THESE THESE APRESENTADA Á Faculdade de Medicina da Bahia em 30 de Novembro de 1911 PARA SER DEFENDIDA PUBLICAMENTE PELO Dotourando Juvenal Montanha de Andrade NATURAL DO ESTADO DA BAHIA Filho legitimo do Bacharel Augusto Monteiro de Andrade e de D. Deoclecia Laura Montanha de Andrade. Ex-interno do Hospital de Isolamento em Mont Serrat, peste bubonica, febre amarella e febres eruptivas. AFIM DE OBTER 0 GRÁO DE DOUTOR EM MEDICINA , DISSERTAÇÃO Cadeira de Medicina Legal OS DEVERES DO MEDICO PROPOSIÇÕES Ires sobre uma das cadeiras do curso de Sciencias Medico Cirúrgicas FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA Diroctor-Dr. AUGUSTO C. VIANNA Vice-Direcfcor—Dr. Secretario—Dr. MENANDRO DOS REIS MEIRELI/ES Sub-Secretario Dr. MATHEUS VAZ DE OLIVEIRA Professores ordinários Drs. Manoel Augusto Pirajá da Silva . Historia natural medica Pedro da Lu/. Carrascosa .... Physica medica José Olympio do Azevedo .... Chiiuica medica Antonio Pacifico Pereira .... Anatomia microscópica José carneiro de Campos .... Anatomia descriptiva Manoel José de Araújo Phyaiologia Augusto Cesar Vianna Microbiologia Antonio Victorio de Araújo Fulcfto . Pharmacologi» Guilherme Pereira Hebello .... Anatomia e histologia patliologicas Fortunato Augusto da Silva Júnior Anatomia-medico-cirurgica com ope- rações e apparelhos Anísio Circundes de Carvalho . . . Clinica Medica Francisco Rraulio Pereira .... Clinica Medica Joio Américo Garce/. Fróes . . . Clinica Medica AntonmPaeheco Mendes Clinica cirúrgica Braz Hermenegildo do Amaral. . . Clinica cirúrgica Carlos Freitas • . . Clinica cirúrgica Francisco dos Santos Pereira . . . Clinica Ophtalmolngica E luardo Rodrigues de Moracs . . Clinica oto-rhino-laryngologica Alexandre E. de Castro Cenpicira . . Clinica dennatliologica e syphiligraphica Gonçalo Moui/, Sodré de Aragão . . Pathologia geral José Eduardo F. <le Carvalho Filho . Therapeutica Frederico de Castro ltebello . . . Clinica pedialrica medica e hygiene in- fantil Alfredo Ferreira de Magalliées . . Clinica pediátrica cirúrgica e orthopedia Lui/. Anselmo da Fonseca .... Hvgiene Josino Correia Cotias Medicina legal Climerio Cardoso de Oliveira . . . Clinica obstétrica José Adeodato de Sousa .... Clinica gynecologica Luiz Pinto de Carvalho Clinica psyeliiatrica e de moléstias nervosas Aurélio H. Vimii PiUhologia medica Autouino Haptisla <los Anjos . . . Pathologia cirúrgica Professores extraordinários efFectivos Drs. Egas Muniz de Aragão .... Historia natural medica. João Martins da Silva .... Physica medica Pedro Lui/. Celestino ...... Chimica medica Adriano dos Reis Gordilho . . Anatomia microscópica José Alfonso de Carvalho .... Anatomia descriptiva Joaquim Climerio Dantas Bíão . Physiologia Augusto de Couto Maia .... Microbiologia Francisco da I.uz Carrascosa . . Pharmacologia Julio Scrgio Palma Anatomia e histologia pathologica» Eduardo Diuiz Gonçalves .... Anatomia Medico-cirurgica com ope- rações e apparelhos Clementino Rocha Fraga Júnior . . Clinica medica Caio Octaviano Forrcira de Moura . Clinica cirúrgica Glodoatdo de Andrade Clinica opiitalmologica Albino Arthur <la Silva I.eitão . . Clinicadermatologicaesyphiligraphica Antonio do Prado Valladares . . . Pathologia geral Frederico de Çastro Hebello Kocli Tnerapeutica José Aguiar Costa Pinto .... Hygiene Oscar Freire de Carvalho . . . Medicina legal Mcnandro dos lieis Meirelles Filho Clinica obstétrica Mario Carvalho da Silva Leal . . Clinica psychiatrica e moléstias ner- vosas Antonio do Amaral Ferrão Muniz Chimica7 analytica e industrial Disponibilidade Dr. Sebastião Cardoso Dr. José E. de Castro Cerqueira Dr.