario—DR. MENANDRO DOS REIS MEIRELLES Sub-secretario—DR. MATHEUS VAZ DE OLIVEIRA A Faculdade não approva nem reprova as opiniões exaradas nas tfeeseS pelos seus auetores. INTRODUGÇÃO J’écris... pourquoi‘?j e ne sais... parce qu’il faut Alfred Vígni. 0 assumpto que ousamos escolher para dissertação, em o nosso modestíssimo trabalho, subordinado ao titulo — Physio-psycitologia mórbida dos Grandes-Homens — re- presenta um perfunctorio estudo medico-psychologico, vi- sando a demonstração da existência de estados psychopa- thicos, de taras degenerativas e de alterações do systema nervoso em alguns dos mais preeminentes vultos da hu- manidade. Abordarmol-o, angariando os elementos indispensáveis, e a esses concatenarmos de fórma a lhes emprestar o feitio de uma tliese, foi-nos mister sacrifícios inauditos, vencendo difficuldades c empecilhos, que se nos afiguravam irre- moviveis; e, tão ingentes foram os obstáculos que, por vezes, sentimos a missão que nos impuzemos profunda- mente dolorosa c pesada. Sondarmos, na grandeza illimitada das intelligencias de escol, o pélago apavorante das encephalopathias, é sermos, 2 forçosamente, impellidos a esquadrinhar a genealogia de entes que nos merecem a mais alta estima, deduzindo, pelas taras hereditárias encontradas, a morbidez de suas predisposições; é termos de enumerar os signaes caracte- risticos da degeneração fornecidos pela anormalidade de certas particularidades anatómicas que elles apresentem; é praticarmos até a irreverencia de devassar o segredo de suas vidas intimas, onde vamos, não raro, surprehcnder germens denunciadores de alterações mentaes. O desempenho deste nosso melindroso trabalho seria imperdoável profanação se, em sciencia, os sentimentos não estivessem subordinados aos pensamentos. Sabemos ainda mais que a dignidade scientifica faculta o estudo meticuloso de todos os especimens da vasta e in- trincada floresta dos conhecimentos humanos; e que a analvse, heroina audaz, por ella enveredando, pode des- fraldar, como um symbolo glorioso, assignalando con- quistas, o estandarte sempre victorioso e victoriado, em que se lè esta divisa: — «Para a sciencia só a verdade é sagrada!» Abroquelados nos princípios irrevogáveis da religião do verdadeiro, é permittido aos seus sacerdotes submetter, sem tibiezas, ã luz e á tolerância de uma critica analytica, sincera e justa e, conseguintemente, inflexível e domina- dora, escolas philosophicas ou credos políticos, doutrinas religiosas ou theorias scientificas, joeirando-lhes os defeitos, 3 derrocando-lhes os absurdos, emfim, diaphanisar todos esses elementos esparsos da phenomenalidade universal, submettendo-os á agua lustral da grande verdade purifi- cadora. Pensando, pois, de accordo com as palavras de Sclio- penbauer—« a verdade deve ser dita ainda que suscite o escandalo » — e ainda com Leopardi que diz — « por muito desoladora que nos pareça tem sempre o seu en- canto» — adquirimos as energias e o alento precisos para dissertarmos sobre tão momentoso assumpto, prestando, desta maneira, sincero e merecido tributo de profunda apreciação á insigne cohorte dos athletas do pensamento humano, visto como entendemos que a unica soberania a que nos devemos descobrir é á da excelsa magestade dos ‘homens de genio. A genialidade e o talento, como defmil-os? 0 Dr. Culerre pondera que o genio « é um estado com- plexo para o qual ainda nenhuma definição satisfactoria foi dada ». (1) Entretanto, da deducção promanada de leituras a res- peito, encaramos o genio como a mais poderosa faculdade de synthetisação do cerebro humano, tendo, como cara- cteristico principal, a originalidade. 0 genio opera por um trabalho de ideação todo espe- (1 ) Dr. Culerre— Les frontières de la folie—Paris, 1880, p. 349. 4 ciai, em virtude do qual os intrincados phenomenos do mundo exterior desconhecidos pelo vulgo, lhe provocam, nos centros cerebraes, impressões, até então nunca per- cebidas ; a clarividência excepcional de seu espirito pos- sue a singular faculdade inventiva, o poder de descobrir, no aspecto das cousas que analysa, novos mananciacs para as altas concepções, e novos e fecundos conheci- mentos, obumbrados á investigação da generalidade dos outros homens. Na Psycho-physiologia do genio e do talento o seu auctor, traçando, com proficiência, os limites entre um e outro, diz que o genio « consequência immediata de uma organisação superior», «pertence ao homem que inventa funeções novas, antes delle nunca praticadas, ou que, sendo já conhecidas, as exerce, segundo um methodo pu- ramente pessoal e original»; cmquanto o tatonto «que se adquire pela applicação e pelo exercício », constituo um dote do ser que exerce as acções geraes melhor qne a maioria daquelles que procuram adquirir esta faculdade. (1) Charles Pdchet (2) como corollario de sua definição, conclue que o homem de genio é um ser anormal, uma excepção; e, essa excepção, pagando com as suas taras physiologicas ou psychologicas, com as suas degenerações (1 ) Max Nordau—Paradoxos, trad. de M. C. da Rocha—Rio de Janeiro, 1895, p. lio. (2) Ch. Richet—pref. de L’Homme de Génio, de Lombroso, Paris, 1903, p. VII. 5 ou psychoses, com as irregularidades cmfim de sua saúde intellectual, o pesado tributo da grandeza de seu pensa- mento tende, por um capricho cgualitaiio da natureza, a se deformar, a sc extinguir. Realmente, é um facto assentado pelo estudo anatomieo e biologicc poderem os homens superiores ser considerados, 11a quasi totalidade, como infelizes portadores dos mais accentuados caracteres physicos ou psyclncos inherentes aos degenerados, quando as suas funcções cerebraes não são precipitadas, pela pcrda total do equilíbrio da razão, nos abysmos tétricos da demencia absoluta. Nelles 0 systema nervoso é, quasi sempre, séde de no- tável morbidez; 0 caracter deturpa-se-lhes pela influencia nociva de perversões moraes; e a funeção intellectual, não raro, acompanha-se de perturbações que induzem 0 es- pirito do observador a attestar a existência incontestável de numerosos pontos de contacto entre a physiologia dos grandes homens e a pathologia dos alienados. A assimilação do genio com a loucura depara-se-nos, quer no momento actual, quer lancemos as vistas prescru- tadoras ás mais afastadas epochas. Entre os pagãos a palavra genio symbolisava divindades, que presidiam ao nascimento e ávida dos seres; ou, como as Ondinas e os Svlphos, dominavam os diversos ele- mentos. Com 0 mesmo nome appellidavam os latinos, 0 que os 6 gregos chamavam demonios, isto é, um poder invisível, influenciando sobre os destinos dos homens. Plotin externando-se a respeito, em um livro em que explica a doutrina de Platão, definiu o dcmonio de cada homem a parte superior de sua alma, o poder que preside á sua vida, inclinando-o ao amor do bem e do bello. (1) Foi certamente o mysticismo, inherente aos estados vesanicos, o laço de união entre o génio e a loucura, ori- ginando para esta a veneração e inviolabilidade que lhe dispensavam os povos da antiguidade. A etymologia prova-nos que o termo propheta figura como synonymo de louco e mau; em hebreu navi e mesngan, e em sanscrito nigrata significam, simultanea- mente, demencia e prophecia. A epilepsia, outFora, era tida como moléstia reveladora de santidade, de onde se deriva a sna denominação de morbus sacer; e a operação cirúrgica empregada como meio therapeutico em taes casos — a trepanação revestia-se de circumstancias religiosas, envolvendo os operados na sublimidade transfiguradora de entes inspirados pelo céo. A historia da pathologia mental refere-se âs cerimonias purificadoras pelas qviaes os loucos tinham de passar no antigo Egvpto, no interior dos templos consagrados aos deoses, por serem julgados dominados pelos espíritos. (1 ) M. N. Bouillet—Dictionnaire Universel des Sciences, des Lettres, et des Arts; Paris, 1872, p. 482. 7 A litteratura mantém a mesma identificação e egual acatamento. Seneca disse: «A poesia é a insania». Já no século XV Erasmo produzia um livro intitulado O Elogio da Loucura, epigraphe esta que bem caracterisa a intenção do escriptor. Democrito só considerava verdadeiramente poeta aquelle que tivesse tido qualquer desarranjo no cerebro. 0 genio, pondera Lamartine, contem em si um principio de destruição, de morte, de loucura, como o fructo encerra o verme. Em sua Phedra, Platão pensa que o delírio inspirado pelas Musas, excitando uma alma simples e pura a embel- ezar com os encantos da poesia os altos feitos dos heroes, concorre para a instrucção das gerações futuras; e, para e!le, o delirio constitue um dos maiores bens que os deoses possam enviar. Na Historia da Litteratura Ingleza, notável obra de Taine, entre muitas outras palavras concernentes aos génios destacam-se estas: «Esses homens jazem feridos pela gran- deza de suas faculdades e intemperança de seus desejos. Uns feridos pelo entorpecimento ou pela embriaguez, outros gastos pelo prazer ou pelo trabalho; os primeiros precipi- tados na loucura ou no suicídio; os últimos dominados pela impotência ou atirados à moléstia». Aristoteles commenta o facto de, sob os accessos de con- 8 gestões cerebraes, muitas pessoas tornarem-se poetas, pro- phetas ou sybillas; e que Marco de Syracusa versificava muito bem quando a razão se lhe desvairada. Elle encerrou as suas proveitosas e sabias observações nesta vulgarmente conhecida e assaz citada formula: Nullum magnum inge- nium sine quadam mixtura dementice. Pascal asseverou que o extremo talento confina com a extrema demencia. Emfim, as doutrinas sobre tão interessante estudo, avo- lumando-se pouco a pouco, conseguiram irromper do circulo estreito da curiosidade litteraria e, alastrando-se impetuosamente pelos domínios da sciencia, arrastar em sua corrente sábios da nomeada de Lelut, Gilbert Ballet, Henry Jolly, Gaston Loygue, Regnard e Régis em França; Lombroso, A. Tebaldi e Pisani-Dossi na Italia; MaxNordau, Schilling e Hegen na Allemanha; Merejkowsky, o Dr. Ra- jenow e as M.mes Tarnowski e Tekuhinowa na Rússia; Ramos Mejja e AI varado na America. Assim, traçou Révcillé Parise a physiologia e a hygiene dos homens dados aos trabalhos do espirito, analysan- do-lhes o physico, o moral e os hábitos. Emilio Laurent, em um dos seus curiosos trabalhos, mostra a existência de pontos de contacto entre os escriptos dos alienados e as poesias dos decadentes. (1) (1) Dr. Emile Laurent—La poésie décadente devant la Science psychiatrique, Paris, 1897, pag. 45. 