Faculdade de Medicina da Bahia f H t # Í APRESENTADA Á Faculdade de Medicina da Bahia Em 30 de Outubro de 1902 PARA SER DEFENDIDA POR Affilpptno Dantas Maitlai © Jç. * ( Natural do Estado da Bahia—Irará) Afim de obter o gráo de Doutor em Medicina DISSERTAÇÃO Cadeira de Clinica psychiatrica e de moléstias nervosas (ligeiro esboço) PROPOSIÇÕES Tres sobre cada uma das cadeiras do curso de sciencias medicas e cirúrgicas Peis Pedro Luiz Celestino, 3- » Josino Correia Cotias, 4’ » Braz do Amaral 5- > João A. Garcêz Fróes, 6* > Os Cidadãos Drs. * Pedro da Luz Carrascosa, 7- Secção. 8- Alfredo F. de Magalhães, 9- » Clodoaldò de Andrade, 10- » Carlos Ferreira Santos, 11- » Juliano Moreira, 12- » Secretario —Dr. Menandro dos Reis Meirelles Sub-Secretario — Dr. Matheus Vaz de Oliveira A Faculdade não approva nem reprova as opiniões emittidas nas theses que lhe são apresentadas.. @ assumpto desta dissertação, cuja extrema com- plexidade não avaliavamos d justa, quando come- çamos a estudai-o, será, por força desta circum- stancia, junta á urgência do tempo e ás condições do meio, que se não presta ao desenvolvimento de assumptos que exigem estudo pratico e observação accurada, tratado de um modo perfunctorio e esche- matico. Procurando resumir, em uma ligeira synopse, os trabalhos mais importantes sobre este momentoso ihema, para cuja elucidação tem concorrido as mais conspícuas notabilidades da neuropathologia moderna, havíamos delineado o seguinte plano, que comprehende os pontos capitaes do assumpto: 1. Psycho-physiologici da linguagem. Zona cor- tical da linguagem. 2. Aphçcsias: — Definição, historico, etiologia, exploração clinica, classificação. 3. Estudo clinico das aphasias: aphasia motriz, paraphasias, aphasia sensorial, aphasias de con- ductibilidade, aphasia total, agraphig. 4,° Estado mental dos aphasicos. Ligeiras con- siderações sobre as questões mediúo-legaes connexas com os syndromas aphasicos. õ.° Tratamento: reeducarão dos aphasicos. Múltiplas circumstancias, porém, concorreram para que não nos fosse possível leval-o a effeito ; só os tres primeiros capítulos, que dizem respeito mais de perto á psycho-physiologia normal e patho- logica da linguagem, puderam ser escriptos. Quanto ao quarto capitulo, podiamos dispensar a segunda parte delle, que exorbita do estudo clinico; em relação á primeira, porém, o não a termos estudado acarretou o inconveniente de não desen- volvermos, como devíamos, a questão do estado mental dos aphasicos, á qual só incidentemente nos referimos nos capitulos precedentes. A inevitável suppressão do quinto capitulo foi ainda mais grave, porquanto nelle devia ser tra- tada a magna questão do tratamento physiologico e pedagógico dos aphasicos. Cremos,porém, que o que foi escripto preencherá, «tant bien que mal * o fim a que se destina. CAPITULO I ESBOÇO BA PSYCHO-PHYSIOLOGIA DA LINGUAGEM ZONA CORTIGAL DA LINGUAGEM Die Walirheit erfahren wir nur dann wenu wir den Bodon der AViikliclikcit nicht verlassen und der Phantasie dio tippigen Triebe besclmeiden, so selir sie aucli fur deu Augenblick uKser inneres Auge zu eiíreuen verraogen. Das ist der sich iramer erneuernde Kampf mit der Hypothcsc and gegen die Hypothese. Ed. Hilxig. SiVERGEM os autores no modo de compre- liender o appnrelho nervoso central da lin- guagem e as múltiplas questões connexas com o seu funccionamento. Ao laclo da doutrina, por assim dizer classica, sustentada em França por Charcot e sua escola, na Inglaterra, com pequenas variantes, por Bastian e Wyllie, existe a doutrina defendida pela escola allemã e representada,na-AHe- manha, principalmente por Lichtheim, Kussmaull e Wernicke, na França, por Dejerine e seus dis- cipulos. Além destas duas escolas antagónicas, alguns autores defendem opiniões isoladas, sendo para notar as idéas sustentadas por Freud e as deduoções que porventura sejam tiradas, como já se tenta fazei-o, dos trabalhos de Flechsig, embora não estejam elles definitivamente julgados. Sendo 6 o nosso intuito bosquejar, em rápido escorço, o estado actual da questão das aphasias, procura- remos, dentro dos limites de espaço e de tempo a que nos devemos cingir, dar uma idéa geral dessas diversas theorias e acareal-as entre si; no emtanto, para methodisar a descri pçfto, pautal-a-emos, em suas linhas geraes, ao menos neste primeiro capitulo, pelos ensinamentos clássicos da escola de Chareot, mencionando e discutindo, opportunamente, as objeccões que lhes tem sido feitas e as idéas que os procuram substituir ou modificar, em certos pontos. Tres elementos anatomo-phvsiologicos concor- rem na constituição do apparelho nervoso da linguagem c no funccionamento desta faculdade: a) os centros corticaes da palavra, b) o centro da ideação, c) as vias de projeeção, de conducçãò cen- tripeta ou centrifuga. (i) Existem 11a corticalidade cerebral centros differenciados, prepostos especialmente á funeção da palavra; em sensoriaes e motores se distinguem ellcs. Aos primeiros, em numero de dois, 0 centro auditivo e 0 centro visual da linguaçem, vão ter as impressões auditivas e visuaes das palavras, de modo a se elles constituirem em zonas especia- lisadas, onde se localisam as imagens mnemónicas adquiridas pela audição e pela visão: constituem elles 0 apparelho receptor da linguagem. Os segun- dos, também em numero de dois. 0 centro motor de articulação e 0 centro motor graphico, guardam 7 as imagens mnemónicas dos movimentos neces- sários á articulação e á escripta e legislam a execu- ção destes actos: são o apparelho transmissor da linguagem. No tocante á denominação de motores, dada a estes últimos centros, convém lembrar a oppor- tuna observação de Pitres (1), em referencia ao centro motor de articulação ou centro de Broca, que se torna extensiva, mutatis mutandis, ao centro da escripta ou centro de Exner: «O centro de Broca não constitue por si mesmo um orgão motor, por- quanto suas lesões destructivas, quando são exacta- mente limitadas á sua area, não são seguidas de paralysia dos lábios, da lingua, da larynge, nem de outro musculo. Tudo o que sabemos de suas funcções tende a fazer considerai-o como um orgão de elaboração psychica, actuando indirectamente sobre os movimentos dos orgãos phonadores, mas soccorrendo-sc,para a execução desses movimentos, dos centros motores cornmuns e das fibras con- ductoras que delles dependem». Gharlton Bastian (4) prefere incluir o centro de Broca e o centro da escripta na classe dos centros sensoriaes, prepostos á funeção kinesthesica; o primeiro, centro glosso-kinesthesico, recebe as impressões provindas das diversas partes do appa- relho da phonação e conserva a memória dos movi- mentos por este executados; o segundo, centro cheiro-kinesthesico, guarda as impressões oriundas dos musculos, dos ossos, das articulações e da 8 pelle do membro superior e a memória dos respe- ctivos movimentos. Estabelecida a existência destes quatro centros, que, entretanto, não é universalmente acceita, nos ter- mos acima, vejamos que ligações existem entre elles, demodo a estabelecer intimas relações physiologicas de uns com outros e acarretar consequentes desor- dens pathologicas, quando lesões se localisam nessas vias de união. Ch. Bastian admitte a existência de fibras ligando o centro visual e o acústico entre si; de cada um destes centros partem fibras, que unem o acústico ao glosso-kinesthesico, o visual ao cheiro-kinesthesico. Ladame (6) menciona fibras de associação intracortieaes, intercorticaes ou trans- corticaes e interhemispheriças ou commissuraes. Grasset (7) dá o nome de polygono cortical ao conjuncto dos centros corticaes e de suas vias de * união. b) A existência de um centro superior de ideação é hypothese controversa. A concepção desse centro, ao qual fossem ter as impressões, partindo dos centros da linguagem e onde se transformassem em percepções propriamente ditas, onde se convertes- sem em idéa, foi primeiro aventada por Broadbent que o chamou «concept or naming centre»— centro da concepção. Charcot, em seu conhecido eschema, admitte a existência deste centro de elabo- ração psychica ; também Wernicke (10) adhere á hypothese (Begriffscentrum) e com efie Kuss- 9 mauII (11) e Lichtheim. A ílitzig (12) parece- lhe igualmente que certas partes do córtex cere- bral estão mais intimamente ligadas do que outras ao processar da funcçâo do pensamento (lobos prefrontaes), e Bianchi (14) julga, baseado na experimentação, poder afíirmar, com sufficiencia de provas, que os lobos prefontaes são o substrato anatomico do pensamento. Grasset (7), no seu inte- ressante eschema da linguagem, admitte a existência de unBcentro superior (centro O), que éa « sede da intellcctualidade superior, da personalidade plena e verdadeira, da consciência inteira e moral, da liberdade e da responsabilidade»; em contraste com o polygono cortical, que é a sede do psychismo inferior, inconsciente, da linguagem automatica e reflexa. Também este autor localisa hypotheticamente o centro psvchico nas circumvoluções prefrontaes e diz que ellè está unido, por múltiplas fibras de associação, a todos os centros corticaes. Em contra- posição aos autores mencionados collocam-se outros que negam justificativa a esta hypothese e desen- carecem a necessidade delia. Munk, Goltz e Freud são do numero. Ch. Bastian (4), depois de mencionar trechos de Bain e Hamilton, que accentuam a difficuldade em discriminar sensação e percepção e de James Mill, que não usa o termo percepção e apenas menciona sensações simples e sensações com- plexas, conclue : «E’ de grande importância, por 10 jsso, notar que intelligencia, sensação, emoção e volição são processos mentaes cujos primeiros estádios são dependentes de diíferentes modos e aspectos da actividade funccional dos centros sen- soriaes no córtex e com elles inseparavelmente connexos»; a seu ver a elaboração da idéa faz-se mesmo nos centros que recebem as impressões periphericas: «In the perceptives centres the pri- mary impressions made upon the organs of sense are converted into perceptions proper.» Dejerine faz coro com esta opinião c seu disci- pulo o Dr. Mirallié (15). discutindo a existência do feixe psyhcico, assim doutrina: «O feixe anterior da capsula interna não é um feixe descendente para o pó do pedunculo ; em outros termos, o feixe psy- chico não existe, elle não é nem mais nem menos psychico ou intellectual do que os outros feixes cerebra.es; a destruição desse pretenso feixe psy- chico jamais acarretou a perda da* intelligencia, pensamos com toda a corticalidade cerebral, pen- samos com todo o corpo». A intelligencia não está adstricta a um feixe e a uma zona limitada dos lobos frontaes». Existem sobre o assumpto, como acabamos de ver, profundas divergências; mas os trabalhos importantes deHitzig são em apoio da existência do centro da ideação, e, firmando-se nesta hypothese, aventa Grasset in- terpretações plausiveis para variados casos dó psv- chológia mórbida e de neuropathologia. c) As vias de projecção que servem a zona da 11 linguagem são afferentes ou efferentes. Quanto ás primeiras sabemos que os centros motores da pala- vra são visinhos dos centros motores geraes; as excitações centrífugas que partem dos primeiros passam sempre pelos segundos; dos centros motores geraes (pé da frontal ascendente para o apparelho phonador, terço medio desta circumvolução para o braço) partem os prolongamentos dos neuronas corticaes em demanda dos núcleos mesocephalicos e das cellulas cinzentas anteriores da medulla. «As vias motrizes chegam aos núcleos do facial do es- pinhal e do hypoglosso e ás cellulas cinzentas an- teriores da medulla; e dáihi aos nervos motores dos lábios, do véo do paladar, da lingua e da larynge» (Grasset (8). As fibras efferentes são opticas ou acústicas. Ás vias efferentes opticas começam nas terminações retinianas do nervo optico, continuam neste nervo, no ramo extèrno da fita optica, corpo geniculado externo, pulvinár e tubérculos quadrigémeos an- teriores. «Os prolongamentos destes neuronas in- feriores, juntos talvez a fibras longas que evitam estes neuronas intermediários, formam a continuação do nervo licmioptico (radiações opticas de Gratiolet, feixe optico intracercbral, pedunculo posterior da cama optica) que vae se terminar na casca cerebral (Grnsset (8)>>. Ahi chegamloas vias opticas efferentes expandem-se em redor da scisura calcarina, região que constitue o centro cortical da visão geral. Este centro tem relações com o centro especial dasimagens 12 visuaes da palavra. E’ este o trajecto que percorrem as impressões visuaes até chegarem a este ultimo centro, que, como veremos, se localisa na circum- volução da clobra curva esquerda. As vias acústicas centrípetas começam na peri- pheria pelas expansões protoplasmicas dos ganglios de Cor ti e deScarpa; os prolongamentos cilinder—axís destes ganglios formam o nervo cochlear e o vestibular, que se reúnem constituindo o nervo auditivo ; este di- vide-se outra vez em dois ramos que vào ter aos núcleos bulbares, situados no quarto ventrículo. Dalii, por uma serie de neuronas complicados, dirígem-se, em grande parte, para a corticalidadecerebral,passando, em sua maioria, pelo pedunculo e pela capsula in- terna e terminandono lobo temporal, onde se localisa o centro da audição geral, visinho do centro da audição verbal e a elle estreitamente ligado. Estudado summaríamente o apparelho nervoso da linguagem resumamos agora apsvcho-physiologia desta importante faculdade. A linguagem divide-se em consciente e auto- matica ou reflexa: no primeiro caso é funcção do psychismo superior, da intelligencia; no segundo, é um acto dependente do psychismo inferior, que se passa á revelia da intelligencia. Nos primeiros tempos da vida, quando a creança começa a fallar, a linguagem é puramente reflexa. Entram as im- pressões auditivas dos sons articulados pelas vias 13 acústicas centri petas e vão impressionar uma região do córtex cerebral, sempre a mesma, que para esta ordem de impressões é a parte posterior da primeira e da segunda circumvoluções temporaes esquerdas.; as cellulas nervosas tomadas do abalo que lhes com- municou a impressão, conservam o resíduo delia, a imagem mnemónica da palavra e se vão, pouco a pouco, com a repetição dessas impressões, differen- ciando modo a se constituírem em um centro de cellulas ligadas exclusivamente a esta classe de sensações. De modo idêntico cortsti- tue-se o centro visual da palavra, quando, mais tarde, o individuo começa a aprender a ler; as imagens mnemónicas dos symbolos graphicos •reunem-se igualmente em uma região determinada da corticalidade cerebral. Ganhas as primeiras imagens acústicas, vae também a creança, por simples imitação, procu- rando repetir as palavras que ouve, e a differen- ciação do centro motor de articulação vae-se fazendo, como também se faz mais tarde a diffe- renciação do centro motor graphico, quando o individuo aprende a escrever. Nos primeiros tempos da vida, quando apenas começam a funccionar o centro auditivo e o centro de Broca, a palavra tem os caracteres de um simples reflexo cerebral; vão as impressões ao primeiro destes centros, onde despertam as imagens acústicas, as quaes, percorrendo as vias que unem o centro auditivo ao motor, despertam as imagens motrizes 14 neste centro, que, por influição sobre o centro motor do apparelho da phonação, determina a articulação da palavra. . O centro da ideação fica inteiramente alheio ao acto, que se passa tão somente no domínio dos centros do psycliismo inferior, na area do polygono cor tical. Com o subsequente desenvolvimento do cerebro e da intelligencia os phenomenos complicam-se; communicações physiologicas desenvolvem-se entre os centros corticaes e entre estes e o centro da ideação, que vae, a pouco e pouco, tendo mais inge- rência no jogo da faculdade da linguagem; o indi- viduo que, a principio, não ligava o nome ao objecto que eíle designa, vae começando a fazel-o, e identiíica-os por modo que o nome passa a lhe parecer um simples attributo do objecto, como a côr e a forma; e desfiarte, vendo o nome logo evoca elle a imagem do objecto e vice-versa. As sensações verbaes que demandam os centros sensoriaes e se exteriorisam por funcção dos centros motores, soffrem então a reíerenda da intelligencia, da consciência, do centro psvchico. Perde assim a linguagem os caracteres de acto reflexo, auto- mático, e adquire os de acto consciente e voluntário. A linguagem aatomatica e a linguagem consciente podem funccionar simultaneamente, como diz muito bem Grasset; dá-se isto, per exemplo, no indi- víduo que conversa (linguagem consciente) e ao mesmo tempo copia um trecho escripto (linguagem 15 automatica), no pianista que, tocando, conversa sobre cousa diversa, etc. O mesmo dá-se no hypnotismo, na escripta dos médios (Grasset). «A idéa, uma vez concebida, passa por uma formula interior antes de ser transmittida para fora pela linguagem articulada» (Ferrand) (16); é a este processo intimo que se chama linguagem interior ou «phase endophasica» como diz o Dr. Saint- Paul (17). De quatro elementos psycbo-physiologicos com- pòe-se a linguagem interior: a audição, a visão, a articulação e a escripta mentaes. Segundo Charcot (18) e outros autores, a edu- cação e o habito imprimem maior desenvolvimento a um dos quatro centros da linguagem, dão prepon- derância no funçcionar da linguagem interior a um dos quatro elementos citados, justificando a divisão dos indivíduos em diversas classes, a que Charcot denominou typos psvchicos. E’ o mesmo que Grasset exprime, quando diz que cada individuo tem o seu temperamento polygonal proprio, o mesmo que enuncia Ferrand, declarando que em cada individuo a idéa reveste uma forma particular. Charcot admitte cinco typos psyciiicos: o audi- tivo, o visual, o motor de articulação, o motor graphico e o indifferente; em cada um destes revela-se o desenvolvimento preponderante do centro 16 correspondente, excepto no ultimo, onde existe, por assim dizer, o equilíbrio funccional. Vamos resumir em rápidos traços a phvsiologia da linguagem interior e a hypothese dos typos de Charcot, magi.. trai mente expostos por Ballet (19). Quando, soltas as redeas á phantasia, nos dei- xamos levar numa serie de pensamentos mutáveis e fugitivos, ou, presos a um assumpto, trabalhamos um raciocínio, parece-nos que os sons das palavras que representam nossas idéas, sussurram aqs nossos ouvidos—mais fracos quando desattentas e passa- geiras correm as nossas divagações, mais fortes e nitidamente perceptiveis quando energico e traba- lhado é o nosso raciocínio. Também acontece, na leitura silenciosa, ouvirmos simultaneamente o que lemos; é que as imagens verbo-visuaes despertam as imagens auditivas. Este phenomeno que acabamos de mencionar constitue a audição mental, a palavra interior. De ordinário a palavra interior reveste os cara- cteres da nossa voz; pode entretanto revestir os de outra quando ouvimos mentalmente phrases pronunciadas por outros. Em certos indivíduos, de tal modo se desenvolvem o centro sensorio-auditivo e a palavra interior, que é das imagens auditivas das palavras que principalmente se elles soccorrem no curso de suas rellexõe.s: são os auditivos. Estes indivíduos quando pensam, evocam as imagens auditivas, e ouvem distinctamente as pala- 17 vras que exprimem as idéas que lhes vão no espirito. Nestes, tem portanto as imagens auditivas uma im1- portancia capital, base que são da linguagem interior; de sua grande vivacidade e de sua persistência, em algumas pessoas, dá prova o facto de Mozart notar o Misefere da Capella Sixtina, depois de ouvil-o uma vez apenas e o de Beethoven compor admi- ráveis melodias, depois de haver perdido a audição (Ballet). Dos tvpos psychicos seria o auditivo o mais commntn. Parallela á audição mental é a visão mental, «esta faculdade que temos de conservar, sob a forma de imagens, a lembrança mais ou menos enfraque- cida de nossas sensações visuaes e de reproduzir e reavivar essas imagens, sob a influencia de diversas solicitações, por associação de idéas.)'» Todos nós possuimos esta faculdade; entretanto o seu desenvolvimento varia enormemente de um a outro indivíduo; em algumas pessoas as imagens visuaes conservam-se de um modo indeciso e confuso, em outras, porém, de um modo vivo e persistente. Assim os pintores, que têm o centro visual desenvolvido pela educação e pelo habito, têm muita facilidade em representar mentalmente a forma, a disposição