THESE DE jisí is ftroulo liiR dsi faculdade de ffiedieina da Bahia TI1ESE APRESENTADA Á FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA Em 31 do Outubro «lo lí)Oõ PARA SER DEFENDIDA POR jotí cle Wominejueb (gWineVto \u Natural do Estado do Ceará (Benjamin Constant) AFIM IDE OBTER O GRAU DE DOUTOR E 7V\- MEDIOINM x-s . BlflflSBW A f Mi o Cadeira de Clinica Psychiatrica e Moléstias Nervosas Considerações geraes sobre demencia precoce e delírios paranoides Proposições Tres sobre cada uma das cadeiras do curso de sc iene ias medicas e cirúrgicas BAHIA Km mmn de pbudincío de càrvaiho Rua S. Francisco n. 29 1905 Faculdade de Medicina da Bahia Director—Dr. ALFREDO BRITTO Vice-Director—Dr. MANOEL JOSÉ DE ARAÚJO Lentes cathedraticos OS I)RS. MATÉRIAS QUE LECCIONAM La SECÇÃO J.Carneiro de Campos Anatomia descriptiva. Carlos Freitas Anatomia medico-cirurgica. 2. Secção Aatonio Pacifico Pereira. . . . Histologia AJgusto C. Vianna Bacteriologia Guilherme Pereira Rebelfo. . . . Anatomia e Phvsiologia pathologieas 3. *i Secção Mantrel José de Araújo Phvsiologia. José Eduardo F. de Carvalho Filho. . Thérapeutica. 4. Secção Raymundo Nina Rodrigues. . . . Medicina legal e Toxicologia. Lai/. Anselmo da Fonseca Hygiene. 5. Secção Bra/. Hernienegildo do Amaral . . Pathologia cirúrgica. Fortunato Augusto da Silva Júnior . Operaçõese apparelhos Antonio Pacheco JHendes ... Clinica cirúrgica, 1.» cadeira lgnacio Monteiro de Almeida Gouveia . Clinica cirúrgica, 2.» cadeira 6. a Secção Aurélio R. Vianna Pathologia medica. Alfredo Brítto Clinica propedêutica. Anisio Circundes de Carvalho. . . Clinica medica P» cade.iro. Francisco Braulio Pereira Glinica medica 2.a cadeira 7. a SECÇÃ O José Rodrigues da Costa Dorea . . Historia natural medica. A. Victorio de Araújo Falcão . . . Matéria medica, Pharmaeologia e Arte de formular. Josédympio de Azevedo .... Chimica medica. 8. a Secção Oeocleeiano Ramos Obstetrícia Climerio Cardoso de Oliveira . . Ciinicaobstetrica e gynícologica. 9. Secção Frederico de Castro Rebello .... Clinica pediátrica 10. Secção Francisco dos Santos Pereira. . . Clinica ophtalmologiea. H. Secção Alexandre E. de Castro Cerqueira . Clinica dermatológica e syphiligraphica 12. Secção J. Tíllemont Fontes ...... , Clinica psychiatrica e de moléstias nervosas. JoãoE. de Castro Cerqueira . . . ( Sebastião Cardoso < Em disponibilidade Lentes Substitutos OS DOUTORES José Allonso de Carvalho (interino) . . 1.' secção (ronçalo Moniz Sodré de Aragào . . • 2 * » Pedro Luiz Celestino . . . ... 3. Josino Correia Cotias 4.a • Autonino Baptista dos Anjos (interino') . ã.a João Américo Garcez Frcies G.a » Pedro da Luz Carrascosa e José Júlio de Calasans 7.a » .1. Adeodato de Sousa S.a Alfredo Ferreira de Magalhães . . . ‘J.a » Clodoaldo de Andrade. ..... 10. » Carlos Ferreira Santos 11. » Luiz Pinto de Carvalho (interino) ... 12. » Secretario—DR. MENANDRO DOS REIS MEIRELLES Sub-secretario—DR. MATHEUS VAZ DE OLIVEIRA A Faculdade não approva nem reprova as opiniões exaradas nas theses pelos seus aão.tores DISSERTAÇÃO ladeira de Clinica Psychiatrica e Moléstias Nervosas CONSIDERAÇÕES GERAES SOIÍRE Demencia precoce e delírios paranoides Gonsidef ações geraes os horisontes mal delineados da psychiatria, algo de luz se faz mistér ainda para confirmar a palavra da sciencia, dando-lhe o cunho irrefragavel da verdade em que ella deve basear-se afim de ser reli- giosamente acatada. Nao ha negar que os estudos recentes de Kraepe- lin, muito embora desorganisando os quadros actuaes da medicina mental (Ballet), são de um valor inesti- mável para novas pesquisas e descobertas; e, nao adstrictos em grande parte, como os anteriores, a um caracter puramente subjectivo, representam a luz bruxoleante, os primeiros clarões de um desses dias que sóem despontar, de longe em longe, no evoluir de cada sciencia. E’ certo que, dando logar á applicação da phrase de Roger, da Escola de Pariz—de que a verdade não reside na íé, e sim, no scepticismo, — muitas convic- ções antigas ainda hoje se oppÕem á synthese do professor allemão, feita com tanta ousadia, como aprouve dizer a um psychiatra francez. Isto não obstante, produziram uma tal revolução as doutrinas de Kraepelin, echoando tão célere e 2 reboadoramente pelo mundo scientifico, que obtive- ram já o seu apoio quasi unanime, de modo que, sob a feição actual, contando somente doze annos de existência, a demencia precoce está definitiva- mente figurando no quadro das afíecçoes mentaes. A interpretação do mal repousando no conheci- mento de que é são, a pathologia exige a physiologia; e, si no terreno psychologico as soluções ainda se desenham sob uma meia luz, que empresta inde- cisão e inconsistência ás figuras, facilmente se com- prehende como em psychopathologia e medicina mental tantas verdades dc occasião se chocam, se fragmentam em desacertos, que abrem campo a me- lhores sentenças. Mas, para o resultado final, pouco importa que no momento as intransigências separem os espíritos; porque, entre as idéas de todos, velhas e novas, tantos são os pontos de contacto, que o que ha de essencial subsiste e resalta, em vivo destaque, na apparente confusão das cousas. A moléstia, de que intentamos simplesmente apresentar alguns casos de observação, não é objecto de estudos recentes; o que é de hoje é 3 maneira de consideral-a, isto é, de subordinar a uma mesma rubrica estados morbidos diversos que figuravam no quadro das moléstias mentaes. Tanto vale dizer que a historia da demencia pre- coce é longa e difficil, e nem pretendemos fazel-a sob minúcias especiaes que pouco aproveitariam ás despretenciosas considerações, que temos em mira: bastar-nos-ha um ligeiro retrospecto em que sejam enunciados os principaes elementos que a ella se prendem. O nome — demencia piecoce — é uma creação de Morei. Mas, sob tal nome, não vae novidade em dizel-o, descreveu elle somente algumas psychoses dos degenerados, sobrevindo na puberdade e rema- tando rapidamente na demencia. Antes de Morei, foram estudados alguns casos por Pinei (1809) e Esquirol (1814) — aquelle sob o nome de idiotismo e este sob 0 de idiotia accidental, pretendendo alguns autores que a moléstia descripta pelo ultimo se refere á forma simples da actual demencia precoce. Alem disso, apresenta Esquirol a demencia clivo» nica e a demencia aguda, curável. Na primeira figu- ram estados morbidos em que os phenomenos de negativismo, de estereotypia, etc, dominam a scena; mas nella entravam ainda os diversos estados de- 4 menciaes consecutivos ás vesanlás, assim como a paralysia geral. A demencia aguda, reunida á estupideç, descripta por Georget em 1820, veio a íazer parte mais tarde da confusão mental, estabelecida por Delasiauve. Em 1843, Baillarger, tendo em vista a intima relação existente entre os dous estados, retira o estupor da moléstia de Delasiauve e descreve a melancolia com estupor'. Kahlbaum, em 1863, faz uma rapida descripção da loucura da puberdade — hebephrenia; e, antes que Hecker (1871) completasse a historia clinica da mesma affecção, apresentava ainda Kahlbaum (1868) ao Congresso dos médicos e naturalistas allemães de Insbruck, as bases de outra entidade clinica,—a cata* tonia. Só seis annos depois, desenvolveu elle a des- cripção da mesma caracterisada princi- palmente por perturbações psychomotoras e apre- sentando uma evolução cyclica de cinco períodos: depressão, excitação, catatonismo, loucura intermit- tente e demencia. As idéas de Kahlbaum sofíreram largas discussões. A catatonia foi considerada por alguns uma con- fusão mental, complicada de phenomenos catatonicos, e por outros como uma das modalidades da melan- colia com estupor. A hebephrenia, principalmente sob o influxo das 5 idéas de Morei, entrou no grupo da* psychoses dege- nerativas. «A nota de imbecilidade, diz Krafft-Ebing, que domina esse quadro, poderia se explicar, em parte, pela imbecilidade originaria desses doentes, facto sobre o qual insiste Hecker—expondo a [etiologia dos casos por elie observados; em outra parte, por cessar o desenvolvimento de uma vida intellectual nascente, attingida pelo processo morbido em sua edade ingrata. A hebephrenia não é, provavelmente, senão uma forma da loucura da puberdade em geral, baseada sobre uma tara grave». Em 1880, Fv.inck põe em relevo a analogia que existe entre a hebephrenia e a catatonia, differentes apenas quanto ao prognostico, benigno nesta, grave naquella. Pick, na Allemanha (1891), descrevendo a demencia precoce como uma psychose produzida por molés- tias infectuosas febris, nella colloca a hebephrenia. Em 189a, graças á intervenção de Kraepelin, passa definitivamente em julgado que as moléstias des- criptas por Kahlbaum e Hecker são eífectivamente variedades clinicas da demencia precoce, na qual inclue ainda a variedade paranoide, que abrange 0 grupo dos delírios de fraca systematisação, evoluindo sob uma fraqueza intellectual que vae ter á de- mencia; e em 1899, finalmente, riscando elle da lou- 6 cura systematisada todos os delírios em que a lucidez do espirito não se mantém, os lança na mesma variedade, que subdividiu em demencia paranoide e demencia paranoica phantastica. Alguns autores allemães, entre os quaes Trõm- mer, alem de Sérieux e outros da França, admittem mais a forma simples, em que sobrevem a perda das faculdades mentaes na ausência de outras manifes- tações, podendo a moléstia ser mais ou menos frustra. A discussão que soíFre ainda hoje a autonomia nosologica da demencia precoce, de todo em todo infructifera, per isso mesmo que adeptos e contra- dictores ainda não puderam firmar seus argumentos de modo a não ofíerecerem duvida, deriva principal- mente do ponto de vista sob que se collocam certos auctores. Exemplifiquemos. Parant (i) faz entrar nesse debate a noção de de- mencia, tomada no sentido mais corrente em psy- chiatria, que vem a ser no da perda da razão, ou quasi abolição das faculdades mentaes, de modo (1) Ann. med. psych. n. 24 1905 7 irremediável, sentido que se nos afigura, aliás, muito acertado. D’ahi parte o medico francez para estabelecer con- tradicçÕes que, sob esse ponto de vista, podem ser apontadas na doutrina em questão. Assim, só pelo facto de poder a moléstia terminar pela cura, proferiu elle essa observação: «então não é mais demencia». Depois, analysando a evolução lenta da moléstia e verificando que só após o decurso de muitos annos pode sobrevir a demencia, conclue: «dizer, nesses casos, que a demencia foi precoce, é brincar com as palavras; a menos-que se não diga, para sahir do embaraço, que ella esteve latente». Dir-se-ia que ainda não se desfez de todo a idéa de que a demencia complica as vesanias... E Parant foi alem em suas ponderações: procura demonstrar ainda que em vez de demencia— estado secundário—, as manifestações primordiaes. essen- ciaes são, aqui, o estado maniaco, alli, a depressão melancólica, a confusão, o estupor, etc. Que se penetre com attençao no emmaranhado dessas locubraçÕes, eivadas da pécha que lhes tolda o merecimento, pois ellas remoem preconceitos se- diços e reflectem acirrado immobilismo, e se sentirá que o illustre alienista não quiz entender o conceito Kraepeliniano; aliás, em França, como em outro 8 logar julgamos permittido nos exprimir, os proprios adeptos da nova classificação, fazendo a exposição da demencia precoce, lhe desvirtuam a essencia, tirando corollarios que infirmam o thema original. Voltando ás objecçÕes de Parant, pode se