9 0 Dr. Cabanés tem publicado uma serie proveitosa de observações medico psychologicas sobre diversos génios alienados. A individualidade psychica de Emílio Zola foi proíi- cientemente commentada em um dos bellos livros de E. Toulouse. Moreau de Tours, encarando a questão scientificamente em sua Psycholoc/ie Morbide, concluo que «as disposições que fazem com que um homem se distinga dos outros pela originalidade de seus pensamentos e de suas conce- pções, por sua excentricidade, pela energia de suas facul- dades intelJecluaes, promanam das mesmas condições or- gânicas que as diversas perturbações moraes das quaes a loucura o a idiotia são a mais completa expressão». Lombroso affinna que «o genio é uma verdadeira psy- chose degenerativa do grupo das loucuras moraes, que pode temporariamente gerar-se no seio de outras psychoses, tomar-lhes a fôrma, conservando, todavia, certos cara- cteres especiaes que permittem distinguil-a de todas as outras ». O douto professor .1. Grasset consagrou uma das suas inslructivas prelccções de clinica medica á refutação e ex- planação de algumas theorias sobre o thema— A r idade intellectual c. a nevrose. Resalta, pois, como resultante inconteste do pensar, se não harmonico, pelo menos pouco divergente de todos 10 esses observadores, a idea que aventámos airaz — haver um canto escuro no psycliismo ou no systcma nervoso de quasi todos os superiores intellectuaes onde se acoitam as suas anormalidades physicas, as suas doenças psychicas, ou as suas aberrações moraes. Eis o que iremos demonstrar nos capítulos seguintes deixando agora cahir-nos da penna o ponto final destas adiaphoras considerações. CAPITULO I Physiopathologia dos Grandes Homens Estigmas physicos da degeneração .«A predisposição é a moléstia que dormita », escreve Féré. (1) E nós conhecemos bem que as afíecções mentaes só se desenvolvem em terreno psychopatliico, adrede pre- parado, por causas hereditárias ou individuaes. São, por conseguinte, os predispostos as suas victimas... Este mesmo auctordiz, e assim também pensamos: «O que mais importa procurar para descobrir a predisposição, não é a hereditariedade, porém os signaes objectivos da degeneração (2). Que se deve entender por degeneração? Morei, o seu notável perscrutador, assim a concebe e explica: «A idéa mais clara que podemos fazer da dege- neração da especie humana é represental-a a nós pró- prios como um desvio doentio do typo primitivo. Este desvio tão simples como o suppoem na sua origem contem, entretanto, elementos de transmissibilidade de tal natureza, que o indivíduo que tiver o germen se torna cada vez mais incapaz de preencher a sua funcção na hu- manidade, e o progresso intellectual, já paralysado na sua (1-2) Ch Féré, La Fainille Névropathique, Paris, 1898, p. 130 e 253. 12 pessoa, acha-se ainda ameaçado nas dos seus descen- dentes. » (i) Ouaes são os signaes que caracterisam os seres degene- rados? Como denunciadores do estado degenerativo do homem incriminam-se certas irregularidades anatómicas, não per- tencentes á raça, e impropriamenle designadas por Morei pelo nome de estigmas ghysicos, os quaes alteetam a íõnna de deformidades, de formações múltiplas o de paraiysa- ç.ões do desenvolvimento. Essas malformações somaticas merecem real mente o acolhimento da clinica psychiatrica; todavia convém dizer que só bem caracterisadas e peloaccumulo são que podem, com segurança, influenciar como consequência denuncia- dora de perturbações mentaes. Tratemos, pois, de pesquisar a sua existência entre alguns dos mais illlistrados e celebres personagens sub- mettendo-os a minucioso exame morphologico. As modificações anatómicas da extremidade cephalica de maior importância e menos contestadas, sob o ponto de vista clinico, caraeterisam-se por anomalias de volume ( l) A. Morei, Traité des dégénéreseences de 1’espèce hu- raaine, Paris, d857, p. f>.“ 13 e de fôrma, e têm, geralmente, como origem, um vicio do desenvolvimento do cerefero. Nos grandes homens são constantemente assignaladas; e assim notamos que cm muitos o volume do craneo, ul- trapassando a media counnum, nos fornece os exemplos de macroceplialia encontrados em Cuvier, Napoleão, Tour- guenelí, Kant, Volla, Pctrarca, S. Ambrosio e Fusinieri. Alguns como Paute, Ilermann, Gambetta, Foscolo e Lasker, a capacidade craneana é tão extraordinariamente diminuída que lembra a dos microcephalos. Em Milton, Cuvier, Gibbon e Linneu, a hydrocephalia foi apontada. Outros tiveram o craneo asymetrico e defeituoso como Pericles, Romagnosi, Bichat, Kant, Napoleão, Mallebranche, Dante e Verlaine. À plagiocephalia foi observada em Brunacci e Machia- velli. Oxycephalico era o craneo do pbysico Nobili. * Notificamos, egualmente, entre elles lesões cerebraes, congénitas ou adquiridas. Assim: Vico, o celebre cantor Graty, Mabillon, Ci- mente VI, Mallebranche e Cornelio deveram a superiori- dade de espirito que os innnortalisou a traumatismos na cabeça. Em Rousseau encontrou-se hvdropisia dos ventrí- culos; em Grossi, Donizetti e Schubmann meningite; em 14 Liebig e Tiedemann edema cerebral; em Pascal graves lesões nos hemispherios cerebraes; em Gauss e Bichat maior desenvolvimenlo do hemispherio esquerdo. * Quanto ao peso*do cerebro C. Baslien e Broca, depois de pacienles indagações chegaram a concluir que entre os in- divíduos de cultivo intellectual e os das classes incultas o peso do cerebro aiigmenta naquelles. C. Baslien affirma (pie a proporção dos cerebros exce- dentes de 1.500 grammas é, nos homens illustres, para mais de 40 por cento; emquanto nos das classes inferiores da sociedade a percentagem é apenas de 4 a 0/00. (i) O peso medio do cerebro, como nos é notorio, varia com as raças, com os sexos e com as edades, tendo, se- gundo Sappey, para o homem o valor quantitativo de 1182 grammas, segundo Broca o de 1157. Os homens superiores deixam apreciar, da mesma fôrma que os loucos, cerebros que se não submettcm ás restri- cções ponderaes da media geral. Embora com duvidas a respeito, vemos dar-sc para o de Cromwel 2231 grammas, e para Byron 22.88. 0 de Scbiller pesava 1050 grammas; o do chi mico Liebig 1352; o do anatomista e physiologisla Tiedemann 1254. Com garantia de authenticos lemos para Cu vier 1820 (1) Ch. Debierre, Traité Élémentaire d’Anatomíe de 1’Homme, Paris, 1890, v. II, p. 89. 15 gramnras; Dr. Abercrombie 1780; Dante 155(3; sir James Simpson 1530; Daniel Webster 1510; Agassiz 1512; Ganss 1-401; Dnpuytrcii 1436; Gambetta 12-41. (1) A face pode deixar de guardar regularidade symelrica dando á physionomia do indivíduo extravagancia e leal- dade. Soerales, Ibsen, Cooper, Sardou, Darwin e Postoiewsky liuham as leições dum eretino. Em Verlaine «as maçãs das faces salientes, os olhos aper- tados o a barba rara» imprimiam-lhe á physionomia, se gundo Nordau; o cunho do lypo mongolico. * -X- O alongamento das maxillas, constituindo o progna- tismo frequen temente encontrado nos idiotas, vè-se também em Carlos V, em seu irmão e em Foscolo. * Pelo exame da bocca e suas dependencias verificam-se varias anomalias próprias dos estados de idiota, como a daferupção precoce notificada em Cnriobenlatus, Luiz XIV, Mazarin, Mirabeau o P. Broca, que nasceram providos de alguns dentes. (2) * A orelha de Mozarl, em nada semelhante á das raças (1) Viault et Jolyct, Trai té Élémentaire dc Physiologie Hu- maine, Paris, 1903, p. 828. (2) Cl). Debierre, op. cit., vol. II, p. 446. 16 superiores, e sim a dum negro, apresentava a particulari- dade do desdobramento do hetix. Max Nordau observou em Stephane Mallarmé a anomalia muito vulgar nos alienados—orelhas compridas e pon- tudas de satyro. (1) * A estatura nos grandes homens, por singular contraste, raramente deixa de ser extremamente restricta. Lombroso em sua notável obra—O Homem de Génio apenas menciona como sendo altos a vinte e tres gigantes do pensamento. Dentre clles destacamos: Volta, Petrarca, Mirabeau, Bismarck, os Dumas, Schopenhauer, Lamartinc. Yoltaire, Pedro o Grande, Carlyle, Flaubert, Washington e TourgucneíT. (2) , V pequenez do physico vè-se em quasi todos os mais laureados poetas, nos mais insignes literatos, nos maiores políticos c nos grandes theologos. Assim, foram baixos, entre muitos outros: Horacio, Milton, Erasmo, Aristoteles, Platão, Epicuro, o philosopho Dati, Diogenes, Cooper, John Stuart MiII, Confucius, Mon- taigne, Dalzac, Cuvicr, Archimedes, Linneu, Alexandre, ti) Max Nordau, Degeneração, trad. de M. C. dã Rocha, Rio de Janeiro, 1896, vol. III, p. 69. (2) C. Lombroso, UHorame de Gônie, trad. franc. por Co- lonna d’Istria, Paris, 1903, p. 9; dessa importante obra co- lhemos uma grande parte dos exemplos dos Grandes Homens, citados como provas de nossas asserções. 17 Miguel Angelo, Calvino, Luthero e Alberto o Grande. Pope era tão pequeno que, para sentar-se á mesa, neces- sitava de um coxim em sua cadeira. Celebrisaram-se também pela exiguidade de altura estes valentes sectários de Marte: Attila, Actino, Carlos Martel, os almirantes Keppel e Nelson, Frederico o Grande» Cromwel, Weliington e Napoleão I. Entre nós, apenas consignaremos, por falta de espaço, como tendo estatura áquem da mediana, as seguintes no- tabilidades: Thomaz Antonio Gonzaga, Tobias Barrelto, Gonçalves Dias e o denodado propagandista republicano Silva Jardim. Este, em suas Memórias e Viagens, conta ter provocado, por varias vezes, admiração, e ter sido tratado por menino, quando apresentado aos correligio- nários que, depois, nos comícios, sabia prender e arrebatar nos arroubos gigantescos de sua palavra fluente, intrépida e convincente. * Pertence á hereditariedade a continuidade da raça, pon- dera II. L. de Vilmorim; portanto, a dissimilhança que se observa nos grandes homens, postos em comparação com os demais membros de sua íamilia, ou mesmo com o proprio typo da nacionalidade, deve ser encarada como um caracter de hereditariedade mórbida muito vulgarmente apontado nos degenerados. Idêntico modo de pensar existe, alem de em muitos outros, em Moreau de Tours, Morei e Fèré, para quem a 18 falta de semelhança na descendencia ê o indicio da dimi- nuição da vitalidade do indivíduo e da descontinuidade da raça. (1) Foscolo, Miguel Angelo, Giotto e Haydn em nada se pa- reciam com os paes. Em Humboldt, Wirchow, Bismarck, Ilelmholtz e Wagner se não reflectiam os traços do typo germânico; Byron, Tennyson, Carlyle, Darwin, Goleridge, Poe, Dickens e Burns nem sequer tinham o esboço da physionomia ingleza; a feições gaulezas não seriam absolutamente encontradas em Guy de Maupassant, Sardou e Laboulaye; como modelo piemontez jamais se aproveitariam a Cavour, D’Azeglio e Alfieri; e Garducci se não denunciaria como italiano. * 0 Dr. Cabanés (2) apresenta-nos como onychophagos a—Talleyrand, Lamennais, Dupuytren, Condorcet, Robes- Napoleão eBerthier; podemos asseverar, entretanto, que «de todos os hábitos viciosos ou nocivos encontrados pelos neurologistas e psychiatras nos degenerados, o de roer unhas é certamente o mais frequente». (3) (1) Ch. Fèré, ob. cit. pag. 134. *2) Dr . Gabanés, cit. por J. Grasset nas Leçons de clin. med., IV serie* Paris, 1903, pag, 711; tomamos emprestadas da. no- tável conferencia do erudito professor de Montpellier — La su- periorité intellectuelle et la nevrose, algumas das observações citadas em o nosso despretencioso trabalho. (3) Dr. Edgard.Berillon, L’Onychophagie, Paris, 1894, pag. 5. CAPITULO II Psychopathologia dos Grandes Homens Estigmas psyehicos Ao lado dos estigmas physicos que acabámos de passar em revista,.surgem outros de maior importância revelados por diversas anomalias da intelligenda, do caracter e do senso moral, aos quaes .Magnan, com incontestável pre- cisão, denominou de estigmas psyehicos. Procuremos averiguar a existência delles nos mais ce- lebres cultores do pensamento. % Não são escassas ao systema nervoso dos grandes homens as desordens das funcçòes motoras, representadas por convulsões e por ticos considerados, na opinião de Raymond, como expressões ou productos do estado de degeneração. (I) Pedro o Grande, pelo interessante retrato feito por Saint Simon, soílria dum tico. que lhe transformava a physionomia dando-lhe um ar severo e feroz, apavorante (' terrivelmente desvairado. (v2) Ruffon, Santeuil, Crébillon, Lombardini commettiam as mais extravagantes contorsões do rosto. (1) Raymond, Clin. des mal. da syst. nerv., Paris, 1896 (Leçons sur les myoclonies). (2) J, Grasset, Leçons de clin. med., Paris. 