e a cor dos objectos. Embora as imagens visuaes sejam principal- menle de objectos, esse predominio do centro visual pode manifestar-se também com relação ás imagens visuaes das palavras; as pessoas nas quaes isto se dá pensam, em contraste com os auditivos, 18 servindo-se, de preferencia, das imagens visuaes dás palavras. «Estes últimos, que podem ser cha- mados visuaes, não ouvem o seu pensamento? leem-no. » O numero dos visuaes é muito menor do que o dos auditivos, porquanto, como já vimos, sendo quasi sempre as representações auditivas imagens de palavras, as representações visuaes geralmente são imagens de objectos. A articulação mental tem o seu logar ao lado da audição e da visão, e em certas pessoas desen- volve-se ella de tal modo que faz sombra a essas faculdades. Taes pessoas, em vez de ouvirem o seu pensa- mento, como os auditivos, ou de lerem-no, como os visuaes—fallam-no. Esses, quando pensam, vão dizendo mentalmente o seu pensamento; e a alguns parece-lhes que os orgãos da phonação, na realidade immoveis, vão se movendo passo a passo com a expressão mental; algumas vezes mesmo este estado accentua-se e o indivíduo falia realmente, pensa em voz alta. Facilmente podemos comprehender a audição, a visão e a articulação mentaes; no tocante, porém, á escripta mental, menos comprehensiveis se tornam e menos firmes os argumentos que os autores emittem em favor deila. Com eífeito, não é facil admittir-se que alguém pense procurando lembrar-se dos movimentos neces- sários ao acto de escrever; ha, todavia, exemplos 19 de casos excepcionaes em que a memória desses movimentos concorre para a expressão do pensa- mento: tal é o caso de Bernard (20), em que um individuo soífrendo de cegueira verbal conseguia comprehender a palavra cçllocada diante, delle, seguindo com o dedo os contornos das letras, executando portanto os movimentos necessários para escrevel-as. Os indivíduos nos quaes o centro graphico se desenvolver predominantemente chamar-se-ão motores graphicos. Grasset declara-se motor grapliico e diz pensar melhor com a penna na mão. Adiante veremos que profundas divergências existem sobre este assumpto. Nesses quatro typos que acabamos de descrever ha predomínio de um dos centros: ora predomina o centro das imagens auditivas e é esse o caso mais commum, ora o centro das imagens motrizes de articulação ou das imagens visuaes; emfim, e mais raramente, o centro das imagens graphicas. Com o descriminarem estes differentes centros, não querem os autores que assim o fazem estabelecer a indepen- dência completa dos differentes centros: para a regular expressão do pensamento, dizem, é neces- sária a intervenção de todos elles e um certo gráo de influencia reciproca, porquanto a idéa se forma e se exprime com a concurrencia harmónica das diffe- rentes ordens de imagens; essa especie de solidarie- dade não exclue, todavia, a relevância, ora de um, ora de outro, dando logar ás múltiplas difíerenças 20 individuaes, que explicam, até certo ponto, alguns detalhes clinicos na marcha e na symptomatologia dos syndromas aphasicos. Dessa interessante noção psychophysiologica dos typos psychicos decorre, no dizer de Charcot, uma importante deducção prognos- tica, e é que a aphasia revestirá um caracter mais grave quando a lesãoattingir o centro relativo ao typo psychico da pessoa aphasica: assim a surdez verbal \terá maior gravidade para o auditivo, como a cegueira verbal para o visual, a aphhsia de articu- lação, para o motor de articulação, a agraphia para o motor graphico; por isso que, nestes casos, o pro- cesso, morbido lhes ataca o reducto mesmo em que está depositado o melhor do seu cabedal para o acto do pensamento. Encontram-se pessoas, porém, que se não podem referir a qualquer dos typos mencionados, nos quaes a idéa não reveste uma forma especial; não ha, por assim dizer, hegemonia alguma entre os centros corticaes da linguagem. Estas pessoas merecem o nome de indifferentes que lhes deu Charcot; aqui a lesão de um centro não terá maior gravidade que a dos outros, porque estão todos collocados no mesmo pé de igualdade funccional. O Dr. G. Saint-Paul (17), em sua importante these, escripta sob a egide do Prof. Lacassagne e illustrada com a auto-observação de uma centena de litteratos, homens de sciencia e artistasfrancezes, retoma esta importante questão da linguagem interior e discute-a de modo interessante. 21 Em vista da estreiteza do espaço não podemos nos extender sobre as idéas de Saint-Paul, mencio- nando apenas alguns pontos principaes. «O substrato habitual do pensamento consta de: l.o uma repre- sentação mental do nome do objecto, que é lido, ouvido ou pronunciado; 2.° uma imagem visual do objecto. OJiomem normal pensa, pois, cdm palavras e imagens: é ao mesmo tempo verbal e visual.» O autor faz immediatamente a observação impor- tante de que o termo visual não tem, para elle, a significação que lhe dá Charcot; para este, ser visual significa pertencer á classe dos que leem mentalmente o seu pensamento, para Saint-Paul, «ser visual é ter espontaneamente, pensando ou fallando a representação mental visual, a imagem do objecto do seu pensamento (visualismo)... « Ser verbal é ter espontaneamente, pensando, as representações mentaes das palavras apropriadas aos assumptos e aos objectos de seus pensamentos (verbalismo).» E accrescenta : « sabemos que estas representações podem normalmente apresentar-se sob differentes formas, segundo os individuos consi- derados.» No estudo da linguagem interior, a que elle chama phase endophasica da linguagem, e dos typos psychicos, segue Saint-Paul, com pequenas variantes, as idéas de Charcot, divergindo delle apenas na nomenclatura. O autor accentúa a diífe- rença entre os visuaes e os verbaes, entre o visualismo e o verbalismo. « De um lado, diz elle, 22 o visual, cujos pensamentos são series de imagens nitidas, precisas, coloridas, no qual a palavra se obumbra, empregada como que a contragosto, somente no caso de um raciocinio abstracto; do outro, o verbal que pensa palavras e phrases, ao qual mal apparecem de vez em quando miseráveis esqueletos*de imagens visuaes, Entre o visualismo puro e o verbalismo puro existe uma serie de typos, uns approximando-se mais do polo visual, outros do polo verbal ». Sem poder acompanhar por mais tempo o Dr. Saint-Paul no seu bello estudo, parece-nos podermos tirar destas noções, a serem ellas verdadeiras, a conclusão de que, no aphasico que pertencer ao typo visual deste autor, isto é, naquelle que se servir principalmente, pensando, das imagens visuaes dos objectos, o syndroma aphasico terá menor gravidade do que no verbal, que pensa, sobretudo, com as imagens sensoriaes e motrizes da palavra. Criticas e conlradictas tem sido levantadas contra o modo por que entende Charcot a linguagem interior e principalmente contra a sua theoria dos typos psychicos. Ch. Bastian (4), que todos os autores mencionam como partidário de Charcot, emitte, entretanto, duvidas a respeito da existência do typo motor, e diz: «I can find no good reasons or evidence to show that words ever arise in silent thought primarily in the kinmsthetic centres. I doubt 23 whether these memories are capable of separate voluntary recall and do not believe there is any evidence to show, as Bernard says, «that the motor centre for speech may becorne independent of lhe sensorial centre which had presided its education». Para Bastian é o centro auditivo, por isso que se desenvolve mais cedo, o que representa papel mais importante no mechanismo interior da linguagem, na evocação do pensamento silencioso. Esta impor- tância do centro auditivo, já accentuada por Wernicke.e Broadbent, foi objecto de um relatorio ao congresso medico de Paris, em 1900, por parte de Pick (21). Este autor, como muitos outros, attribue ao centro auditivo o papel de orgâo phre- nador da linguagem ; attesta a veracidade da hypothese o facto de serem a logorréa e a para- phasia symptomas frequentes nas lesões do centro auditivo. Para a explicação desses symptomas têm se aventado duas hypotheses, uma querendo explicar o facto pela excitação do centro motor, o que não pode ser acceito, porquanto esles signaes nunca se manifestam nas lesões isoladas do centro motor, outra, que é a mais admissível, dizendo que se trata de uma lesão do centro auditivo. Gomo vemos, Bastian não admitte, na integra, a hypothese dos typos psychicos; Wernicke, Pick e mais Kussmaull e Lichtheim negam-na em absoluto, estabelecendo a hegemonia do centro auditivo. Dejerine (22) e Mirallié (15) pregam a solidarie- dade dos centros corticaes com predominância do 24 centro auditivo; para elles todo o indivíduo é audi- tivo-motor : «II est bien certain que, pour la memoire chacun de nous mct eu jeu un mécanisme different: tel rétiendra mieux ce qu’il a entendu, tel ce qu’il a lu, tel ce qu’il a vu, tel ce qu il a écrit. Pour apprendre et retenir quelque chose, tel lira, tel écrira, tel parlera tout haut ce qu/il veut retenir; mais quand cette personne pensera avec des images de mots, dans son langage intérieur, elle mettra en jeu ses images auditivo —motrices et pensera par Févocation de ces images». Estas duas classes de imagens são, aliás, como relembra Mirallié as que primeiro se desenvolvem e, portanto, as mais «adherentes» ás celluias corticaes, as mais vivazes. Até na leitura o centro auditivo representaria o papel principal : as imagens visuaes despertam as imagens auditivas e motrizes. (Dejerine) Quanto á visão mental, lembram esses autores que nós pensamos ordinariamente, não com as imagens visuaes das palavras e sim com as dos objectos, não se tratando,* neste caso, de lin- guagem interior. Dejerine nega, além disto, a importância da concepção de Charcot para o prognostico das aphasias, fazendo ver que si fosse ella verdadeira a variabilidade clinica dos symptomas seria enorme, e o diagnostico teria inauditas difficuldades, po- dendo por exemplo a lesão do centro auditivo cm um motor passar sem grandes perturbações, por que as imagens motrizes suppririam a falta das 25 auditivas; o que se não dá na pratica, cada grupo de symptomas correspondendo constantemente a um substrato anatómico determinado. Também Freud (25), embora não negue alguma importância á hvpotbese de Charcot, exprime-se assim: «Ich glaube dass die Pathologie der Spra- chstorungen bisher keinen Ànlass gefunden hat, der Vermuthung Gharcofs eine grosse Bodeutung fúr die grobe Erscheinung des Functionsausfalles ein- zurâumen». A nosso ver é a theoria de Charcot talvez um pouco absoluta; as differenças nos symptomas aphasicos, em cada individuo, expri- mem-se bem no enunciado mais lato da seguinte pbrase de Hughlings Jackson: « Difíerent amounts of nervous arrangements in difíerent positions are destroyed with difíerent rapidity in difíerent persons». Em vista das considerações que acabamos de fazer, convém, a não querermos rejeitar por com- pleto a concepção de Charcot, concluir com Grassct: «II est bon de corriger la notion de Charcot un peu trop absolute par cette idée de la solidariété des centres cliez tout Je monde» (9). c Outro ponto controverso nesta difficil questão da physiologia e da pathologia da linguagem é a existência de um centro diíferenciado para as imagens graphicas. De um lado, Charcot, Ballet, Grasset, Bastian admittem-no; de outro lado, Licht- 26 hcim, Kussmaull, Monakow, Oppenheim, Wernicke, Dejerine negam-no. Estes últimos autores não admittem, no jogo da linguagem interior e na execução da escripta, a existência ou a necessidade das imagens dos svm- bolos graphicos. Para Wernicke e Dejerine, ao escrever, limitamo-nos a copiar as imagens visuaes das letras e das palavras ; o primeiro admitte que estas imagens se localisam no centro visual geral, ao passo que o segundo affirma que «estas imagens visuaes constituem imagens especialisadas que se localisam na dobra curva». O acto motor é presi- dido pelo centro motor do membro superior. A agrapliia não seria um symptoma da lesão do centro de Exner-Charcot, cuja existência é negada, e sim um signal da perturbação da linguagem interior, em qualquer de suas unidades psycho-phy- siologicas : toda a vez que houvesse desarranjo na noção da palavra a agraphia manifestar-se-ia. Dejerine critica a Gli. Bastian o admittir este autor um centro graphico, baseado na semelhança entre a linguagem articulada e a escripta. Diz Dejerine que a escripta em nada se pode comparar á linguagem artçculada, porque, em- quanto esta é uma faculdade especial, que tem o seu apparelho proprio c insubstituivel—os orgãos da . phonacão—a escripta é apenas um modo particular da motilidade da mão; e não só da mão, porque não se pode escrever somente com este orgão, mas 27 também com o cotovello; com o pé, etc., depen- dendo isto apenas da educação e do habito. Si admittirmos um centro para a escriptn, separado do centro motor cornmum do membro superior, havemos de admittir também, no cerebro do pianista, um centro preposto á execução mu- sical, o que seria por certo abusar da theoria da differenciação da corticalidade em centros auto- nomos. Pierre Marie (in Dejerine) faz ver que sendo a faculdade da escriptn de acquisição relati- vamente recente, comparada com a da palavra, que data dos primórdios da vida da humanidade, não se pode ainda ter constituido um centro para as imagens graphicas.Dejerine, reconhecendo o enge- nhoso da hypothese, vae-lhe, todavia, de encontro, dizendo que a creança não aprenderá a fatiar si lhe não ensinarem, qualquer que seja a raça e a civil isação. Não nos parece procedente a objecção; Dejerine parece não levar em conta o papel inconcusso da herança e da adaptação, importantes factores bio- logicos, que, pela sua acção atravez dos séculos e das gerações, presidem o discrime anatomo-physio- logico dos orgãos, isto é, a lenta accommodação deites ao preenchimento das funcções que vão sur- gindo e evolutivamente se constituindo. A objecção de que nos parece passivel a hypo- these de Marie é que, si não tivesse havido tempo para a differenciação do centro graphico, não havcl-o-ia também para a do centro visual, eviden- 28 temente posterior áquelle» e cuja existência está hoje anatomicamente demonstrada. Marie, concluindo as suas considerações, que abrangem o estudo da linguagem desde os hvero- glyphos até os signaes actuaes, assim se pronuncia: «E’ absolutamente inútil fazer intervir centros especiaes para a linguagem escripta. A maior parte das pretensas localisações são baseadas no puro eschema ou em dados anatomo-pathologicos cuja interpretação foi defeituosa ». Resumindo, em uma revista geral, os argumentos nos quaes se esteia a hypothese do centro graphico, Dejerine e MiraJlié assim os ctassificam : Argu- mentos psycho-physiologicos: Estes argumentos resumem-se na theoria dos typos psychicos, qual a acabamos de expor e que admitte não só que existem as imagens graphicas, mas também que ellas podem ter um certo grão de preponderância, na linguagem interior. Já vimos as objeccões que esta hypothese tem. levantado e que si não a der- ribam de todo, trazem-na, todavia, muito abalada. Argumentos experimentaes : Destes, o principal é o facto observado nas hystericas hypnotisaveis, que se tornam agraphicas, no periodo somnam- bulico, comprimindo-se-lhes a região do craneo correspondente á segunda circumvolução frontal esquerda. Dejerine objecta a isso que na hysterica tudo é suggestão e que produzir-se-á do mesmo modo a agraphia com a compressão de qualquer parte do corpo, com tanto que os doentes saibam o 29 que se exige delles. Lembram também alguns autores que certos indivíduos atacados de cegueira verbal conseguem comprehender as palavras, se- guindo os contornos das letras com o dedo, isto é. evocando as imagens graphicas das palavras. Isto, porém, só se dá nos casos de cegueira verbal sub-cortical, em que, portanto, as imagens visuaes estáo intactas; o doente segue os contornos das letras e evoca-lhes as imagens visuaes e não as imagens graphicas. (Dejerine). Argumentos clínicos: Dejerine nega qualquer importância a estes argumentos, pela falta de autopsia. Grasset, lembrando que se trata, não da localisação do centro graphico, mas apenas de sua existência, acha que os argumentos clínicos tém o seu valor. Esses argumentos tentam mostrar que a agraphia pode existir isoladamente, como forma clinica autonoma, e não 6 simplesmente um symptoma de diversas formas da aphasia, como dizem Dejerine e Mirallié. Um dos factos mais citados é a observação de Charcot, de um general russo, polyglotta, atacado de aphasia ligeira com agraphia; a aphasia foi melhorando pouco a pouco até desapparecer, ao passo que ficou por algum tempo um certo grão de agraphia. A esta observação responde Dejerine que não se trata, neste caso, de agraphia pura, porém de aphasia passageira com agraphia, em um polyglotta; melhorando o doente, desappareceu em primeiro logar a perturbação da articulação, demorando-se 30 mais a agraphia, como é de regra nos aphasicos motoros. Um outro caso de Pitres, mencionado como muito demonstrativo por diversos autores, é também analysado por Dejerine, que mostra o seu pouco valor. Grasset (7) apresenta um caso de agraphia em um surdo-mudo, e descreve-o sob o titulo de «aphasia da mão em um surdo-mudo». Pa- rece-lhe que se trata aqui de um caso de agraphia pura, o que viria demonstrar a autonomia do centro graphico; occorre-nos, porém, uma observação e é que pode muito bem ser que o mechanismo cerebral que substitue, no surdo-mudo, a linguagem interior, tenha sido perturbado dando logar á agraphia. A falta da autopsia não permitte a eluci- dação completa do caso. Argumentos anatomo-pathologicos : Para o;de- monstrar a existência de um centro graphico seria necessário uma observação na qual durante toda a marchada moléstia a.perda da escripta tenha sido o uriico phenomeno clinico apreciável, isto é, sem perturbação alguma da intelligencia sem traço appa- rente ou latente de alterações do lado da palavra, da leitura e da audição e em que a autopsia mos- trasse uma lesão destructiva localisada no pé da segunda circumvolução frontal». «Ora, tal caso não foi ainda apr esentado até aqui (Dejerine) ». Este autor lembra que não devem ser tomados em consideração os casos cm que 31 houver uma lesão qualquer dos centros sensoriaes, porque isto, só por si, pode produzir a agraphia. Com effeito, é hoje geralmente acceita a existência da agraphia sensorial. Das autopsias publicadas até hoje em favor do centro da agraphia a mais importante é a de Bar: o doente era agraphico e aphasico motor; a autopsia mostrou a existência de uma lesão circumscripta á segunda frontal esquerda. De accordo com-a sede da lesão deveriamos observar a agraphia pura; a existência concomitante da aphasia diminue muito o valor do caso. Têm sido publicadas algumas observações, que infirmam a localisação do centro de Exncr; assim é que, em um caso de Mac Burneye Allen Starr, o doente, apezar de uma lesão extensa que incluia em sua area o pé da segunda frontal esquerda, não apresentava symptoma algum de agraphia. Byrom Bramwell relata também um caso em que a lesão do centro de Exner não acarretou a agraphia. Por estes poucos exemplos vê-se que do ponto de vista anatomo-pathologico a questão é muito controvertida. Procurando avaliar experimentalmenle da exis- tência das imagens graphicas, Mirallié empre- liendeu uma serie de experiencias, fazendo os doentes agraphicos escreverem por meio de cubos alphabeticos que, como é sabido, são cubos de madeira, tendo em cada face uma letra. 