lhe res- ponder que a doutrina não se compadece com a subordinação á materialidade graphica dos termos, pois, em primeiro logar, o que deve ser analysado não é a demencia, e sim, a moléstia que se inscreve sob esse nome. Por outro lado, quando despresa as manifestações de fundo demeírcial em proveito do estado de agi- tação, depressão, confusão etc., e então se trataria de mania, melancolia, confusão mental, etc., exprime o autor ipso facto a idéa de que o traço funda- mental da moléstia em questão é simplesmente a demencia, quando a verdade está em que a caracte- risação da especie nosologica foi estabelecida sobre a presença de um enfraquecimento especial das fa- culdades mentaes, evoluindo para uma demencia cujos caracteres clínicos bastam para impôr a sua differenciação com estados analogos, resumindo a marcha de outras affeccoes. Dide « julgando legitima a synthese de Kraepelin», observa que o nome «se presta á crifica porque a demencia é discutível e a precocidade inconstante». Precocidade, na accepção rigorosa, restricta, por 9 assim dizer—grammatical—da palavra, podeiá se admittir que falte; mas diser que a demencia é dis- cutível, é ferir a concepção de Kraepelin no que ella tem de mais essencial, de mais transcendente. Um dos melhores divulgadores da doutrina em França, Deny, depois de lembrar (i) que demencia deve ser entendida no sentido psychiatrico, isto é, de enfraquecimento das faculdades mentaes e não no de loucura ou alienação, avisa que precocidade deve se referir não sómente á edade, mas ainda á rapidez com que se estabelecem as perturbações de- menciaes, sem precedenc.ia de outras manifestações psychicas. «A demencia precoce ficará assim definida de uma maneira sufficientemente precisa e sufficientemente completa. » O aviso vem de que se fez em torno desse ponto da classificação de Kraepelin uma esteril «questão de palavras». A definição do illustre medico francez tem a sorte de muitas outras, que deixam o objecto fracamente esclarecido. Aqui, a falha está em que o autor bus- cou nos termos o esteio de sua definição, o que, seja- nos permittido repetir, conduz a resultados pouco instructivos. Assim, está a parecer que é escusado (1) Deny et. Roy. La dem. prec. pag. 12. 10 advertir a leitores de pathologia mental que de- mência não significa loucura ou alienação; ainda mais, para sanar a impropriedade do nome demencia pre- coce, impropriedade tão frequentemente admittida, sem sérias razoes, não parece necessário fazer entrar em precocidade a noção de rapidez, porque, afinal, uma demencia que surge aos 4b ou 5o annos, facto raro na moléstia, não deixa por isso de ser precoce. Alem disso, a justeza do sentido psychiatrico do termo demencia não exclúe a precisão clinica do conceito expendido por Bali — de que a demencia é um estado incurável, reconhecendo as mais diver- sas origens e caracterisando-se essencialmente pela ruina irremediável da razão; porquanto, a signifi- cação medica imposta ao mesmo termo pode ser interpretada como tendo por fim corrigir ou attenuar o que de absoluto se contem no seu valor litterario, pois a ausência completa das faculdades não é de verificação corrente. Dahi a restricçao. Ciicumstancia analoga se passa com o sentido de outros termos, como asystolia, onde se trata de enfraquecimento e não de destruição do trabalho cardíaco. Entendemos que demencia é o enfraquecimento considerável das faculdades mentaes. Emquanto a demencia precoce estiver sendo o con- tinente de todos esses casos que vão de uma simples debilidade mental adquirida até 0 delirio paranoide, 11 de que Magnan descreveu o typo principal, é impos- sível, salvo a considerar o enfraquecimento mental apanagio exclusivo e essencial da moléstia, dar-lhe uma definição sufficiente e completa; nem isso vale porque, regra geral, as moléstias se descrevem e náo se definem. O illustre psychiatra francez Régis, ao contrario de Ballet, julga a demencia precoce uma moléstia accidental e não constitucional; mas, em seu modo de pensar, a moléstia é, ou uma forma da confusão mental, com caracteres que lhe são peculiares, ou a própria confusão mental que se não curou e passou ao estado chronico. Analysada sob o ponto de vista da etiologia da mo- léstia, a concepção do illustre psychiatra francez é de certo modo acceitavel. A falta está em subordinal-a á confusão mental, creando desta uma forma chronica, accrescendo que tal nome já é, de facto, inteiramente improprio para baptisar uma entidade clinica; não passa de um resquício do velho habito de considerar as ma- nifestações mais superficiaes, de mais forte objecti- vação, como o caracter fundamental da psychose, Occorre ainda que confusão existe fora da amencia de Meynert ou da dysnoia de Korsakoff; sendo de todo ponto insufficiente para lhe firmar a indi- 12 viduação a circumstancia de ahi se encontrar o es- tado confusional de maior intensidade. Infelizmente, o nome confusão aguda é ainda apro- veitado, na classificação de Kraepelin, para designar uma das modalidades da psychose por exgotta- mento. (1 ) E’ bem verdade que desse modo não se lhe em- presta a extensão que é dada correntemente por di- versos autores; convém notar, porem, que não ha- vendo ou não se descrevendo uma forma chronica da confusão mental, se podia prescindir da qualifi- cação sob que é apresentada no novo quadro. Diz Dupré (2) que se tem dado uma extensão ina- dmissível á demencia precoce. O facto é verdadeiro e representa mais um documento do exaggero a que em diversos ramos da sciencia medica se lançam cer- tos autores, deante de uma doutrina qualquer, ás vezes simplesmente engenhosa. Nao será muito diffícil dizer porque se tem dado tal ampliação á demencia precoce, fazendo delia uma moléstia, pode se dizêl-o, incaracteristica. (1 ) Archivos brasileiros de psychiatria, pag. 210. (2) Fiev. neurol. pag. 5483 1905. 13 Isso resulta, como já o dissemos, de que se tem julgado ser a demencia a manifestação essencial da moléstia, com exclusão de qualquer outro elemento; de sorte que, em presença de uma psychose qual- quer, evoluindo sob um fundo demencial, o diagnos- tico de demencia precoce sé tornou possivel. Sachs (i), recordando alguns casos de sua obser- vação, entre os quaes se acha o de um estudante que, depois de um delirio paranoide acompanhado de enfraquecimento das faculdades mentaes, se restabe- leceu e veiu a ser um advogado de nota, pondera que em taes casos é manifestamente injusto o diagnostico de demencia precoce, paranoide. Admitta-se que ha nisso injustiça; mas a respon- sabilidade, talvez, não cabe a Kraepelin, para quem, aliás, a demencia paranoide é incurável. Masselon (2) terminando suas considerações sobre a etiologia da moléstia, dá a entender que outras intoxicações, differentes da de origem sexual, con- tribuem para a genese da demencia precoce porque « as perturbações mentaes dos myxoematosos são, sob muitos pontos de vista, analogas a aquellas que se descrevem na forma simples » e « já -observou um (4) Journ. of nerv. and ment. diseases pag. 357,490-1 (2) La dém, préc. pag. Í71. 14 caso de demencia paranoide em uma doente da mo- léstia de Basedow». A simples vagabundagem, a prostituição, mani- festações de uma debilidade mental adquirida, o m}'’- xoedema, a catatonia de Kahlbaum, o delirio chro- nico, entram assim nas diversas variedades da de- mencia precoce. Não se pode prevêr onde irá esbarrar essa ten- dência a desprezar tudo o mais que não fôr o enfra- quecimento mental. Em presença da nova doutrina, alguns autores, em vez de verificar si ella se adapta a todos os casos, se consomem em adaptar todos os casos a ella. Deny ( i), por exemplo, querendo justi- ficar a inclusão dos delírios paranoides, polymorphos, na moléstia em questão, monta o seguinte dilemma, interpretando os casos de cura frequentemente obser- vados: o desapparecimento do delirio não passa de uma pretensa cura porque o indivíduo, ou sáe di- minuído intellectualmente (logo, demencia pre- coce..,) ou voltará ao asylo (a demencia paranoide, segundo Kraepelin, é incurável...). Ahi está, pois, lavrada a sentença de taes deli- rantes. Um dos pontos capitaes da escola de Heidelberg está na importância attribuida ao estado das facul- (1) Sem. med. pag. 243? 1904, 15 dades mentaes em cada psychose, e nem se compre- hende agora como, tratando-se de alienação mental, se proceda de modo diverso. E' certo que o thema não é novo e basta lembrar as paginas correntemente citadas, em que o grande Esquirol traça as linhas mais geraes do estado de- mencial para prova disso; mas a importância deste estado se perdia deante daquella que era attribuida ás outras manifestações, circumstancia ainda hoje observada. As vantagens que d’ahi advêm são incontestes e se revelam já pelos recortes, a que não havia fugir, e pela uniformidade que se estabeleceu, reunindo a nova doutrina syndromas que se achavam dispersos e fazendo distincçoes entre outros, que se reuniam sem um critério de valor. A acção de Emil Kraepelin, ainda que pése aos seguidores dos velhos moldes, marca uma nova phase na historia da psychiatria. Resta verificar si o no- tável medico tirou das novas premissas uma con- clusão mais lata do que aquella que a sciencia ha de um dia firmar. Kraepelin, até 1S93, como dissemos, lançava na variedade paranoide da demencia precoce aquelles casos em que a demencia era attingida rapidamente e em que, portanto, as idéas delirantes não apresen- tavam nenhum gráo de systematisação. 16 Mais tarde, em 1899, tendo traçado a historia da paranoia, succedeu que o delirio chronico se encon- trou assim fora da loucura systematisada; e como a terminação de tal delirio consiste no estado demen- cial, a solução possível se tornou a inclusão do mes- mo delirio em uma subdivisão da variedade para- noide — delirio systematisado phantastico. Quem reflectir sobre essa passagem da doutrina comprehenderá facilmente que essa era a unica sahida possivel, de accôrdo com os primeiros passos dados pelo illustre psychiatra: a autonomia de um delirio, de evidente fundo demencial, separado de outros em idênticas condições, é cousa que não tem solidos fun- damentos. A noticia de tal solução provocou uma natural reacção entre os autores francezes, que a muito custo foram se affazendo á nova idéa. Mesmo entre os adeptos da doutrina, a duvida e reluctancia ainda se mantêm, embora Sérieux tenha concluído por acceitar que o delirio de Magnané um caso de demencia paranoide. A prova do que ahi fica dito se encontra nas livros de Denyet Roy, Masselon e Rogues de Fursac, para citar somente aquelles de que temos conhecimento. Nos dous primeiros, os autores precedem o estudo da variedade paranoide de considerações a respeito do assumpto e terminam, ou definindo (Deny) demencia paranoide «um enfraqueci- 17 mento intellectual de natureza demencial, se desen- volvendo rapidamente e se acompanhando algumas vezes, durante um tempo bastante longo, de erros sensoriaes e de idéas delirantes variaveis, desprovidas de todo caracter systematico ou se systematisando incompletamente, ou (MasselonJ «não descrevendo as formas chronicas, systematisadas da demencia paranoide e só tendo em vista os casos de delirio mal systematisado etc.» Rogues du Fursac é mais franco. Esse autor exclue definitivamente o delirio chro- nico da demencia precoce. Por ahi se vê que os psychiatras francezes ficaram em meio do caminho, o que é natural, pois os delirios systematisados cons- tituem