1898, serie 111, p. 937. 20 Ghateaubriand, durante muito tempo soffreu dum mo- vimento convulsivo do braço; Napoleão movia por uma convulsão habitual, o hombro direito e os lábios; Zola tinha um tico no olho direito e um tremor nos cledos que o fazia muitas vezes derramar o liquido dos vasos que se- gurava, e lhe impossibilitava a leitura de seus discursos em publico; Montesquieu e Lenau trabalhavam agitando convulsivamente os pés; Ampere tendo o corpo agitado por um movimento continuo, e sempre passeando, é que podia coordenar seus pensamentos. Byron ao ouvir recitar Kean foi atacado por um accesso de convulsões. Turenne, affirma-nos Moreau de Tours, era sujeito a uma especie de movimento choréaco das espaduas. Paganini, Moreau, Schiller e Pascal, (este até os seus 2-4 a mios) tiveram convulsões. Melchior de Vogué conta que em Dostoiewsky ticos ner- vosos provocavam-lhe nas palpebras, nos lábios, em todas as fibras de sua face, intensa tremulação. (I) Accessos convulsivos impediam a Moliére de trabalhar durante muitos dias seguidos. 0 mancinismo é considerado pelos clínicos como uma das anomalias do systema nervoso. (1) Cit. pelo Dr. Gaston Loygue, Étude sur Th. Dostoiewsky. Paris, 1904, p. 33. 21 Esquerdos foram, segundo Lombroso: Bcrtillon, Tiberio, Miguel Angelo, Morse e Leonardo de Vinci. •* Os diíferentes períodos de exaltação, de depressão e de perversão da sensibilidade psychica que se encontram fa- miliarmente nos alienados, são lambem apontados nos grandes homens. A excessiva impressionabilidade é, sem contestação, um dos principaes estigmas dos degenerados. Morei vae até ao ponto de querer constituil-a como altributo, o maisimpor- tante, para o diagnostico da degeneração. Aos intellectuaes esse estado de superexcitabilidade é inherente, porque para elles as sensações manifestam-se mais vivas, mais intensas. Féré corrobora essa nossa asserção quando affirma que os homens de genio «são dotados duma excitabilidade tal, que nelles ultrapassa as regras psychologicas ordi- nárias». (1) Th. Ribot em um dos seus bons livros, escreve: « A' me- dida que o systema nervoso se desenvolve, que a intelli- gencia augmenta, o ser torna-se mais sensível á dor. Emfim, ella attinge seu mais alto grau no homem, e como o homem de genio sente mais a vida elle soffre também mais». Essa extraordinária vibrar til idade do systema nervoso, (1) Ch. Féré, ob. cit. p. 41. 22 é traduzida por muitos dos trabalhadores do espirito, como um beiIo signaí de invejável superioridade quando, infeliz- mente, não raro, o é simplesmente pathognomonico. No Journal des Goncourt, esses delicados buriladores das letras, jactando-se da vibrante nervosidade de suas consti- tuições, confessam que se deixam dominar pela acção «da menor contrariedade moral, como do mais ligeiro choque exterior ». George Sand, em uma bellissima apreciação sobre a ex- cessiva sensibilidade que durante toda a vida torturou o celebre compositor de inspiradas valsas Chopin, diz: «que uma nada, a dobra de uma pétala de rosa, a sombra duma mosca o fazia soífrer». Schopenhauer atemorisava-se ao ver uma navalha, e sempre que os seus credores lhe escreviam o nome com dons p enraivecia-se. recusando pagar-lhos. Deixou es- cripto estar o grau de intelligencia de uma pessoa na razão inversa da capacidade de tolerar os grandes ruidos, tão facilmente se emocionava. Como elle detestavam a musica Musset, De Goncourt, FJaubert, Kant, Carlyle, Cavour e Goethe. Debureau não tolerava o mavioso e tão apreciado canto do rouxinol. Flaubcrt, apoderava-se tanto dos papeis dos personagens de seus primorosos livros que, ao descrever o envenena- 23 mento de M.me Bovary, sentia na bocea o sabor agridoce do arsénico, chegando até a vomitar. Schiller, Dickcns e Iíleist entristeciam-se extraordinaria- mente com a sorte dos heróes de seus livros. Este ultimo, ao terminar uma tragédia em que vinha a fallecer a heroina, dirigiu-se em prantos a um amigo exclamando: « Morreu, cila morreu! » Taine conta o caso passado com Burns que rompeu em lagrimas, ao contemplar um quadro representando um sol- dado morto sobre a neve tendo ao lado a mulher, o filho e o cão. Ainda hoje, confessa Ilaller, a leitura duma acção ge- nerosa me commove até ás lagrimas. Multiplicae as almas sensíveis e augmentareis as boas c as másacções, escreveu Diderot — para quem as fortes ven- tanias pareciam enlouquecer o espirito. São de Sterne, o delicado poeta psychologo, estas pa- lavras: «Quando leio a historia dos nossos antepassados choro como se fosse o espectador do que ahi se passa ». A extrema hyperosmia de Baudelaire emprestava-lhe uma suscoptihilidade tal que lhe permittia sentir nos es- tofos o perfume das mulheres. Barthez ficou tão desgostoso pelo simples facto de ter sahido na impressão de seu Génie pouco visivel o accento do é que, por muito tempo, não ponde conciliar o somno. 0 aroma das rosas provocava delíquios a Urquiza. 24 Soerates descalço caminhava indifferentemente pela areia escaldante, em pleno sol, como por sobre o gelo; e com o mesmo manto cobria-se, quer no inverno, quer no verão. Graças á photoparesthesia de que era dotado fitava demoradamente o sol sem se incommodar. Ao dirigir a orchestra Lulli adquirira o habito de marcar o compasso batendo, impassível á dor, com a ba- tuta nas costas da mão, onde fizera uma ferida que lhe causou a morte. Succedia a Rubinstein, pelo enthusiasmo de que se apossava nos concertos, quebrar as teclas dos pianos e, apesar das callosidades dos seus dedos, licar com elles, sem se aperceber, vertendo sangue. Em Gardan depravara-se-lhe de tal fórma a sensibili- dade que para elle gosar algum bem-estar torturava-se, na ausência de soffrimentos reacs, mordendo os lábios e os braços até sangrarem. Para Byron as febres intermittentes causavam-lhe sen- sações deliciosas. 0 homem de génio, qual escaphandro divino, quando mergulha no mar intangível de suas profundas cogitações, de la arrebatando a pérola preciosa da inspiração, talvez pelo valor assombroso do achado, ao vòl-a, todo se transforma, do mundo se esquece, e como que allucinado fica. 25 Vejamos como o erudito scientista Révoillé-Parise o re- trata no momento supremo da inspiração: « Nota-se-lhe a pequenez e a contracção do pulso, a pallidez e a frialdade da pelle contrastando com o afogueamento da cabeça, com o brilho, a congestão e o desvairamento do olhar. Succe- dendo quasi sempre que, depois de passado o momento da cogitação, o proprio auctor não comprehende o que es- creveu pouco antes ». Lombroso diz que nada se assemelha melhor ao alie- nado preso do accesso de loucura que o homem de genio (juando medita e elabora suas concepções. Ivuh escreveu as suas mais bellas poesias num estado intermediário da loucura e razão, quando era incapaz do menor raciocínio. Tasso quando trabalhava assemelhava-se a um possesso. Gomo um epiléptico, gritava, cantava, agitava-se, Gian- nina Milli, no momento que, dando livre vôo ao pensa- mento, meditava os seus maravilhosos versos. Muitos dos intellectuaes que se estudaram a si proprios, referindo-se á inspiração, descrevem-na como dulcissimo e arrebatador estado febril do qual, rapida e involunta- riamente, o pensamento fecundo irrompe, assim como dum carvão candente, que se agita, salta brilhante a ignea faisca. No Epistolario declara Foscolo que o escrever depende 26 duma agradavel febre do espirito, a qual se mão tem quando quer. Lagrange sentia as pulsações tornarem-se irregulares. Um dos caracteres do genio, suppõc perfeitamente Ilagen, é a irresistibilidade impulsiva de acção; e para Jiirgen-Mcyer cousa alguma lia mais involuntária que a concepção genial. Taine, de pleno accordo com taes palavras, disse: «Nada ha de tão imprevisto como o talento; e não seria talento si não fosse imprevisto)). Cabe a Socrates os direitos de ter notado que os poetas crêam graças a um instincto natural, da mesma maneira que os augures prediziam as mais bellas cousas sem que a consciência concatenasse-lhes os discursos. Idêntica era a opinião de Voltaire, quando em uma carta enviada a Diderot, assim se expandiu: «Tudo quanto deriva do genio é o eíTeito do instincto ». Assim, Fagundes Varella escrevia sempre inspirado, como de improviso e de uma vez as suas composições, os seus cantos; e, o que se deve notar, não os relia nunca para corrigi l-os. (1). Em Alfieri, Goethe e Ariosto a creação intellectual dava- se instantanea e quasi sempre á noite. Lamartine declarou: « Não sou eu quem pensa, são as minhas idéas por mini)). (1) Obras completas de L. N. Fagundes Varella, por V. Coa- racy, Rio de Janeiro, 1880, p, 50. 27 «Para compor, confessava Iloffmann, sento-me ao piano, fecho os olhos e executo o que percebo dictarem- me de fóra.» Mozart não occultou que as suas concepções musicaes lhe vinham involuntariamente, á semelhança dos sonhos. Para Napoleão a sorte das batalhas dependia dum pen- samento preconcebido, explodindo em tão fortuito mo- mento que, depois de sua erupção, a victoria era certa. Balzac que só escrevia á noite, no dia immediato era incapaz de se recordar de cousa alguma. Quando Marini compunha seu Adónis fez num dos pés uma profunda queimadura-da qual se não apercebeu abso- lutamente. Alguns homens superiores apresentam certos hábitos exquisitos, ou collocam-se na occasião do trabalho em condições próprias a provocar-lhes um estado congestivo da viscera cephalica. Schiller immèrgia os pés no gelo, e aspirava os gazes nauseabundos das maçãs apodrecidas, guardadas previa- mente nas gavetas das mesas em que trabalhava. Paisiello sepultava-se em um montão de cobertores de lã. Bossuet recolhia-se a um aposento bem frio, envol- vendo a cabeça em pannos quentes. Cujas deitava-se de bruços num tapete. Leibnitz meditava em posição horisontal. 