32 Todos os doentes que tinham perturbações de escripta eram incapazes de formar palavras por meio de cubos; alguns que conseguiam escreveras primeiras letras de seu nome, podiam também reunil-as, por meio dos cubos, porém nunca conse- guiam miais com estes do que com a escripta ordi- nária. Ora, a reunião dos cubos alphabeticos em nada depende do centro graphico e no emtanto as diiffculdades na composição são parallelas ás per- turbações da escripta, o que prova não ser neces- sária a hypothese deste centro; ambos esses signaes physio-pathologicos são dependentes de uma alte- ração da noção interior da palavra. Assim conclue Mirallié: ceira temporal; Brissaud localisa-o na parte media desta circumvolução; Heilly, Chan- temesse, Ghauífard, na parte posterior; Pietrina e Claus, na parte anterior. ( Grasset—8). Em 1883 localisou Charcot o centro visual da palavra no lobo parietal superior, e Dejerine contribuiu para a limitação delle á dobra curva esquerda. A localisacão do centro de Broca, do de Wer- nicke e do visual está boje mais ou menos demons- trada; quanto ao centro graphico localisou-o Exner na segunda circumvolução frontal esquerda. Muitos autores têm admittido esta localisação, mas já vimos que ellatem levantado innumeras objecções, a ponto de Bastian dizer que «tbe evidence in favour of tbis localisation is at present almost non-existente. Os centros cerebraes não devem ser conside- rados como entidades completamente distinetas,-do ponto de vista topographico, e sim como engrena- gens de cédulas e fibras mais ou menos relacio- nadas com uma ou outra funcção. Freud tem sustentado nesta questão dos centros da linguagem uma opinião um tanto especial, que julgamos util mencionar aqui. Para elle não existem centros separados, pre- postos á funcção da linguagem; existe, sim, no córtex cerebral uma zona, dentro da qual se dão as asso- ciações necessárias a esta funcção. Os chamados centros da linguagem estariam collocados nos .extremos, nos ângulos da zona da 38 linguagem, em cuja area estão comprehendidas a insula e as circumvoluções que a cobrem. Cada angulo desta região, cada centro confina com uma região determinada do córtex: o centro de Broca com os centros motores dos nervos bulbares do apparelho da phonação, o centro auditivo com o centro do nervo auditivo, o visual com o centro optico; todos ligados por múltiplas fibras de associação. Uma lesão que se localise nesta região terá como consequência uma perturbação da linguagem; si tem por séde o centro da zona da linguagem, a perturbação será indistincta, sem caracteres defi- nidos e sem gravidade. Ao passo que a lesão se localisa mais para a peripheria da zona, á medida que ella mais se approxima dos ângulos, e, portanto, dos pontos em que as fibras de associação desta zona com as outras partes do córtex são mais numerosas, a desordem pathologica vae se accen- tuando e tomando os caracteres das perturbações peculiares ás lesões da região, de que mais se avisi- nha a lesão. Por exemplo: si a lesão approximar-se do centro visual, teremos a cegueira verbal e assim por diante, À lesão assume o máximo de gravidade, quando se localisa nos limites da zona da lingua- gem com as outras partes do córtex, porque então attinge maior numero de fibras de associação. Dejerine acceita a idéa de Freud, modificando-a um pouco; assim é que clle acha que Freud attribue ás fibras de associação um papel exagerado, collo- cando em plano secundário os centros; julga, além 39 disto, que Fréud estendeu muito para traz a zona da linguagem, incluindo nella uma parte do lobo occipital, e não admitte as conclusões physio-patho- logicas deste autor. A zona da linguagem não é uma concepção arbitraria, anatomicamente fallando; basta lembrar que as circumvolueõcs que a com- põem agrupam-se em torno de um* grande sulco, a scisura de Sylvius, e podem ser consideradas como uma circumvolução unica, a circumvolução da orla (d’enceinte), sendo, além disto, alimentadas por um unico vaso, a cerebral media. Vamos, de accordo com a descripçãode Dejerine (24) e Mirallié, dar uma idéa da zona da linguagem. Temos que estudar: Io a scisura de Sylvius, 2° a circumvolução de orla, 3o as fibras de associação, 4o as fibras de projecção, 5o a circulação arterial. Io A scisura de Sylvius é um sulco que se dirige obliquamentc de baixo para cima e de diante para traz; o labio superior é constituido pelo lobo frontal e pelo parietal, o inferior pelo lobo temporal. A extremidade anterior está situada na face inferior do liemispherio: depois ganha a face externa do hemispherio. A scisura bifurca-se: o ramo posterior, depois de um percurso de 8 a 10 centimetros, termina no lóbo parietal e limita para diante o gyrus supra-marginalis ; o ramo anterior, que se bifurca em uma parte horizontal e uma vertical, só pertence á zona da linguagem por esta ultima parte, que é o limite anterior do pé da terceira frontal. Entre a parte horizontal e o ramo posterior da scisura 40 de 'Sylvius estende-se uma porção de córtex, que cobre a insula e tem o nome de operculo. No nível da extremidade posterior da scisura o lóbo parietal anastomosa-se por duas dobras de passagem, uma superficial, que. constitue o gyrus supra-marginalis (lobuio da dobra curva) e uma profunda, que é a circumvolução temporal profunda. 2° A circumvolução da orla forma-se á custa do lóbo' frontal, do parietal e do temporal. A zona da linguagem começa, para diante, no pé da terceira frontal esquerda, que é limitado anteriormente pelo ramo vertical ascendente da scisura de Sylvius e que se continua com o cabo de Broca. O pé da terceira frontal manda á segunda frontal uma dobra anastomotica, que depois dirige-se para baixo e vae inserir-se na parte inferior da frontal ascendente, formando o operculo frontal. Acha-se para traz do operculo frontal o operculo rolandico, formado pela anastomose da frontal e da parietal ascendentes. Ao operculo rolandico segue-se a circumvolução parietal inferior, «flexuosa, situada abaixo do sulco inter-parietal e dividida em duas partes, anterior e posterior, pelo sulco intermediário vertical de Jen- sen; a anterior -começa na extremidade posterior da scisura de Sylvius e lança-se na primeira tem- poral. Esta parte anterior tem o nome de gyrus supra-marginalis. Depois a circumvolução alarga-se, para cima, contorna o sulco intermediário de Jcnsen, coifa a extremidade posterior do sulco parallelo, 41 descrevendo uma curva de convexidade superior e bifurca-se em duas ansas : a ansa anterior contorna para traz osulcoparallelo, para se anastomosar coma segunda circuinvolueão temporal e formar a dobra curva de Gratiolet; a ansa posterior lança-se na 2a circumvoluçao occipital» (Mirallié). Em baixo, a zona da linguagem é formada pela parte posterior da primeira e da segunda temporaes, que formam o labio inferior da scisura de Sylvius. A zona da linguagem cobre o lobulo da insula, vi- sível quando são afastados os lábios da scisura de Sylvius. Quanto ao papel da insula nas aphasias, julgam Dejerine e Mirallié ser elle devido ás fibras brancas subcorticaes e não ao córtex. Estudemos, agora, a estructura do manto cere- bral. Ramon y Gajal distingue quatro camadas de cellulas no córtex do cerebro. 1° A zona molecular, separada da pia-ma ter pela nevroglia subjacente a esta; esta camada é constituída por fibras myelini- sadas, varicosas, parallelas á superfície, formando a camada de fibras tangenciaes de Exner. Estas fibras nascem das cellulas polygonaes, triangulares e fusi- formes, próprias á camada molecular. 2° A camada das pequenas cellulas triangulares, de base central e vertice peripherieo; partem do vertice destas cellulas dendrites ascendentes, que se vfio expandir em um reticulo intrincado nà camada molecular, ao passo que o cylinder-axis se dirige para a corda radiante ou para o systema de fibras de associação. 3o A camada das grandes cellulas pvramidaes, que 42 se distinguem das precedentes somente pelo volu- me; entre a segunda e a terceira camada existe uma rede de fibras nervosas, chamada estria externa Baillarger. 4.° Emfim, acamada das cellulas poly- morphas, cujos dentrites dirigem-se para a camada molecular, sem todavia alcançal-a, ao passo que o cylinder-axis continua com uma libra branca. 3.° As fibras de associação da zona da lingua- gem dividem-se em curtas e longas. As primeiras são constituidas por fibras em forma de U, que, partindo do cimo de uma circumvolução, vão ter ao cimo da circumvolução visinha. Dejerine pensa que estas fibras não se cobrem de myelina na creança, porém mais tarde—«quando a educação e o exer- cido incitam dois territórios corticaes a funccionar unisonamente.» As fibras longas de associação comprehendem diversos feixes nervosos. O feixe longitudinal supe- rior ou arqueado parte do lobo frontal e termina nas regiões temporo-occipitaes, ligando estes pontos entre si. O feixe occipito-frontal origina-se no córtex do lobo frontal e expande-se nas circurnvoluções da face externa do lóbo temporo-occipital, ligando-o ao lóbo frontal, á convexidade do hemispherio e â insula. O feixe longitudinal inferior liga o lóbo tem- poral ao lóbo occipital. A zona da linguagem está além disto ligada ao hemispherio opposto pelas fibras commissuraes. 4.o Das fibras de projecção que partem da zona da linguagem, as mais conhecidas são as oriundas 43 da 3.a frontal; estas fibras formam o feixe pedicnlo- frontal inferior de Pitres, que atravessa o centro oval e dirige-se para a capsula interna. Dahi em diante o trajecto deste feixe é descripto differentemente pelos autores; Brissaud diz que elle se une ao feixe frontal inferior para constituir o feixe geniculado, que occupa o joelho da capsula interna e vae ter ao pé do pedunculo; Raymond e Artaud dizem que o feixe geniculado se compõe de dois feixes, um posterior que é o feixe do hypo- glosso, outro anterior que é o feixe da aphasia ou feixe intellectual, que vae ter também ao pé do pedunculo. Dejerine, porém, affirma que o segmento anterior da capsula interna e o feixe pediculo-frontal de Pitres nenhuma relação têm com o pedunculo: nascendo na corticalidade frontal, vão se terminar estes feixes no thalamo optico, 11a região sub-optica. Também do lobo temporal e do lobo parietal partem fibras descendentes, que vão terminar no thalamo optico. 5.° Toda a zona da linguagem é irrigada pela artéria cerebral media ou sylviana. Este vaso, continuando directamcnte 0 tronco da carotida interna, e situada a principio 11a face inferior do hemispherio, descreve uma curva de concavidade posterior, abraçando a ponta do corno esplienoidal, ganha 0 polo da insula e interna-se na scisura de Sylvius, percorrendo-a em toda a extensão e forne- cendo os ramos que passamos a descrever. A artéria frontal inferior, artéria do circumvolução de Broca 44 fornece a esta circumvoínção e á parte inferior da segunda frontal. A artéria frontal ascendente fornece aos dois terços inferiores desta circumvolução e ao pé da se- gunda frontal. A parietal ascendente serve a circum- volução do mesmo nome, a primeira e a segunda parietaes. A parietal inferior. l)r. Tillemont Fontes, a 21 de Setembro do corrente anuo. 0 doente é alcooiata e syphilitico. 0 diagnostico foi: aphasia motriz sem hemiplegia, por trom- bose da artéria da circuinvolução de Broca. 0 estudo clinico completo não poude ser feito poraue o doente não sabe ler nem escrever. Sabiu alguns dias depois com unia melhora insignificante. 59 Estas causas, que vamos passar em revista, for- mam uma gradação ininterrupta entre as lesões evi- dentemente materiaes, como a embolia, e as pertur- bações puramente funccionaes, como a hysteria. E’ de observação frequente a hyperemia cerebral, ligada ao trabalho intellectual exagerado,aos pezares ou á exposição ao frio; e destas causas pode até resultar uma trombose passageira. A aphasia é muitas vezes produzida por estas causas. Trousseau cita o caso do Prof. Rostan, que, confinado ao leito durante alguns dias, occupava-se em ler as Conver- sai ions lit tera ires de Lamartine, quando, de súbito, não ponde mais comprehender o que lia; procu- rando pronunciar algumas palavras, viu-se na im- possibilidade de fazel-o; tocou a campa, appareceu-lhe o creado, mas elle não ponde dizer-lhe uma palavra. No emtanto havia ausência completa de qualquer perturbação paralytica, quer do apparelho phona- dor, quer dos membros. Chamado um medico fez-lhe Rostan signal de que queria ser sangrado. Apenas o sangue começou a correr, foi elle conseguindo dizer algumas palavras e melhorando progressivamente, até que no fim de doze horas estava completamente curado. Em vez da congestão pode ser a ischcmia, por espasmo vascular, a causa producente de uma aphasia passageira, que se repete, ás vezes, com pequenos intervallos. 60 0 espasmo vascular é devido provavelmente a substancias toxicas circulantes no sangue e dotadas de propriedades vaso-coristrictivas. As substancias toxicas capazes de produzir a aphasia podem ser divididas em exógenas e*endo- genas. Das primeiras merecem menção a belladona, o estramonio, a cannabis indica, o opio e o tabaco. Gilbert Baliet diz ser atacado de amne$ia verbal passageira, quando fuma em demasia. O veneno ophidico representa, ás vezes, papel etiologico; os médicos das índias neerlandezas faliam de uma serpente que os aborígenes chamam «oeloerj>, cujo veneno é aphasigeno (Bastian). Na classe dos venenos merece ser incluido o álcool, que actúa pelas modificações degenerativas que produz no apparelho cardio-vascular e no orga- nismo em geral. Quanto aos toxicos endogenos, gerarn-se em diversos estados morbidos como a gotta, a uremia, a diabetes, a febre typhoidé, a variola, a febre amarella. Até a febre intennittente é susceptivel de produzir a aphasia. As substancias toxicas, quer endógenas, quer exógenas, actuam, segundo Gh. Bastian, de tres maneiras differentes: 1.» produzindo embolias pas- sageiras, que se resolvem em pouco tempo; 2.a pro- vocando o espasmo das arteriolas cerebraes e ischemiando, deste modo, as regiões por ellas irri- gadas; 3.a actuando directamente sobre a substancia cerebral. 61 A aphasia desenvolve-se algumas vezes em seguida a accessos de epilepsia jacksonniana. Dela- siauve (cit. Bastian) narra um caso em que a aphasia alternava com a epilepsia. À doente ficava aphasica durante uma semana, depois lhe sobrevinha um ataque epileptiforme, desapparecia a aphasia, mas surgia uma paralvsia da bexiga. A esclerose em placas, o tabes, o pulso lento permanente, o edema cerebral agudo ou apoplexia serosa são outras tantas causas da aphasia. Bastian menciona também os ataques congestivos a que são sujeitos os paralvticos geraes. Os autores referem, como factores etiologicos possíveis, o medo e as impressões moraes muito fortes, a irritação reflexa resultante de uma nevral- gia, de vermes, intestinaes, etc. A suggestão durante o somno hypnotico produz a aphasia, que pode se prolongar durante o estado de vigilia; este facto foi estudado principal mente por Charcot. Emfim, muitas vezes é a aphasia uma manifes- tação da hysteria, e temos então o mutismo hvsterieo, que deve ser distinguido da aphonia hysterica por paralvsia das cordas vocaes. No capitulo seguinte diremos algumas palavras sobre o assumpto. A exploração clinica dos aphasicos deve ser cuidadosa e completa; para ser irreprehensivel é 62 preciso fazel-a em diversas occasiões, afim de evitar a fadiga dos doentes, muito facil de manifestar-se em consequência da fixação prolongada da attenção, e que falseia os dados obtidos. Dejerine, Roux e Thomas (34) estabeleceram as bases do exame clinico. Examina-se em primeiro logar a palavra espontânea com todas as suas modificações, que vão referidas no capitulo seguinte; depois passa-se á palavra repetida. Manda*se a principio que o doente repita as palavras familiares, depois phrases simples e assim em ordem progres- siva de complicação, para ver até que ponto chega a capacidade de articular. Faz-se o estudo do canto, susceptivel, como veremos, de fornecer dados interessantes; o doente cantará alguma coisa que souber de cor, o que ás vezes é muito difficil de encontrar-se. Depois passa-se á denominação dos objectos, apontando um objecto de uso ordinário e mandando que o doente diga-lhe o nome. O exame de leitura mental tem importância e foi estudado por Thomas e Roux; empregam-se para isto paginas impressas e manuscriptas, notando si o doente conhece espontaneamente as letras, si as reune em syllabas e estas em palavras (cegueira litteral, asyllabia, cegueira verbal). A’s vezes o doente reconhece a palavra pelo aspecto geral, mas é incapaz de decompôl-a em syllabas e em letras; outras vezes o doente olha muito tempo para um livro, com ares de quem lé 63 sem todavia comprehcnder coisa alguma, collocando até o livro de cabeça para baixo. Será procurada igualmente a existência da aplia- sia optica, que descreveremos adiante. Do mesmo modo far-se-á o estudo da compre- hensáo da palavra ouvida, procurando pôr em evi- dencia a surdez verbal, qne ás vezes se occulta, em estado latente. E’ de grande importância o estudo da escripta, que será examinada em suas tres varie- dades : espontânea, por copia, dictada. Seráutilisado neste estudo tanto o impresso como o manuscripto. Não deve ser esquecido o estado intellectual do doente, o que tem grande importância medico-legal. A memória será explorada, mandando-se que o doente repita o alphabeto, os dias da semana, do mez, etc. A cegueira psychica também deve ser estudada. E assim temos delineado perfunctoriamente o modo de exame dos aphasicos. Variadas classificações tôm sido propostas para as aphasias, de accordo com as opiniões de cada autor; eschemas diversos têm sido organisados para servirem de base a essas classificações. Menciona- remos os de Charcot, Brissaud, Liclitheim, Wer- nicke, Grasset. Aos eschemas faz Dejerine a grave accusação de serem baseados em concepções pura- mente especulativas, creando typos clinicos theo- ricos com sua symptomatologia e sua anatomia 64 pathologica preestabelecidas, de muitos dos quaes a clinica não deu até lioje exemplo algum. A unica vantagem delles é facilitarem a compre- hensão theorica do apparclho nervoso central da lin- guagem. Charcot dividia as aphasias em duas classes, conforme eram interessadas as funcções centrípetas ou de recepção em um caso, as funcções centrí- fugas ou de transmissão em outro. No primeiro caso podia manifestar-se: Io a alte- ração da audição das palavras: surdez verbal; 2o a alteração da leitura: alexia ou cegueira verbal. No segundo caso ou era perturbada a articulação das palavras, e havia aphasin motriz, ou a escripta, e trata- va-se de agraphia. Grasset (9), baseando-se nas idéas de Charcot, editou uma classificação mais ampla, que se confunde em muitos pontos com a de Pitres (3). Para bem eomprehender a classificação de Gras- set, é preciso ter-se cm mente o seu eschema. Este autor chama polygono cortical, polvgono superior, o conjuncto dos centros cerebraes ligados entre si por vias de união; os differentes centros que con- stituem este pQlygono estão ligados ao centro da ideação—centro O de Grasset. Além disto elles se communicam, por fibras de projecção, com o poly- gono inferior, constituído pelos centros dos nervos bulbares. A lesão pode localisar-se: 1° nos centros da palavra; 2o nas vias de união entre o centro da 65 ideação e os da palavra (ideo-polvgonaes);* 3° nas vias de união entre os centros corticaes; 4o nas fibras sub-corticaes. Lembradas estas noções, podemos organisar o quadro seguinte pautado pelo de Grasset. Aphasias l.° Aphasias polygonaes do Gras- sei, nucleares de Pitres (lesão dos centros corticaos da pa- lavra). 1. Aphasia motriz do Broca. 2. Agraphia. 3. Cegueira verbal. 4. Surdez verbal. 2.° Aphasias sub-polygonaes de Grassot, sub-corticaes do De- jerine (lesão das fibras bran- cas immediatamente subja- centes ao córtex). 1. Aphasia motriz subcortical. 2. Agraphia subcortical. 3. Cegueira verbal subcortical. 4. Surdez verbal subcortical. 3.° Aphasias supra - polygonaes de Grasset, psyclio-nucleares de Pitres, transcorticaes de Pick (Interrupção das vias de communicação entre o cen- tro psychico e ura centro cor- tical). 1. Aphasia ideo - ou psycho-mo- triz. 2. Aphasia ideo - ou psycho-gra- phica. • 3. Aphasia ideo - ou psycho-vi- sual. 4. Aphasia ideo - ou psycho- acustica. 4.° Aphasias transpolygonaes do Grasset, internucleares de Pi- tres (Interrupção da commu- nicação entre dois centros cor- ticaes). 1. Aphasia opto-motriz. 2. Aphasia acustico-motriz. 3. Aphasia opto-graphica. 4. Aphasia acustico-graphica. õ.° Aphasia opto-acustica. 6.° Aphasia raoto-graphica. A primeira classe comprehende as aphasias por lesào dus centros corticaes; as tres outras podem ser incluidas na denominação de aphasias de conductibilidade. A segunda classe não é admittida por Pitres, que a confunde com a paralysia pseudo-bulbar; a 66 terceira não é acceita por Dejerine, que não admitte a existência do centro psychico. Esta classificação tem sido accusada de demasiado eschematica, de modo a não corresponderem algumas variedades a formas clinicas observadas. Dejerine divide? as aphasias em duas grandes classes: corticaes e subcorticaes ou puras, conforme a lesão se localisa nos centros da palavra ou nas fibras subcorticaes; no primeiro caso altera-se a linguagem interior, no segundo fica ella intacta. Pode-se resumir a classificação de Dejerine no seguinte quadro: l.