*Deocleciano Ramos Dr. José Rodrigues da Costa Doria A Faculdade não approva nem reprova as opiniões exaradas nas theses pelos seus auctores DISSERTAÇÃO Cadeira de Medicina Legal OS DEVERES DO MEDICO Deontologia ( de Seoy, dever) OU Diceologia (de Sixiov, dever)? Dos dois vocábulos encimando este artigo, o primeiro, ainda que creado desde pouco tempo por Max Simon, entrou a ser usado pelos médicos; o outro é de agora, e nasceu de uma especie de necessidade, isto é, da reciprocidade dos direitos e deveres: dois neologismos parallelos, concernentes a duas coisas também parallelas entre si, tornando-se assim uma commodidade de linguagem. Ila ainda uma observação a fazer — é que o vocábulo deontologia não corresponde, com a mesma exactidão, a todas as qualidades a desejar no medico e mesmo não abraça a todos aquelles a que está elle habituado a encontrar nas narrações e apreciações profissionaes. 4 Isto acontece porque os auctores, a começar por Hippocrates, não considerando o medico somente em si mesmo, mas também em suas relações com o publico, são levados por isso a se occupar de todas as qaulidades que o publico deve exigir delle e das quaes algumas são extranhas de todo ao dominio moral. Dest’arte, obrigado a encarar todas as faces do indivíduo, tomarei por base deste estudo as qualidades, antes que os deveres propria- mente dito, do medico pratico. K’ a profissão do medico, entre as demais, a que concentra maior numero de interesses moraes, Esta nota, cem vezes reproduzida, é esque- cida por detractores da medicina taes como J. J. Rosseau, attingiu hoje a um grão de bana- lidade que está de todo no critério dos médicos, mas que eu teria de afastal-o, se não servisse de preambulo natural ao exposto, que vae seguir, de todas as condições nas quaes o homem da arte de todos os tempos é chamado a prestar serviço á sociedade. Golpe de vista historico A arte de curar começou, indubitavelmente, 5 por toda a parte como vemol-a começar entre os povos barbaros do nosso tempo. Já entre os Indús, mesmo nas mais afastadas épocas a que chegou a litteratura medica, as numerosas allusões que se encontram no Rig- Véda, tocante á influencia benefica, a gene- rosidade, o devotamento dos médicos, attes- tam entre elles um cunho criterioso da honra profissional. Mais tarde, debaixo da civilisação harmó- nica, durante o periodo clássico da litteratura medica e a dos systemas philosophicos, dos Codigos de Manu, a casta dos médicos, cujos deveres salientaram sobremodo, só teve que ganhar em consideração A sciencia que elles ansinavam era sempre uma sciencia revelada; e é o caracter que se attribue a Ayurveda (Science de la vic) e a algumas obras das quaes as outras são commentarios. Assim, isto disse Suçruta, o auctor do Ayurveda, os textos dessas obras principaes deviam ser aprendidos, palavra por palavra, como um cathecismo. O mesmo aconteceu no Egypto, onde. se- gundo Diodore de Sicile (L. I, cap. LXXXII, Bibl. greco -latino, de Didot), a pena de morte 6 cra pronunciada contra aquelles qne violavam as descripções do codigo sagrado da medi- cina. Na Grécia, na Italia, o respeito pela arte me- dica teve numerosos interpretes, entre os phi- losophos e os lettrados. Pytliagoras appellidou-a de arte divina (Ap- pollonias de Trane, Let. XXIII); Cicero, o sceptico Luciano, exaltando sua nobreza, etc. etc. Entre os barbaros como entre as nações civilisadas, os chefes do povo, os grandes, têm seus médicos. Mithridates tem seu Scythes, como Alexandre tem seu Philippe, como nos- sos imperadores e reis terão seus mais afama- dos médicos. Breve, quando a medicina se tornar secu- lar e mesmo antes de o ser de todo, zom- bar-se*á delia algumas vezes. Se o proprio Luciano, que tanto a exaltava, caustica-a nos seus epigrammas (n. 38) e em seu poema sobre a gotta, os médicos nem por isso têm conservado menos o genero de auctoridade unido á natureza dos serviços que elles pres- tam ou que a elles se prendem. Isto já na- quelle tempo como no tempo de Molière. 