28 Milton.e Descartes enterravam a cabeça em almofadas. • Rossini compunha deitado na cama. Rousseau expunha a cabeça em pleno meio dia, aos raios abrazadores do sol. Dostoiewsky estudava em seu quarto de dormir durante a noite expondo-se ás correntes de ar, pelo que apanhava constantes resfriamentos. (1) Observamos que alguns grandes homens tiveram rasgos de soberbas concepções em estados somnambulicos ou em sonhos; e Paulo Richter opina que o homem de genio é, sob diversos pontos de vista, um verdadeiro somnambulo. Goethe confessou ter escripto muitas das suas poesias em uma especie de somnambulismo. Os Deux Pigeons foram creados em sonlio por La Fon- taine. Em sonhos obtiveram Klopstock o seu bello Pop,ma, Voltaire um dos cantos da Henriada, e Coleridge parte de sua Kubla. Sonhando compunham Sardiní e Seckendorf suas ma- viosas Fantasias. Newton e Cardano assim resolveram vários problemas de mathematica. Condillac dormindo completou uma lição que em vigilia havia interrompido. (1) Dr. Gaston Loygue, ob cit. p. 15. 29 Quanto á precocidade desses talentos excepcionaes não incorreremos em erro, apontando-a como uma tara dege- nerativa. O provérbio que diz: Um homem dotado de génio aos 5 annos será doudo ao i5, poucas vezes soffre contestação- Cli. Féré declara que os meninos prodígios se apre- sentam, quasi sempre, como candidatos á imbecilidade ou á loucura (1); Moreau de Tours corrobora essas palavras asseverando que elles, em geral, descendentes de paes ne- vroticos, quasi todos morrem jovens ou tornam-se loucos. Confirmando fortemente o modo de pensar desses dois illustrados alienistas, destacam-se as observações incon- testáveis sobre os filhos dos alienados que se mostram, também, assiduamente dotados de notável precocidade. Pascal, o sublime e prodigioso menino, que a duqueza d’Aiguillon apresentou ao cardeal de Richelieu como sendo um grande mathematico, inventava proposições de geo- metria aos 11 annos e aos 18 refundia a physica. Ampere aos doze annos era mathematico. Os membros da familia Bernouilli eram notáveis matlie- maticos aos 18 e 20 annos. Um delles, João III, foi doutor em pliilosophia com a edade de 13 annos. Gausagne de la Place, considerado o mais poderoso cal- culador do seu tempo, aos 10 annos, dedicava-se ao es- (1 ) Gh. Fèrè, ob. cit, p. 42. 30 tudo de cálculos profundos, e dizia de si mesmo que havia aprendido a calcular antes de saber falar. Aléxis Clairant aos 12 annos apresentava memórias ♦ scicntificas á Academia das Sciencias de Paris, sendo jul- gado digno de fazer parte da mesma aos 18. Comte desde os seus 13 annos qno era acatado como um grande pensador. Jonathan Edwards mostrou-se um talento tão precoce que aos 12 annos muitas pessoas julgavam-no um novo Aristoteles. Bichat, essa gloria scientifica, morreu aos 32 annos. Villemain, apenas com 19 annos, foi nomeado professor de rhetorica do Collège Charlemagne. Pregava sermões com a edade de 4 annos; e aos 10 escrevia Gassendi, um importante discurso. Aos 10 annos Pic de la Mirandole era' lido como um competentíssimo philologo e orador, conhecendo já o latim, o grego, o hebreu, o chaldaico e o arabe. Guillaume Wotton, aos 5 annos, lia e traduzia latim, grego c hebreu ; e, aos 10, o chaldaico, o syriaco e o arabe. Com 10 annos Gcethe escrevia varias linguas. Lia D’Aubigné, com a edade de 6 annos, o latim, o grego e o hebreu; com a mesma edade Montaigne conhecia per- feitamente o latim. Niebhur, que já era um verdadeiro prodígio aos 7 annos, aos 12 conhecia magistral mente 18 linguas. \ 31 Mirabeau, que já discursava aos 3 ânuos, publicou vários livros aos 10; Pope aos 12 imprimiu os seus primeiros versos; e Gerardo.de Nerval, já aos 18, tinha escripto al- gumas obras. ltcimène foi imaginada e composta por Victor Hugo aos 15 annos; e Lamennais aos 10 produzia as suas Paroles dun croyant. Thomaz de Quincey aos 15 escrevia versos lyricos cm grego. Já eram verdadeiros poetas: Tasso aos 10; Byron aos 12 e Casimiro Delavigne aos 14 annos. J. J. Rousseau aos 11, Bossuet aos 12 e Voltaire aos 13, revelaram-se como phenomenalmente talentosos. Raphael aos 14 e Miguel Angelo aos 19 eram primorosos artistas. Creanças ainda, 6 annos unicamente, já davam concertos Eichhorn, Mozart, Eybler e G. Crotsh. Ilaendel, que aos 19 annos era director do theatro de musica de Hamburgo, compoz sua primeira opera aos 20; Weber apenas com 14 annos fazia representar a sua pri- meira opera; e Bocthowen aos 13 já havia composto trez das suas agradabilíssimas sonatas. Meyerbeer ainda creança de 5 annos tocava maravilho- samente piano. Calvino aos 20 annos era um grande reformador. Jesus, muito cedo, mostrou o fulgor de sua extraordinária 32 mentalidade: tendo somente 12 annos abandona a com- panhia de seus paes, que o vão encontrar .discutindo a lei, cheio de admiravel sabedoria, entre os doutores do templo de Jerusalém. (1) A litteratura brazileira regista também, em sua historia, numerosos exemplos de precoce intcllectualidade. Fagundes Varella aos 11 annos, Dutra e Mello aos 17 e Laurindo Rabello aos 18 já manifestavam notável talento poético. Tobias Barretto, talvez a nossa mais proficiente com- pleição philosophica, musico, poeta, orador, jurisconsulto e critico, já aos 17 annos publicava famosos versos escri- ptos em latim. Alvares de Azevedo, o Byron brazileiro, que chegou, pelos seus profundos estudos em jurisprudência, a annotar diversas obras; Casimiro de Abreu que, aos 15 annos, es- crevia a maravilhosa poesia—Ave Maria!; Castro Alves que revelou desde os seus estudos primários portentosa e vivaz intelligencia, falleceram, legando á immortalidade os seus nomes laureados, o primeiro com 20, o segundo com 23 e o terceiro com 24 annos apenas! Em Gonçalves Dias, cuja erudição vastíssima abrangia o perfeito conhecimento'do latim, do hespanhol, do francez, * do italiano, do allemão e respectivas litteraturas, foi muito precoce o poetar. (1) Lucas, cap. II, v. 42 e seg. 33 Se os grandes homens offerecem fartos exemplos de sur- prehendente precocidade intellectual, também se não re- cusam a dar provas abundantes de genialidade tardia. Beard explica a existência dos génios tardios pela falta de occasiões favoráveis ao seu desenvolvimento e pela ignorância dos professores e dos paes que capitulam de obtusidade mental, e até de idiotia, o que apenas é dis- tracção ou amnésia do genio. Abundam realmente os exemplos de creanças reputadas pelos mestres como estouvadas, imbecis ou ignorantes, depois glorificadas como grandes talentos ou mesmo como génios admiráveis. Como taes, cita Lombroso, entre outros, a Tliiers, Pesta- lozzi, Wellington, Burns, Balzac, Alfieri, Dumas pae, Hum- boldt, Boccacio, Linneu, Volta e Cabanis. Gustavo Flaubert aprendeu a ler com bastante difficul- dade; porém deixava adivinhar, quando creança ainda, pelas composições dramaticas que representava em se divertindo, haver em seu cerebro a elaboração intellectual que o tinha de transformar, no futuro, em eximio artista. Walter Scott quando se ensaiava na composição de seus encantadores contos, era apontado na escola como um parvo. Newton, classificado como o ultimo da classe, mostra- va-se, entretanto, perito em organisar brinquedos mecha- 34 nicos; e, por se absorver na meditação dos problemas de Kepler, esquecia quasi sempre os recados ou as commis- sões de que era incumbido por sua mãe. * Faltando aos degenerados coordenação nas idéas, sendo refractarios á disciplina e á perseverança da attenção, (|ue jamais podem concentrar em um determinado ponto, permanecem incapazes de todo trabalho regular e metho- dico. E’ assim que emprehendcm, successivamente, os mais divergentes projectos, percorrendo grande numero de profissões, insubmissos sempre a qualquer occupação que exija tenaz applicação. A mesma variabilidade profissional registamos entre os cultores insignes dos grandes ideáes. Paracelso era magico, cirurgião e alchimista. Swift, alem de suas poesias satyricas, escreveu sobre manufacturas da Irlanda, theologia, polifica e historia. Cardan foi ao mesmo tempo mathematico, medico, theo- logo e literato. Rousseau desempenhou as seguintes profissões: pintor, mestre de musica, charlatão, philosopho, botânico, poeta, relojoeiro e gravador. Hoffmann occupou a cadeira do magistrado, manejou o lapis do caricaturista, sendo musico, romancista e auctor. dramatico. Tasso, e depois também Gogol, dedicou-se a todos 35 os metros da poc ia epica, dramatica e didactiea, ten- tando escrever sobre historia, phitosophia e política. Durante a juventude manejou Ampere o pincel e dedi- lhou a lyra e a rabeca; foi depois linguista, natura- lista, physico e mathematico. Escreveu Haller sobre poesia, theologia, botanica, medi- cina pratica, physiologia, numismática, linguas orientaes, anatomia pathologica e cirurgia. A medicina, a agricultura, o direito, a poesia e a theo- logia foram estudados por Lenau. 0 moderno poeta dos anglo-americanos, Walt Whitman foi typographo, professor, soldado, rachador de lenha e burocrata. *• A amnésia e as suas concomitantes distracções fazem parte da symptomatologia de quasi todas as affecções ce- rebraes, e, mão raro, se as encontram nos intellectuaes. Newtonfoi, durante a vida inteira, um grande distrahido. Em uma occasiâo, conta-se, encheu o cachimbo com o dedo de uma das suas sobrinhas; e, sempre que sahia do quarto para procurar qualquer objecto, voltava, invaria- velmente, sem trazel-o. Diderot esquecia-se das carruagens que alugava, a ponto de chegar a pagal-as dias inteiros. As horas, os dias, os meses passavam-se-lhe despercebidos. Succedia, também, olvidar-se das pessoas com quem havia entabolado con- 36 versação; e, monologando como um somnambulo, deixa- va-se dominar por suas transcendentes cogitações. O arcebispo Munster ao regressar um dia á sua casa, vendo na porta da ante-camara esta inscripção: « 0 dono da casa está ausente», por clle mesmo collocada, abi per- maneceu, pacientemente, esperando por si proprio!... Archimedes, quando se banhava e, casualmente, con- segue descobrir a lei do peso especiíico dos corpos, tão satisfeito ficou, e tão distraindo estava, que penetra na ci- dade, correndo, completamente mi, aos gritos de: «Eureka! Eureka! » Xavier de Maistre, dirigia-se um dia á Côrte. Pelo ca- minho ia divagando sobre as magnificências da arte, sobre as beilezas da pintura a que se entregara durante a manhã; e, quando parou e julgou ir entrar na Còrle, qual não foi o seu pasmo ao encontrar-se á porta da casa de M.me IJaut- castel, a uma meia milha do palacio real! Acontecia-lhe, quasi sempre, sahir sem chapéu, sem lenço ou sem espada, ou calçar as meias pelo avesso. Depois de ter pago o aluguel de uma casa de campo, Babinet regressa á cidade onde se não recorda mais do logar em que tinha estado nem por qual estação havia partido. Internando-se pelos bosques, onde ia bebei’ inspiração para suas inimitáveis composições, Beethowen ahi succedia esquecer, algumas vezes, suas roupas. Uma occasião tendo 37 penetrado todo descomposto em Neustadt foi julgado va- gabundo e levado á prisão, onde teria ficado muito tempo, porque ninguém queria acreditar ser elle realmente o grande maestro, se não fosse a intervenção do director da orchestra Hcrzog attestando sua identidade. Tendo ido a cavallo a uma casa de campo Ampere, em meio do caminho, apeia-se e, inteiramente preoccupado na solução dum problema, volta ao ponto de partida sem absolutamente se aperceber que havia perdido o cavallo. 