° Aphasias corticaes . 'Aphasia motriz. Aphasia sensorial. k Aphasia total. Aphasia motriz pura ou subcor- tical. Cegueira verbal pura. Surdez verbal pura. 2.° Aphasias subcorticacs ou puras Dejerine não in-clue, como se vê, a agraphia entre as formas da aphasia; a sua classificação será melhor comprehendida depois da leitura do capitulo seguinte. Na descripção clinica que vamos fazer seguire- mos a ordem seguinte: I Aphasia motriz, cortical e subcortical; 11 Para- phasias; III Aphasia sensorial, surdez verbal pura, cegueira verbal pura; IV Aphasias tle conductibi- lidade; V Aphasia total; VI Agraphia. CAPITULO III ESTUDO CLINICO DAS AP II A SI AS I—Aphasia motriz Para a exacta caracterisação clinica e segura diííerenciaçrio diagnostica da aphasia motriz, é necessário o estudo de uma serie de questões, algumas das quaes ainda vacillantes ao embate das opiniões divergentes. A aphasia motriz consiste na perda da memória das imagens motrizes da palavra, em consequência de uma lesào do centro de Broca. Revela-se de ordinário de um modo subitanco e imprevisto, em um individuo que foi atacado de ictus apoplectico, a que se seguiu uma hemiplegia direita com aphasia. A’s vezes a apoplexia é precedida, durante muitos dias, de prodromos, que consistem em formigamentos nos membros e ligeiras perturbações da palavra, cephalalgia, vomitos, etc. Trata-se então da apoplexia progressiva, engra- vescent apoplexij dos autores inglezes, cuja pathoge - nia se explica pela ruptura de uma arteriola insigni- ficante, que vae deixando o sangue infiltrar-se pouco a pouco na substancia nervosa até a producção final do itus apoplectico. Outras vezes a aphasia faz a sua 68 invasão sem perda de conhecimento da parte do individuo. Ainda aqui a invasão pode ser instantanea ou gradual; no primeiro caso tratar-se-á provavel- mente de uma embolia limitada a um dos ramos da sylviana, no segundo o agente pathologico será um tumor ou qualquer outra causa que actue grada- tivamente sobre uma parte da zona da linguagem. Jnstallada subitanea ou progressivamente, com ou sem perda de conhecimento, apresenta-se a aphasia, em seu periodo inicial, quasi sempre com os caracteres da aphasia total, complexa: profundo desarranjo da linguagem interior e perturbações de todos os elementos da palavra, que tem ás vezes por substrato uma simples hyperemia ou uma lesão cerebral minima. E’ que, como diz Fernand Bernheim (26), de shok qui accompagne la production duine lésion, les modifications de la circulation générale qui se pro- duisent á Foccasion d'une perturbation locale, la diminution de la dvnamogénie cérébrale et les phé- nomènes dnnhibition modifient les fonctions psy- chiques de 1’encéphale et apportent une entrave sérieuse á la mise en jeu des associations dnmages verbales et sensorielles>». Passada, porém, a brutal influencia deste choque inicial, que fez se estarre- cerem no encephalo todas as actividades funccio- naes, simplifica-se sobremodo o semblante clinico e fica apenas, no caso vertente, a aphasia motriz, com algumas outras perturbações que se lhe podem aggregar. Seguindo a ordem que expuzemos para a 69 exploração clinica, devemos registrar em primeiro logar as perturbações da palavra. A palavra cspontanea é profundamente pertur- bada. O vocabulário do doente reduz-se de um modo considerável, podendo até desapparecer quasi com- pletamente. Dizem os autores que raramente se observa a mudez absoluta; nos dois casos que tive- mos occasião de observar a impossibilidade da articulação podia se dizer completa, porquanto os doentes eram incapazes de enunciar qualquer som articuladoe apenas emittiam ruidosinintelligiveis(l). Talvez fosse isso devido a serem ambos analpha- betos. Quasi sempre o doente pode repetir os mono- svllabos, sim, não, umas vezes com consciência da significação delles, outras vezes empregando-os a torto e a direito. Em outros casos serve-se o doente frequentemente de palavras sem significação, como cousisi, monomomenti, etc. (Trousseau); muitas vezes são conservadas certas exclamações, como Sacró nom de Diea, etc. Muitos aphasicos conservam algumas palavras de uso muito frequente, que tanto se identificaram com elles, a ponto de poderem ser consideradas parte integrante de sua personalidade. Estas palavras são o logar de sua residência, o nome de sua mulher e de seus filhos, etc. 1 Já relatamos summariamente um destes dois casos. 0 segundo refere-se a um individuo, que entrou para o serviço clinico do Dr. Tillemont Fontes, em Setembro, atacado de hemiplegia direita com aphasia, cuja observação detalhada não poude ser feita por falta de informações e por ser o doente analphabeto. 70 Nos casos menos graves conservam os doentes algumas palavras e phrases, com as quaes, de com- binação com o accionado, conseguem exprimir seus pensamentos de modo a se fazerem comprehendidos. Até nestes casos, porém, o doente só emprega as palavras essenciaes (estylo telegraphico), pondo frequentemente os verbos no infinito (estylo negro). Alguns aphasico.s repetem, provocada ou esponta- neamente uma só palavra, que parece estar a lhes obcecar o espirito: é o que Gairdner chama a into- xicação pela palavra. Freud (25) pensa que estas palavras representam o assumpto de que se occu- pava o doente, ou palavras que elle formulava mentalmente, 'ou pronunciava, ao ser, de chofre, atacado da moléstia. Cita elle o caso de um incli- viduo, aphasico em consequência de um trauma- tismo craneano, em um conflicto, que repetia incessantemente: / voant protection; e o de um escriptor, que, atacado de aphasia ao terminar a confecção laboriosa de um catalogo, dizia a todo o instante: list complete. Outros autores pensam que se trata aqui do funccionamento supplementar, embora muito desageitado e incoordenado,da 2a fron- tal direita, e ainda para alguns é o facto devido á conservação de algumas cellulas e fibras do centro motor de articulação. Bernheim approxima a con- servação destes restos de vocabulário da conservação dos movimentos dos dedos e do pé, do lado para- lysado, nas lesões hemiplegicas. A palavra repetida resente-se, como a espon- 71 tanea, de graves perturbações: o indivíduo é inca- paz de repetir o que ouve. A7s vezes, porém, eile con- segue repetiras palavras inais fáceis, algumas até que não poderia articular espontaneamente; ao passo que a palavra se torna mais complexa, vae-se accen- tuando a difiicu Idade na repetição, havendo fre- quentes trocas de letras e de syliabas. Uma desordem frequente em todos os syndromas aphasicos é a echolalia, symptoma observado muitas vezes 11a alie- nação mental, e que consiste em repetir 0 doente, automaticamente, as palavras pronunciadas diante delle. A’s vezes elJe repete somente as palavras da lingua materna, outras vezes repete qualquer som que lhe chegue aos ouvidos. Este symptoma teste- munha quasi sempre uma degradação mental mais ou menos pronunciada, e, nos casos em que elle tem sido observado, a autopsia tem demonstrado constan- temente a concomitância da atrophia cerebral pro- nunciada, ou de uma vasta lesão cortical. Convém distinguir a echolalia da conservação da faculdade de repetir; ao passo que esta é um acto voluntário, intelligente, aquella é um acto involuntário, auto- mático, irresistível: lesmots rébondissent enquelque sorte enarrière. (F. Bernhcim)» A articulação dos adjectivos numeraes conserva- se frequentemente; ou porque exista um grupo de cellulas a isto prepostas (Bastian) e que não foram atacadas, ou porque os numeraes representem sym- bolos, que correm por conta da linguagem auto- 72 matica, a qual se conserva por mais tempo (Dejerine). Bailei, de accordo com Ribot, estabelece as leis da evolução da amnésia, que se faz sempre do parti- cular para o geral. Assim se exprime Ribot (cit. Ballet): «Elle atteint d’abord les noms propres qui sont purement individuels, puis les noms des choses qui sont les plus concrets, puis tous les substantifs qui ne sont que des adjectifs pris dans un sens par- ticulier; eníin viennent les adjectifs et les verbes qui éxpriment des qualités, des maniòres d’être des actes. Les signes qui traduisent immédiatement des qualités périssent donc les derniers». Gomo exemplo dos primeiros gráos basta citar o caso do abbade Perrier (Ballet), que tendo perdido a facul- dade de pronunciar os substantivos dizia, quando queria pedir o chapéu: Donnez-moi mon... ce qui se met sur la.,, A disposição de espirito dos apha- sicos inílue muito sobre a variação do cabedal de palavras delles. Quando estão calmos conseguem ás vezes exprimir-se com relativa facilidade; si, porém, encolerisam-se são incapazes de dizer uma palavra. O contrario também se pode dar e o doente fallar sob o impulso de uma commoção violenta. Cita-se o caso do filho de Creso, mudo de nascença, que vendo o pae em imminencia de ser ferido excla- mou: Não matem Vreso. Tratava-se provavelmente de uma aphasia hysterica. Na aphasia dos indivíduos que faliam diversas linguas — aphasia dos polyglottas—as perturbações 73 da palavra variam para cada uma das linguas; quasi sempre o indivíduo-conserva unicamente um certo numero de palavras da lingua materna, esquecendo- lhe completa ou quasi completamente as das outras Esta regra, embora baseada nas leis da estra- tificação das imagens motrizes no respectivo centro, soffre algumas vezes excepções; e acontece frequen- temente que o doente conserva maior numero de palavras da lingua que é por elle mais frequente- mente usada, para cujo uso, portanto, mais adaptada se acha e mais destra,nesta occasião,a sua dvnamoge- nia cerebral. Quando se faz a regressão do syndroma é ainda a lingua materna ou a mais commummente usada a que primeiro vem surgindo do naufragio e paulatinamente se reconstituindo. Antes de irmos mais adiante na descripção da aphasia motriz, é preciso que accentuemos a diífe- rença entre a aphasia motriz cortical ea‘ subcortical, a que já nos referimos e de que fatiaremos adiante com mais demora. A aphasia motriz cortical tem por substrato uma lesão do centro cortical da palavra; na aphasia sub- cortical a lesão predomina nas fibras subcorticaes. Na primeira ha perturbação da linguagem interior, na segunda não. Fazemos desde já esse discrime, porque vamos estudar as perturbações da visão, da audição verbaes e da escripta nos aphasicos, e as considerações que passamos a fazer só se referem á aphasia motriz cortical. Estudemos, em primeiro logar a existência da alexia na aphasia motriz. 74 F.Bernheim diz:«Les troubles de la lecturefont partie du tableau clinique ‘de 1’aphasie motrice et de 1’apha‘sie sensorielle». A primeira parle desta afíir- mação nào corre sem controvérsias. Dejerine, Mirallié, Bernheim e numerosos outros autores aííir- mam a existência da alexia 11a apliasia motriz corti- cal. JáTrousseau (34) dizia que os aphasicospassam muito tempo a olhar para um livro, fazendo de quem lê, sem 110 em tento comprehenderem as pala- vras que têm diante dos olhos. Bernheim diz que 110 principio da aphasia motriz cortical a cegueira verbal ê bastante accentuada em alguns casos, des- apparecendo pouco a pouco ou persistindo indefini- damente; em outros casos é tão insignificante que é preciso investigal-a com cuidado. Dejerine e Mirallié explicam esta cegueira verbal da aphasia motriz por uma alteração da noção da palavra, em conscquenciã da destruição das imagens motrizes de articulação. Bruns e Sachs, citados por Bernheim explicam a alexia dos aphasicos motores pela lesão de uma via de communicação existente entre o centro optico direito e 0 centro motor á esquerda, passando pela borraina do corpo cailoso e pelo tape- tum e indo ter ao lobo occipital. E’ opinião de Collins que existe a dyslexia (a dyslexia vae descripta na aphasia sensória!) em todos os casos da aphasia motriz. Ch. Bastian lembra que as pessoas sem instrucção fazem sempre a leitura em voz alta e só assim podem comprehender 0 que leem, por- quanto o centro visual, pouco adestrado, exige 0 con- 75 curso do centro motor e do auditivo. O mesmo acontece com as pessoas educadas ao quererem interpretar um trecho de difficil comprehensão. E’, portanto, provável que a perturbação do centro motor influa de algum modo sobre o centro visual. Diz, todavia, Bastian que isto só se observa em alguns casos e que elle tem visto muitas vezes a aphasia motriz sem alexia. A seu ver sempre que a alexia coincidir com a aphemia, deve-se inquirir a existência da hemia- nopsia, quasi sempre existente, que virá mostrar não ser a lesão circumscripta ao centro de Broca, ou haver outra lesão para traz dessa, compro- mettendo a integridade do centro visual. • Em summa, duas opiniões se defrontam no tocante ao facto que mencionamos: Dejerine sus- tenta que em todos os casos de ap.hasia motriz cortical existe a alexia, muito accentuada em uns, pouco em outros, em alguns quasi imperceptivel ; e admitte corno explicação o desarranjo da noção da palavra. Bastian nega a existência constante da alexia na aphemia, afíirmando que quando ella apparece, é que uma lesão existe, a qual, interes- sando o centro visual, embaraça-lhe o funcciona- mento. Quanto ás perturbações cia audição verbal na aphasia motriz, quasi todos os autores a negam ou não a mencionam. Dejerine, porém, admitte a 76 sua' existência, embora seeJla evolva muitas vezes despercebida, por falta de um exame rigoroso. Seus discípulos Thomas e Roux (39) fizeram estudos práticos sobre as perturbações da leitura mental nos aphasicos, chegando á conclusão de que existe frequentemente difficuldade na evo- cação das imagens auditivo-vcrbaes. O doente consegue evocar a primeira e a ultima syllaba de uma palavra, mas não pode evocar a syllaba ou as syllabas intermediárias. Quasi sempre o aphasico comprehende as phrases simples, ao passo que sente diffieuIdade em comprehender as mais complexas. Quanto á explicação da surdez verbal, nestes casos, é a mesma que a da cegueira verbal: perturbação da noção da palavra. Sem entrar, por ora, no estudo da agrapliia, de que aliás já dissemos alguma coisa e que estuda- remos synopticamente adiante, é-nos preciso, com- tudo, mencionar as perturbaròds da cscripta na aphasia motriz eortieal. Gbarcot, Ballct, Bastian e numeros outros são de opinião que a agraphia é um syndroma autonomo, que pode ser indepen- dente das outras perturbações da linguagem ; opi- nião inteiramente contraria á de Wernieke e De- jerine, para os quaes a agraphia é um symptoma das apbasias corticaes, quer motrizes, quer senso- riaes. Gairdner e Trousseau já tinham notado as perturbações da escripta nos aphasicos e este ultimo dizia que « les malades écrivent aussi mal qifils 77 parltíiit»; no emlanto, os autores citam numerosos casos de aphasia sem agraphia e, inversamente de agraptiia sem aphasia. Responde-lhes Dejerine que os casos de aphasia sem agraphia são casos de aphasia sub-cortical, portanto sem perturbação da linguagem interior, e os de agraphia sem aphasia são casos mal observa- dos, em que a observação clinica não foi bem feita, e, ou não houve autopsia ou esta foi defeituosa. Seja como fôr, esta questão exige ainda estudos acurados antes de ser resolvida. O que é indubitável é que na grande maioria dos casos de aphasia motriz, o doente só pode escrever o que é capaz de articular ; consegue es- crever as partículas sim, não, seu nome e uma ou outra phrase que lhe ficou do naufragio de sua linguagem. A’s vezes só escreve as primeiras letras de cada palavra (Marcé). Isto no que diz respeito á escripta espontânea , quanto á escripta sol) ditado, também ella soífrc perturbações mais ou menos graves. A capacidade de copiar conserva-se mais fre- quentemente: o doente consegue copiar uma pagina impressa, escrevendo em caracteres manuscriptos, no que differe do aphasico sensorial, que copia procurando imitar os caracteres typographicos. A intonação da voz e o canto soffrem pertur- bações nà aphasia motriz. Muitas vezes acontece, nos aphasicos que ainda conservam algumas phrases, que a intonação da 78 tf voz se perde, tornando-se esta monotona. Gabe a Brissaud (35) o mérito de ter estudado estas pertur- bações. que elle descreve sob o nome de ap/iasia cie internação. Taes perturbações, quando existem, superpõem-ise seaipre á aphasia, principalmente á forma motriz, e nunca se manifestam isoladamente, o que por certo lhes tira o direito a serem con- sideradas como uma variedade clinica particular, como quer Brissaud. As perturbações da intonação são quasi sempre denunciativas de um desar- ranjo mental, o que concorda perfeitamente com a sua existência em muitas moléstias mentaes, como a paralysia geral dos alienados, a demencía, a melancolia. Também pode existir na esclerose em placas e na paralysia pseudo-bulbar. Na mesma ordem de idéas devemos mencionar as perturbações do canto nos aphasicus. Em muitos desses doentes, incapazes de arti- cular, na conversação ordinaria, qualquer palavra, conserva-se intacta a faculdade de cantar. N’um caso de Touclie, o doente, que só podia pronunciar o seu nome, Maria, e o monosyllabo to, conseguia cantar a marselheza articulando bem as palavras. Um doente de Dejerine dava concertos a seus companheiros de enfermaria. A’s vezes, entretanto, o doente lembra-se da musica, mas estropeia a letra. Quanto á explicação deste facto, reina diver- gência entre os autores: crèein uns ( Ballet) que as imagens dos sons musicaes são mais adherentes 79 ao cerebro do que ás da palavra fallada ; opinam outros que o centro musical, embora muito visinho do centro de Broca, é, entretanto, independente delle, de modo a íicar in tacto sendo este lesado. Bernheim, de Nancy, diz que um enfraquecimento dynamico total do cerebro basta para produzir esta dissociação de symptomas. «La destruction de la parole volontaire avec conservation de la parole chantée ifest pas justiciable d’une lésion anatomique precise ; un aífaiblissiment dynamique total du cerveau pcut suffire à produire ce sym- ptóme. Les processus automatiques et réílexes, qui n’exigent pas un éffort dynamique notable, s?exer- cent encore, alors que les processus vol untai res restent affaiblis ou impossibles ». Em contraste com esses doentes, que ficam de posse da faculdade de cantar, encontram-se outros que perdem esta faculdade, apresentando o sym- ptoma a que Knoblancb deu o nome de amusia. A amusia divide-se actualmente em amusia de expressão ou motriz e amusia de comprehensão ou scnsorial, denominações que se definem por si mesmas. Edgren (cit. Bastian ) divide a amusia motriz em vocal e intrumental, carâcterisando se a primeira pela peida da capacidade de cantar, a segunda pela perda dos movimentos coordenados necessários para a execução de um trecho musical em um instrumento, como dava-se com um tocador de trombone, observado por Charcot. 80 A anmsia vem sempre associada á aphasia. Probst quer localisar, sem suííiciencia de bases, a amusia motriz na 2.a circumvolução frontal esquerda. As perturbações da linguagem mitnica também veem por vezes complicar o quadro clinico da aphasia. Consistem estas perturbações, designadas sob o nome de amimia, em a perda da faculdade da expressão por meio de gestos, ou da comprehensao destes; merecendo no primeiro caso o nome de amimia motriz, no segundo de amimia sensorial. De ordinário nas lesões sub-corticaes, não se observa a amimia, mais commnm nas lesões cor- ticaes, e tanto mais accentuada quanto mais vasta é a destruição da zona da linguagem e quanto mais interessada é a intelligencia. Todavia alguns ãphasicos conservam uma mi- mica variada e expressiva. Antes de tomarmos em consideração algumas outras formas da aphasia, lancemos um rápido olhar sobre o estado intellectual dos aphasicos mo- tores corticaes. Ninguém melhor do que Trousseau poz em re- levo o estado da intelligencia nos aphasicos : «II est donc impossiblede contester que, dansbaphasie, rintelligence soi profondément alterée ; d’ailleurs; quand la maladie se guérit sous nos yeux, ce qui est assez frequeut úous assistons chaque jour ã la résurrection des facultes, et nous voyons le progrès s’accomplir exactement comme dans la convales- 81 cence d’une maladie grave, nous voyons renaitre chaque jour les aptitudes physiques. Geux meme dont Pintelligence parait être le moins troublée ont perdii pourtant quelque cliose» ; e Troasseau accrescenta que «1’aphasique boitera toujours de sou intelligence». A respeito de urna coisa devemos estar preve- nidos, a saber, a grande variabilidade destas pertur- bações conforme os indivíduos. A aphasia motriz sub-cortical ou pura já tem sido, por vezes, incidentemente mencionada. E’ sabido que o seu substracto anatomico é uma lesão sub-cortical ou de predominância sub-cortical, isto é, uma lesão das libras que se originam da corticalidade do centro de Broca. Donde resulta a menor gravidade delia, porquanto a linguagem intima não é perturbada. Clinicamente caracterisa-se este svndroma por perturbações da palavra espontânea idênticas ás da aphasia cortical, perturbações da palavra repe- tida, da leitura em voz alta, do canto. Si, porém, o doente apresenta estes pontos de contacto com o aphasico cortical, delle se afasta completamente em muitos outros. No sub-cortical a intonação é perfeitamente conservada, assim como a mimica; não existem perturbações da leitura mental, nem alexia, nem surdez verbal. 