uma pagina de incontestável brilho na velha nosographia, a que se prendem os mais altos nomes da psychiatria franceza, Falret, Lasègue Magnah, Bali, etc. Em verdade, esse é um ponto fraco da doutrina de Kraepelin. Duas circumstancias, segundo pensamos, determinaram a pequena falha: primeiro, ter atten- dido quasi exclusivamente ao enfraquecimento das faculdades mentaes; segundo, não ter levadoeffectiva- mente em conta que a systematisaçao de idéas deliran- tes não pode ser arvorada, por si só, em critério para o traçado de uma moléstia, preceito que só mais tarde foi attendido, pois a principio, segundo consta das edições de seus tratados de psychiatria, fez elle dis- 18 tincçao entre delírios systematisados ou não. Ainda hoje, atinai, é essa systematisação que alimenta as duvidas de Den}q Fursac etc. Agora, graças a Kraepelin, esse caracter do delirio perdeu sua importância. Entendemos que existe, realmente a loucura deli- rante, comprehendendo os delírios paranoides, desde os polymorphos até os systematisados. A evolução e intensidade do enfraquecimento men- tal, ao lado da resistência psychica do indivíduo attingido pela moléstia, estabelecerão as variedades, de fraca importância, isto é, delirio paranoide, typo Magnan, e polymorpho. Não vem dahi a illação de que se desfalca da sua variedade paranoide a demencia precoce; simples- mente, em vez de lhe subordinar os delírios para- noides, referimos a ella somente os casos de de- mencia precoce paranoide. O fundo hebephrenico é que permittirá distinguir os dous casos. Pode se dizer que a hebephrenia é a forma principal em torno da qual surgem as outras : mitigada ou heboidophrenia, hebephrenia propria- mente dita, onde os estados de agitação e depressão podem ser tão intensos que Afranio Peixoto (i) lembra a denominação de forma maniaca-depressiva; e, a essa (i) Arch. de Psychiatria pag. 45,1905. 19 forma principal, se sobrepõem phenomenos deliran- tes e de catatonismo. Ao passo que isso se dá em demencia precoce, o delirio paranoide tira a sua feição desse delirio mesmo; aqui, os estados de agitação ou depressão podem ser observados, mas não trazem, ainda assim, a maneira por que se mostram na demencia precoce. Tudo está em argumentar com a regra geral. Seja como fôr, cumpre nos dizel-o, o que não acha- mos bem fundamentado é a distincção entre delirio systematisado e não systematisado, separando-se o delirio chronico da moléstia em questão. A essa res- tricção, preferimos completamente a synthese de Kraepelin, á qual, se falta demonstração, não falta coherencia. A etiologia onde se reúnem as causas que deter- minam ou favorecem a producção da demencia pre- coce, é, na sua historia clinica, a parte de maior im- portância. Do seu conhecimento, afinal, depende a therapeu- tica que, sob a sua forma mais scientifica, racional, poderá definir o prognostico, favoravel ou não, da moléstia; e, ainda mais, a conducta hygienica que. 20 neste particular, venha talvez diminuir o numero relativamente forte dos casos de tal loucura. Nella está o problema capital e as demais soluções que se procurem, se acham, em sua grande maioria, sob adependencia do mesmo. Grande numero de causas figuram na etiologia da moléstia; a maioria dos autores, tanto quanto pos- sível, as distingue em predisponentes, occasionaes e determinantes. No momento actual, desconhecido o valor da maioria delias, tal distineçáo é um tanto artificial, mas facilita a sua exposição. Entre as causas predisponentes se contam edade, sexo e herança, ou melhor, degeneração; pois esta, se pode existir congenitamente, pode ser adquirida, independente de herança. A influencia da edade é de pouca importância, con- siderada a demencia precoce no conjuncto de suas variedades; si as formas hebephrenica e catatonica sobrevêm, regra geral, na puberdade ou adoles- cência, a forma paranoide apparece depois dos 2 5 annos em mais de metade dos casos; depois de 5o annos, principalmente nas mulheres, continua a ser observada; antes dos 25 annos surgem as duas pri- meiras formas em tres quartos dos casos, sendo o hebephrenico, porem, mais moço que o catatonico. Etchepare, do Uruguay, apresenta em observação uma hebephrenica de 12 annos de edade, preten- 21 dendo mostrar (i) com esse caso a nenhuma in- fluencia de perturbações genitaes, ahi ausentes, sobre a producção e evolução da moléstia. O valor predisponente do sexo ainda é menor do que o da edade. As estatísticas, segundo os auctores, dão numeros sensivelmente eguaes para os dous sexos, ou differentes, sem predominância decisiva de qualquer um delles. Sobre a outra causa predisponente—degeneração- muitos commentarios poderão ser feitos. A matéria é longa e incerta, escapa aos nossos esforços. Elevada á mais alta importância por uns, relegada a plano quasi secundário por outros, nem por isso se póde, fazendo uma somma, deixar de lhe attribuir um transcendente valor, quer em demencia precoce, quer em qualquer affecção mental. Antes de se ir a qualquer conclusão, seria preciso que se pudesse definir as condições de tal estado morbido, que o é, e grave, em que elle consiste, emfim. Tanto vale dizer que recorrer aos estigmas para descobril-o, é meio insufficiente, falho, ás vezes; salvo naquelles infelizes em que, vindo á tona, sobrepondo-se uns aos outros, physicos e moraes, se estiverem impondo de modo claro, evi- denciando ás escancaras a dadiva ingrata que por herança lhes coube. ii; Annales med. psvch, n,a 2 de 1955. 22 Sob o influxo das idéas do grande Morei o estado em questão passou a ter um forte papel na etiologia das loucuras; e se lê frequentemente que o campo da degeneração mental foi consideravelmente am- pliado, sobretudo em França, onde o rol das psycho- ses degenerativas era longo. A demencia precoce, por exemplo, no pensar de Ballet (i) pertence a tal grupo; é exacto que, desem- baraçado hoje de todo o preconceito sobre a doutrina da degeneração, confessa estar prompto a retirar desta a moléstia em questão quando lhe parecer sufficientemente provada a hjrpothese da auto-into- xicação. Parecerá, á primeira vista, que tal factor se reduz, se annulla,deante de outros, que elle somente ficaiá presente em pequeno numero de moléstias mentaes. O contrario disso, pensamos, é que real- mente subsiste. Elle se acha presente, tanto ou mais do que dantes, na etiologia; simplesmente, em vez de sufficiente, elle passa á condição de necessário, na grande maioria dos casos, estabelecendo a predis- posição que, emprestando sufficiencia a causas occa- sionaes diversas, leva á alienação. Si Iíraepelin encontra a herança em 70 % dos casos, Mucha em 70, ao passo que somente em 20 delles ve- rificaram as taras nevropathicas anteriores, não se (1) Sem. med. pag. 245 1904. 23 conclue dahi que os 3o restantes eram indivíduos normaes; isso quer dizer tão somente que entre os 70 de predisposição hereditária, só 20 revelavam ao exterior os signaes da degeneração. O que está justificando a opinião de Deny e outros, de que a predisposição sempre intervem na etiologia da moléstia, é a lista interminável das causas occa- sionaes mencionadas pela grande maioria dos auto- res. A sobrecarga intellectual, a masturbação, a reclu- são penal, os traumatismos craneanos, as condições anti-hygienicas, as fortes emoções, tudo, emfim, que esfalfa; certas infecçÕes e autointoxicaçÕes, de origem genital, hepatica, renal etc., taes os factores que levam certos indivíduos á demencia precoce. Em verdade, não estão ainda determinadas as principaes causas occasionaes da moléstia. A pathogenia é thema em que as hypotheses bas- tam para alimentar discussões; e actualmente, si Ballet, Arnaud e outros admittem que a moléstia é constitucional, seguindo nisso as idéas de Ziehen, Maudsley, Marro, Ghristian, Kraíft-Ebing etc, a maioria a suppÕe accidental. Resta a verificar si é de origem toxica, como pen- sam Kraepelin, Régis, ou si é infectuosa, como pre- tende proval-o Maurice Dide. Admittindo que ella é accidental, terminaremos 24 tal noticia apontando ligeiramente as conclusões de Dide, a quem se deve, em França, grande somma de trabalhos sobre o syndroma em questão. « Seduzido a principio, comoSérieux, Deny, Mas- selon, Roy e tantos outros, pela obra systematica de Kraepelin» Dide, examinando os ovários e os tes- tículos dos dementes fallecidos, poude verificar, naquelles que se achavam no periodo de actividade genital, «que a espermatogenese era normal no ho- mem, do mesmo modo que a ovulação na mulher.» E, no que toca ás formas hebephrenica e catato- nica, impressionado pelas perturbações clinicas, em- baraços gástricos febris, ás vezes enterite chronica; e ainda mais pela verificação de uma extensa dege- neração gordurosa do figado, presente i5 vezes em 32 casos; pela frequência da tuberculose, compro- vada pela autopsk, que lhe revelou a mesma mo- léstia em 2i casos sobre 07 examinados, julga-se autorisado o medico francez a admittir, alem da origem intestinal da causa próxima, um importante papel da tuberculose na pathogenia daquellas duas formas. No que diz respeito á variedade paranoide, pensa Dide que a pathogenia é provavelmente a mesma, ou visinha desta, sem que, porem, a tuberculose tenha uma acção tão saliente como nas outras duas formas. 25 Finalmente, no presente anno, Dide e Sacquépée annunciam os mais importantes resultados que lhes deu o estudo da moléstia, affirmando terem encon- trado no sangue dos hebephrenicos e catatonicos, alem de um enterococco, diversos bacillos. A anatomia pathologica da demencia precoce, se lê frequentemente, «está quasi inteiramente por fazer.» Em rigôr, não é tanto assim, porque, já de muitos exames anatomo pathologicos, se possuem sérios resultados, que definem mais ou menos, as alterações materiaes do cerebro. Pode ser que falte uma formula unica, referente aos diversos syndromas que figuram na moléstia, o que nos parece devido ao facto de não ter ainda a entidade recentemente estabelecida a sua existência comprovada, como se dá com a paralysia geral, por exemplo. Em todo caso, um facto está firmado, de que se serviu mesmo Kraepelin para suppôr a pathogenia da moléstia: as modificações da cellula cerebral. A casca cerebral não tem sido sempre encontrada atrophiada, mas apresentando em pontos diversos núcleos de nevroglia, que ás vezes acarretam a des- truição ou atrophia das cellulas pyramidaes. 26 As alterações, porem, sao notáveis si se referem a um individuo em que a moléstia teve longa dura- ção; nesse caso, uma certa analogia existe entre o aspecto exterior da lesão desta moléstia e o da para- lysia geral. Eis um rápido resumo da observação de Doutre- bentc e Marchand ( i) relativa a um doente fallecido aos 54 annos tendo a psychose uma duração de 35 annos, nos primeiros dos quaes predominaram os phe- nomenos catatonicos. — Espessamento da’pia-mater e arachnoide; signaes de antigas hemorrhagias no inte- rior das mesmas, neoformaçâo vascular. Adhcren- cias do córtex em certos pontos. Atrophia e pigmen- tação das cellulas pyramidaes, situação peripberica do núcleo. Em todo 0 córtex, grande numero de cellulas re- dondas, semelhantes a lymphocytos, ás vezes no interior das cellulas p3/ramidaes. Em toda acamada molecular, intensa esclerose da nevroglia; augmento das fibrillas deste tecido. Nuníèro normal das fibras radiadas, diminuição das fibras tangenciaes c sub- corticaes. Ausência de lesões notáveis no cerebcllo, bulbo, etc. Grande numero de casos autopsiados podiam ser aqui trazidos, mas a natureza deste trabalho des (1) Rev. neurol. pag. 386, 1905. 