0 abbade Beccaria, estando uma vez com o pensamento todo concentrado em suas experiencias, terminou uma das suas missas exclamando: Ite! experientia fada est. * Dentre as modificações da linguagem articulada — as dyslalias, a mais frequentemente notada é a gagueira. Gagos foram, testemunha Lombroso: —Alcibiades, Moysés, Manzoni, Esopo, Virgílio, Demosthenes, Aristoteles, Erasmo, Darwin, Malherbe, Gatão, Turenne, Carlos V e Cardan. * A echolalia adquire na linguagem turvosa dos imbecis e dos idiotas sensível predominância. Egualmente nas producções dos symbolistas facil se nos torna a tarefa de respigarmos trechos constituídos por monotonos agrupamentos de palavras de idêntica con- sonância. 38 Em Paulo Verlaine, lios Chevaux de bois : « Voltem, voltem, bons cavallos de madeira Voltem sem voltas, voltem mil voltas, Voltem, muitas vezes, e voltem sempre Voltem, voltem ao som do oboé». (1) Uma outra composição sua repleta de assonancia porém isenta de qualquer sentido, a estrophe de Pierrot Gamin: « Não é Pierrot em herva Tão pouco Pierrot em feixe de trigo, E’ Pierrot, Pierrot, Pierrot. Pierrot estouvado, Pierrot escarninho, O cerebro fòra do casco, E’ Pierrot, Pierrot, Pierrot». Em Jean Moréas, no Pélerin pàssionné, a idéa fluctuante e indecisa combina-se ao sussurro incohcrente de sons confusos: « Os maçaricos nos cannaviaes ! (Será preciso que eu vos fale, Dos maçaricos nos cannaviaes?) O’ vós linda Fada das aguas. O porqueiro e. os porcos ( Será preciso que eu vos fale Do porqueiro e dos porcos?) O’ vós linda Fada das aguas. Do meu coração preso nas vossas redes (Será preciso que eu vos fale Do meu coração em vossas redes?) O’ vós linda Fada das aguas: Caminharam sobre as flores á beira da estrada E o vento do outono as sacode com tanta força, além disso A mala-posta derrubou a velha cruz á beira da estrada (1) M. Nordau,Degeneração, 1. III. p. 49. 39 Ella estava realmente tão podre, além disso O idiota ísabeis) morreu á beira da estrada, E ninguém chorará por elle, além disso ». Pesquisando-se as alterações das funcções auditivas, encontramos em um grupo dos symbolistas —os «instru- mentistas», a audição colorida, que consiste em pedir á palavra, simultaneamente, sensações registadas pelo dia- pasão e «eíYeito esthetico como harmonia de côres». Arthur Rimbaud, em um soneto Les Voyelles, evoca de- terminada coloração a cada uma das vogaes. Eis o primeiro verso: «A preto, E branco, I vermelho, U verde, O azul, vogaes !» René Gliil, em seu Trai té du Verbe, demonstra também 5 valor chromatico das vogaes, como o dos instrumentos. As vogaes são assim coloridas: A preto, E branco, I azul, 0 vermelho, U amarellç. Sobre os instrumentos diz elle: «Firmando a sua so- berania, as harpas são brancas; e azues são as rabecas molliíicadas muitas vezes por uma phosphorescencia para fatigai os paroxismos. Na plenitude das ovações, os in- strumentos de latão são vermelhos; amarellas as flautas, que modulam o ingénuo, admirando-se da claridade dos lábios; e, surdez da terra e das carnes, simples synthese dos instrumentos unicamente simples, os orgãos inteira- mente pretos lastimam-se. .. » 40 Na Theoria das Cores, L. Ilofímann dá a llauta como encarnada. * Para o lado do sentido do gosto apreciamos a interes- sante modificação conhecida sob o nome de gosto auditivo, pela qual se adquire a faculdade de associação das percc- pções gustativas com as acústicas. No livro A rebours, (1) instruindo-nos J. K. Huysmans sobre as particularidades da vida do duque Jean des Es- seintes, descreve-nos o seu singularíssimo «orgão da bocca», «um armario contendo uma serie de barrilinhos de licores» onde elle «compunha e executava» verdadeiras «symphonias gustativas». Des Esseintes bebia uma go4ta aqui e ali e executava symphonias interiormente que lhe produziam na garanta sensações analogas ás que a musica produz nos ouvidos »; e assim continuava-se a « musica dos licores » em «quar- tetos de instrumentos de corda... sob a abobada palatina, com a rabeca, representando a velha aguardente, fume- ganie, tina, aguda e frágil; com o alto simulado pelo rhum mais robusto, mais estrepitoso, mais surdo; com o ratafia como violoncello, o bitter como contrabaixo, e chartreuse verde era o modo maior, o benedictino o modo menor, etc.» Para esse original concerto, na opinião de des Esseintes (1) Cit por M. No rd a n, Degeneração, 1. V, p. 123 e seguintes. 41 « cada licor correspondia pelo gosto ao som de um instru- mento. 0 curaçáo secco, por exemplo, á clarineta cujo som é áspero e avelludado; o kummel, ao oboò cujo i t timbre sonoro é fanhoso; a hortelã e o anisette, á flauta, ao mesmo tempo assucarada e apimentada, choramingas e meiga; entretanto que, para completar a orchestra, o kirsch toca furiosamente a trombeta; a genebra e o whisky ar- rancam o paladar com os sons estridentes do piston e dos trombones, a aguardente de bagaço fulmina com as atroa- doras algazarras das tubas, entretanto que ribombam os trovões dos timbales e do tambor tocados por braços, na pelle da bocca, pelo rakis de Chio e a almacega! » * E’ ainda Huysmans que nos relata uma curiosa alteração olfactiva— a còr dos perfumes. Apresenta-nos o duque des Esseintes em seu gabinete contemplando a «galeria de quadros nasal», composta de «um numero considerável de frascos contendo todas as substancias odoríferas possíveis». Quando desejava-o des Esseintes « via com o nariz» os mais bellos quadros: « Com os vaporisadores, espalhou pelo quarto uma essencia formada de ambrósia, de alfazema de Mitcham, de ervilha cheirosa; isso deu a imagem de um prado florido; depois neste prado, elle introduziu uma infusão determinada de tuberosa, de flor de laranjeira e de 42 amêndoa, e logo nasceram oloendros artificiaes, entretanto que as tilias se agitavam, impregnando o solo com as suas pallidas emanações. Estabelecida esta decoração em grande extensão, ellc soprou leve chuva de essencias humanas e quasi felinas, exhalando o cheiro das saias, annunciando a presença da mulher empoada e pintada de carmim: o ste- phanotis, o ayapana, o opoponax, o cliypre, o champaka, o sarcanthus, sobre as quaes elle poz uma pequena porção de silindra, para dar, a essa vida fictícia da pintura de carmim uma florescência natural de rosas em suor, de ale- grias que se agitam em pleno sol»(1) Baudelaire, confessa-se um olfactivo quando diz que sua «alma esvoaça sobre os perfumes como a dos outros homens adeja por sobre a musica». Prefere, porém, aos odores puríssimos, o cheiro nauseante e pútrido dos miasmas humanos em decomposiçãa. Existe para elle laços de intima associação entre os per- fumes, as côres e os sons, como se vê pelos versos intitu- lados Correspondências : Ha perfumes frescos como a carne das creanças, Agradáveis como o oboé, verdes como os pradost — E outros corrompidos, ricos, e triumphantes Tendo a expansão das cousas infinitas, Como o ambar, o almíscar, o balsamo e o incenso, Que cantam os transportes do espirito e dos sentidos. (2) Zola pessuia extraordinária acuidade olfactiva. Muitas (4 ) Max Nordau, Degeneração, 1. V, p. 125. (2) Max Nordau, Degeneração, 1. 5, p. 100. 43 vezes empregava-a divertindo-se em adivinhar de seu ga- binete de trabalho, situado ácima e distanciado da cozinha, quaes os pratos que se preparavam para as suas refeições E declarava serem tomates, frango, carneiro ou peixe, do qual especificava até a especie. * Lembrar a fórma illógica e incoherente dos escríptos dos alienados, a falta de critério e de bom senso de seu comportamento, e a extravagancia de seus costumes, des- necessário é, porque sabemos que, representam, quasi sempre, um conjuncto bizarro de estultos caprichos e ri- dículas tolices. Pois bem; semelhantes disparates, idênticos absurdos, respigamos facilmente das obras e dos actos de muitos dos celebres representantes da supremacia intellectual, como iremos veriíicar. « Ella não sabia latim, mas comprehendia-o muito bem ». Victor Hugo—Les Misérables. « Quando se passa o limite não ha mais limites ».—Pou- sa rd. «As pulgas em qualquer parte que estejam, poisam sempre sobre a còr branca: esse instincto foi-lhes dado para que as possamos facilmente pegar ».—Bernardino de Saint-Pierre, Harmonie de la nature. « Somente na medida exacta em que a mulher, de femi- nidade completa, desenvolve no seu o amor pelo homem 44 ç pela absorpçao no seu ser, também o elemento mascu- lino de sua feminidade e o tem inteiramente completado em si com o elemento puramente feminino, portanto na mesma medida em que ella é para o homem não só amante, mas também amiga dedicada, è que o homem póde encontrar já no amor da mulher plena satisfação », escre- veu Wagner á pagina 159 de seu livro Obra d’ar te do fu- turo. (1) « Um bello verso que nada significa é superior a um verso menos bello que significa alguma cousa», declamou Gustavo Flaubert. (2) Ateando fogo aos seus papeis e aos seus livros, Thomaz de Quincey não quiz permittir que sobre elles se atirasse agua, porque, molhando-os, ficariam estragados... Schopenhauer, devido ao medo que lhe inspiravam as navalhas, usava queimar a barba. Occulto na roupa trazia Pascal sempre um amuleto composto de palavras incohercntes, extravagantes e mal acabadas. Paracelso considerava a sua espada um talisman fatídico e origem de seu miraculoso poder curativo. Napoleão ligava uma certa superstição ao seu celebre chapéu; via como mau augurio a letra M, o numero Í3, (1-2 ) Cit. por Max Nordau, Degeneração, livros IV p. 13 e Vp 53. 