82 As perturbações intellectuaes são menos accen- tuadas ou não se apresentam. Os ataques epileptiformes, caracleristicos das lesões corticaes, não teem logar na variedade que nos occupa. O aphasico motor sub-cortical reconhece as palavras que ouve, sabe de quantas syllabas se compõem, exprimindo, por meio de apertos de mão, o numero delias. E’ a isto que se dá o nome de prova de Lichtheim- Dejerine; o facto se explica pela conservação das imagens verbaes motrizes, de modo que o doente pode evocal-as mentalmente. Alguns autores negam valor a esta prova, por- quanto, dizem, mesmo no caso de ser a aphasia cor- tical o doente pode evocar e reconhecer as palavras com o auxilio das imagens auditivas. Mas, como vimos, as imagens auditivas também estão pertur- badas na aphasia motriz cortical, e Dejerine con- tinua a affirmar que a prova só dá resultado nos casos de lesão sub-cortical. Um signal importante para a caracterisaçâo da aphasia sub-cortical é a persistência da escripta em todas as suas modalidades : espontânea, dictada, por copia. Isto é devido á conservação do processo psychico que rege a escripta, o que se não dá na aphasia cortical. Pitres, perfilhando a opinião de Freud, não admitte a aphasia sub-cortical ; argumenta dizendo que as lesões sub-corticaes ou são imme- 83 diatamente subjacentes á corticalidade, e neste caso a aphasia assumirá os caracteres da aphasia mo- triz cortical, ou se localisam na capsula interna e a palavra torna-se baralhada, ataxica e o syndroma náo será então a aphasia e sim a dysarthria da ralysia pseudo-bulbar. Os caracteres que mencionnmos servem plena- mente para a difíerenciação da aphasia cortical da suh-cortical; quanto á confusão com a paraiysia pseudo-hulhar, Dejerine acha-a impossível. Trataremos delia no diagnostico. Apezar, portanto, dos argumentos que lhe são contra, parece que a aphasia sub-cortical deve ser conservada como uma forma á parte. Pit,res(2) descreveu, em 1898, uma forma clinica da aphasia, aliás já mencionada por alguns autores, á qual deu elle o nome de aphasia• amnésica. Antes de entrar na caracterisação clinica desta forma e na sua explicação pathogenica, façamos uma digressão sobre o modo de comprehender a memória. Distinguem-se duas especies de memória : a memória de fixação e a memória de evocação (recollection). Hamilton e Bastian distinguem memory e recol- lection. O primeiro, citado pelo segundo, diz: «Me- mory strictly sodenominated is the power of retain- ing knowledge in the mind’ but out of conciousness. I say retaining knowledge in the mind but out of 84 coneiousness, for to bring the retentum out of memory into coneiousness is the fonction of a totally different faculty (recollection)». Pitres discrimina a memória de fixação da de evocação: «La mémoire de fixation correspond à Fensemble des actes par lesquels les impressions sensitives, pénétrant dans le cerveau,y laissent une trace de leur passage, un résidu, une image, quel- que cliose enfin qui est susçeptible de rénaitre ultérieurement et de representei* à 1’esprit, sous la forme de souvenirs, les sensations anterieurement perçues. EUe comprend deux états, dont le prémier est la pénétration de Fimage dans la substance nerveuse et le second sa rétention ou sa conser- vatiòn». «Ceei est une fonction polvgonale », diz Grasset. «La mémoire de recollection comprend les actes par lesquels Fimage, anterieurement emmagasinée dans le cerveau, emerge, à un moment donné, des profondeurs de Finconscient, et se presente au moi. Son pliénomòne essentiel est la réviviscence de Fimage. Mais la réviviscence de Fimage ne constitue pas toute la récollection: elle est habituellement précédée par Févocatiou et suivie par la reconnais- sance». •« Ceei est une fonction suprapolygonale *, acçrescenta Grasset.• Feita esta digressão a respeito da faculdade mnesica, vejamos em que consiste a aphasia. amné- sica de Pitres. Os doentes atacados de aphasia amnésica con- 85 servam um grande numero de palavras, podem ler em voz alta, não tem perturbações da audição verbal, respondem bem ásperguntas que lhes fazem, mas lhes faltam de vez em quando as palavras, sendo elles obrigados a parar ou a empregar peri- phrases. A escripta espontânea soffre as mesmas perturbações. A seguinte observação de Bastian, resumida, dará uma idéa da apliasia amnésica. O doente, de 50 annos, fora victima de um ataque de apoplexia, de cujas consequências ainda não estava completamentc curado. Seguiu-se uma hesi- tação da palavra. A memória era boa para todas as partes do discurso, exceptopara os substantivos e nomes pró- prios. O doente só se lembrava das primeiras letras dessas palavras; assim organisou uma lista alphafyetica das palavras que empregava commummente e a trazia sempre comsigo. Quando precisava empregar alguma delias, tirava a lista, procurava a inicial e, entre as palavras que começavam pela mesma letra elle reconhecia a procurada. Conservava sobre ella o dedo e o olhar emquanto fallava. Si tirava os olhos do papel immediatamente esquecia-lhe a palavra. Nem de seu nome se lembrava, sendo necessário, para pronunciai-o, vel-o escripto, ou pronunciado por alguma pessôa da familia. Pitres expljca a aphasia amnésica por uma perturbação da faculdade mnesica geral, e admitte a existência frequente de uma interrupção das vias ideo-motri- 86 zes on ideo-sensoriaes. Existem muitas divergências a respeito da pathogenia da aphasia amnésica; nem todos os autores admittem a explicação de Pitres- Grasset, que acceita para certos casos a theoria deste autor acha, todavia, que em muitos outros ella não pode ser admittida. Grasset é de opinião que a amnésia verbal não pode constituir uma forma de aphasia á parte. «L’amnésie et 1’aphasie sont deux états qu’il ne faut ni séparer absolument, ni confondre d’une manière complete. 11 y a deux espèces d'amnésie distinctes: la perte de mémoire peut porter sur les idées ou sur les mots. Uamnésie des idées ou des images est un trou- ble de Fidéation..n’a rien à voir avec Faphasie vraie. IFamnésie des mots, au contraire, rentre dans 1’aphasie, elle en est le dégré inférieur... L’aphasique incomplet répète les mots quand on les lui dit, mais il ne peut pas les trouver spon- tanément; c’est de Famnésie. L’aphasique complet ne peut méme pas répéter ce qu’on lui dit... je ne puis pas admettre que Famnésie soit une forme à part du trouble de la parole... L’amnésie verbale forme le dégré inférieur de Faphasie.» Gharcot e Ballet sustentam também que a aphasia amnésica é uma consequência do enfraquecimento dos centros corticaes, primeiro gráo das diversas formas de aphasia. Dejerine colloca a aphasia amnésica entre as aphasias communs; para elle este syndroma é 87 uma aphasia motriz ou sensorial em via de cura. Por estas considerações se ve que, sendo a amnésia verbal umamanifestação poucoaccentuada da aphasia talvez se torne excusado fazer delia uma forma clinica autonoma. À aphasia hysterica distingue-se da aphasia organica por alguns signaes caracteristicos. Em primeiro logar devem ser procurados os symptomas da nevrose : ataques, perturbações da sensibilidade cutanea, dos reflexos cutâneos e pha- rvngeo, ovarialgia hysterica, crises de choro, so- mnambulismo, etc. A aphasia hysterica apparece quasi sempre depois de um ataque de nervos, outras vezes depois de uma commoçao, de uma contrariedade insignificante. As mesmas causas que provocaram a aphasia podem fazel-a desapparecer e‘ os doentes podem curar-se cm consequência de um novo ataque ou de um choque emotivo. Um dos caracteres desta forma clinica é a tendencia á repetição ; o individuo torna-se aphasico a cada ataque, a cada epoca menstrual. O svndroma pode alternar com as crises hystericas, com a hemiplegia e paralysias hysteri- cas, ou combinar-se com ellas. A hemiplegia é muito rara na aphasia hysterica, justamente o contrario do que se dá com a aphasia organica. A duração das manifestações hystericas aphasicas varia muito, podendo oscillar entre alguns minutos, algumas horas e muitos annos. 88 A’s vezes depois de um longo periodo desap pa- recem repentina mente. O estudo da aphasia hysterica foi feito princi- palmente por Charcot; recentemente Mlle. Aron (36) occupou-se delia detalhadamente. A marcha da aphasia motriz varia maitó, de accordo com as diversas circumstancias que entram na sua producçãô. Antes de tudo tem uma influencia capital na marcha da affecção a natureza da causa produ- cente; si é a hysteria, a marcha é irregular, como tudo que diz respeito á hysteria; si uma das causas passageiras que mencionamos na etiologia, também passageiras são as suas manifestações; si é uma causa duradoura, como uma embolia, uma trombose, a aphasia vae seguindo uma marcha pa- rai leia â lesão productora. A idade do individuo e o tratamento tem grande influencia, sendo a aphasia muito mais grave nos indivíduos velhos, que quasi sempre soffrem de arterio-esclerose ou syphiiis, e nos analphabetos menos proprios para a tratamento pela reeducação. De ordinário a aphasia, por ser quasi sempre devida á trombose ou á embolia, segue uma das direcções seguintes: ou cura-se progressivamente, embora nào seja possível a restitutio ad integrum, ou novo ataque vem matar o doente ou peioral-o, quando já ia elle caminho da cura. 89 Em certos casos as perturbações ficam estacio- narias, podendo durar muitos anuas. A cura faz-se ou pela restituição anatómica da zona lesada, quando não lia destruição pronunciada, ou pela substituição da porção destruida por outra zona cerebral, visinha ou symetrica. O diagnostico da apíiasia motriz é ordinaria- mente facil. O diagnostico com a aphasia sensorial será feito quando tratarmos desta ultima. N'ão se deve confundir a aphasia com as pertur- bações da palavra ligadas a uma paralysia dos orgãos da phonação. As alterações da palavra na paralysia geral e 11a esclerose em placas são simples per- turbações dysarthricas, que nada tòm que ver com a aphasia. A dy\arthria do pseudo-bulbar é facil de se dis- tinguir da aphasia, porquanto é devida a pertur- bações paralyticas dos orgãos da phonação. A distincção entre a aphasia motriz sub-cortical e a paralysia psêudo-bulbar facilmente se faz; assim é que na aphasia sub-cortical, de perturba- ções paralyticas só existe, ás vezes, a paralysia da corda vocal do lado direito; além disto 0 bulbar perde a intonação da voz, 0 que não acontece ao aphasico sub-cortical. Já apresentamos os caracteres que podem dis- tinguir a aphasia organica do mutismo hvsterico. Podemos accrescentar que 11a hvsteria 0 mu- tismo é completo, 0 que raras vezes se observa na aphasia. 90 As perturbações da escripta nas hystericas não existem, ou existem e tomam certos caracteres exquisitos, como em uma doente de Dejerine, que escrevia bem com um lapis, mas não escrevia abso- lutamente com uma penna. A aphasia motriz pode associar-se á paralysia pseudo-bulbar formando um quadro clinico com- plexo. II Paraphasias Pitres (3) é de opinião que o grupo das per- turbações da linguagem, designadas sob o nome de paraphasias e descriptas até hoje como fazendo parte do quadro symptomatico da aphasia motriz e da aphasia sensorial deve ser estudado em sepa- rado, e merece mais accurada attençào do que lhe tem sido prestada. O desenvolvimento a que o assumpto tem direito não lh’o daremos aqui; procuraremos entretanto resumir a monographia de Pitres, a que princi- palmente nos cingimos na redacção deste artigo. A paraphasia, designação creada por Armand de Fleury em 1865, é por elle definida como «une anomalie du langage caractérisée parla perte de la rélation entre les mots et 1’idée, resultante d’une e.rreur dans la transmission de la parole interieure á Tappareil d'articulation dos mots». Como se in- òluam hoje no grupo das paraphasias não só per- turbações da transmissão da palavra, como também perturbações da transmissão dos outros symbolos 91 da linguagem, como a escripta, a mimica, etc., propõe Pitres a seguinte definirão, mais geral e comprehensiva : «La paraphasie est une perturba- tion de femission du langage par le fait de laquelle certains malades. d’ailleurs intelligents et sachant parfaitement ce qu’ils voudraient exprimer em- ploient involontairement, pour revêtir leurs pen- sées, des signes inappropriés; de telle sort que, leurs idées restanl justes, leur langage est cepen- dant incorrect et. incoherent airpoint de dévenir parfois absolument ininteiligible». As paraphasias comprehendem diversas varie- dades. Assim é que devem ser discriminadas: a paraphemia, a paragraphia e a paralexia, conforme existem alterações da palavra fallada, escripta ou da leitura em voz alta; as paramimias e as para- dactylophasias, que dizem respeito, umas ás de- sordens da expressão mimica, as outras á inco- ordenação da linguagem dos gestos nos surdos mudos; emfim as paraphasias numeraes e mu- sicaes, quando a paraphasia interessa os symbolos numéricos e musicaes. Antes da creaçào do termo paraphasia, por de Fleurv, já existiam na litte- tura diversas observações sobre o syndroma. Pitres cita os casos de Grichton, Bouillaud, Moore, Hood, Nasse e duas interessantes observações de Trousseau. Uma destas refere-se a uma senhora que começou a apresentar signaes de paraphasia, em consequência de um ligeiro ataque de apo- plexia, a qual ao receber alguém, dizia-lhe, com 92 ares de muita polidez, offèrecendo-lhe uma cadeira: Chapeau, couteau, pantoufle; a outra diz respeito á sogra de um medico notável, que recebia os que a visitavam com as seguintes expressões: Coc/ion, animai, fichúe bete. Ao que acudia immediatamente o genro, explicando que aquellas palavras signifi- cavam um convite para sentar-se. De Trousseau em diante começou a paraphasia a ser mais estudada e muitos autores occuparam-se delia; todavia o primeiro e unico trabalho de synthese, em que o assumpto é tratado de um modo completo, vem a ser a já mencionada publicação de Pitres, editada na «Révue de Médecine» de 1899, sob o titulo de «Edude sur les paraphasieso. Este autor pensa que a paraphasia «constitue um syndroma importante que, com a aphasia amnésica de evocação da qual se approxima em muitos pontos,# deve formar, entre as aphasias motrizes e as aphasias sensoriaes, um grupo distincto, o das aphasias de associação.» São muito variados e interessantes os signaes da paraphasia. O começo é rápido ou lento; no primeiro caso succede ella a um ictus apoplectico, com perda de conhecimento, no segundo a um simples ameaço apoplectiforme sem perda total da consciência.* A’s vezes manifesta-se immediatamente após o ataque, outras vezes só se constitue passado algum tempo, quando o encephalo vae tornando a si do abalo subitanco que soffreu. De ordinário, 93 simultaneamente á paraphasia, outros symptomas reveladores da lesão cerebral se desenvolvem, taes como as perturbações sensitivas e motrizes, das quaes a mais frequente é a hemiplegia. Os symptomas da paraphasia são a paraphemia, a paralexia, a paragraphia. Os symptomas para- phemicos são os mais importantes e revelam-se de modcfs differcntes. Na conversação corrente dos indivíduos sãos muitas vezes observam-se trocadilhos, lapsus linguae, que tem alguma parecença com as per- turbações paraphemicas. Em um caso de Kussmaull, citado por Pitres, um orador, tendo de pronunciar uma saudação a uma sociedade scientitica, no anniversario de sua funda- ção, dizia, em vez de fròlichen Festfeier, que significa a feliz celebrarão da festa, festlicher Fressfreude, que vem a ser a alegria solemne de devorar.y> Pitres accréscenta que «erntait, peut-être, cequil pensait, mais ce ifétait assurément ce qifil avait 1’intention de dire.» Um professor de Aber- deen, nzeiro em taes lapsos, dizia por exemplo, durante toda aula «cus porcuscles» onde devera dizer «pus corpuscles» «palpebra superior» em vez de «maxillar superior.» Nos casos morbidos a coisa é muito mais accentuada; o doente emprega, ora palavras correctas reunidas em phrases sem sentido, ora palavras absurdas creadas por elle mesmo. 94 De ordinário o paraphasico é tagarella, desen- volve uma loquacidade surprehendente e entremeia a conversação incoordenada de interjeições fora de proposito. Um exemplo : uma doente observado por Pitres respondia do modo seguinte a quem lhe perguntava o nome: Milie, Milie, peu... Elle ctait morte, elle venait pourtant. Cava muris, c-est la patronne. Je iríapelle Milie Lamp, Lambert. Oui, nem, non. Je sais, mon Dieu, mon Diea. Bastian admitte tres gráos na paraphemia; 1. troca de uma syllaba ou de uma palavra por outra; 2. troca muito frequente das palavras, tornando aphr ase incomprehensivel; 3. formação de palavras absurdas. A esse terceiro grão dão os inglezes o nome de jargon-aphasia. Pitres não admitte esta divisão porque militas vezes concorrem, no mesmo caso, perturbações dos tres gráos. Observa-se frequente- mente o signal já dcscripto sob o nome de «intoxi- cação pela palavra,) de Gairdner, também chamado embolophasia. A capacidade de nomear os objectos resente-se de alterações mais ou menos profundas, donde a necessidade de fazer um exame nesse sentido. E’ digno de menção um caso (Pitres) de um doente escolhido para servir de assumpto de uma prova de concurso, o qual conversava perfeitamente, não 95 podendo, porém, designar, os objectos que lhe eram apresentados, Não sendo feito exame nesta ultima direcção, o syndroma não foi diagnosticado pelo concurrente. Em alguns doentes, as palavras empregadas tèm semelhança mais ou monos próxima com as que ellas substituem. Assim o doente em vez de orange diz obarange, em vez de Mutter. butter etc. Alguns, depois de muitos esforços, conseguem evocar a imagem verbal do objecto que querem designar; em outros, isto é impossível. Yem a proposito lembrar aqui a perturbação da palavra que, por analogia com a escripta especular (écriture en miro ir), foi denominada palavra especular (parole enmiroir). Conhecem-se duas variedades de palavra especular. N’uma o doente inverte a ordem das syllabas como no caso de Doyen (apud Dejerine)» em que o doente dizia: yen-Do, sieur-mon, chant- mê; le-quil-tran-ser-lais-me vous-lez-vou, em vez de: . Monsieur Doyen, méchant, voulez-vous me laisser tranquille. Na outra variedade o doente inverte as letras em vez de inverter a sylllaba. A repetição das palavras também é perturbada embora em grão menor. Um doente de Dejerine tendo de repetir—Paris est la capitale la France dizia—Paris est un petit regrata, regrata. A recitação é frequentemente conservada. As palavras seriadas, como os dias das semanas e dos 96 mezes conservam-se geral mente. As perturbações do canto sao interessantes, como nos casos de aphapta motriz sem paráphasia. O paraphasico conserva a musica, a intonaçáo e muitas vezes pode cantar, pronunciando correcta- mcnte todas as palavras, embora 11110 as possa repetir na linguagem ordinaria. Em outros casos* a musica é retida, porém a letra é paraphasiada ou jargonaphasiada, como no doente de Mirallié que appliçava ás palavras seguintes a musica da maréelheza: II grand trafa en la fatrie. 11 ólait tan son de roei etc. As alterações paralexicas também sao frequentes. A leitura de um trecho em voz alta é feita por meio das mesmas palavras incoherentes empre- gadas no fallar ordinário. De cada vez que 0 doente lé 0 mesmo trecho emprega palavras diíle- rentes ou antes novas corruptelas. Pitres poz em destaque alguns pontos referentes ás modalidades da paralexia : i.