27 pensa tal tarefa. Sobre tal assumpto, é digno delei- tura o trabalho de Mondio ( i ) De suas conclusões se deprehende que o processo anatomo-pathologico diminue de intensidade á me- ». dida que se consideram regiões mais centraes e pos- teriores do encephalo. O.lobo frontal e parte anterior do parietal, são a séde mais importante das modifi- cações anatómicas e histológicas. Assim, á abertura da caixa craneana, se nota que a massa frontal se mostra diminuída, atrophiada, como se dá na para- lysia geral; donde uma grande quantidade de liquido cephalo rachidia.no se escoa quando se íaz a incisão da dura-mater. Pretende Doutrebente que a demencia precoce pode depender de affecçao cortico-meningéa, e será uma moléstia accidental, ou de incompleto desenvolvi- mento e consequente ruina das cellulas psychicas, sendo então uma psychose constitucional. Mas a conclusão não seria essa e sim de que se estaria em presença de dous syndromas ou molés- tias differentes. Quanto a ser affecção de origem cortico-meningéa, faremos uma ligeira nota. Do mesmo modo que para a paralysia geral, suppomos que o compromettimento dos elementos meningêo e nervoso, não falia em favôr da simultaneidade das alterações, Paralysia (1) Riv. sperim. ci fremiatria, fase, d, pag. 193, 1q05, 28 geral ou demencia precoce, o tecido nervoso, o cére- bro é o.attingido essencialmente e em primeiro logar. Quando a atrophia se produz no córtex ou na massa, os vasos e seios que sulcam as meninges vão se dila- tando, a medida que recúa a substancia cerebral. Essa dilatação produz a transudação do soro sanguí- neo ou a ruptura do vaso. Essa ruptura está provada pelos focos de hemor- rhagia sempre encontrados na espessura das meninges e explica a neoformação e todos os phenomenos de hvperplasia ahi verificados. Na paralysia geral, esse derramamento sanguíneo explica os accidentes con- vulsivos que marcam geralmente o começo da mo- léstia. Provam ainda a dependencia entre essas ordens de phenomenos o facto de terem as alterações o má- ximo, ou só existirem onde se faz o processo de atro- phia da massa cerebral, isto é, na parte anterior do cerebro. A meningite, pois, sob a forma de esclerose, não pertence á genese da moléstia, e é uma lesão conse- cutiva á alteração da massa cerebral. Relativamente facil no periodo de estado ou ter- minal, nas formas classicas da hebephrenia ou cata- 29 tonia, principalmente quando conhecidos os pheno- menos que precederam tal estado, o diagnostico é delicado, em muitos casos somente provável, nos primeiros dias da moléstia. Ahi se requer do medico a mais cuidadosa observação e analyse dos factos: a gravidade da situação em que vae ficar o doente, o prognostico tão avesso ás formulas animadoras, exigem por todas as razões que o diagnostico seja seguro. E, pode-se dizêl-o, em presença de um caso cuja solução mal se desenha, antes concluir pela affir- mativa, embora sob a reserva necessária, e intervir no proposito de debellar aquillo que poderá ser mais tarde o critério de um diagnostico definitivo, do que attenuar a significação mórbida dos phenomenos observados. A hygiene physica e morah em tal ter- reno, ao lado de outros recursos, não cede logar a nenhuma outra therapeutica. A transição do estado normal para o da moléstia pode ser súbita, mas o facto é pouco frequenre. Regra geral, ella é insensível, lenta, progredindo o mal de modo que as reacções iniciaes passam despercebidas ás pessoas entre as quaes vive o doente. Nesse periodo, duas affecçÕes, hysteria e neuras- thenia, podem simular a demencia precoce em qual- quer uma das suas quatro formas-simples, hebe- phrenica, catatonica e paranoide. Naturalmente, a pesquisa do enfraquecimento das faculdades men« 30 taes será a pedra sobre que ha de assentar o diagnos- tico; mas esse enfraquecimento não se deixa perceber a leve exame. A demencia sendo muito pessoal, se comprehende qual a difficuldade presente em cada caso, pois o exame actual pode encontrar enfraque- cimento onde elle se faz moderadamente; isto basta para que a observação do doente seja ampliada e documentada pela historia da vida normal anterior á moléstia. Alem disso, o enfraquecimento, embora global, como toda a demencia o é, não se produz com a mesma intensidade em todas as espheras ou elemen- tos do espirito e, mesmo no periodo de estado, não se acha sempre o hebephrenico em condições da accentuada demencia que se observa em outras psychoses. As manifestações mais precoces se referem ao do- mínio dos sentimentos affectivos, estabelecendo-se depois sabre a vontade e intelligencia propriamente dita. A vida psychica se vae lentamente reduzindo aos processos mais simples, memória, percepção etc. exis- tindo ahi mesmo perturbações, como a imprecisão das imagens e retardamento das reacçÕes. O elemento diagnostico de mais importância é, pois, no inicio da psychose, uma indifferença emo- cional, alem das modificações do caracter. Essa indif ferença que, em gráo elevado, se traduz pela perda 31 ou diminuição dos sentimentos affectivos, é de alto valor no diagnostico differencial com a neurasthenia, hysteria. Realmente, em todos esses estados pode o indivíduo mostrar-se de humôr variavel, irrita- diço, indolente, apathico; mas nos neurasthenicos e hystericos não se verifica a apathia moral do demente precoce, havendo antes uma exaltação da emotivi- dade. Nesses dous estados, prirLcipalmente na neu- rasthenia, os doentes são dados aos receios, sobre- saltos, reagindo ás vezes deante de motivos frivolos que não impressionam, nem de modo agradavel, nem desagradavel, os dementes precoces. Essa in- diíferença emocional nos dementes, que vae se accentuando aos poucos, como as demais manifes- tações, nao impede que nos primeiros dias da mo- léstia ou naquelles que a precedem, o doente apresente accessos de riso ou de pranto, que elle não sabe explicar. Cephaléa, insomnia, perda do appetite, humôr variavel etc., tudo pode apparecer em qualquer psy- chose, de modo que lhe dar a significação precisa em cada caso é extremamente difficil; ha, porem, entre essas manifestações uma que é tnais especialmente observada na demencia precoce, é a apathia. Em qualquer das formas o enfraquecimento mental attinge em dous ou tres annos um gráo sufficiente- mentc accentuado. 32 De ordinário, as manifestações delirantes, si náo dependem de uma perturbação na funcção cerebral, com® nos estados confusionaesdas psychoses agudas, a não ser que aqui ellas tenham também a* signifi- cação de um enfraquecimento accidental, transitório, engendrado pela intoxicação da cellula psychica, taes manifestações, dizemos, são já a expressão da fra- queza do julgamento, isto é, do estado demencial; mesmo em psychonevroses é difficil comprehender as relações chronologicas estabelecidas por illustre alie- nista, (i) que admitte poder o delirio preceder a demencia, ser antecedente e mesmo causa desta. Que o estado delirante preceda a demencia pro- priamente dita, julgamos muito apropriada expressão em linguagem medica, não assim em psychopatho- logía. Mas, fóra das manifestações delirantes e perturba- ções sensoriaes, effeitos de uma mesma causa, se pode lançar mão de certos meios para reconhecer o enfraquecimento mental e a vantagem delles está em em que se prestam para denunciar o mais leve enfra- quecimento, quando multiplicados e devidamente interpretados. Esses meios, denominados tests, con- sistem em diversas operações mentaes, desde as mais simples ás mais complicadas, e por meio das (1) Julio de 'Mattos,—Os alienados nos tribunaes pag. 102, vol. 1. 33 quaes se faz a aferição do estado do espirito. Os tests usados actualmente não são mais do que uma forma especial, minuciosa, do interrogatório clinico, de que sempre se serviu o alienista para o mesmo fim. Essas provas do enfraquecimento podem ser tira- das, por exemplo, pela simples leitura de qualquer escripto, fazendo-se o doente repetir o que leu; como testemunho da memória esse meio pode dar magní- ficos resultados si se manda que o doente faça, pelo menos na parte essencial, a respectiva exposição depois de alguns dias de intervallo. Nesse sentido ainda se pode fazer que o doente termine uma phrase ou um pensamento de que se lhe dão as primeiras palavras. Como testemunhos de muito valòr se usam prin- cipalmente as diversas operações de arithmetica, ligeiras, fáceis, como a addicção de dous numeros, a multiplicação etc.; ou ainda, mandar que o indivíduo enuncie um numero determinado de nomes proprios, de animaes, etc. Não somente sobre a intelligencia, memória, mas ainda sobre outros elementos do espi- rito, pode assim o doente ser examinado, mas isso, afinal, constituo a própria observação do clinico que deante de cada caso saberá pôr em pratica aquillo que estiver mais ao seu alcance, ou bastar para tal diagnostico. 34 No período de estado e mais ainda no terminai, os tiques, momices, trejeitos muito frequentes nas formas hebephrenica e catatonica, pouco frequentes nos delírios paranoides, sáo um signal de demencia, conforme o seu modo de producçao e quando rodea- dos de outras manifestações; porque, por si só, o tique não exprime enfraquecimento mental e sim um gráo qualquer de automatismo cerebral, que geral- mente acompanha o estado demencial, podendo exis- tir sem este. Assim, os nevropathas são frequente- mente tiquistas e como certos actos, por sua extrema repetição, se tornam inconscientes, automáticos, muita cousa ha que se pode considerar uma mani- festação dessa ordem, principalmente se são actos completamente inúteis : a impossibilidade, que mui- tos mostram, de abandonar o cigarro, e a sensação de incommodo que acarreta a sua abstinência, se explica, não pela falta de nicotina, a que se teria habituado o organismo, mas pela necessidade irre- sistivel dos movimentos correspondentes, accender o cigarro, tragar a fumaça, etc. O diagnostico do enfraquecimento mental tendo sido feito, reconhecidos os caracteres que este apre- senta na demencia precoce, como a indifferença emocional, a abulia, um certo gráo de conservação da memória, não é muito diflicil reconhecer qual a variedade sob que evolue a aífecção. 35 A differença entre a hebephrenia e ratatonia é de pouca importância, cabendo esta ao facto de ser a forma catatonica aquella em que as curas e remissões são mais a distincção mais importante é relativa ás formas simples e paranoide. A primeira, para Weygandt é a heboidophrenia, nome que vem de Kahlbaum. Mas a tendencia hoje é lhe subordinar, alem da hebephrenia mitigada, grande numero de casos de debilidade mental adquirida. As manifestações, são fracas, o enfraquecimento é pouco accentuado, mas a apathia, a diminuição da vontade, que tornam os indivíduos frequentemente vagabundos, ociosos, são os elementos que falam em favor da identidade entre esse estado e o da demencia precoce. Nesta forma não existem pheno- menos delirantes, estados de agitação, estupor etc. Segundo alguns psychiatras a demencia simples é muito frequente. % Ilberg, da Allemanha (i), adverte que muitos indi- víduos admittidos no exercito são dementes preco- ces, ou nelle se tornam tal, passando a moléstia, em qualquer desses casos, despercebida, dando assim logar a penas disciplinares não justificadas e appli- cadas com o fim de corrigir as suas faltas, pois os (1) Citado por Monod, Les formes frustes de la dem, prec, 4905. 