45 a sexta-feira, ficando exasperadissimo se lhe acontecia quebrar um copo. Quando passeava, mesmo á frente do seu glorioso exercito, ia sommando todos os pares das janellas, á medida que por ellas passava. Ampère imaginou convictamente ter descoberto a qua- dratura do circulo. Zola receava o insuccesso do que pretendia caso sahisse de casa com o pé esquerdo; pela rua ia contando os lampeões, os numeros das portas e acrescentando-lhes tantas cifras quantas unidades. Os múltiplos de 3 e 7 in- spiravam-lhe confiança; o numero 17 lhe era mau. Gerardo de Nerval foi encontrado passeando no Palais fíoyal trazendo presa a uma fita azul uma lagosta. Baudelaire tingia os cabellos de verde. Josephin Peladan «traja á moda antiquíssima um gibão de setim azul ou preto; e sujeita a cabelleira e a barba pretas, admiravelmente abundantes, ás formas usadas pelos Assyrios». (1) Barbey d’Aurévilly usa chapéus de seda côr de rosa e gravatas com rendas de ouro. (2) Oscar 'Wilde que aprecia vestuários estranhos, foi visto passeando « em pleno dia no Pall-Mall, a rua mais fre- quentada no West-End de Londres, com gibão e calções e um gorro grotesco na cabeça, tendo na mão, um gira- sol ». (3) Frederico lí tinha tal aversão a mudar de vestuário que durante toda a vida apenas possuiu dois ou tres. ( 1-2-3) Max Nordau, Degeneração, 1. IV, p. 96 : e V, p. 149. CAPITULO III Toxicomania, vagabundagem, halluci- nações, idéas delirantes e loucura nos grandes homens Remonta a epochas aífastadas a nefasta apreciação da humanidade pelas substancias exotoxicas, dentre as quaes predominam alarmantemente as bebidas estimulantes. Historiadores e poetas da antiguidade deixaram-nos largos commentarios sobre o apreço dos líquidos exci- tantes, e é bem conhecida a lenda bíblica em que se vò envolvido o venerando patriarcha Noé... fiaccho, o deos que a mythologia coroou de pampanos virentes, bem nos parece ser homenagem altamente signi- ficativa dos nossos remotos ascendentes aos prazeres do vinho. Hodiernamente as estatísticas accusam o progresso as- sombroso do álcool, com especialidade nos povos de culminante civilisação; e os observadores, lhe não des- conhecendo a acção eminentemente toxica e teratogena, de cominum accordo descobrem, nesse abuso extraordi- nário, a formal denuncia dum estado morbido. Assim pois, Legrain escreve: «na base de todas as fôrmas de alcoolismo encontramos a degeneração mental», (d) (1) Legrain, Du delire chez les dêgónerés. Paris, 1886, p. 258. 48 Esquirol, Lasegue, Morei e Féré insistem em ser a sede de álcool o indicio dum estado pathologico, e este ultimo assevera que «para se ser álcoolico faz-se preciso ser alcoolisavel: e não tem quem quer a sède dos licores fer- mentados». (1) As mesmas ídéas, um tanto mais expandidas, applaude o Dr, Piclion dizendo que, na base de todas as intoxicações mórbidas, por mais extravagantes que sejam, encontra-se quasi sempre o mesmo estado mental predisposto, isto é, o estado mental dos hereditários degenerados. (2) Esse apreço doentio pelas substancias exotoxicas veri- fica-se também em muitos artistas, pensadores e homens de letras. Alexandre morreu por excessos de libações. Gesar era muitas vezes transportado para casa nas costas dos seus soldados. Tasso declarou em uma sua carta: «eu sei perfeita- mente que bebo muito». Hessius, celebre poeta allemão do século XVI, afíirmou que a maior das vergonhas é ser vencido no beber. Paracelso desafiava os mais intrépidos bebedores a se medirem com ellc. Swift era o frequentador mais assiduo das tavernas de Londres. (1) Ch Féré, ob. cit., p. 13. (2) Dr. G. Pichon. Les Maladies de 1’Esprit, p. 350. 49 Pitt e Fox só depois de fortes excessos de cerveja é que podiam formular os seus discursos. Nero, Seneca, Alcibiades, Catão, Horacio, Virgílio, Pedro o Grande, Gerardo de Nerval, Musset, Poe, Hoffmann Addison, Goldsmith, Burns, Torquato Tasso, Haendel, Gluck davam-se aos prazeres ethylicos. Baudelaire era um immoderado consumidor de vinho, tabaco e opio. Lenau abusava dos vinhos, do tabaco e do café. Rousseau absorvia doses enormes de café. Tobias Barrctto que muito amava o calor e devorava o café, só podia escrever envolto em fumaças (1). Ilaller, Lord Erskine, Coleridge e Thomaz de Quincey gostavam abusivamente do opio. Guy de Maupassant, a proposito do seu trabalho Pierre e Jean escreveu ao Dr. Maurício de Fleury o seguinte: « Esse livro, que com toda a precisão, assim o entendo, julgaes sabio, lhe não escrevi sequer uma linha sem me em- briagar de ether...» * A tendencia dos alienados à vagabundagem, facto alheio / a qualquer refutação, domina com egual insistência nos grandes homens. Nesses o apreço pelo conforto do viver tranquillo substitue-se por uma continua agitação que os ( 1) s. Romero, Historia da Literatura Brasiieíra, Rio de Ja- neiro, '1888, t. 2 p láf>‘2. 50 impelle a mudar constaptemente de logar, abandonando o socego de seus gabinetes de trabalho pela imperiosa ne- cessidade de viagens incessantes. Paracelso, apezar de pertencer à nobreza, vivia como vagabundo, creando-se á sombra dos pinheiros e, pere- grinando ininterruptamente, assim frequentou as escolas da Allemanha, ítalia, França, percorrendo successivamente Portugal, Inglaterra, Maravia, Polonia, Hungria, etc. (1) João Jacques Rousseau, que confessa não poder absoluta- mente permanecer por mais de 2 a 3 dias no mesmo logar, inicia aos 18 annos a vida agitada e errante que levou até á morte, viajando pela França, Inglaterra, ítalia, Suissa, etc. Põe constituia-se o desespero dos redactores das revistas por andar continuamente de Boston para Nova-York, Richmond, Philadelphia e Baltimore. Em viagens continuas durante 30 annos, Meyerbeer com- punha suas operas nos trens dos caminhos de ferro, executando-as depois ao piano do primeiro hotel que en- contrava. Wagner percorreu, em sua juventude, Pariz, Riga, na Rússia, Veneza, emflm, toda a Europa. Guy de Maupassant embarcava-se inopinadamente no yacht que tinha alugado por conta própria no Mediterrâneo, recebendo muitas vezes em Cannes os convites que se lhes dirigiam para Pariz. (1) Louis Figuier, Yies des Savants Illustres, Paris, 1875, p. GO 51 Balzac mudava tão assiduamente de residência que, cha- mado a fazer o serviço na guarda nacional, não foi possivel ser encontrado, nem pelos parentes, nem pelos amigos. Gerardo de Nerval, noctamhulo, levou a vida de verda- deiro nómade. «Preciso, dizia Lenau, mudar de clima de tempos a tempos para refrescar o sangue»; e eil-o de Vienna para Stokerau, para Gmunden e, por fim, emigrando para a America. Verlaine, em França, andou errante por todas as grandes estradas, e vagou também pela Bélgica e Inglaterra. (I) Encontramos também entregues á vagueação—Heine, Byron, Tasso, Musset, Theophilo Gautier, Petrarca, Cellini, Cardan e Cervantes. Jesus manifestou sempre irresistível tendencia ambulató- ria.Desde a sua infancia quasi todos os annos fazia a jornada de Jerusalém por occasião das festas (2); e vemol-o, ora procurar o deserto onde passa, desacompanhado, 40 dias e 40 noites em fervorosas preces e continuados jejuns (3); ora internar-se, solitário, pelas ermas e alterosas mon- tanhas, sobre as quaes elabora os seus mais elevados pensamentos (4); ora entregar-se, em companhia dos dis- cípulos e de humilde e simples multidão, a constantes (-1) Max Nordau, Degeneração, 1. III, pag. 46. (2) E. Renan. Vida de Jesus. trad. E. A. Salgado, Porto 1905, pag. 56. 13) Mat,. cap. IV, v. 2 e seg; Marc., eap., I. v. 12 e 13. (4) Mat. cap. V, v. 1; cap. XIV, v. 23; Luc. cap VI, v. 12. 52 peregrinações pelas umbrosas estradas da formosa Ga- liléa. (1) Máximo Gorki, o intemerato agitador russo, que, de 1878 a 1892, data de seu primeiro romance, exerceu as funcções de sapateiro, desenhista, moço de cosinha, car- regador, corista ambulante, vendedor de rua e copista, em 1891 perambulou por toda a Rússia. No Brazil, refere o autor da Historia da Litteratura Brazileira, até hoje tem existido cinco poetas verdadeira- mente descuidosos, andarilhos, bohemios: Gregorio de Mattos no século XVII e Laurindo Rabello, Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e Fagundes Varclla. (2) Este vagava pelos campos, abria caminhos atravez das florestas, vadeava ribeiros e passava a nado caudalosos rios, ás vezes desap- parecendo durante semanas inteiras. Gonçalves Dias foi um reiterado viajor. Esteve mais de uma vez na Europa, visitando a França, Bélgica, Inglaterra, Italia, Suissa, Allemanha e Portugal. Neste ultimo paiz, onde se educou, fez varias digressões por Lisboa, Porto, Coimbra, Evora e outras provindas do norte; de sua patria conheceu o Rio de Janeiro e quasi todo o norte, internando-se até pelas margens do oceânico Ama- zonas. (3) * As hallucinações, isto é, a faculdade pathologica de (1) Mat., cap. IV, v. 25. (2) S. Romero, ob cit., t. II, pag. 1201. (3) Dr. Antonio H. Leal, Pantheon Maranhense, Lisboa, 1874 vol, III. 53 crear percepções íalsas que se impõem como realmente existentes, são registadas pela observação clinica nos di- versos estados vesanícos e, por fatal coincidência, encon- tradas, também, nos homens illustres pela intelligencia. Cesar, Napoleão, Colombo, Pope, Descartes, Celline, Kerner, Hobbes, Luthero e Savonarole tiveram hallucinações. Byron acreditava ser visitado em certas occasiões por um espectro. Ao insigne musico Schuhmann afigurava-se-lhe que, dos seus tumulos, os grandes compositores Mendelssohn e Beethowen dictavam-lhe composições musicaes. A van Helmont que viu sua própria alma transfigurada em um resplandecente crystal, costumava-lhe appareeer, habitualmente, nas circumstancias importantes de sua vida, um genio. 0 Dr. Emilio Tardieu, em notável estudo psychologico, refere-se ás hallucinações auditivas e visuaes que o deli- cado romancista Guy de Maupassant deixou transparecer em suas celebres obras Sur Veau e Horla. Em Thomaz de Quincey diz ter-se verificado verdadeiras hallucinações desde a tenra edade de seis annos. Moreau de Tours, entre os oMros exemplos que se se- guem, conta-nos que Bernardino de SaintrPierre, auctor da joia literaria Paulo e Virgínia, dizia ver os jobjectos em duplicata e movediços, e relâmpagos sulcarem-lhe a vista. 54 Olivier Cromwel, estando urna vez de cama impossibi- litado de fechar os olhos, percebeu abrir-se o cortinado e surgir uma mulher de estatura gigantesca predizendo-lht haver elle de ser o maior homem da Inglaterra. Goethe assevera ter visto vir sua própria imagem ao seu encontro. Attesta-nos Regnard que o primoroso escriptor de Je- rusalém Libertada, o grande Tasso, era acommettido de hallucinações auditivas que lhe faziam ouvir gritos hu- manos, urros de animaes, repicar de sinos, cânticos, etc. Sob o dominio de uma hallucinação visual, em que via atirar-sc sobre elle um cavalleiro que o derruba e o deixa por terra coberto de vermes, tentou esfaquear um creado que, casuálmente, entrava no seu quarto. Arvède Barine faz-nos apreciar um Gérardo de Nerval a doentia percepção visual que lhe dá a illusão de ver no ceu deserto um sol negro e um globo rubro sanguíneo ácima das Tulherias. L. F. Lelut, relata-nos que Jeronymo Cardan soffria de hallucinações olfactivas e dizia-se visitado e protegido por um espirito que o acompanhava e lhe provocava palpita- ções no coração. Socratesgraças á sabedoria do genio que o aconselhava, independentemente da palavra e da vista, exercendo o seu poder mesmo atravez das paredes num raio mais óu menos extenso, costumava advertir os amigos sobre certas deliberações que deviam ou não executar. 