° E? impossivel ás vezes a leitura em voz alta das letras, que os doentes reconhecem mas não podem designar correctamente, ao passo que sao capazes de ler palavras em que entram diversas destas letras. 2.° Dá-se outras vezes 0 contrario ; 0 doente reconhece as letras, consegue designal-as, sendo porém incapaz de ler palavras, compostas por estas letras. 3.° A leitura em voz alta dos numeraes é frequentemente possivel. 97 As perturbações da leitura podem ser classifi- cadas também nos tres gráos de Bastian As perturbações paraphasicas da escripta — a paragraphia— também são frequentes. Em alguns casos, por muito ligeiras que sao, escapam á alçada da pathologia e podem se comparar aos lapsos de lingua, como, por exemplo, no seguinte attestado de um professor de chi mica, observado por Kuss- maull: O Sr. estudante Schmidt seguiu minhas excellentes lições de chimica com uma assiduidade inorgânica. A escripta espontânea apresenta de- feitos muito observáveis. Os doentes escrevem como faliam; uns rabiscam a flux uma serie de palavras incoherentes, sem se lhes dar das incongruências que vão lançando ao papel; pegam outras da penna, tracejam algumas palavras sem sentido, porem convencidos do improfícuo de suas tenta- tivas, recusam-se, desanimados, a continuar a escrever. As perturbações da escripta podem assumir os tres gráos de Bastian; o ultimo gráo poderia ser chamado jargonagraphia, si o hvbridismo greco- britanico do termo náo lhe tirasse o direito á con- servação. A calligraphia é em geral bôa ; a escripta tem o aspecto regular, como se fosse feita por um indi- viduo normal. Nota-se de vez em quando a repe- tição insistente de uma palavra lembrando a em- bolophasia. 98 A’ medida que escrevem, alguns doentes vão soletrando em voz alta, para se ajudarem, as pa- lavras que vão escrevendo. Acontece por vezes soletrarem elles errado e escreverem certo'; ou soletrarem certo e escreverem errado; ou emfim soletrarem e escreverem errado. A proposito das perturbações da escripta na paraphasia merece ser mencionada a escripta espe- cular (écriture en míroir). Consiste a escripta especular em ser executada a escripta da direita para a esquerda e invertidas as letras, de modo a só poderem ser lidas por meio de um espelho. Buchwald foi quem primeiro a descreveu e deu-lhe o nome de Spicc/el-Schrift. A principio considerada como uma forma par- ticular da agraphia, a escripta especular não tem mais hoje esta significação, e é tida como a escripta normal da mão esquerda, quando não houve ensino prévio. Apresenta-se frequentemente nos aphasicos hemiplegicos, quando começam a escrever com essa mão. Passando ao estudo da escripta dictada veremos que também ella é perturbada na maioria dos casos, embora em alguns possa conservar-se inalterada. A escripta dos numeraes não se altera, geral- mente. A copia faz-se como no individuo são, a não ser que haja cegueira verbal. Os diversos symptomas descriptos—paraphasia, paralexia, paragraphia — podem combinar-se de 99 diversos modos, formando differentes variedades clinicos. O estado mental dos paraphasicos, diz Pitres é difficil de caracterisar-se. «Elles entendem bem o que se lhes diz (salvo nos casos em que a paraphasia complica-se de surdez verbal) e suas respostas são razoaveis no fundo, embora não na forma. O caracter delles torna-se ás vezes inquieto e irascivel. Não é raro terem accessos de tristeza injustifi- cada ou de melancolia, com idéas vagas de per- seguição e tendências ao suicídio, bastante intensas para ser necessário internal-os em asylos de alie- nados. Na realisação dos actos ordinários da vida comportam-se como pessoas sensatas. Quando estão a sós, tranquillos, ou, para melhor dizer, quando não estão excitados pela conversação, parecem indifferentes ao que se passa em derredor delles. Têm o ar de reflectir profundamente. Quando os obrigam a conversar, muda-se-lhes completa, mente o aspecto. Aquecem-se, animam-se, tornam- se expansivos, exuberantes. Quasi todos, como já mencionamos, têm uma loquacidade exagerada. Faliam com uma volubilidade espantosa. Lan- çados que sejam não mais se detêm. Quando seguem uma idea, experimenta-se um trabalho inaudito em voltar-lhes o espirito para outra, em obrigal-os a mudar de assumpto de conversa. A attenção está como que polarisada. Quando fixa-se sobre qualquer coisa nada pode afastal-a. 100 Em se lhes dirigindo perguntas estranhas ao objecto que os preoccupa, mal respondem ou não respondem e continuam a tagarelar do que os in- teressa». Quanto aos gestos, á expressão physionomica, á intonação, são muito naturaes, em contraste com a algaravia que faliam, e é mais facil comprehen- der-lhes o pensamento por estes meios, do que por quantos discursos se manifeste a sua verbosidade Será possivel algumas vezes chamal-os á con- sciência de seus despropositos—mais de forma do que de fundo, como diz Pitres—interrompendo-os e pedindo-lhes explicações sobre o que acabam de dizer. Muitas vezes então voltam a si e reconhecem que erraram, sem com tudo poderem se corrigir. O mesmo dá-se com os paralexicos e os para- graphicos. Alguns parapliasicos que não tem con- sciência de seus erros quando faliam, reconhe- cem-nos, quando escrevem. A marcha da paraphasia é variavel; ora o svn- droma é transitório, ora permanente. Os doentes apresentam-se sob aspectos diversos a cada exame: uns faliam melhor pela manhã, outros á tarde, estes quando estão tranquillos e ninguém os observa, aquelles quando se exaltam. A fadiga tem uma influencia notável; de ordi- nário no fim dos exames prolongados o doente falia pessimamente. Quasi sempre os paraphasicos morrem de um ataque apoplectico por embolia ou 101 hemorrhagia. Complicações mentaes muitas vezes se installam, que requerem a internamento dos doentes, «ora por confusão mental ou demencia progressiva ; ora por phenomenos de excitação pseudo-maniaca ou de delírio transitório; ora, emfim, por accessos de depressão melancólica com idéas de perseguição e impulsões ao suicidio». As theorias psycho-physiologicas para a expli- cação das paraphasias são em numero de quatro. 1." A mais antiga é a theoria de Lordat, baseada em sua auto-observação, e assim resumida por Pitres: «La paraphasie est le resultat d’un trouble préalable de la mémoire dos mots: elle est com- mandée et déterrninée par des phénomònes de pa- ramnésie». Sendo a linguagem composta de dois tempos, a evocação mental das palavras e a enun- ciação destas palavras, a paraphasia seria um plie- nomeno devido a evocação extemporânea de uma palavra em vez de -outra. Contra esta theoria faz Pitres as duas objecções seguintes: 1.° que si a paraphasia fosse devida a um defeito da evocação da palavra na linguagem interior, a palavra evocada erroneamente expri- mir-se-ia do mesmo modo, quer pela linguagem fallada, quer pela escripta; ora, muitos doentes que apresentam perturbações de paraphemia, con- seguem escrever correctamente, o que infirma a theoria de Lordat; 2° que em muitos casos a parte psychjjaa da linguagem continua a funccionar nor- 102 malmente, a par de uma paraphasia ás vezes pro- nunciada. A esse respeito cita Pitres um caso, em que o doente sommando 3 + 6 dizia: sete mais oito são doze—e no emtanto escrevia 9 na somma. Eis ahi a linguagem interior funccionando nor- malmente e a expressão revestindo-se de perturba- ções ; aqui «as palavras desordenadas que elle * pronunciou durante este trabalho psychico não eram o eclio fiel da linguagem interior». Donde cohclue Pitres que a paraphasia não depende de uma simples perturbação da evocação mnesica das palavras. c2.a A segunda theoria é a de Kussmaull, para quem a paraphasia é devida a uma falta de attenção, comparável á que occasiona os lapsus linguae. Sem negar que a falta de attenção tem uma certa influencia, oppõe-se todavia Pitres á theoria de Kussmaull pelas razões seguintes. E’ facto conhe- cido que os paraphasicos quanto mais attenção e esforço empregam em fallar eorrectamente, tanto peior faliam; muitas vezes não conseguem repetir uma palavra a pedido, ao passo que a empregam descuidosamente no meio da conversação corrente. A attenção, neste caso, aggrava as perturbações, em vez de melhoral-as. Ouiro facto: Muitos paraphasicos comprehendem bem o que leem em voz baixa e são incapazes de ler em voz alta. Ora, quando ha falta de attenção, 103 de ordinário o indivíduo lé cm voz alta, articulando bem, porém sem entender Isto, porém, não quer dizer que a falta de attenção não represente um papel, embora secun- dário, na constituição da paraphasia. Assim é que si interrompermos, um doente no meio da conversação, elíe tem consciência de seus erros, embora não possa emendal-os. Bernard explica este facto dizendo que trata-se de um certo grão de auto-surdez verbal; Pitres interpreta-o, dizendo que o doente,, preoocupado exclusivamente com o seu pensamento, esquece-se de prestar attenção á execução delle. 3.a À terceira theoria é a de Wernicke. Para o sabio allemão «a paraphasia é um dos eífcitos da destruição do centro auditivo verbal ou da ruptura de suas communicações com o centro motor phonetico». Esta theoria decorre da impor- tância que Wernicke attribue ao centro auditivo como regulador da palavra. Para Wernicke a paraphasia é um symptoma da aphasia sensorial cortical—por lesão do centro auditivo, da aphasia sensorial transcortical, por lesão dos fibras ideo-auditivos, e da aphasia de conducção, por lesão das vias auditivo-phoncticas. Algumas objecções tem sido enunciadas contra esta theoria. Pitres diz que a paraphasia nem sempre existe na aphasia sensorial. Veremos que Dejerine é contrario a Pitres neste ponto e affirma 104 que a aphasia sensorial por lesão eortical traz sempre comsigo certo gráo de paraphasia. Pitres diz também que na maioria dos casos de paraphasia não se observa a surdez verbal. Quanto ás relações da paraphasia com a aphasia transcortical, Pitres não insiste nellas porque, dizelle, a aphasia transcortical é uma forma completamenle hypothetica. Não admitte também este autor que a para- phasia possa ser devida á interrupção das vias auditivo-motrizes, porque neste caso não haveria paraphasia e sim aphasia absoluta. Não participamos da opinião exclusivista de Pitres a respeito da theoria de Wernieke; achamos que esta, embora não abranja todos os casos de paraphasia, explica todavia grande numero delles. 4.a Em quarto togar vem a theoria de Pitres, que assim a expõe. «A paraphasia é um syndroma complexo. Dos phenomenos que a caracterisam uns são essenciaes outros accessorios. Os pri- meiros, comprehendendo as perturbações espe- cificas da palavra e da escripta espontâneas, são causados por uma desharmonia no jogo das inci- tações ideo-motrizes directas ( via ideo-phonetica para a paraphemia, via ideo-graphica para a para- graphia) Os segundos, muitas vezes, mas não sempre, associados aos primeiros, devem ser considerados como efTeitos da interrupção completa ou incompleta das vias de associação scnsorio-inotriz, que ligam entre si os diversos centros especialisados de recepção 105 e de emissão da linguagem. São : as perturbações da repetição (via acustico-phonetica), da leitura em voz alta (via opto-plionetica), da escripta dictada (via acustico-graphico), da escripa copiada (via opto-graphica). Demais verificam-se muito frequen- temente phenomenos devidos á intervenção de associações collaceraes superajuntadas ; taes são, por exemplo, estes curiosos arroubos da palavra no canto, na recitação, na pronuncia dos nuine- raes, etc. Em sumrna, a paraphasia parece-nos ser sempre o resultado de uma perturbação no mecna- nismo das associações que asseguram, no estado normal, a actividade synergica dos differentes centros cerebraes da "linguagem. Em suas forma s puras são as associações psycho-motrizes directas que são sobretudo compromettidas; em suas formas complexas verifica-se, além disto, certo numero de phenomenos accessorios, que dependem da perda das associações psycho-motrizes e das associações mnemotechnicas». Sem poder entrar na explanação que dá Pitres desse «termos um tanto demasiado abstractos», mencionemos, para terminar, a opinião de Bernheim, que é mais ou menos q, reflexo da de seu mestre, o professor Dejerinc; «Quanto á explicação da paraphasia nós não a conhecemos, e, como nosso collega Thomas em seu estudo sobre a surdez verbal, estamos reduzidos a confessar a nossa ignorância absoluta a este respeito. 106 No emtanto, por isso quê a paraphasia nunca se observa na aphasia motriz pura, julga elle que existe sempre uma perturbação da linguagem interior, porquanto, «o que se concebe bem, enuncia-se claramente». Da exposição que fizemos, podemos concluir que nenhuma das theorias emittidas explica por si só a paraphasia; devemos aproveitar em cada uma o que ella tem de aproveitável, convictos de que nenhuma é impeccavel, mesmo a de Pitres. Com effeito, este autor, criticando por exemplo a theoria de Lordat, por basear-se em uma perturbação da linguagem interior para explicar o syndroma, vem, afinal de contas, basear a sua theoria mais ou menos no mesmo facto. III Aphasia sensorial Gomo já dissemos foi Wernicke quem, em 1874, descreveu o complexo symptomatico, a que deu o nome de aphasia sensorial, caracterisado pela perda da comprehensao da palavra fallada e escripta, com paraphasia e agrapliia. Kussmaull, em 187G, desdobrou este syndroma em duas variedades: uma, a surdez verbal, que elle identificava á forma primi- tiva de Wernicke, a outra, a cegueira verbal, cara- cterisada pela perda da comprehensao da palavra escripta, com paraphasia e agraphia, sendo, porém, conservada a comprehensao da palavra fallada*. Charcot acceitou a divisão de Kussmaull, mas divergiu delle no modo de comprehender as duas formas clinicas. 107 Era sua opinião a surdez verbal limita-se á perda da comprehensão da palavra fallada, como a cegueira verbal á da linguagem escripta; os symptomas de parapliasia e agraphia não os julga elle necessaria- mente ligados á surdez e á cegueira verbaes como parte integrante do quadro clinico, mais simples perturbações simultâneas, devidas á lesão do centro motor de. articulação ou do graphico. Affirma porém, que si o individuo fôr auditivo ou visual, a surdez ou a cegueira verbal pode produzir a agraphia e a paraphasia, sem lesão dos centros motores. Mirallié, examinando a questão do duplo ponto de vista clinico e anatomo-pathologi-co, assegura que, toda vez que a autopsia verifica uma lesão cortical da primeira circumvolução temporal ou da dobra curva do hemispherio esquerdo, observa-se, tf durante a vida, a surdez verbal ou a cegueira verbal, acompanhadas sempre de perturbações da palavra e da escripta. Estes factos são hoje admittidos por grande numero de autores. Do ponto de vista clinico Mirallié divide as observações em duas classes: na primeira estão os casos de aphasia sensorial com o cortejo sympto- matico que Wernicke lhe attribue; no segundo estão aquelles em que existe a cegueira verbal como Kussmaull a entende, havendo ausência de surdez verbal. 108 Ora, neste ultimo caso, affirma Wernicke que a ausência da surdez verbal é mais apparente do que real. A surdez verbal apresenta-se sempre, sinao de um modo evidente ao primeiro exame, ao menos em estado latente, attenuada, susceptivel de escapar á observação. Neste ultimo caso o doente entende geralmente o que lhe dizem, porém em um periodo ou outro da evolução da moléstia apresenta difficuldade em comprehender as palavras, sendo necessário que o observador as repita, duas ou mais vezes. Emsumma, Mirallié. Wernicke e Dejerine descre- vem a apliasia sensorial unica, essencialmente cara- clerisada pela perda da comprehensão da palavra fallada, ou surdez verbal, perda da comprehensão da palavra escripta ou cegueira verbal, paraphasia e agraphia. Quando se instai la o syndroma, existem claramente a surdez verbal e a cegueira verbal; depois, com o evolver da lesão, e conforme esta predomina no centro auditivo ou no visual, accen- tua-se mais a surdez ou a cegueira verbal, ficando a outra na segunda plana e ás vezes quasi iinper- ceptivel. Este modo de considerar a aphasia sensorial decorre da maneira por que Wernicke e Dejerine comprehendem a linguagem interior, affirmando a solidariedade dos centros cortieaes, de forma que a lesão de um repercute sobre os outros; ao passo que Charcot admitte a independência dos centros e, 109 portanto, a restricção das perturbações ao centro lesado. Existem, todavia, casos de surdez ou de cegueira verbal isolada, tendo como unico symptoma, no primeiro caso a perda das imagens auditivas, no segundo a das imagens visuaes. Nestes casos trata-se da surdez e da cegueira verbaes subcorticaes ou puras de Dejerine. Com elfeit.o este autor, como na aphasia motriz, descreve 11a aphasia sensorial duas formas: na primeira a lesão á cortical, destroe os centros das memórias especiaes e accarrèta perturbações da linguagem interior, dando logai* á aphasia sensorial verdadeira; na segunda a lesão é sub-cortical, des- troe as fibras brancas subjacentes á corticalidade do centro auditivo ou do visual, deixando intactas as cellulas corticaes, e portanto a linguagem interior. Conforme as fibras lesadas, manifesta-se então a surdez verbal pura ou a cegueira verbal pura. Descreveremos primeiro a aphasia sensorial ver- dadeira, depois as aphasias sensoriaes puras. Dada a diversidade de causas- que a podem engendrará natural que 0 modo de invasão da aphasia sensorial varie muito. Em uma primeira classe de casos 0 doente é tomado de ictus apoplectico e, quando volta a si, está impossibilitado de entender as palavras e falia de um modo baralhado e inintelligivel. 110 A hemiplegia quasi nunca acompanha a aphasia sensorial; quando muito pode manifestar-se uma hemiparesia direita passageira. Em outros casos a invasão é subitanea, porém não se acompanha de perda da consciência; o doente reconhece-se subitamente incapaz de com- prehender o que le ou o que ouve. Em contraste com estes casos, em que a instal- lação se faz de um modo imprevisto, observam-se outros, em que a moléstia vae fazendo a sua invasão lentamente, de modo que o doente observa dia a dia o progredir delkt Pode ainda a aphasia sensorial estabelecer-se por uma serie de perturbações intermittentes, que duram horas ou dias e são seguidas de periodos de melhoria. Após uma serie de in ter missões, instal- la-se definitivamente o syndroma. A aphasia sensorial pode perturbar desde o começo as imagens auditivas e visuaes, ou somente as imagens auditivas, vindo depois as perturbações das visuaes. A symptomatologianào é unicae immutavel em todos os casos; pelo contrario, varia muito, conforme a extensão e a séde do processo morbido. Daremos a descripção que pode servir de tvpo. Os symptomas clássicos que devem ser procurados e bem estudados são: a surdez verbal, a cegueira verbal, as perturbações da palavra, da escripta, a hemianopsia lateral direita, as perturbações da moti- lidade, da intelligencia e da mimica. 111 «A surdez verbal, diz Berna rd, (20) é a impos- sibilidade de comprehender a significação da palavra ouvida e mesmo de todos os sons que se tornaram convencionalmente representação de idéas». Este symptoma, devido á destruição do centro >das imagens auditivas, localisado na parte posterior da primeira e talvez da segunda circumvoluções temporaes esquerdas, apresenta-se com uma gradação ininterrupta, desde a amnésia verbo-auditiva ligeira até a surdez verbal completa. A amnésia verbo-auditiva, gráo inferior 'da surdez verbal, consiste na dífficuldade de evocar as imagens verbo-auditivas. O doente quer recor- dar-se de uma palavra e não pode; si llfa dizem, elle a reconhece, porém a esquece dentro em pouco. Na surdez verbal a audição geral fica intacta, o doente percebe todos os sons, porém não com- prebende a significação das palavras, que lhe parecem «um murmurio confuso e indistincto, como se ouvem as vozes no meio do uma multidão.» Nos casos ligeiros, a surdez verbal pode passar desper- cebida, o aphasico reconhece as palavras usuaes, comprehende a phrase pelo seu conjuncto ou por uma sé) palavra e responde convenientemente. Si porém varia-se um pouco o sentido da phrase, elle não dá pela mudança e responde a mesma coisa. Assim, diz Mírallié, si perguntarmos a um destes doentes sl tem filhos, elle responde sim ou não, porque reconhece a palavra filhos. 