7 O medico tem, indubitavelmente sempre dois papeis a representar: um publico e um privado; este sahiudo da profissão; aquelle, só se deter- minando e desenvolvendo com os progressos da civilisação. Diremos o mais breve possivel como este papel nos apparece na serie dos tempos. Papel publico do medico A parte a grande situação á qual o medico era elevado na índia e no IDgypto antigo por sua qualidade de sacerdote e de depositário de uma sciencia manifesta, seria difficil, me parece, assignalar-lhe algumas funcções publi- cas no genero d’aquellas que se chamaram mais tarde os médicos gregos e romanos. No tempo dos Rajás, os deveres públicos dos médicos indús consistiam essencialmente em se furtar a todo o transe a esses chefes feudaes, pro- tectores de todo o movimento scientifico e litterario, patronos dos padres, dos astrono- mos, dos médicos, etc., de quem faziam publicar as obras. Elles deviam recusar seus officios a todo o inimigo do rei, como a todo aquelle que fosse condemnado como traidor. 8 Com a lei mosaica, a medicina tomou corpo e o papel do therapeuta se delimita. Ksta lei foi em grande parte uma instituição de prophy- laxia sanitaria, e é precisamente sobre este terreno e sobre o da assistência medica, que lhe é connexa, que cumpre seguir, de começo, o progresso da medicina publica. Hygiene e assistência medica Km Homero accusa-se o papel que represen- tava nas praticas salutares dos gregos os exercícios corporeos e a balneação. A cultura do ser physico pelo exercício cor- poral, pelo genero da alimentação e pelas me- didas do Kstado de um caracter por vezes sel- vagem, é o fim supremo das leis de Kycurgo. Haveria nesses estabelecimentos de hygiene algum papel a representar o medico? K’ o que não resalta de nenhum texto; ao todo poder- se-ia conjectural-o segundo outros relatórios officiaes dos médicos com as cidades. Mcdicos niunicipaes, com effeito, (dos quaes se pode seguir a origem até mais de cinco séculos antes de J. C.) chamados á eleição pelos cida- dãos, assalariados pelas cidades, pelo producto 9 de utn imposto particular, tinham o dever de distribuir os soccorros da arte a todos aquelles que os reclamavam, isto é, aos indigentes somente, dizem outros. A medicina em Athenas era praticada unica- mente pelos homens livres, dos quaes os aju- dantes (ministri medicarem) eram os escravos. Os médicos municipaes não agiam certamente de modo differente dos outros. O numero va- riava, a meu ver, contra a opinião do Dr. Ver- contre ( A medicina publica da antiguidade grega), segundo a cifra da população. Os serviços tornaram-se preciosos em tempo de epidemia. Sua posição official, á qual. estava unida uma gratificação (bem que lhes fosse permit- tido receber fora do tratamento municipal foros dos cidadãos), tornava seu zelo obriga- torio e prevenia a deserção. As cidades, além disso, recompensavam, algu- mas vezes, por honras publicas ou privilégios, aquelles que se distinguiam por seu devota- mento e desinteresse. Hippocrates, que faz preciosos detalhes sobre o destino e disposição das officinas, nada escla- 10 receu sobre os deveres especiaes dos médicos públicos Seus conselhos sobre a hygiene são os que se podem dar a todos os práticos, a todos os praxistas. Não esqueçamos mencionar os soccorros médi- cos que os profissionaes gregos iam dar algumas vezes em plagas longinquas, em tempo de epi- demia. Sabe se que Hippocrates, enviado a Macedonia, mandara seu filho Thessalus com instrumentos cirúrgicos, emquanto outro filho seu Dracon e seu genro Polybio foram des- pachados para outras direcções. Se do mundo grego passarmos ao romano, a intervenção do medico, em todas as grandes instituições sanitarias, torna-se mais directa e mais extensa, Em Roma, sabe-se, a medicina foi, durante muitos séculos, toda domestica, toda caseira, como se diz geralmente, quando ella teve re- presentantes especiaes foram escravos libertos, quasi todos gregos e são esses sobretudo que Catão deixava ao despreso publico. Lá não foram creados médicos municipaes; nada indica que lhes tivesse sido attribuido um salario qualquer; entretanto, ella lhes havia 11 comprado uma boutique (hibernam) dos últimos públicos