36 soldados em taes condições se mostram negligentes, rebeldes á disciplina etc. Essa forma frustra da moléstia será, pois, aquella que pode suscitar mais interessantes questões me- dico-legaes, quer se trate de demencia precoce, quer se trate de syndromas de natureza differente. Parece não haver duvida sobre a existência da forma simples, hebephrenia mitigada de Christian, mas é ponto que ainda náo se acha bem esclarecido êsse que se refere á inclusão na mesma forma de certos casos de debilidade mental adquirida. Sendo a demencia precoce accidental, é circums- tancia que impressiona, essa de ver que ella se mos- tra frustra em numerosíssimos doentes. Si as formas frustras têm sido encontradas em grande numero de moléstias, ellas são, relativa- mente a cada especie nosologica, muito raras; aqui dá-se o contrario, pois, no mesmo trabalho de Monod, o numero de doentes internados, depois de condem- naçoes, no pequeno praso de quatro annos (1886 a 1890) é de 63. Que se juntem a estes os indivíduos, certos vagabundos, e prostitutas, etc. que não tenham attrahido a attenção da justiça por graves delictosj e se terá a prova da frequência da demencia precoce frustra. E’ um thema de estudo e, sob esse ponto de vista considerado, está sendo objecto da attenção dos alienistas, 37 O diagnostico da variedade paranoide, comprehen- dendo ou não os delírios paranoides propriamente ditos, merece certa importância por causa do pro- gnostico. A regra geral é a incurabilidade. A significação do termo paranoide perdeu, é exacto, a sua importância por se conterir tal qualificativo aos episodios delirantes que se manifestam em todas as psychoses. E' questão de palavras. Uns, em vez de dizerem delírio paranoide, dizem ( i) paranoia : « os hebephrenicos de Hecker, com catatonia e paranoia intermittentes...». «O dilemma existe: ou paranoia é a doença mental que descrevemos e paranoides apenas são os syndromas que occorrem em tantas outras doenças mentaes, ou esse termo serve a estes estados, e então, força é buscar um outro que designe aquella doença. O que se impõe á intelligencia clinica, como producto da observação, é que não são a mesma cousa e, portanto, para nos entendermos, não devem ter o mesmo appellido. » ( 2) Parece-nos que o dilemma existe, mutatis mu- tandis, a respeito de delirio paranoide, e que conviria distinguir os delírios, pouco ou bastante systema- tisados, não importa, mas que constituem essen- (I) Monod, these citada, pag. 18. (,2) J. Moreira e A, Peixoto Arch. Brazil. Psych. pag, 20, 38 cialmente a psychose, daquelles que se enxertam nas diversas moléstias mentaes, nevroses etc. Si o diagnostico da variedade é facil, o mesmo náo se dá com o da moléstia propriamente dita, em muitos casos. 4 Realmente, desde a forma simples até a paranoide, inclusive a variedade paranoica phantastica, se en- contram casos 'que exigem um diagnostico diffe- rencial com diversos estados mentaes. A heboidophrenia precisa ser distinguida da debi- lidade menta4! congénita e estados analogos; a doente de que damos adeante uma ligeira noticia parece ser um caso de demencia simples, mas a falta absoluta da historia da mesma náo nos permitte resolver si se trata de um estado congénito ou náo, si bem que a primeira hypothese náo nos pareça provável. A forma hebephrenica pode apresentar alguma semelhança com a loucura maniaca-depressiva, prin- cipalmente si esta apresenta idéas delirantes, ou si o fundo hebephrenico tem uma intensidade tal que lhe dê a apparencia da loucura intermittente. Quanto á catatonia, pode se dizer que somente os phenomenos motores poderiam se prestar a uma distincçáo com os accidentes- de catatonismo obser- vados em variados estados morbidos. Mas, além do enfraquecimento do espirito, a catatonia se distingue pelo negativismo, alternando ás vezes com a sugges- 39 tibilidade, e peía estereotypía dos gestos, atti- tudes, etc. O estupor catatonico differe elle mesmo do estupor melancólico; alli elle não passa de um gráo intenso de confusão mental, aqui elle é verdadeiramente uma parada psychomotora. E’ na forma catatonica onde se observam mais os signaes physicos da moléstia. As perturbações da circulação são muito frequentes, consistindo em pur- pura, edema das extremidades e principalmente em dermographismo. De todas as variedades, porem, a paranoide é a que pode se prestar a uma maior diíferenciação porque as manifestações delirantes que nella exis- tem podem ser observadas em outras psychoses, quer a titulo de epiphenomeno, quer como a consequência directa e definitiva de um estado morbido ante- rior. A moléstia de Basedow é um exemplo disso. As perturbações psychicas podem, sob a condição do enfraquecimento mental, consistir em um delirio de perseguição, etc., oíferecendo o aspecto de uma demencia precoce paranoide. O alcoolismo é a into- xicação ou agente que mais frequentemente deter- mina a producção do syndroma paranoide; alem delle, tantos são os estados e causas onde elle se observa, que fazer a sua descriminação equivale a 40 passar revista em uma longa serie de casos, sem necessidade. A demencia precoce podendo se acompanhar de convulsões hysteriformes offerecerá assim serias diffi- culdades de diagnostico, principalmente porque a hysteria pode 'determinar um estado demencial. O caracter egoista tão intenso que na hysteria é dado, alem dos estigmas, como um elemento digno de ser tomado em conta, pode elle mesmo perder sua importância nos casos de demencia paranoide onde o delirio é egocêntrico. O diagnostico, pode se tornar bastante difficU nas mulheres. Não nos satisfaz o espirito a maneira pela qual tem sido distinguida a paranoia de outros estados mentaes. Nesse assumpto se nota que, com o fim de provar a difFerença, se attribue ao paranoico a inte- gridade de sua intelligencia, lucidez, um systema delirante verdadeiro, ao mesmo tempo que se nega a systematisaçao das idéas delirantes fóra delia, no delirio de Magnan, por exemplo. Quando, na ausência de demostraçoes positivas não se pode dar uma interpretação bastante clara de diversos phenomenos, é permittido, talvez, acceitar 41 aquella que, por si só, baste para explicar esses mesmos phenomenos ou a sua maioria. O que justifica as considerações aqui feitas é «não se admi.ttir mais hoje a existência de psychoses funccionaes, sem lesões anatómicas correspon- dentes. » (i) Si cerebro e espirito se acham indissoluvelmente ligados, quer o orgam tenha creado a funcção, ou vice versa, o que nao vem ao caso, deve se suppor que as graves alterações do espirito se acham subor- dinadas a modificações que se passam na vida inti- ma da cellula. Sendo assim, se é levado a admittir que taes modificações, ou os processos morbidos que fazem a condição de cada psychose, são capazes de produzir ou devem produzir a diminuição1 das faculdades mentaes. O contrario disso é acreditar que existem moléstias sine matéria e que não existe uma relação intima entre cerebro e intelligencia. No que toca á paranoia pode se dizer que uma causa qualquer condiciona o desvio que se n~ta no desenvolvimento moral do indivíduo; meiopragia, degeneração, seja o que for, torna-se preciso admit- til-a, uma vez que esse desvio não é unicamente o fructo da educação. Então, em um tempo da evolução do mal, surge o (1) Wevgandt. Manuel de psych. pag. 199. 42 enfraquecimento intellectuaí que expiica o appa- recimento das idéas de perseguição, grandeza, eíc. Em vez de dizer, pois, que o paranoico náo chega á demencia, diremos que nelle o enfraquecimento mental não vae até a demencia. Esta nao é, está claro, um estado que se estabe- lece de chofre, mas a pouco e pouco, sernque se possa dizer onde começa, segundo a nota de Féré. (i) E vale a pena distinguir enfraquecimento de de- mencia como se distingue o hypertonus da contra- tura de que elle é muitas vezes o signal precursor. A confusão estabelecida por muitos sobre a para- noia e outros estados deriva de se tomar para um confronto, o paranoico em seu periodo terminal, periodo em que elle se parece com um paranoide cujo enfraquecimento não é considerável; deriva mais de que se toma como critério a systematisação do delirio. Ora, delirio é symptoma e systematisação-de idéas delirantes, significa simplesmente enfraquecimento lento e pouco considerável, só podendo caber a uma demencia de rapida evolução um delirio não syste- matisado, incoherente. O paranoico pode se parecer como louco delirante, do mesmo modo que se parecem dous dementes quaesquer, portadores de syndromas difFerentes. (i) Bouchard, Path gen.YI vol. 43 A lucidez, discernimento, raciocínio, não falam contra o enfraquecimento. Na realidade, o paranoico é incapaz, nos últimos tempos da moléstia, de fazer espontaneamente um uso regular do quanlum de força intellectual que lhe resta, em consequência do seu estado. Si a vontade parece viva é porque náo se distribue, não é posta em exercício, como no homem normal, em todas as cousas da vida, e converge tcda para um objecto: de modo que da união nasce a força. De nada serve que elle desenrole argumentos, mostre os seus conhecimentos adquiridos, porque o ponto de partida jà é falso. Referimo-nos aqui, não ás manifestações do egoís- mo, essenciaes da moléstia e que, reveladas em todos os momentos, parecem sxastematisadas, mas ás ver- dadeiras idéas de perseguição e de grandeza que ás vezes são tão ridículas como as de qualquer para- noide. Alem do mais, viveza de imaginação não signica fortaleza de espirito. Lè-se em certos autores que nas verdadeiras delu- soes não existe diminuição do julgamento porque, fóra das idéas delirantes, o doente julga como o homem normal. « O que mostra, diz Chase ( i ), que o julgamento não está em falta é a circumstancia do doente racioci- (1) Journ of. ment, diseases pag. 458,1905. 