112 Si. porém, perguntarmos quantos filhos tem, elle julga que a pergunta é a mesma e responde do mesmo modo. Por isso ter-se-á o cuidado de recorrer a estes artifícios para reconhecer a surdez verbal latente. Em geral o doente comprehende seu nome- mais raramente o nome da mulher e dos filhos* Dejerine explica a capacidade que tem o doente de entender o seu nome, pelo facto de estarem as imagens verbaes que o representam vivamente impressas no cerebro. De facto, o individuo ouve pronunciarem-lhe o nome desde a infancia, de modo que este faz, por assim dizer, parte do seu eu. Em outros casos menos ligeiros já o doente apresenta alterações mais profundas da audição verbal e nada entende, ou quasi nada, do que lhe dizem. Aos esforços do observador para fazer-se comprehender, responde elle, desanimado, que não entende, e se tenta fallar, saem-lhe as palavras em abundancia, porem incomprehensiveis e eslropeadas, o que muitas vezes faz que o doente seja tomado por alienado. Da mesma forma que na aphasia motriz, na aphasia sensorial dos polijgloUas é a lingua que lhes é mais familiar, seja ella a sua materna ou não, a que soífre menos alterações, a que por ultimo desapparecc, e a que primeiro reapparece quando vão elles caminho de melhoria. Esta lei, observada por Brissaud (36) tem a sua razão de ser na vivacidade das imagens da lingua ordinariamente usada, sempre nm jogo na lin- 113 guagem interior e na expressão das idéas, de modo a resistirem por mais tempo ao embate, que faz naufragarem as imagens das outras linguas menos empregadas. Assim como existe a surdez verbal, existe também a surdez musical, amusia auditiva, que consiste na perda da comprehensão de trechos musicaes, que o doente conhecia antes da moléstia. A surdez musical nunca vem isolada, porém acompanha a surdez verbal. Em alguns apbasicos conserva-se a faculdade de comprehender a musica quando as perturba- ções da audição verbal já são muito pronunciadas. Alguns autores admiltem um centro auditivo- musical, visinho do centro auditivo-verbal, e cuja lesão produz a amusia. A surdez verbal, quando não é subcortical, vem sempre acompanhada dos svmptomas outros da aphasia sensorial, e até aquelles autores que fazem delia um typo clinico autonomo, exprimem-se assim : «A perturbação de que tratamos apre- senta-se raramente no estado de isolamento. As mais das vezes ella se combina com uma ou varias das outras formas da aphasia. Para fazer com- prehender em que consiste ella, é necessário eschematisal-a, isto é isolai-a das perturbações com as quaes se mistura de ordinário». A surdez verlaal pode ser de natureza hysterica, como a aphasia motriz. , 114 Raymond (38) apresenta uma interessante obser- vação a este respeito. - Passemos agora a outro symptoma importante da aphasia sensorial. «A cegueira verbal, diz Bernard, põe o indivíduo delia affcctado na impossibilidade de ler as letras, as svllabas, as palavras, os signaes figurados di- versos, collocados sob seus olhos, ao passo que elle lhes distingue a silhouelte, a posição relativa, o arranjo geral». O symptoma manisfesta-se em grãos diversos,desde a amnésia verbo-visual até a cegueira verbal completa. Na amnésia visual ha apenas difficuldade na evocação das imagens visuaes da palavra. O amné- sico visual não pode lembrar-se do que leu e que procura evocar mentalmente ; recorda-se ás vezes gpenas da primeira letra de cada palavra, sendo-lhe necessário recorrer ao diccionario ou ver a palavra escripta em algum logar. Em um grão mais ele- vado, na cegueira verbal ou alexia propriamente dita, o doente não comprehendc nada do que le, e vé somente «o preto sobre o branco». Na cegueira verbal a acuidade visual fica in- tacta ou quasi intacta, de forma que o indivíduo pode distinguir todas as cores e os menores detalhes dos objectos. Os caracteres escriptos parecem-lhe, porém, simples desenhos sem significação. Dejerine observou que o doente, perdendo, como perde, a eomprehensão da escripta, é todavia capaz 115 dc interpretar os symboJos; e cita o caso de um seu doente que soffria de aphasia 'complexa, com cegueira verbal, o qual não conseguia ler as pa- lavras Republique française. Si, porem, se pin- tassem as letras R e F, cercadas de um barrete, elle comprehendia immediatamènte o emblema e exclamava: Republique française. Gharcot e Dejerine referem casos de alexicos t.otaes que. entre- tanto, reconheciam as letras usadas nas marcas secretas de suas casas de negocio. A cegueira verbal tanto se refere ás letras im- pressas como ás mariuscriptas; nem a sua própria escripta o doente reconhece. Quando a alexia é muito pronunciada, é ao mesmo tempo verbal e literal; em um gráo menos elevado são reconhecidas as letras isolada- mente, mas não podem ser reunidas em syllabas, o que constitue a asyllabia, nem as syllabas em palavras. O doente continua geral mente a comprehender seu proprio nome, quer impresso, quer manu- scripto, e o facto explica-se do mesmo modo que a comprehensão do nome, na surdez verbal: o nome é um emblema, um symbolo, que o individuo lê a todo o momento, desde a infaneia, e que para elle é menos uma reunião de letras, do que um desenho commum. Pode conservar-se ainda, pela mesma razão, a comprehensão de alguns outros nomes. Nas formas rnais ligeiras da alexia o individuo cornprehen.de 116 grande numero de palavras e, por meio delias, consegue entender ou advinhar grande numero de phrases. E’ necessário empregar-se os mesmos artifícios que na surdez verbal, para descobrir-se esta alexia latente. E’ possível a leitura literal em um periodo em que a leitura verbal e syllabar já náo o é mais. Isto cé>mprehende-se pelo facto de aprendermos em primeiro logar as letras e só depois as reunirmos em syllabas e palavras. Mirallié lembra que, em muitas escolas modernas, o ensino começa pela leitura de syllabas e o ensino da escripta faz-se também desde o principio. E’ provável que essa mudança do methodo do ensino acarrete mudanças no quadro clinico da aphasia. Tem-se observado que o doente, incapaz de reconhecer a palavra pela vista, pode chegar á comprehensão delia seguindo com o dedo os con- tornos das letras; e este facto tem sido invocado como uma prova da existência das imagens gra- phicas, por cuja evocação, neste caso. chega o doente á noção da palavra. Dejerine, como vimos, nega valor a este facto. Só em casos raros a cegueira verbal se estende á leitura dos algarismos, sendo até o doente muitas vezes capaz de executar operações arithmeticas simples. Ao lado da cegueira verbal deve ser estudada a cegueira ou alexia musical, isto é, a impossibili- 117 dado de comprehender a musica escripta. Dejerine descreve duas variedades de cegueira musical: uma cortical, outra sub-cortical ou pura. Alguns autores têm observado uma perturbação da leitura, a que se deu o nome de clyslexia, que deve ser approximada da cegueira verbal. O doente, que não tem perturbação alguma da linguagem interior, da palavra e da escripta, quando começa a ler, entende perfeitamente as primeiras palavras. Em breve, porém, torna-se-lhe completamente im- possível a continuação da leitura, porque elle não entende mais as palavras, nem as letras, e é, por isso, obrigado a abandonar o que lê. Depois de alguns segundos de repouso pode elle recomeçar a leitura e os mesmos phenomenos se repetem. «Trata-se de uma nlexia intermittente, de uma fadiga, rapida das imagens visuaes, dependente de uma ischemia funccional da dobra curva, sem alte- rnação material das imagens visuaes (Sommer), uma especie de claudicação intermittente da dobra curva (Rick)». Resta-nos mencionar dois symptomas muitas vezes coincidentes com a aphasia sensorial, mas que devem ser separados delia, a saber, a aphasia optica e a cegueira psychica. A aphasia optica foi descripta por Freund e consiste no seguinte: O doente vê um objecto, reco- nhece as propriedades e o uso delle, mas é incapaz de repetir-lhe o nome; a vista só é insufficiente para 118 evocal-o. Si, porém, o indivíduo toca o objecto recorda-se immediatamente do nome e pode repetil-o emquanto sua mão estiver em contacto com elle. A imagem verbal do objecto foi despertada pela sensação táctil, corno pode ser despertada pela sen- sação gustativa ou olfactiva. A cegueira psychica (Seelenblindheit) é mais grave do que a aphasia optica. Os doentes veem os objectos, porém não os reconhecem, não sabem o que sejam. Além disto ficam impossibilitados de reconhecer as pessoas, e seus proprios parentes parecem-lhes estranhos. Si saem de casa não reconhecem as ruas nem as casas, que julgam ver pela primeira vez. Muitas vezes perdem-se dentro de seus proprios aposentos. Na cegueira psvchica ha perdada memória visual geral; a vista dos objectos não desperta as imagens adquiridas anteriormente. Outro symptoma commum na aphasia sensorial e mais infimamente ligado á cegueira verbal é a hemiopia ou hemianopsia lateral direita. Pelo exame campimetrico verifica-se a desapparicão da metade direita do campo visual. A’ hemianopsia junta-se, ás vezes, a hemiaero- matopsia, isto é, a perda da visão das cores em uma metade do campo visuab Quasi sempre a liemia- cromatopsia precede á hemianopsia ; o doente vê o objecto, reconhece-lhe as formas, mas não lhe distingue as cores. A hemiacromatopsia é devida a perturbações 119 ischemicas, ao passo qne a hemianopsia tem por substrato uma destruição da substancia nervosa, como veremos em breve. A’s vezes a hemianopsia passa despercebida por muito tempo ao doente, que a descobre por acaso; é muito conhecida a observação de Gharcot, de um doente que deu pela sua hemianopsia, ernquanto jogava bilhar, por isso que só enxergava a metade das bolas e do bilhar. Os autores não estão de accordo no que diz res- peito á frequência da hemianopsia na cegueira verbal. Dizem uns terem observado casos de alexia sem I hemianopsia; affirmam outros, como Bernard, que «nem a hemiopia nem, na ausência delia, um svm- ptoma equivalente, fizeram ainda falta em caso algum de cegueira verbal, no qual o exame da vista tenha sido convenientemente praticado». Dejerine julga que a existência da hemianopsia não é in- fallivel na cegueira verbal, e o estudo da razão ana- tomo-pathologica do facto, feito por elle, explica a existência deste symptoma em muitos casos e a ausência delle em outros. A hemianopsia é produzida pela interrupção das estrias opticas de Gratiolet, as quaes, partindo dos tubérculos quadrigémeos anteriores e dos tha- lamos opticos vão ter aos lábios da scisura cal- carina, passando pela região subjacente á dobra curva. Dado o caso de existir uma lesão da dobra curva esquerda, e que esta lesão se aprofunde até 120 alcançar as estrias de Gratiolet; manifestar-se-á a hemianopsia. Para comprehender-se o mechanismo do sym- ptoma, basta lembrar a constituição e o trajecto dos conductores das sensações visuaes. Do exposto se deduz que só haverá hemianno- psia nos casos em a lesão fôr profunda, não se manifestando ella quando a lesão for superficial. Além da alexia e da surdez verbal as pertur- bações da palavra fazem evidentemente parte da symptomalogia da aphasia sensorial. O centro audi- tivo é um orgâo moderador; a sua lesão produz a incoordenacão da palavra. A palavra espontânea soffre, no aphasico sen- sorial, perturbações muito ditferentes das do apha- sico motor. Este só pode articular algumas palavras, ás vezes um monosvllabo ou dois; o sensorial ao contrario é «um verboso, um loquaz, mas sua linguagem é incoherente». As perturbações da palavra n’esta classe de aphasicosapresentam semelhança flagrante com as já descriptas sob o nome de paraphasias; por isso não entramos em maiores desenvolvi- mentos. A palavra repetida também é perturbada, por- quanto não entendendo as palavras, não pode o sensorial repetií as. A escripta nos a phasicos sensoriaes apresenta frequentemente, — sempre, para Dejerine— pertur- bações, que podem ser melhor estudadas do que 121 na aphasia motriz, em vista da ausência da hemi- plegia. A existência dessa agraphia sensorial é hoje admittida por grande numero de autores. A escripta espontânea e a dictada são quasi sempre impossíveis. A escripta copiada é possivel mas o doente copia o manuscripto em .manuscripto, o impresso em impresso. Voltaremos adiante a este ponto. As perturbações da motilidade não se mani- festam quasi nunca na aphasia sensorial, e quando se apresentam existe de ordinário uma aphasia complexa, isto é, sensorial e motriz. As perturbações da intelligencia são mais graves no aphasico sensorial do que no motor. Em verdade o sensorial soífre perturbações da leitura, da audição e da palavra ; são destruidas as imagens auditivas, que são as mais antigas e mais importantes. A mímica é menos expressiva no aphasico sen- sorial. A marcha; da aphasia sensorial varia muito. Ao installar-se é quasi sempre completa, apresenta os symptomas caracteristicos: surdez verbal, cegueira verbal, paraphasia, agraphia, e na maioria dos casos homianopsia. Passado, porém, este primeiro periodo assumem o papel principal as perturbações do centro em que predomina a lesão: si na dobra curva, a surdez verbal, si no lobo temporal, a cegueira verbal. Os outros symptomas ficam no segundo plano, con- 122 servam-se muitas vezes em latencia, mas não desap- parecem de todo. Em muitos casos o doente me- lhora pouco a pouco até alcançar uma cura quasi completa. No emtanto, segundo Mirallié arestitutio ad integrum é impossível. Assim é que Lordat, pro- fessor de physiologia em Montpellier, que soffreu de aphasia durante algum tempo,-era incapaz, de- pois do restabelecimento, que parecia completo, de dar o seu curso sem notas, como fazia dãintes. Ao 'lado destas curas quasi completas, tòrn-se observado casos em que os svmptomas persistem por muitos annos, sem tendencia a desapparecer. A idade é um factor importante na marcha e no prognostico da aphasia. Nos indivíduos idosos as diversas partes do cerebro estào profunda- mente differenciados em vista das funeções que tem de preencher; dando-se uma lesão de uma delias a sua substituição é difficil e ás vezes impossível. Na creança.dá-se o contrario: ainda não se fez a differenciacão completa cks centros de modo que as perturbações são menos graves, a substituição e a educação mais fáceis, o prognostico mais fa- vorável. Resta saber como se realisa a cura nas aphasias. A não ser nos casos de meras perturbações func- cionaes o mechanismo da cura é a supplencia da parte lesada por outra. No caso de ser a lesão muito pequena pode dar-se a adaptação funceional das zonas circumvisinhas. Quando, porém, a lesão é extensa faz-se a substituição pela zona symétrica 123 á destruída, como o prova a observação de Wer- nicke, de um indivíduo, curado de aphasia com he- miplegia direita, o qual teve um segundo ataque de apoplexia, de que resultou de novo a aphasia com liermiplegia esquerda. A autopsia verificou uma lesão antiga no hemispherio esquerdo e outra re- cente no direito. As aphasias sensoriaes sub-corticaes ou puras, muito menos graves do que a verdadeira, resultam de uma lesão das fibras nervosas subjacentes ao centro auditivo e ao visual. D’ahi uma pertur- bação na transmissão centrípeta das impressões visuaes e auditivas aos centros corticaes. Ha duas variedades: a cegueira verbal pura e a surdez Ver- bal pura. Na cegueira verbal pura, o doente fica impos- sibilitado de comprehender as palavras escriptas, de ler em voz alta e de copiar. Pode, porém, escrever espontaneamente e sob dictado, assim como fallar correetamente. A escri- pta torna-se um pouco grosseira, porque o doente escreve como se tivesse os olhos fechados. Não pode ler o que escreve. Por estes svmptomas se distin- gue a alexia sub-cortical da cortical. Esta differença na svmptomatologia é devida a que, na variedade sub cortical, a corlicalidade fica Intacta, e com ella e linguagem interior eaintelli- gencia. E’ nestes casos que o doente consegue ler 124 Seguindo com o dedo os contornos das letras. Este facto nao é devido á evocação das imagens gra- phicas e sim das imagens visuaes, que estão intactas. A surdez verbal pura é muito mais rara que a alexia pura, e sua symptornatologia resume-se no seguinte: perda da comprehensão da palavra falladn, impossibilidade da escriptadictada. O doente falia correctamente, escreve espontaneamente e copia. Do diagnostico da aphasia motriz com outros estados morbidos já falíamos. Falta-nos fazer o diagnostico entre a aphasia sensória! de um lado, a aphasia motriz, a surdez ordinaria e a alienaçáo mental do outro. Com a surdez o diagnostico é facil, porquanto o doente, embora não entenda o sentido das pala- vras, ouve perfeitamente os menores ruidos. Com a alienação mental pode se confundir a aphasia sensorial porque o doente está mergulhado em uma especie de torpor, e quando falia mani- festam-se os symptomas de paraphasia, que podem ser confundidos com o delirio. No em tanto pelo exame attento a confusão se dissipa e ve-se que a intelligencia está apenas diminuída e não abolida. «Não ha delirio sinão nas palavras, nunca nas idéas. Na confusão mental, ao contrario, a palavra é incomprehensivel por causa do estado mental; o delirio das palavras é a traducção do delirio das idéas (MirallkV.» • 125 «0 aphasico sensorial não pode ler, ao passo que, o alienado muitas vezes lê. 0 diagnostico com a aphasia motriz á fácil e faz-se principalmente pelos caracteres da palavra. «0 aphasico motor possue poucas palavras á sua disposição, palavras que clle repete sem cessar; o sensorial é um verboso, um prolixo.» Na aphasia motriz a cegueira é pouco accen- tuada, a surdez verbal ausente. A agraphia no aphasico motor é completa, o aphasico só pode escrever seu nome. A escripta copiada apresenta uma differença essencial no motor e no sensorial; este copia o impresso e o manuscripto como quem copia um desenho, imitando as letras do original; aquelle copia o impresso em manuscripto. «Transcrevendo o impresso em manuscripto elle fez um acto intellectual, differe pois nitidamente do sensorial que copia mecanicamente, servilmente, como copiar-se-ia um desenho do sanscripto ou do grego.» Da mesma forma deve-se fazer o diagnostico entre a aphasia sensorial verdadeira e as puras, pela comparação dos respectivos svmptomas. IV — Aphasias de conductibilidade Estas aphasías caracterisam-se anatomicamente por uma lesão localisada nas vias de conducção e nâo nos centros coríicaes. 126 Podem se dividir em tres classes: l.a Aphasias transcorticaes (Piek), supra-polygonaes (Grasset), ou psycho-nucleares (Pitres); 2.a Aphasias transpolv- gonaes (Grasset), internucleares (Pitres); 3.° Apha- sias sub-polygonaes (Grasset), sob-corticaes (Deje- rine). Da terceira classe já tratamos; falta-nos resu- mir o que de mais importante existe sobre as duas primeiras. Das aphasias transcorticaes diz Grasset: «Todo o grupo das aphasias .supra-polygonaes é caracterisado pela integridade do polvgono e por consequência da linguagem automatica, com desap- parecimento de uma das funcções ideo-motrizes ou ideo-sensorjaes.» E accrescenta: «Brissaud falia dessas aphasias quando diz que nesta variedade o déficit interessa não as fibras de projecção da terceira frontal, mas certas fibras que reúnem o campo de Broca a regiões do córtex onde se colloca provisória e hypothetica- mente o centro da ideação». As aphasias transcorticaes se dividem em duas variedades; aphasia transcortical motriz, aphasia transcortical sensorial. Na primeira ha difficuldade em faílar e escrever espontaneamente, podendo, porém, o doente cantar, repetir as palavras, copiar, escrever sob dictado, etc. Na segunda o doente não comprehende as' palavras, não entende o que lé, é um tanto paraphasico, mas pode ler cm voz alta; cantar, escrever sob dictado e copiar. 