55 Em um estudo critico sobre as relações da superioridade intellectual com a nevropathia, Eduardo Toulouse declara que Emilio Zola percebia sensações luminosas na obs- curidade da noite, e em seus ouvidos silvos c badaladas. Mahomet conla-nos assim as suas hallucinações: «muitas vezes vejo anjos debaixo da forma humana que falam comigo, outras vezes ouço sons produzidos por um sino, e sinto-me muito incommodado, e quando o anjo invisível me abandona, tenho em mim o que elle quiz revelar-me. (1) Historiam os Evangelhos que, após o baptismo, Jesus viu, sol) um aspecto columbino, baixar sobre elle o Espi- rito Santo, e ouviu uma voz chamal-o filho de Deus; per- cebeu, ainda, no deserto o diabo capciosamente tentando seduzil-o... (2) 0 epiléptico Saulo de Tarso «um monstro» que «se transforma num deus—o apostolo Paulo», deveu a sua divina transfiguração a hallucinações visuaes e auditivas sobrevindas ao approximar-se da cidade de Damasco. (3) * As idóas pathologicas apontadas pela clinica nos mais diflcrentes typos de perturbação mental, c conhecidas sob o (1) Dr. J. Pb. Anstett — Galeria Pittoresca de Homens Ce- lebres, 1873, pag. 190. (2) Mat., cap. III, v. 1G e seg; cap. IV, v. 3 e seg; Luc. cap. IV, v. 2. (3) Dr. Afranio Peixoto—Epilepsia e Crime, Bahia, 1898, pag 191; e Renan—Os Apostolos, trad. E. A. Salgado, Porto, 1904 pag. 138. 56 nome de delírios, existem também e com perfeita seme- lhança de concepções, nos grandes homens. Villemain acreditava-se perseguido pelos jesuítas, e tanto os receava que continuamente os procurava descobrir sob os moveis, desconfiado de que ahi se tivessem escondido. Tasso, apresentou evidentes signaes de delirio de per- seguição, attribuida ora á Virgem Maria, ora ao diabo, ora a um espirito que lhe roubava o pão ou a sobremesa. Schopenhauer afíirmava soffrer o odio perseguidor dos professores de philosophia, que conspiravam contra clle. Newton, quando, com a velhice, veio a padecer das fa- culdades mentaes, escrevia cartas confusas e obscuras deixando transparecer claramente o delirio persecutório. Bernardino de Saint-Pierre confessou que, julgando-se perseguido, esteve quasi a perder completamente a razão. 0 notável physiologista Haller imaginava-se perseguido pelos homens, e que os seus heretícos livros haviam con- \. corrido para que Deus o excommumgasse. João Jacques Rousseau sobre quem d’Alembert assim se expressa em uma carta dirigida a Voltaire: « E’ um doente de nmito espirito, mas só o tem sob a acção da febre », (1) dizia-se victima de tenaz peiseguiçáo que lhe moviam as multidões, a Prussia, a Inglaterra, a França, os reis, as mulheres e os padres. Succedia retirar-se precipitadamente das hospedarias» (1) Saint-Marc Girardin, Jean Jacques Rousseau, Paris, 1875» pag. 171. 57 deixando muitas vezes ficar suas malas, tentando assim fugir aos seus innumeros perseguidores. Ao lado das idéas de perseguição passiva, Rousseau apresenta vá-se também como perseguidor. Em Hoiimann o deli rio de perseguição dava vida aos espectros de seus extraordinários contos phantasticos. Cardan desconfia ser perseguido pelos governos, viver rodeado de inimigos, e por fnn ameaçado de envenena- mento pelos professores da Universidade de Pavia; conse- guindo escapar de todas essas perseguições pela protecção de S. Martinlio e da Virgem. Mozart vivia sob a impressão de que os italianos tenta- vam invenenal-o. Ferdinand Prseger, cm uma biogràphia sobre Wagner, conta que durante longos annos, esse grande compositor esteve firmemente persuadido que os judeos se tinham li- gado contra elle para impedir a representação de suas operas. # De todas as manifestações delirantes próprias aos here- ditários, diz llcnry Golin, nenhuma é, acreditamos nós, mais pathognomonica do que o delirio mystico, do que as preoccupações religiosas mysticas, a devoção exagerada, etc. (1) (1) Henry Golin, Essai sur 1’état mental des hysteriques, Paris, 1800, p. 154. 58 Pois bem, omysticismoapparece, pertinazmente, também nos grandes homens. Em Jesus são as suas arraigadas idéas religiosas que levam-no ao supplicio da cruz. Depositando ardente fé em uma espada que lhe oíTer- tára um carrasco na Allemanha, Paracelso linha-a como fatídico talisman inspirador do seu sobreantural poder; c depois de haver ultrajado acremente a Egreja Romana a ella se entregou, com a maior dedicação, nos derradeiros annos de sua vida. Ampere atirou ás chammasum trabalho sob o titulo— Avenir de la chimie, por consideral-o producto duma suggestão diabólica. Não se faz preciso provar que foram mysticos Mahomet, Luthero, Gérárdo de Nerval e Verlaine. A aberração religiosa de Baudelaire levou-o a proferir ferinas imprecações a Deus, apaixonados ultragesaos sym- bolcs da fé e fervorosas orações ao diabo. Pertencem-lhe estes versos: Gloria e louvor a ti, Satanaz, nas alturas Do Ceu, onde reinaste, e nas profundidades Do inferno, onde, vencido, meditas em silencio, Faze com que minha alma um dia sob a Arvore da Scíencia Perto de ti descance... (4) Augusto Comte, inimigo acérrimo do sacerdócio, apre- (4) Cit. de M. Nordau, Degeneração, 1. 5, p. 99. 59 sentou-se depois como o Summo Pontífice da religião da humanidade. A imagem pulchra da Virgem, tendo nos braços o filho aureolado pelo arco-iris, surgia a Tasso, no hospício, miti- gando-lhe as dores, as terrores, e até, curando-o de uma febre aguda. Rousseau escreve a Deus uma carta muito familiar, im- plorando a sua protccção e, para se certificar de que elia ha de encontrar o destinatário, colloca-a no altar da Noive Dame de Paris, « como se o Deus creador do universo, o Deus dos philosophos, podésse domiciliar-se sob a cupula duma cathedral!» Os caracteres inherentes ao delírio das grandezas sur- gem, com analoga symptomatologia, nos homens illustres. Nelles apreciamos, também, a convicção enfatuada de lhes ser merecida universal consideração, a vaidade sem limites do seu proprio merecimento, a ambição exagerada de glorias immortaes e o orgulho immenso lhes impri- mindo um cunho profundo de altivez, de pretenção e de desdenho a lodos os seus actos. «O Estado sou eu!»,exclama Luiz XIV desdenhosamenle despresando as observações de sua corte. Frei Francisco de MoiiEAI verne, que era em extremo or- gulhoso, fez sobre si mesmo o seguinte conceito: «0 paiz 60 tem altamente declarado que eu fui uma destas glorias de que elle ainda lioje se ufana». (\) Nero fitava sobranceiramente, atravez de sua preciosa \ esmeralda, os aulicos que o acompanhavam, e revestiu de innegavel presumpção as palavras que, ao sentir-se em poder dos soldados de Galba, exclamou, antes de suicidar- se : «Ai que artista o mundo perde na minha pessoa ! » Do immortal defensor de Jean Valjan disse Alexandre Dumas no Instituto de Franca: «Hugo era dominado por uma idéa fixa — tornar-se o maior poeta e o maior homem de todos os tempos». Dante, de quem a lenda consigna o extraordinário or- gulho, declarava-se superior aos seus contemporâneos pelo estylo e por ser favorito de Deus. Hegel, acreditando em sua própria diviuisação affirmava: « Eu posso dizer com Christo : não só ensino a verdade, como sou a própria verdade ». Balzac, cuja preoccupação constante era o destaque de sua individualidade, hyperbolisava a tal fôrma o seu mé- rito pessoal que, asseverava, havia determinar coma pen- na o que Napoleão tinha começado com a espada. Megalómanos foram egualmente Augusto Comte, Napo- leão, Cardan, Schopenhauer, Wagner e Walt Whitman. Jesus o «revolucionário transcendente», patenteou, por (!) Silvio Romero, ob. dt., t. I, p. 347 61 um orgulho immenso, a grandeza extraordinária de sua obsessão megalómana. Nos Evangelhos sobram as provas de seu amor-proprio, orgulho e vaidade inexcediveis. 0 seu emerito biographo Ernesto Renan diz-nos que elle se declarava « superior a David, aAbrahào, a Salomão, aos prophetas». Coiltinuando, assim se expressa: « Fascinava-o a admi- ração dos seus discípulos. E’ evidente que o titulo de Babbi, com que a principio se çontentára, já não lhe bas- tava; mesmo o titulo de propheta ou enviado de Deus já não correspondia ao seu pensamento. A posição que se attribuia, era a de um ser sobrclmmano, e pretendia que o considerassem como a quem tinha com Deus uma re- lação mais elevada do que nenlmm dos outros homens.» ( I) Despresando os primitivos titulos de «Filhos de David», «Filho do Homem» e o de «Messias», inculca-se «Filho de Deus» na intenção exclusiva de patentear «a sua par- ticipação nos supremos e o seu poder, o qual é tão illimitado que lhe assiste até o direito de mudar o sabbado c de exigir da natureza plena obediência ». (2) «Jesus é o homem que mais energicamente tem acre- ditado na realidade do ideal», e assim, por ser «tudo em sua mente concreto e substancial », consegue archi teclar, (1) Ernesto Renan, obra cit. p. 203. (2) Ernesto Renan, ob. cit. p. 202. m convincentemente, o seu ctiimerico « Heino de Deus » tes- temunho obvio de seu enorme e ruidoso delírio. «Não vos esqueeaes que sou poeta, e como tal, conven- cido que todos os homens tudo devem despresar pela leitura de meus versos», advertiu Heinc em uma de suas cartas. Conversando a princeza de Conti com Malherbe, diz-lhe: t Quero-vos mostrar os mais bellos versos do mundo, que ainda não tendes visto»; ao que elle replicou immediata- mente: « Perdoae-me, senhora, eu os tenho visto, porque se são os mais bellos do mundo, inlallivelmente, fui eu quem os fez!» * Outras vezes certos delirios, desprendendo uma acção perniciosa de abatimento, de depressão moral e de tristeza, arruinam sensivelmente a compleição psvchica da própria individualidade, produzindo os casos de melancolia e hypo- condria, cuja lamentável tendencia nos homens illustres já pelo grande Aristoteles havia sido observada. s Goetlie, reconhecendo que seu caracter oscillava entre a extrema alegria e a extrema tristeza, lembra que todo au- gmento de saber acarreta um acercscimo de prostração moral. 0 escriptor brazileiro Cláudio Manoel da Costa, «era uma natureza mórbida » e um representante dessa moléstia tão, 63 accentuada no século passado e no actual — a melan- colia. (1) O notável pernambucano José da Natividade Saldanha, «o melhor poeta brazileiro do primeiro quartel deste século», (dizia em 1888 Silvio Romero) e um dos grandes utopistas da sonhada Republica do Equador, era melan- cólico e triste. (2) Emilio Laurent assevera que o caracter de Byron annu- viou-se desde a infanda de sombria tristeza, transformada mais tarde em desdenhosa misanthropia. (3) A melancolia em Gerardo de Nerval transfigurava-o, emprestando-lhe grande inspiração. Melancólicos foram também — Casimiro de Abreu, Al- vares de Azevedo, Gonçalves Dias, Camões, Camillo Castello Branco, Swift, Rousseau, Beethowen, Huyghens, Newton, Schuhmann, Tasso, Chopin e J. Stuart MilL Larroumet estudando a psychologia de Molière em suas propias obras, conclue ter sido elle um melancólico livpo- condriaco. Morreram hypocondriacos — Watt, Zimmermann e Vol- taire. Este levou os longos 80 annos de existência constan- temente a lastimar-se de sua saude; diz elle: «Passei a vida a morrer, e sinto-me mais cadaver e mais moribundo que nunca». (1-2) Silvio Romero, ob. ci t., t. I, p. 272 e332. (3) Rruilio Laurent, Byron, Paris, 1899, p. 3. 