44 nar bem sobre todos os assumptos que não se rela- cionam com as suas delusões.» ObjecçÕes dessa ordem vêm de que a antiga indi- viduação das faculdades mentaes ainda não perdeu todas as suas raizes. Porque, para admittir a diminuição do julgamento, esperar que o vicio se revele em tudo e em todos os momentos, equivale a suppôr a independência e indi- vidualidade desse julgamento. Ninguém diz que cer- tos doentes, apresentando uma forma qualquer de amnésia,4 não tem a sua memória diminuída sim- plesmente porque os mesmos doentes ainda guardam a memória de taes e taes ordens de factos. O erro não exprime a falha de cada processo ou faculdade senão porque os elementos, de que esse processo é a expressão, já se acham compromettidcs; e julgamento, como vontade, etc.., sendo uma resul- tante ou attiibuto de manifestações do trabalho psychico, si elle falha, o fundamento disso está nesse trabalho e não nelle proprio. A causa do delírio, como a da allucinação, está na insufliciencia ou falta de inhibição que os centros nervosos exercem normalmente uns sobre os outros. Entendemos por inhibição o effeito da excitação reflexa, sendo esta consecutiva á excitação determi- nada pela primeira provocação; esta faz o território 45 passar do estado de repouso ao de actividade, aquella faz o contrario. O caracter de reflexibilidade conferido ao acto me- dullar primeiro estudado, quasi perdeu a sua antiga significação, sob os progressos da physiologia, e quem fala hoje em acto reflexo não explica cousa alguma porque toda a reacção nervosa é, em seu mecanismo, analoga a esse acto reflexo. Tanto faz que a excitação chegue á cellula motora pela fibra centrípeta peripherica, como péla fibra cor- tical; na casca frontal, a idéa ou imagem, resolvendo-se em vibrações que são dahi transmittidas á cellula perirolandica, conforme a natureza da represen- tação, equivale á excitação transmittida á cellula do corno anterior pela fibra centrípeta peripherica. A marcha é um acto reflexo voluntário, o phenomeno do tendão é um acto reflexo involuntário. O phenomeno reflexo por excellenciaé aquelle que se segue á excitação reflexa, é a inhibição, é a parada. As experiencias de Herzen e Schiff (i), em que a acção correspondente a uma excitação deixa de se produzir si se excita simultaneamente um nervo sen- sitivo de outra parte do corpo, são exemplos de phenomenos dessa ordem. A força nervosa não sendo uma creação do tecido (1) Viault et Jolyet, Phvs, hum. pag\ 799, 46 nervoso, mas tendo a sua origem no trabalho ou vida intima de todas as cellulas do organismo, de modo que o systema nervoso outra cousa não é senão o conductor, o depositário e distribuidor dessa força, pode-se admittir que a insufficiencia de inhibição, depende de uma diminuição da conductibilidade ner- vosa. Estabelecido o processo de que deriva a diminuição da vitalidade da cellula psychica, o resultado é que as vibrações não se transmittem de modo normal, não porque prolongamentos cellulares se afastem, se desarticulem, mas porque, diminuindo a carga ner- vosa, consequência da menor conductibilidade cel- lular, a pouco e pouco desapparece o optimum de potencial necessário para que se dêem as relações correspondentes ás excitações normaes. Idéas erróneas ou, melhor, sem correspondência real, todos têm ou podem ter, mas não se incorpo- ram ao eu, á vista do correctivo ou inhibição que a ellas chegam do território visinho. No cerebro enfraquecido, dá-se o contrario. A con- sciência tem então o seu tonus abaixado, é vulnerável, ficando a mercê das imagens que povoam o espirito. As diíferenças repousam na intensidade do mal. Si este evolue mui lentamente, como na paranoia, a inhibição é a principio muito de leve diminuída e então se traduzirá em uma desconfiança, que mais 47 tarde é fé, ou porque o mal avance, ou porque a crença seja também o resultado do exercício ou habito da idéa. A allucinaçao repousa sobre a mesma condição. A antiga idéa de que a allucinaçao pode dar logar a delirio nao encontra hoje bons fundamentos, e uma causa somente explica os dous phenomenos, quer se trate do ouvido, da vista, etc., quer se trate de para- noia, demencia precoce, paralytica, etc. Em todos esses estados, a condição para que aalluci- nação se produza é realmente o erethismo dos centros sensoriaes; mas, pensamos, esse erethismo é virtual e não real, depende de que o frontal, o primam mo- riens, está potencialmente diminuído. E’ certo que a excitação directa do centro sensorial, como se tem observado em otites por exemplo, pode determinar o erethismo e, por isso, allucinaçÕes; mas nos de- lírios a maneira é dtfferente. A consequência é que, á vista das associações, tendo as representações do cerebro anterior imagens correspondentes nos centros sensoriaes, as vibrações despertadas nestes centros entram na consciência, as antigas imagens são de novo percebidas. Como muito bem disse Kahlbaum, a allucinação é uma repercepção. Assim se explica como o delirante ouve o seu pensamento (i). Do mesmo modo, a alluci- (1) Weygandt, pâ*r. 46 e 48, 48 nação da vista é a imagem vista. No paranoico e paranoide a primitividade das allucinações do ouvido depende davisinhança do centro auditivo. Está claro que a allucinação nem sempre é uma repercepção pois a imagem pode ser de formação actual, ser creada e no mesmo tempo percebida pelo doente, obedecendo sempre ás mesmas condições de psychasthenia. Afinal, o delirio é a allucinaçao da idéa propria- mente dita, como a allucinaçao é o delirio sensorial. Tudo se resolve em insufficiencia de inhibiçÕes ou de excitações reflexas capazes de trazer ao repouso ou ao equilíbrio os centros em actividade. Quasi escusado é notar que o mecanismo do delirio e allucinaçao não suppõe fatalmente o enfraqueci- mento do espirito; taes phenomenos podem se pro- duzir em consequência de uma desordem na func- ção, verdadeira asynergia como no estado maniaco, confusional, onde existe] antes de tudo uma disso- ciação das actividades psychicas. O seu modo de producção, o caracter todo acciden- tal, a falta de connexão que essas perturbações ahi apresentam, as distanciam do primeiro caso, onde ellas se apresentam sob certa lucidez do espirito. Basta esse modo de producção para se chegar, geralmente, ao diagnostico do estado mental. Em moléstia do espirito, pode-se dizer, quanto 49 mals lúcido, peior. Um demente precoce, com todos os seus conceitos desparatados, abstrusos, pode se curar; os verdadeiros loucos delirantes, apezarde sua lucidez, contam menos probabilidades ou sáo incurá- veis. Assim se comprehendendo o mecanismo psycho- pathologico das perturbações delirantes e sensoriaes, é evidente que delle não se tira o critério para fazer a distincçao entre diversas psychoses, embora isso se possa dar quando se consideram os caracteres clí- nicos das mesmas perturbações. A paranoia é originaria.tal é o elemento essencial que a distingue dos delírios paranoides. Sobre tal assumpto, a quem queira ter uma noção clara, basta lêr o trabalho publicado por Juliano Mo- reira e Afranio Peixoto, nos Archivos Brazileiros de Psychiatria. Os alienistas brazileiros, dirimindo velhos preconceitos, revigoram a doutrina nesse ponto e descobrem ao leitor o perfil do paranoico, desde as primícias de sua organisação psychica para- normal, que uma educação defeituosa a pouco e pouco accentuou, até as manifestações que na sua trajectoria social se accenderam no momento de um embate mais insolito. 50 À pedra maior do alicerce de toda personalidade está no instincto de conservação, que se reflecte em todos os tempos da vida. Supposto normal, esse instincto importa em duas ordens de sentimentos: de defesa e de conquista ou progresso, que são corol- larios fataes do mesmo instincto; e, por isso, a con- servação exige que o indivíduo tenha uma conducta defensiva sob pena de abater no meio em que a concurrencia creou posições : sem egoismo não haverá especie ou communhão possível. O que é pathologico é o seu exaggero. As idéas correspondentes a essas duas ordens de sentimentos existem ou devem existir em todo o mundo, senão na forma, pelo menos na essencia. Elias são o esqueleto do ser moral, vindo á mostra quando se esváe a flor do espirito, o julgamento, do mesmo modo que a destruição das carnes deixa ver o esqueleto physico, que ellas revestiam e que com- pletavam. Dahi o motivo porque em toda a alienação mental ellas vêm á superfície, e se referem sempre a taes sentimentos, quer se trate de perseguição, grandeza, culpa, mvsticismo, etc. Mas o desvio ou modificação do instincto de con- servação, pelo qual se objectiva, principalmente a 51 paranoia, pode ser para mais ou para menos, segundo pensamos. Neste ultimo caso, elle se traduz pelo exaggero de altruísmo ou de philantropia; é automu- tilação em vez de autophilia. Ao passo que a so- ciedade se desfaz do paranoico egoista, o paranoico altruísta se desfaz, servindo a sociedade, A. P. empregado publico em uma das cidades do norte, estava nesse caso. Em todas as cousas, reve- lava um desprendimento e abnegação inexcediveis, desprezando todas as vantagens em beneficio dos outros. O que lhe restava dos vencimentos, feitas as modestas despezas de sua casa, despendia em bene- fícios ou em acções de magnanimidade. Para o proximo, tudo, para si, nada: este fazia eahirem sobre os outros todas as coordenadas do mundo. Onde houvesse um doente, lá estava a prestar os seus serviços; era figura certa de cortejos fúnebres, Como os outros paranoicos, pelo menos a julgar por dois que conhecemos no asylo de S, João de Deus, este se voltava contra todos os médicos, e julgando a medicina cousa desnecessária, não tolerava drogas nem remedios. A sua esposa adoece e morre, sem que isso lhe traga a menor emoção; algum tempo depois, morre o filho. Todo o seu trabalho foi enterrar os dois. A in- differença que mostrou pisso foi cousa que impres- 52 sionou a gente que © conhecia. Tornando-se viuvo resolveu casar-se de novo, mas sò espiritualmente \ do que deu conhecimento á sua Dulcinéa. No novo estado, se julgou muito bem, figurando em casa que a mulher estava presente para o almoço, jantar, pagando-lhe a passagem nos bondes etc. Contava que muitas vezes a esposa fallecida com elle conversava, assim como o filho, donde se pode concluir que elle tinha allucinaçÕes. Apezar de tud o, P... exercia correctamente o cargo que occupava. Comparava os homens aos peixes do mar. Os peixes se sentem tanto melhor quanto mais agua encontram onde mergulhar: o homem vive melhor quando mergulha na eternidade. E, no corrente anno, tendo menos de 40 annos de edade, mer- gulhou. Pareceu a muitos que a vida de P... era a consequência do espiritismo. Nem tanto; o des- equilíbrio mental que muitos indivíduos revelam quando seguem essa doutrina não é effeito delia e sim de uma disposição preexistente; e com espiritismo ou sem elle, P... seria sempre o que foi. Si uma emoção determina uma loucura, ha muitas razoes para crer que a intensidade dessa emoção era já um symptoma de sério estado mental. 53 Eis em linguagem rasa a maneira por que enten- demos a alienação do espirito nos estados a que alludimos. Em todos ellês anda uma parcella de degeneração. A formula vaga sob que esta é conhecida não escla- rece certamente o seu valor; mas pensamos que o problema está em desdobrál-a nas modalidades que nella se contêm. Uma delias é a paranoia. Egoista ou altruísta o paranoico é uma persona- lidade anormal e o seu delirio é, não uma moléstia, mas um episodio na vida do mesmo. Ao passo que a degeneração é o fundo dos estados paranoicos, o mesmo não se dá quanto a delirio chronico. E’ exacto que um certo gráo de meiopragia nervosa pode favorecer o seu apparecimento, mas este pode sobrevir independente delia, sem tara em indivíduos dotados de constituição psychica mais ou menos regular. Grande razão tinha, pois, Magnan em negar a condição degenerativa do delirio chro- nico; deu-se somente que o grande medico francez esqueceu um momento que em medicina, como em todas as sciencias, precedido do signal mais ou menos, OBSERVAÇÕES F..., casada, cinco ou seis filhos, cerca de 3o annos de edade, 'residente em Victoria, acha-se no asylo de S. Joáo de Deus desde outubro do anno passado. Em Junho do corrente anno a doente se encon- trava em estado de estupor, em attitude estereoty- pada, que apresenta ha uns oito mezes, conforme informação dada, e da qual sae para se entregar durante alguns minutos a lamentações, chôro etc. Pela manha, deixa o leito e sobe ao portão de ferro do seu quarto no pavilhão casa forte. O pé esquerdo sobre uma trave horisontal, as mãos agar- radas a duas outras verticaes, o membro inferior direito livre, a doente sobe e desce pausadamente, de modo rythmico, vinte, trinta vezes, e depois, como para repousar, se conserva durante alguns minutos immovel, o olhar fixo, completamente alheia a tudo que se passa em redor de si. Os membros inferiores, principalmente o esquerdo, apresentam uma forte infiltração da derma, sobre- tudo na parte inferior da perna e em toda a face dorsal do pé, sob forma de edema duro, não depres- sivel; uma coloração mais ou menos vermelha, vio- lácea em certos pontos, ao lado da maior accentuaçao 56 num membro, revelam que tal estado é devido, pro- vavelmente, a um embaraço mecânico da circulação, em consequência da attitude tomada durante mezes; na face plantar está impressa em fita rubra a fórma da barra de ferro em que se apoia a doente. Em qualquer dos membros, nenhum reflexo; um movimento vagaroso de flexão e extensão dos dedos provocado por uma excitação mais forte. A approximação de um objecto, quasi a tocar o globo ocular, não produz nenhum movimento pal- pebral em tempo; retirado o objecto, alguns segun- dos depois, portanto, sobrevem um pestanejamento rápido, de modo convulsivo, de duração anormal; a contracção do orbicular, quando se approxima a extremidade do index, só se íaz quando este toca a cornea. A muito custo*se consegue arrancar-lhe a mão da haste em que se segura; uma contracção antagonista segue todo o movimento provocado no membro su- perior que, abandonado, volta á sua posição. O larynge, o pharynge, a lingua são á séde de um movimento especial; os lábios entreabertos, deixam vera lingua mover-se livremente, acompanhando os movimentos de subida e descida do larynge, num Vae-vem continuo, o que se tem observado de Junho a Setembro. Em uma das visitas se conseguiu vèr a doente 57 sahir do seu mutismo absoluto.