127 Grassot discrimina quatro variedades de aphasias transcorticaes,.a saber: ideo-motriz, ideo-graphica, ideo-visual, ideo-auditiva. À symptomalogia delias aliás puramente eschematica, é fácil de conceber-se. Dejerine não admite as aphasias transcofticaes, por elle accusadas de completamente theoriens, sem substrato anatomo-pathologico verificado na clinica, e creadas somente pela necessidade da eschemati- sacão. Eíle diz que nestes casos trata-'se de aphasia sensorial ou motriz em via de cura. Também Freud julga que não existem aphasias transcorticaes e diz que o que se chama aphasia transcortical é uma perturbação fuuccional, cara- cterisada pela perda da evocação voluntária das imagens motrizes, em consequência da qual perda fica o doente privado da linguagem espontânea. E’, todavia, ainda possivel a evocação dessas imagens por meio de uma excitação exterior, o que- explica a conservação da palavra repetida, a pos- sibilidade de copiar, de escrever sob dictado, etc. As aphasias de conductibilidade internucleares ou trampolygonacs são quasi sempre sensorio- motrizes, isto é, devidas á interrupção das vias que communicam um centro sensorial a um motor. Podem ser, comtudo, auditivo-motrizes ou opto- mo trizes, Grasset caractcrisa-as assim : «Nas visuaes tudo é possivel, excepto a leitura em voz alta ou a copia de um texto lido ; nas auditivas a unica coisa 128 impossível é, ou a repetição das palavras ditas ou a escripta sob dictado». «Goncebe-se também, neste mesmo grupo, a possibilidade da interrupção das connexões que unem entre si os centros motores (moto-motrizes), ou os centros scnsoriaes (sensorio-sensoriaes). Assim na audição colorida ha relações especiaes entre o centro auditivo e o visual; em um indivíduo desta ordem uma lesão entre o centro auditivo e o visual acarretaria svmptomas especiaes. Do mesmo modo um graphico (sujeito que pensa melhor com a penna na mão) experimentaria verdadeiros desastres func- cionaes de uma lesão entre o centro motor e o graphico. Ainda se discute a séde da lesão nesta classe de aphasias. Já vimos a importância que Flechsig attribue á região da insula como centro coor- denador da linguagem; alguns autores estendem até lá o centro da palavra, outros consideram a insula como um ponto de passagem das fibras que unem o centro auditivo ao centro motor, e dão mais importância ás fibras sub-corticaes do que á corticalidade desta região. Diante das duvidas que ainda reinam, nada.se pode afirmar definitivamente, podendo-se dizer sim- plesmente que a insula representa um papel na linguagem ena aphasia, sem comtudo especifical-o. V. Aphasia total Nesta forma a lesão interessa toda a zona da linguagem, acarretando ao mesmo tempo as per- 129 turbações que caracterisam a aphasia sensorial e a aphasia motriz, com hemiplegia direita e graves alterações da intelligencia. VI. Agraphia No correr desta dissertação já lios temos referido por vezes ás perturbações da escripta nos aphasicos. Tratando da psycho-physiologia da linguagem dis- cutimos a hypothese do centro graphico, cuja exis- tência é posta seriamente em duvida por muitos autores e referimo-nos ao modo porque entendem estes a physiologia da escripta; descrevendo as diversas formas de aphasia mencionamos as per- turbações graphicas que as acompanham. Agora só nos resta resumir o que temos dito em unia ligeira synopse, na qual melhor se apa- nhem as modalidades que este symptoma reveste em cada forma de aphasia. Em se tratando da physiologia da escripta duas theorias se defrontam, chegando a conclusões dia- metralmente oppostas. Charcot e a maioria dos autores francezes e inglezes admittem a existência de um centro de imagens graphicas, cuja destruição produz a amnésia destas imagens—a agraphia—que no dizer de Charcot é a aphasia da mão. A agra- phia, para estes autores é uma forma autonoma da aphasia. Inteiramente contraria a esta é a opinião de Wernicke e Dejerine, sustentada pela quasi totali- 130 dade dos autores allemães e grande numero dos italianos. Affirmam estes que a escripta consiste na copia das imagens visuaes das palavras e que para a exe- cução delia é necessária a integridade da linguagem. Toda a vez que esta for perturbada, toda a vez que uma lesão attingir um dos centros da palavra, ou interromper-lhe as vias de communicação, ha- verá uma perturbação da linguagem interior e, por consequência, a agraphia, que é, assim, um simples symptoma das aphasias corticáes. Nas aphasias sub-corticaes ou puras, nas quaes os centros ficam intactos e com elles as imagens verbaes e a linguagem interior, a agraphia não se manifesta. A existência do centro graphico, que Exner localisou na 2.a frontal esquerda negam-na estes autores ; o que existe é o centro dos movimentos do braço e não o centro graphico. Aliás muitos dos autores que admittem tlieori- camente este centro não acceitam como provada a localisação de Exner, que julgam arbitraria. Para Wernicke e Dejcrine não é, portanto, a agra- phia uma forma de aphasia e sim um symptoma das aphasias. Comquanto a questão não possa ser dada por decidida, parece-nos, todavia, que os argumentos editados por Dejerine tem grande peso e fazem pender a balança em favor de sua opinião, a cuja sombra nos acolhemos. 131 A agraphia foi estudada a principio por Trous- seau, Gairdner, Jackson, Ogle, Marco, e em seguida por grande numero de autores. A escripta deve ser estudada em suas tres moda- lidades : espontânea, copiada e dictada. Cada uma destas pode ser perturbada isoladamente. Va- riando as perturbações da escripta em cada forma de aphasia, vamos recapitular o que já dissemos a este respeito. Na aphasia motriz cortical ha perturbação da escripta espontânea e da escripta dictada, ficando intacta a faculdade de copiar. O doente escreve seu nome como quem faz um acto automático; pode ainda escrever o nome de sua mulher e de seus filhos e mais algumas palavras. Exceptuadas estas 6 elle incapaz de escrever espontaneamente ou sob dictado. «O doente copia o manuscripto em manus- cripto, o impresso transcrevendo*o em manuscripto. Faz, pois, um acto intellectual e nelie a imagem da letra impressa despertou a imagem da letra manu- scripta correspondente.» Em vista da hemiplegia, que quasi sempre acom- panha a aphasia motriz, torna-se difficil o estudo da agraphia, sendo preciso acostumar o doente a escrever com a mão esquerda. A agraphia é sempre bilateral, isto é, de ambas as mãos. Na aphasia motriz sub-cortical não existem perturbações graphicas. Na aphasia sensória! é mais facil estudar-se a agraphia, por causa da ausência da hemiplegia. 132 Gomo na aphasia motriz o doente escreve automa- ticamente o seu nome. A escripta espontânea apresenta perturbações nmito accentuadas; ás vezes ha impossibilidade completa de escrever; outras vezes o doente escreve phrases incomprehensiveis, embora compostas de palavras correctas (paragraphia); emíim, pode escre- ver palavras formadas por elle. A agraphia é literal ou verbal. A copia é difficil, feita com um labor extremo. O doente não tira os olhos do modelo e si lido subtrahem deixa imme- diatamente de escrever. A copia é servil (Dejerine); o individuo, cm vez de escrever, pinta; si o modelo é manuscripto elle copia em manuscripto, si impresso em impresso. Si os caracteres typographicos são muito grandes o doente traça primeiro as linhas geraes das letras e enche depois os espaços que estas limitam. O proprio nome do doente, que elle escreve espon- taneamente, não lhe é possivel copiar si não com muito trabalho. Na cegueira verbal pura o doente escreve espon- taneamente, porém é incapaz de copiar e de ler o que escreveu. Na surdez verbal pura ficam intactos a copia e a escripta espontânea, limitando-se as perturbações á escripta dictada. Estas diversas perturbações da escripta tém uma marcha parallela á das perturbações da palavra; quando esta começa a melhorar, o doente vae melhorando também da perturbação graphica, e 133 quando a aphasia desapparece também esta desap- parece. No emtanto têm se observado casos, como os de Pitres, Bramwell, Charcot, nos quaes a aphasia desappareceu, persistindo durante algum tempo a agraphia. Dejerine affirma que, comquanto todas as moda- lidades da escripta sejam recuperadas parallela- mente, todavia a escripta por copia melhora um pouco mais lentamente, de forma que o doente, escrevendo muito bem espontaneamente, ainda sente difíiculdade em copiar; o que elle explica pelo facto de, na escripta espontânea, poder o doente escolher as palavras que escreve, o que se não dá na escripta copiada. PROPOSIÇÕES Chimica Medica I. —As pentoses são assucares cuja molécula contém cinco átomos de carbono. I II. —Estes assucares existem no sangue e nos te- cidos do organismo humano. III. —Podem eliminar-se pela urina, dando origem á pentosuria, que se confunde coinmumenté com a glycosuria. Historia Natural Medica I. A ontogenia é uma recapitulação da phvlo- genia : o desenvolvimento do indivíduo resume o desenvolvimento da especie. II. - Às formas vivas que existem ou existiram derivaram de uma unica forma primitiva ou de* formas primitivas muito simples. III. —A herança e a adaptação são*as leis basicas da biologia; a primeira é uma força conservadora} a segunda uma força modificadora. Matéria medica, Pharmacologàa e arte de formular I. —As incompatibilidades são o maior escolho para o principiante na arte de formular. II. —Dividem-se em phvsicas, ehimicas, pharma- ceuticas e pbysiologicas. 138 III. —Para evital-as é necessário o conhecimento exacto das propriedades dos medicamentos e o em- prego de formulas simples. Anatomia descriptiva I. —A circamvolução frontal ascendente é sepa- rada da parietal ascendente pelo sulco de Rolando. II. —As extremidades inferiores destas duas cir- cumvoiuçGes reunem-se formando o operculo ro- landico. III. —As extremidades superiores confundem-se com as circumvoluções da face interna do hemi- spherio. Anatomia medico-cirurgiea 1.— A topographia craneo-cerebral pode ser determinada por diversos processos entre os quaes o de Schenk e o de Championnière. II. —A scisura de Sylvius está ao nivei da su- tura escamosa, portanto 5 c. acima da arcada . zygomatica. III. — O centro de Broca está 2 c. acima da extre- midade posterior de uma linha horizontal de 5 c. tirada da apophyse orbitaria externa .para traz. Histologia I. Distinguem-se no córtex cerebral h camadas de cellulas. A primeira forma a zona molecular, composta de cellulas que semelham aranhas. II. —A segunda é formada pelas pequenas cellulas pyramidaes: a terceira pelas grandes cellulas pyra- 139 midaes. As dendrites destas cellulas vão ter á zona molecular, os axonas ás fibras de associação e ã coroa radiante. III.—A quarta camada compõe-se de cellulas polymorphas: polygonaes, fusiformes e raras pyra- midaes. Pbysiologia I. —As impressões sensitivas, geraes ou espeeiaes penetram pelas vias nervosas centrípetas e armaze- nam-se em segmentos espeeiaes do córtex cerebral. II. —As cellulas ou neuronascorticaes tem a pro- priedade de conservar de um modo durável estas impressões e de tornal-as de novo conscientes, em certas circumstancias, sob a forma de imagens mnemónicas. III. --As differentes zonas onde se localisam as imagens mnemónicas são reunidas entre si por feixes de associação, de modo a formar-se nm grupo de neuronas funccionando synergicamante, um elemento neural. Anatomia e physiologúa pathologica I. —Quando um embolo oblitera uma arteriolan cerebral, os elementos nutridos por esta são atacados de necrose e se desaggregam. II. E m consequência do embaraço circulatório sobrevem a congestão collateral e extravasão san- guinea, que dão ao foco os caracteres do amolleci- mento vermelho. 140 III.—Depois os leucocytos removem os detritos, a reabsorpção se faz, o tecido conjunctivo proli- fera e fica apenas uma placa de amollccimento amarello e ás vezes branco. Bacteriologia I. —Até pouco tempo era facto assente a identi- dade da tuberculose bovina e da humana, donde o perigo da transmissão daquella ao homem. II. —Recentemente, porém, Ivoch negou a identi- dade, bem como a possibilidade da transmissão, até então admittida. III. —Emquanto corre a pendencia—porquanto Koch ficou isolado—é prudente a continuação dos medidas para evitar o contagio. Obstetrícia [.— A inserção da placenta no segmento inte- rior do utero é causa frequente de graves hemor- ragias. II. —Estas hemorragias, que se repetem muitas vezes, apparecem geral mente sem causa apreciável e desapparecem espontaneamente. III. —Nos casos de hemorragia ameaçadora, próxima do parto, o melhor tratamento é a ruptura artificial das membranas. Pathologia cirúrgica I.—A elephantiasis dos arabes é produzida pela filaria sanguinis hominis, que nas regiões tropicaes, 141 se encontra no sangue, em grande porporção, e se transmitte por meio do Culex ciliars. II. --Duas condições são necessárias para a genese desta affeccão: o traumatismo matando a filaria e fazendo que ella deponha grande quantidade de ovos que obliteram os vasos lympbaticos, e accessos repetidos de inflammação contribuindo para as alterações anatomo-pathologicas dos tecidos. III. —Pela morte traumatica da filaria explica- se a sua ausência no sangue dos elephantiasicos e principalmente na parte affectada. Pathologia medica I. —A tuberculose dos pulmões começa quasi exclusivamente pelo vertice desses orgáos. II. Os casos em que a tuberculose não começa pelos vertices são quasi sempre subsequentes a uma intoxicação, a uma infecção anterior ou a um trau- matismo thoraxico. III. —Assim acontece na tuberculose subsequente ao diabete, ás bronchites, a influenza, á pneumo- nia fibrinosa, etc. Operações e apparelhos I. —Entre as múltiplas indicações da trepanação do craneo estão os casos de aphasia devida á compressão do cerebro por um tumor, por uma exostose, uma esquirola ossea etc. II. Antes de praticar-se a operação deve-se fazer a demarcação da zona que vae ser trepanada por um dos processos que já mencionamos. 142 III.—A trepanação pode ser feita por meio do trépano ou por meio do martello e da goiva. Therapeutica I— Das preparações de arsénico latente a mais preconisada actualmente é o arrhenal ou dimethyl- arsynato di-sodico, descoberto este anno pelo pro- fessor Gautier. II— As suas principaes indicações são a tuber- culose e o pal-udismo. III— que este medicamento não tem nenhum dos inconvenientes do arsénico; todavia Talamon já observou manifestações cutaneas. Hygiene I —O exame das aguas destinadas ao abasteci- mento de um centro urbano consta de tres partes: o exame chi mico, o exame bacteriológico e o exame dos locaes. II— Os dois primeiros, que, ha alguns annos eram de uma importância capital, estão hoje no segundo plano. III— Actualmente os bygienistas attribuem uma importância capital ao exame dos locaes. Medicina legal e toxicologia I—Em se tratando da capacid .de civil dos apha- sios não podem ser estabelecidas regras geraes pelas quaes se reja o perito com segurança. 143 II— Cada caso será julgado pelo estudo minucioso das circumstancias e dos caracteres especiaes de que se revestir. III— Devem ser especialmente estudados o estado intellectual do indivíduo e os meios de que dispõe para communicar com os seus semelhantes. Clinica propedêutica I— O choque de contra-golpe ou signal de Musset consiste no balanço rythmico da cabeça, de diante para traz e algumas vezes lateralmente, e denuncia um aneurvsma da crossa da aorta. II— E’ devido ao recalcamento para baixo do bronchio esquerdo cavalgado pela aneurvsma, e da trachéa e tecidos visinhos para traz, dobrando-se a cabeça para diante, por contra-chocjue', a cada diástole do sacco aneurysmatico. III— Sié muito accentuado, este signal faz pensar na adherencia do sacco com o bronchio; si desappa- rece rapidamente, faz suspeitar a ruptura do aneu- rysma; si desapparece pouco a pouco denuncia a formação de coágulos no sacco, o que é um signal de bom prognostico. Clinica cirúrgica (l.a cadeira) I—Chamam-se estreitamentos largos affecçoes que se acompanham do cortejo symptomatico do estreitamento, embora a urethra deixe passar sondas de grande diâmetro. 144 II— O tratamento destas affeccões é, como o dos verdadeiros estreitamentos, a dilatação progressiva pelas sondas metallicas. III— Quando existem bridas fibrosas é indicada a urethrotomia interna. Clinica cirúrgica (2.a cadeira) I —No balanço das vantagens relativas da chio- o O roformisação e da etherisação parece caber a victoria ao segundo destes processos. II— Com effeito a porcentagem da mortalidade na chio roformisação é muito maior do que na etherisação. III— A principal contra-indicação do etlier são as affeccões inflammatorias da mucosa do apparelho respiratório. Clinica medica (1b cadeira) I— 0 estreitamento mitral puro, que alguns autores attribuem a uma endocardite fetal ou infantil, ■é quasi sempre devido a uma deformação congénita de origem heredo-tuberculosa ou heredo-syphilitica. II— O signal rnais precioso e ás vezes unico, para o seu diagnostico, é o desdobramento do segundo ruido na base., * \ IÍI—Frequenleuiontc, pelas perturbações nutri- tivas que acarreta,esta affeccão produz o infantilismo chamado então por alguns autores nanisme mitral. 145 Clinica medica (2:' cadeira) I— Como nota Huchard, o estreitamento mitral é uma affecção anemiante, hemoptoisante, 'emboli- sa n te e ás vezes palpitante. II— Por ser anemiante e hemoptoisante c sus- eeptivel de Confundir-se com a tuberculose pulmo- nar, tanto mais quanto muitas vezes se acompanha de catarro dos ápices. III -P or ser embolisante produz amollecimentos cerebraes, formando, com a syphilis e.a hysteria. a trilogia etiologica da hemiplegia na mulher, na qual o estreitamento é mais frequente do que no homem. - Clinica pediátrica I— Uma causa predisponente das convulsões infantis é o desenvolvimento dos centros nervosos inferiores antes dos superiores, de modo a ficarem aquelles livres da influencia inhibitoria destes, que ainda não a podem exercer. II— Nos recemnascidos as convulsões são quasi sempre devidas a traumatismos cerebraes durante o parto. " III— Quando se manifestam mais tarde, tem causas múltiplas: estados febris, repleção do estômago e dos intestinos, irritação reflexa, meningite, etc. Clinica obstétrica e gynceologica I—Muitas mulheres, soffredoras de moléstias gemes, julgam-se, sem razão, atacadas de affecções uterinas: são as «falsas uterinas». 146 II— Outras vezes as affecções uterinas repercu- tem sobre o organismo produzindo perturbações em outros orgãos. III— E’ necessário para a instituição do trata- mento racional o exame minucioso desses casos complicados. Clinica oplitalmologica I— A hemeralopia pode ser uma manifestação occular do paludismo. II— Neste caso cede rapidamente á medicação quinica, denunciando assim a sua etiologia. III— No paludismo chronico e na cachexia palus- tre observam-se hemorragias do fundo do olho. Clinica dermatológica e syphilograpMca I— Pode a syphilis atacar o cerebro, produzindo lesões gommosas, arterite syphilitica, etc. II— Pode atacar a medulla produzindo affecções variadas: mais de metade das myelites são de natureza syphilitica. III— Pode atacar os nervos periphericos, pro- duzindo, entre outras affecções, nevrites e nevralgias. Clinica psychiatrica de moléstias nervosas I—O desvio conjugado da cabeça e dos olhos, nas lesões cerebraes, tanto se pode fazer para o lado lesado como para o são. 147 II— Quando o desvio se faz para o lado da lesão, isto é, para o lado contrario á paralysia, existe uma diminuição da tonicidade dos musculos paralysados. III— Quando o desvio se faz para o lado dos membros affectados, a lesão é de natureza irritativa e verifica-se um estado espasmódico dos musculos do pescoço. %to—decretaria da d/a cuida de de oflk ediçina da doa lua, 30 de {Outubro de 1902. O Secretario. ll)r. OílZenandro dos odieis dllZcirelles. BIBLIOGRAPHIA 1 Pitres—Congrès do Lyon, in Lyon médical, 1894. 2 » — L’aphasie amnésique ct ses variétés cliniques, Progrès medicai, 1898. 3 » —Étude sur les parapliasies. Révue de Médccine, 1899. 4 Charlton Bastian—A treatise on aphasia and other spocch defccts. London, 1898. 5 » —On some points in connection with aphasia and others speech defects. Lancet. 1897. 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Pagina Linha Onde se lè: Leia-se: 8 25 que o chamou »concept que o chamou de «concept 11 diversas a florentes efferentes 11 » efferontes afferentes 1 6 5 expostos por Ballet expostas por Ballet 1.6 10 nossas idéas, sussurram nossas idéas sussurram 20 17 mencionados, nos mencionados, nas 25 8 Bodeutung Bedeutung 33 1 Os centros de Broca 0 centro de Broca 33 27 de methodo do methodo 39 1 estendeu extendou 39 15 de orla da orla 57 17 x destes ramos dos seus ramos 58 11 surdez verbal cegueira verbal 58 13 cegueira verbal surdez verbal 67 22 itus apoploctico ictus apoplectico 69 19 monomenti monomomentif 70 7 (estylo negro) (estylo do negro) 76 22 numeros numerosos 80 5 veem vêm 81 12 substracto substrato 95 24 a sylllaba as syllabas 99 2 clínicos clinicas 103 26 tem sido têm sido 107 6 mais simples mas simples 109 12 accarreta acarreta 116 o Ué advinhar adivinhar 130 5 linguagem linguagem interior 139 21 pathologica pathologicas 141 2 ciliars ciliaris