64 Se estudarmos a psychofiathia sexual veremos, clara- mente estereotypadas nas biographias de alguns homens superiores, as diversas manifestações delirantes do sentido genesico que, como sabemos, acham-se ligadas por laços pathologicos a innumeras affecções nervosas e mentaes. 0 Dr. Sollier pondera: cc 0 estado de excitação maniaca, symptomatico da loucura intermittente, é, depois da para- lysia geral, a affecção cm que o erotismo se manifesta mais frequentemente ». Do mesmo modo, nesses grandes campeões do saber po- demos testemunhar varias anomalias das funeções repro- ductoras (impotência, esterilidade, etc.) pois, é uma verdade incontestável que a actividade psychica augrnenta á proporção que diminue a actividade organica. Assim, foram impotentes: Newton, Carlos XI1. S. Paulo, Cavendish e Cardan, este até aos 34 annos. Lenau declarou: «Tenho a dolorosa convicção de me julgar incapaz para o casamento». Virgilio ruborisava-se quando sobre elle qualquer mulher fixava o olhar. Entre muitos outros, encontramos celibatários: Chamfort, llobbes, Miguel Angelo, Kant, Pitt, Fox, Fontenelle, Bee- thowen, Galileu, Descartes, Leibnitz, Dalton, o poeta brazileiro João de Barros Falcão de Albuquerque Mara- 65 nhão, Macaulay, Leonardo de Vinci, Mendelssohn, Mey- erbeer, Voltaire, Flaubert, Alfieri, Scliopenhauer, Male- branche, Newton, Chateaubriand, Cavour e Camões. Estereis toram: Shakespeare, Milton, Addison, Pope, Swift, Goldsmith, Cowper e Zola. O merencório Dutra e Mello que «si não tivesse morrido tão cedo, teria talvez acabado pelo suicídio ou pela loucura», (o trecho aspeado é de Romero), morreu virgem aos 23 annos. Em alguns observamos o precoce despertar do instincto genital: a paixão irrompeu violenta no coração de Casimiro de Abreu aos 15 annos; e no de Rousseau aos 11. Alíieri e Dante apaixonaram-se aos 9; Scarron e Byron aos 8. Tasso, Pascal, Alvares de Azevedo e Castro Alves mos- traram-se sensualíssimos nos primeiros tempos da juven- tude. A vehemente effusão sentimental visando platonicamente seres ou objectos, esses reaes ou imaginários, isto é, o amor sentimento que Esquirol appellidou de erotomania, depara-se-nos também nos homens celebres. Max Nordau diagnosticou estar Wagner atacado de lou- cura erótica (1); e diz que o caraeter particular da dege- neração de Verlaine é o erotismo loucamente ardente (2). (1) e (2; Max Nordau, Degeneração. 1. IV, pag. 22 e 1. III, pag. 41. 66 Nicolau Gogol entregou-se, durante muitos annos, á pratica exaggerada do onanismo. Baudelaire atacado de fetichismo corporal sentia, ao beijar os pésnús das mulheres, dulcíssimas sensações aphrodisiacas. Rousseau foi um masochista declarado. 0 sadismo, originando do celebre Marquez de Sade o seu nome, teve no marechal de Rctz, Gilles de Lavai, mais conhecido por Barba-Azul, um terrível e infeliz sec- tário. (1) E o illustre philosopho Frederico Nietzsche, na opinião de Nordau, era atacado, intellectualmente, de sadismo ao mais alto grau. * A par das anomalias morphologicas e intellectuaes, determinando a variabilidade de progressão degenerativa desses illustres personagens, vamos encontrar, também, exemplos de franca alienação mental que, para Morei, é ainda uma fôrma de degeneração. (2) Limitando as nossas referencias aos nomes mais conhe- cidos, vemos attingidos de loucura : o insigne physiologista Muller, o grande chimico Fourcroy, Guonod, Cowper, Engel, Poe, Hamilton, HoíTmann, André Gill e Zmmermann. Haller atacado de loucura mystica acalmava-se tomando fortes doses de opio e conversando com os padres. Escrevendo a M. de Malesherbes assim se expandiu Rou- sseau: «Ha mais de 6 semanas que minha conducta e mi- (1) Gilbert Ballet. Traitè de Pathol, Mentale, Paris 1903 p. 780 (2j B A. Mòrel. ob. cit. p. 682. 67 ilhas cartas não são mais que um trama de loucuras e de impertinências. (1) Mõbius considera-o um louco lúcido attingido do delirio persecutório, ou melhor, um perse- guido perseguidor. Ampere queimou uma das suas obras na qual o seu es- pirito perturbado viu um testemunho de suggestões diabó- licas. Schuhmann, que aos 23 annos foi acommettido de lype- mania, morreu aos 46 na casa de saúde do Dr. Richards, em Endenich, revelando a autopsia estheophytes, espessa- mento dos envolucros craneanos e atrophia do cerebro. Gerardo de Nerval esteve recolhido varias vezes na casa de saúde do Dr. Blanche, soíTrendo de loucura circular que se manifestava, semestralmente, por períodos de exaltação e depressão. Baudelaire morreu de paralysia geral, depois de ter cha- furdado por longos meses nos grãos mais abjectos da de- mência (2). 0 genial philosopho Augusto Comte, submetteu-se aos cuidados clinicos do grande alienista Esquirol, que lhe dia- gnosticou um accesso de mania com megalomania. Cardan, filho, pae e primo de loucos o foi igualmente durante sua vida inteira. cr Eu não négo que sou doudo» affirmou Tasso compun- (1) Saint Marc Girardin, ob. cit. p. 284. (2) Max Nordau, Degeneração, 1. 5, p. 88. 68 gido por immensa tristeza. Realmente, esteve de 1579 a 1580 entre os monges de Santa Ànna, que, parece, tiveram uma verdadeira casa de saúde, manifestando então, todos os signaes da loucura de perseguição, com hallucinações da vista e ouvido. Newton, o grande geometra, veiu a ficar louco na ve- lhice. Em completa demencia morreu Swift, em 1745, legando aos loucos 11.005 libras esterlinas. Tendo sido frequentemente asylado em varias casas de saude Frederico Nietzsche entrou, por ultimo, como demente incurável no estabelecimento do professor Bins- wanger, em lena. Lenau, cuja vida foi um conjuncto de genio e loucura, morreu a 21 de Agosto de 1850 no asylo de alienados de Dõbling. Basta lançarmos a vista sobre os antecedentes hereditá- rios e pessoaes de Schopenhauer para eoníiadainentc, indi- gital-o como o mais perfeito typo de alienado. Consignou, por testamento, toda a sua herança aos soldados c ao seu cão. Depois de internado 18 mòses no estabelecimento do Dr. Blanche veiu a fallecer alienado o illustre romancista Guy de Maupassant. O cantor de Marilia, o poeta da Inconfidência, Thomaz Antonio Gonzaga, que «apezar de constar ter nascido em 69 Portugal, desde a mais tenra infanda viveu no Brazil», acabou louco em 1807 no desterro de Moçambique. (1) João de Barros Falcão de Albuquerque Maranhão, a mais antiga e authentica manifestação da bohemia litteraria entre nós, falleceu louco. (2) José Antonio de Castro Alves, morto aos 19 annos já poeta de rara inspiração, segundo as informações de Mucio Teixeira, num violento accesso de desorientação cerebral, reduziu a cinzas todos os seus manuscriptos, entre os quaes havia composições de um lyrismo encantador. Antonio Marques Rodrigues, poeta e jornalista, em se- guida a evidentes symptomas de amollecimento cerebral, falleceu cego e completamente idiota na cidade do Porto, em Portugal. (3) 0 bacharel Firmino Rodrigues da Silva, notável advogado, cultor desvellado da poesia e uma das mais hábeis pennas do jornalismo brazilciro, íinou-se em Paris victima de de- sarranjos das faculdades mentaes. (4) Joaquim Ayres de Almeida Freitas, formado em direito, apesar de viver durante muitos annos com a razão obscu- recida, poude, nos momentos lúcidos de sua poderosa in- telligencia, confeccionar para o escrínio da litteratura patria gemmas de preciosa valia. (5) (1) e (2) Silvio Romero —ob. cit. t. I, pag. 288 e 481. (3) Dr. A. Henrique Leal, ob. cit., v. IV. (4) e i,5) Dr. A. V. A. Sacramento Blake, Diccionario Biblio- graphico, Rio de Janeiro v, II e III. Conclusão Como vimos pela leitura dos capítulos precedentes è in- dubitável a frequência nos grandes homens da existência, ou de um estado anormal do systema nervoso, ou de pheno- menos caracterisadores de psychoses, ou ainda de taras nevropathicas impellindo o espirito observador á confir- mação de uma certa assimilação do genio com a loucura, quaesquer que sejam a comprehensão e a extensão que queiramos dar áquelle termo. Dos estudos feitos e accumulados por Moreau de Tours, Réveillé Parise, Lombroso, Toulouse, Lelut e outros, re- sultam as mesmas deducções garantidoras da quasi cons- tância dessa infeliz associação. Uma vez assentado esse momentoso problema, como simples contestação dum facto seientifleo, a sua interpre- tação, eivada de complexos e difficultosos aspectos, surge ao nosso espirito a explanação das sequentes soluções. l.a—0 genio é o resultado da nevrose, tal foi a opinião geralmente aventada pelos primeiros scientistas interessados no assumpto. Delles cabe a Moreau de Tours a primasia de ter em sua 71 Psychologie Morbide proclamado nestas palavras o estado doentio do genio: « 0 génio, isto é, a mais alta expressão, o nec-plus ultra da aclividade intellectual, é uma nevrosc!» Secundou-o Lombroso que, com a peculiar audacia de sua hyperpotente cerebração, encara os supremos pheno- menos da intelligcucia, não como simples nevrose inde- terminada, e sim como « uma forma de psychose dçgene- raliva pertencente á familia das epilepsias». 0 sabio professor de Turim soífreu renhidíssimas cri- ticas de Regnard, Toulouse, Grasset e outros; e, ao peso enorme dessas refutações, deu-se a ruptura da solidez ephemera do terreno scientifico em que se alicerçara o edifício de suas temerárias doutrinas. Pairam fundadas duvidas sobre muitos dos seus dia- gnósticos, contestando-se baseadamente a não constante coincidência de epilépticos geniacs; nega-se o appareci- mento dos symptomas da epilepsia nas manifestações iu- tellectuaes para que possam ellas ser um equivalente das convulsões dessa moléstia, como elle o quer. Se entre o homem superior e o epiléptico pode haver inteira uniformidade de traços degenerativos; se, entre a crise da moléstia citada e a inspiração do genio, notifi- camos a instantaneidade e a inconsciência, esses mesmos caracteres surgem como parte integrante da symptomato- logia das nevroses em geral, e eis-nos em presença não 72 ídéás do grande alienista italiano, porém das do illus- trado sabio francez Moreau de Tours. 0 génio, portanto, jamais poderá ser romprehendido como uma nevrose epileptoide. Por sua vez acha-se irremediavelmente abalada a opi- nião um pouco mais accessivel de Moreau de Tours,