—F... (seu nome) responde promptamente, deixando sem resposta as demais perguntas. Mais tarde, oíferecendo-se-lhe a sua sahida do asylo, responde—náo ! Depois de algum tempo, fatigada da sua gymnas- tica incessante, a doente desce da grade e, de pé, entra em uma de suas phases de ligeira agitação, a falar, chorar, etc.—O seuchôro tem algo de especial. No começo inclinando a cabeça fortemente para traz, abre desmedidamente a bòca, de modo que todas as linhas e attitudes da face, que correspondem á emo- ção, se apagam; é um movimento de verdadeiro bocejo, longo, a que somente um grito prolongado, uniforme, e duas finas lagrimas, emprestam um ar de pranto. Depois, os niusculos da face tomam realroente a expressão do choro, expressão carregada, contrastan- do com a primeira não só na forma, como na ausên- cia completa de lagrimas ; choro sécco, prolongado, de creança contrariada ou que tem medo. Conta a historia dos filhos, da moléstia ; passa de uma vez ao estado anterior; agarra-se á grade e sobe e desce, de modo automático, descançando de tempo em tempo. Èis o curto dialogo obtido, depois de tirada a sua 58 photographia, quando representava a sua scena ha- bitual. — Que fizemos agora? —Tiraram a luz do dia, tiraram a minha luz...' —Que luz é essa ? — E’ o hcinmo.., — Que é hemino ? luz que os animaes me dão. — Como sáo esses animaes? — Sáo elles que me mostram os meus filhos de madrugada. Eu não posso mais, quero ir-me em- bora ; V. S. me tire d’aqui que eu fico bòa; nao precisa ter muita matança comigo , basta eu sahir,.. — Mas, disse ha dias que náo queria sahir, lembra-se ? — Me lembro, sim, mas é a moléstia; eu estou muito frangida, não posso mais, os pés estão fran- gidos ... todo o meu mal é ter sido uma mulher tola; eu sempre fui muito tola, muito obediente, e meu marido também era um homem muito tôlo, fazia de mim o queria, me prendia num quarto... * — Porque fazia isso? , — Porque eu estava doente, não queria comer.... — é da moléstia, me dava uma suffocação quando eu comia... mas me tire d’aqui, quero vêr meus filhos, estou muito frangida... Volta ao mutismo, negativismo e nesse estado, si 59 se lhe pergunta si quer sahir do asylo, ver os seus filhos, etc., responde — Não, senhor! j A doente foi retirada ultimamente da casa forte e collocada em um dos pateos do mesmo, onde se acham outras mulheres, debeis mentaes, imbecis, maníacas depressivas, dementes, etc.; ahi procura a grade, pedindo a quem se approxima que a leve para o seu quarto na casa forte. Allucinações da vista e do ouvido. Demencia precoce catatonica. Etn Junho do corrente atino, M... é encontrado completamente nú, em estado de extrema magreza. Os ossos se desenham admiravelmente sob a pelle, crivada de escoriações em múltiplos pontos, princi- palmente sobre as articulações; os ganglios cruraes e inguinaes fazem uma notável saliência, deixando se distinguirem os grupos e forma; as veias, como cordas, correm os membros de alto a baixo, bem visíveis, mostrando a sua coloração violacea; oscapu- lum é verdadeiramente alado; a atrophia dos mús- culos glúteos dá á região a própria forma escavada do osso iliaco; a cristã deste osso se mostra perfeita- mente; os musculos da parte inferior do tronco, abraçam, apertam a columna vertebpal em sua partç 60 dorso-lombar, dando logar a uma desgraciosa cintura infrathoracica. Ao lado disso, a sua immundicie, o aspecto do seu cubículo no pavilhão casa forte, as paredes sujas (M... é coprophago) tornam o quadro quasi repel- lente. Apezar de reduzido a tal gráo do magreza, M... é de uma vivacidade que contrasta singularmente com o seu estado physico; figura grotesca, desengonçada, de verdadeira marionneta, não se conserva um mi- nuto numa posição. Agacha-se sob o leito, colloca-se de pé sobre o mesmo, vae á grade do cubiculo, sobe á parte mais alta delia, como um simio, desce, bate o craneo contra as paredes, pÕe-se de cócoras e assim anda, imitando a marcha de certas aves, meneiando o tronco como um palmípede; nessa posição, de mãos espalmadas, esfrega sobre o cimento a saliva ou es- carro que cuspinha. E tudo isso faz a falar, tagare- lando sobre tudo, sobre assumptos os mais descon- nexos. De ordinário, toma por ponto de partida a ultima palavra que ouve e que repete automatica- mente. Assim, ouvindo dizer tinteiro, continua tin- teiro, teiro, teiro, demencia precoce, prococe, coce, coce. . . —Quantosannostem? Tem vinte e dois annos,vinte e dois! que quer mais? vinte e dois, Moraes ou 61 Meirelles, amigo velho, é a mesma cousa... Eh! (ba- tendo palmas) sélélé, salálá... Olhe aqui, isso é pedra, isso é cambotá... — Que é cambota? —Ai gente! que é cambotá, que é chapéo de sol, que é caranguejo, mel de abelha, cavallo de cão... couro de boi... eh! Meirelles, amigo velho... qu’ é de Mariquinha? Já disse, tenho vinte e dois annos... Eu sou o salvador do mundo... eu náo sou (falando para si mesmo) o salvador do mundo porque estou nú... Creio em Deus Padre, todo Poderoso... M... resa eífectivamente o credo, mas ao terminar volta tres ou quatro vezes sobre a mesma passagem, sem poder, afinal, terminal-o; e dahi continua a sua verbo rrhéa. A sua memória é mais ou menos conservada. Realisa correctamente uma operação sobre numeros, diz em ordem os mezes do anno, os dias da se~ mana, etc. A apercepção é quasi intacta; mas, vendo alguém de oculos, pediu os mesmos para ver de binoculo. Ainda dá signal de certo raciocínio como pode se ver pela resposta que deu ao paranoide F... de que falaremos adeante; sentindo que se tocava a pelle com o alfinete, diz a rir: está, Meirelles! não faltava mais nada! Ha nelle abolição completa dos reflexos rotulíanos, A pupilla reage regularmente á luz, 62 O doente apresenta poucos tiques, mas dá á phy- sionomia aspectos variados, cerrando os lábios, fran- zindo o sobrolho, ou fazendo carêtas. M... é coprophago. Essa manifestação não está, parece, sob a dependencia directa do enfraqueci- mento mental, nem este é tanto que leve á tal pra- tica. A mesma circumstancia observamos em uma doente, provavelmente catatonica, que esteve durante alguns dias na enfermaria S. Maria, do hospital S. Izabel. Essa doente, de 25 a 3o annos, mais ou menos, conserva-se durante o dia num canto da enfermaria, de cócoras, enrolada em lençóes, da cabeça aos pés, com alguns signaes de negativismo, ao lado de mu- tismo completo. Mas, chegada a hora da refeição, illudindo a vigi- lância dirigia-se á latrina onde foi encontrada em flagrante acto de paragustia. Parece que tal manifes- tação é da ordem daquellas que se observam em hypohemia e outras moléstias, e dependem do pro- cesso de intoxicação cerebral. Quando entregam a M... o seu almoço, elle deita o mesmo sobre o cimento, espalha tudo, depois reune, fazendo um enorme bolo em que dá dentadas, ao mesmo tempo que algumas porções cahem sobre 0 63 chão; volta a fazer novo bolo e assim successiva- mente. O doente, á auscultação, não apresentava signaes de tuberculose e ultimamente tem engordado visi- velmente. Demencia precoce hebephrenica. F., por alcunha o Major é um dos delirantes do asylo de S. João de Deus. Como dos outros, nenhuma referencia se pode obter sobre a sua historia, antes do internamento. Apresenta uma edade de 5o annos, presumíveis. E’ um mestiço alto, magro, de constituição regular. Quem vae ao asylo, desde que delle se approxima, ouve uns gritos cadenciados, lembrando ás vezes o latir dos cães, outras vezes as vozes que se ouvem durante exercícios militares; d’ahi o nome que lhe deram no asylo. Alem disso, usa um bonné, trazendo na frente uma rodella de còr e outros enfeites que valem um attestado de demencia. Como passássemos a seu lado, sem nenhuma saudação, o Major, interrompendo por um momento a sua tarefa de bombardear a Bahia, a que equivalem os seus gritos, atira-nos uma saudação e reprimenda: Deus lhe dê bom dia, aqui também se usa disso! 64 A grade de ferro do seu cubículo na casa forte, é pof dentro forrada de uma esteira de palha afim de que nao se veja o interior do seu gabinete ou palacete. Conta que era carpinteiro em uma cidade do alto sertão, e que tem mulher e filhos. Ha uns seis annos desce do céo uma voz annunciando o seu destino : «tu és o deus, incarnado». Começou então a fazer o primeiro julgamento eterno das almas. Fizeram-lhe por isso uma guerra enorme ; os padres, os frades, as irmandades, etc. apezar de saberem por todos os evangelhos que elle ap pareceria no anno de 1900, não quizeram acceital-o. Os padres lhe movem guerra porque não podem comprehender como, havendo tantos deuses ( são milhões ) descessem á terra num corpo só. —Depois disso, abandonou,, esqueceu sua mulher, os seus filhos... —Não! pois elles vão continuar o julgamento eterno quando eu acabar. .. — Acaba, quando morrer... — Deus não morre. O Major não fala senão raramente em suas gran- dezas, não é inimigo do pessoal do asylo, nem é um perseguido. Não pareça por isso que elle é, em tudo, um resignado ou que uma completa indifferença emo- 65 cional o deixe a salvo de certas revoltas. Alguns, mal avisados, se lembraram de lhe dirigir certos gracejos e receberam em paga pontapés de correndo, se livraram : si os paes não lhes souberam dar edu- cação, elles os ensinaria. Um dia, ou, melhor, uma tarde, pois eram duas horas, lhe traz um empregado o prato do almoço, onde a fartura estava na quantidade. O Major vae se aproveitar dos espectadores que tem em sua frente. Não é mais o Deus dos julgamentos eternos ; uma trégua se faz no bombardeio contra á Bahia ; todas as delusÕes se esvaem de uma vez deante das pel- langas. Parece que tem raiva, porque a voz é de outro tom e a mão que segura o prato está tremula. «Aqui está! veja o senhor o que a Bahia me dá ! Terra de desgraça! — Tenha paciência, isso endireita um dia... — «Não! responde com energia, voltando a face, e, erguendo alto o prato, quasi a entornal-o, o aponta para o céo, para o sol, para a nuvem, impre- cando «emquanto este céo de desgraça, este sol de desgraça, esta nuvem de desgraça!... » isto se dava aos escravos ! eu nunca comi!» «Mas come agora » responde de chofre o Meirelles ou Moraes, no seu cubículo, e que parecia não prestar attençao á scena 66 do Major, estando a rir da ubobora que encontrara : eh, gente, abobora ! A resposta incisiva do hebephrenico calou no espirito enfraquecido do paranoide F... que se dirigiu ao seu gabinete, onde, dando o braço a torcer, foi aplacar as tenazes da fome, que a mo- léstia nao desfarça. Delirio paranoide. C... 3o annos presumíveis, internado no asylo por mania aguda. Corno o outro hebephrenico, este se conserva nú, tendo rasgado as vestes. E’ considerado perigoso, aggredindo o empregado que faz a limpeza no seu quarto. Foi encontrado em Junho debatendo-se sobre o leito, logo que sentiu a approximação de pessoas. Gritava, gesticulava, mo- via-se todo, dizia que soffria da cabeça, dizendo sentir umadòr horrível, pedindo um carmante para febre cerebral, etc. Chamado, a sua angustia desapparece immedia- tamente, fala na febre cerebral, cebelal,, celebal, em jogo do bicho, onde ganhou vinte contos, ouve gritos e vozes á noite no tecto do quarto, que o não deixam dormir. 67 Esconde sempre os orgãos genitaes sob as mãos, algumas vezes cruzando as coxas, puxando os dous mammillos com as mãos. — Leia esse nome:—G, r, a, n. d,... grande! diz rindo. — 2X3? — Cinco! —4X8? —56.000. —As côres desses papeis:—Azul—Vermelho — Branco (era verde)—Encarnado — Azul.— Branco (era verde). Recebendo 0 almoço faz pouco mais ou menos como o M... embora de modo mais cuidadoso. A crer no que diz C... tem allucinaçoes do ouvido e da vista. Demencia precoce hebephrenica. Acha-se no mesmo as}do uma creouta de i5 annos presumíveis, onde é possível um diagnostico de he- boidophrenia. E’ impossível dizer de quando data o seu estado mental, a falta de dados. O seu humôr é sempre alegre, sendo encontrada no pateo, onde se acha a correr, saltar etc. Informa o pessoal que tem frequentemente ataques convulsivos. Os reflexos tendinosos são normaes, não ha modi- ficações dos reflexos pupillares, nem desegualdade. 68 Ao exame, a doente fala com um ar de meiguice, constantemente a sorrir. O dialogo abaixo mostra os innumeros neologis- mos dessa doente. — Quer Y. sahir do asylo ? —Oh! quero! quero! nem que sêja para uma aldêal—Que é aldeia?—E’ um caldomido natural! — Tem vontade de ir para a casa, ver seu pae, irmão... — Nem um ticol — Que pessoa deseja ver?—Chiquinho, diz sorrindo — Quem é Chiquinho? — E’ vonto de de noite... —Antes de vir para aqui esteve doente? — Estive, um homem me tratou, mas se tratou, destratou... Tuluripa tomou o meu rosário, eu disse a ella, Tuluripa, já te cae nessa confiscação? — Que quer dizer confis- cação? — E’ uma prufinada... A doente não apresenta estados de agitação nem depressão — Não mostra ter allucinaçÕes, nem idéas delirantes. PROPOSIÇÕES Anatomia Descriptiva I Os dous ventrículos do coração possu«ro fibras próprias e communs II A direcção das fibras próprias e communs tem uma grande importância na physíologia da circulação. III A direcção inicial dos troncos arteriaes aorlico e pulmonar é em grande parte efleito da systole cardíaca. Anatomia Medico-Cirúrgica I A circulação cerebral se faz por intermédio das artérias ca- rotidas internas e vertebraes. II Esses ramos formam na base do cerebro um heptagono, III A parte anterior do cerebro pertence ao território das arté- rias cerebral anterior e media ou sylvia. Histologia I Os tecidos do organismo consistem principalmente em ele- mentos cellulares, de formas as mais variadas. II A forma mais complexa se encontra no tecido nervoso. III Deu-se á cellula do tecido nervoso o nome de neurona. 72 Bacteriologia I Uma das maiores conquistas da sciencia medica é o desco- brimento do papel dos microorganismos na etiologia de certas moléstias. II A influencia dos seres unicellulares depende dos seus pro- ductos de desassimilaçãó e de secreção III Esses productos tomaram o nome de toxinas. Anatomia e Physiologia Patiiologicas i Toda a hemorrliagia tem como causa próxima uma modiíi- cação da parede vascular. i i As causas occasionaes são muito variadas. i i i Essas causas podem ser de origem toxica, infectuosa, ner- vosa mecanica, actuando de conjuncto ou isoladamente. Physiologia I Os neuronas são mais entidades anatómicas do que physio- logicas, neste sentido de que as menores reações nervosas têm como substratiim muitas cellulas. II A physiologia pode prescindir do amiboismo nervoso na determinação dos phenomenos que elk estuda. III A independencia reciproca dos neuronas não pode de ma- neira alguma se oppòr a que a modificação que se produz em um delles dependa immediatamente daquella que se produziu no neurona precedente (Bechterew). 73 Therapeutica I À sangria é meio therapeuíico imprescindível em certas aíTecçÕes. II Ella pode ser substituída pela applicação de ventosas escari- íicadas. ® III O vesicatório age também eliminando productos toxicos. Medicina Legal e Toxicologia I Os interesses de ordem social predominando sobre os de ordem individual e augmentando, com a civilisação, o segredo medico vae soffrendo restricções. II E’ somente deante desses interesses que o segredo medico desapparece. III Ha casos em que a conducta é difíicilima. Hygiene / 1 Grande numero de moléstias se evitam pela pratica da hygiene. II O Codigo do Ensino e o regulamento das Faculdades de Medicina não dão grande importância ao papel, anti-hygienico da sobrecarga intellectual. Os alumnos das escolas attenuam esse defeito, procurando tanto quanto possível fugir á obser- vância rigorosa da lei. Esse facto é de péssimas consequências no que diz respeito á ' educação civica dos mesmos alumnos. 74 III 0 serviço demographieo no Brasil è muito deficiente. Pathologia Cirúrgica I O mal de Pott é de origem tuberculose. II A symptomatologia depende da sede. III O tratamento medico não é efiicaz na maioria dos casos. Operações e Appareliios I A laparohystereetomia é a operação de escolha para a cura do fibroma uterino. II O methodo subtotal deve ser preferido. III O methodo total deve ser reservado para os casos em que existe um processo degenerativo do utero. Clinica Cirúrgica (l.a cadeira) I Os grãos da queimadura podem ser reduzidos a tres. II No primeiro lia somente rubefacção, no segundo phlycíenas, no terceiro lia destruição de tecido e escliara. III O acido picrico é um bom medicamento'para as queimaduras. 75 Clinica Cirúrgica (2.a cadeira) I 0 tumor branco do joelho é de origem tuberculose. II Em seu período inicial ou tratamento medico pod? dar alguns resultados. III A intervenção cirúrgica é necessária na maioria dos casos. Patiiologia Medica I O impaludismo e a febre amarellasão na maioria dos casos produzidos pela picada de mosquitos. II Não está provado que a febre amarella só se produz em um indivíduo quando o mosquito tem sugadopreviamente osangue de um doente da mesma moléstia. III A destruição dos mosquitos é, porem, o melhor meio que existe actualmente de prophylaxia da mesma infecção. Clinica Propedêutica I Não existem sopros arteriaes em consequência de rugosidade . das paredes dos vasos. II O sopro da insufficiencia mitral é geralmente ouvido na ponta porque a condição do ruido tem sua séde dentro do pro- prio ventrículo. III O ventrículo esquerdo se hypertrophia na insufficiencia mitral. 76 Clinica Medica (f.a cadeira) I 0 impaludismo produz frequentemente polynevrites. II Não estii provado que o beriberi seja uma polynevrite palustre. III A simples mudança de clima pode curar o beriberi. Clinica Medica (2.a cadeira) I O sòpro da ínsufíiciencía mitral pode ler o seu máximo de audibilidade na base do coração. II As insufficiencias relativas, mitraes e tricuspídes, não depen- dem na grande maioria dos casos de dilatação do orifício e sim da falta de occlusão do mesmo. III A inocculação se dá pela dilatação do’ventriculo, que impede o ajustamento das bordas das laminas auriculo-ventriculares. Historia Natural Medica \ I O apparecimento do systema nervoso nos seres de organisação mais ou menos complexa é a consequência da divisão do tra- balho que importa em differenciação deorgãos. II Mesmo naquelles sêres em que não existe o tecido nervoso, o trabalho correspondente existe. III Dá-se, pois, com o apparelho nervoso o mesmo que se passa com os apparelhos digestivo, respiratório, etc. 77 Matéria Medica, Pharmacologia e Arte de Formular I Os saes mercuriaes devem ser prescriptos em forma de in- jecções, sempre cpie fôr possivel, ou de pomada, para fricções. II As poções, xaropes e pilulas de base mercurial são as peiores formas de prescripção desse medicamento e só em circumstan* cias muito especiaes devem ser empregadas. III Os xaropes de qualquer base devem ser prescriptos em quan* tidade sensivelmente egual a das poções, isto é, de 120 a 150 grammas, salvo quando a base fôr uma substancia antifer- mentescivel. Ciiimica Medica I A stryehnina é extrahida de plantas do genero Strychnos, familia das loganiaceas II Esse alcaloide é pouco solúvel nagua III Combinado corn os ácidos dá saes muito solúveis Obstetrícia I A ruptura da vesícula de Graaf, a libertação do ovulo, são phenomenos que coincidem habitual mente com a' congestão uterina e consecutiva hemorrhagia periódicas. II Em casos raros esses phenomenos podem não coincidir com a mesma bvperhemia. III Pode se dar a hyperhemia sem ovulação e vice versa, 78 Clinica Obstétrica e Gynecologica I O decúbito lateral direito é uma das causas da frequência da posição occipito iliaca esquerda anterior. II A contracção da-fibra uterina determina a hemostase nos casos de hemorragia. '• III Sob a acção constante das liyperhemias correspondentes ao catamenio, o utero pode passar a um estado hyperplasico, fi- bromatoso, si se conserva virgem durante longo tempo ou si poucas vezes se torna gravido. Esse facto está de accôrdo com a idéa de Bandeira Filho de que o fibroma do utero é a consequência da falta de trabalho util do orgão. Realmente, no caso de gravidez, a hyperhemia é aproveitada para ahypertroplria pliysiologiea; donde, na falta da mesma gra- videz, o é para uma hyperplasia de feição pathologica. Clinica Pediátrica I Às cfeanças são frequentemente sujeitas ás otites. II As otites têm uma tendencia ao estado chronico. III Em alguns casos, se curam espontaneamente. Clinica Ophtalmologica I A desegualdade pupilar ou anisocoría pode se observar na demencia precoce. II E’ mais frequente na pàralysia geral e tabes, 79 III Ella pode ser etfeito de affecção thoracica. Clinica Psychiatrica e de Moléstias Nervosas i Nas formas maís graves, geralmente continuas, da loucura maniaca-depressiva se estabelecem um certo grào de enfranque- cimento mental e consequentes manifestações delirantes com tendencia á systematisação, 11 Esses casos tèm sido interpretados como sendo de paranoia. i i i O delírio systematisado éum symptomade enfraquecimento mental que se observa de modo mais perfeito nos estados para- noicos e paranoides. À mesma psychose pode dar iogar a um delirio completa ou incompletamente systematisado. Clinica Dermatológica e Syphiligraphica I As paraplegias sypbiliticas são raras, as hemiplegias são frequentíssimas. II A syphilis pode determinar perturbações mentaes que muito se assemelham ás da demencia precoce no periodo inicial. III Os melhores saes de mercúrio para o tratamento da syphilis são o biiodureto e bichlorureto. Visto. Secretaria da Faculdade de Medicina da Bahia) 31 de Outubro de 1905. O Secretario Dr. Menandro dos Reis Meirelles.