e lhes havia concedido o direito qui- ritario. A experiencia provou mal e esses mé- dicos ou antes esses cirurgiões (vnliicrarius) foram obrigados a deixar o paiz. A partir de Julio Cesar, que concede o di- reito de cidade a todos os médicos, a profissão ganha, rapidamente, com dignidade e influencia e é convidado para funcções condignas em todas as instituições que implicam interesse sanitario, desde as associações de artistas até a casa de imperador. Aqui, só nos interessam as funcções especiaes nas quaes os médicos têm sido successivamente levados pelo progresso da civilasão e da scien- cia medica especialmente. Neste particular tomamos por guia o Dr. Brian, salvo as reservas que teremos de con- servar para adiante, sobre algumas das suas affirmativas. Médicos havia que estavam sujeitos aos jogos do circo para ahi zelar pela bôa ma- nutenção das disposições hygienicas; para cui- dar ahi do pessoal em todas as suas moléstias; emfim, mui provavelmente, para levar soccorros 12 immediatos em casos de accidentes, sobrevindos durante as corridas. Esses médicos eram escolhidos pelas'-asso- ciações ou facções concurrentes aos jogos; cada facçao tinha o seu para seus empregados particulares. E’ igualmente certo que os elidi gladiatoni e os endi matutini (reservados aos combates de animaes) eram egualmente provi- dos de médicos; porém duvidamos que houvesse outros além desses unctores prepostos ás fric- ções oleosas e ás massagens e que dirigissem os exercicios dos gladiadores e dos lucta- dores. Havia-os nos collegios de artistas; pelo menos encontramos nas inscripções nomes de médi- cos entre os membros dos collegios e não ha duvida que elles entraram ahi para exercer sua profissão e que tiveram, por consequência, uma situação distincta da dos outros membros da associação. Os imperadores tinham seus médicos; eram os archiatros, dos quaes foi Andromaco o pri- meiro, no dominio de Nero; pode-se mesmo affirmar que alguns entre elles tinham muitos 13 médicos, constituindo um verdadeiro posto medico. No posto medico formado por Septimo Severo havia um primeiro medico, que só recebia um ordenado fixo. Constantino, em Bysance, tinha, pelo contrario, junto a si, muitos médicos, todos elles condecorados com o titulo de archiatros, mas com um conde em frente delles; um presi- dente (comes archiatrorum). Este titulo não se extendeu a médicos func- cionarios de uma outra ordem; e ao lado da archiatria palatina colloca-se a archiatria mu- nicipal, excepção feita do tempo em que esta designação entrou na lingua official. Trata-se da organisação, no império romaílo, desta me- dicina publica que assignalamos, a toda a hora, na Grécia. Pouco e pouco ella passa das cidades helle- nicas, onde a conquista a encontra toda insti- tuída, ao centro das províncias romanas; ella é favorecida pela emancipação dos médi- cos sob Julio Cezar e, emfim, especialmente regulada por Antonio o Piedoso. Nos termos do decreto, as pequenas cidades podiam ter 14 cinco mcdicos públicos; as de importância me- dia, sete; as grandes, dez. A instituição foi confirmada e reorgatiisada em 368, por Valenciano. Esta forma de assistência medica para com os indigentes, que em certas circumstancias teve de experimentar as misérias que a guerra deixa depois de si, não era provavelmente a unica. S. Jeronymo e S. Basilio fundaram em Jerusa- lém e em Cezarea hospitaes. hospedarias para os peregrinos, para os quaes eram assegurados cuidados médicos, nas moléstias. Não é certo porém que esses hospita s recolhessem os doen- tes das praças publicas. Einalmente uma grande dama romana, Eabiola, amiga de S. Jeronymo, fundou, em Roma, um verdadeiro hospital, nos fins do quarto século. A partir desta epoca, um longo tempo se escuou antes que a hygiene publica creasse novos deveres á profissão medica. Alguma vez mesmo, esta parte da sciencia declinou como as outras e acabou por decair. No tempo de Carlos Magno, os hospitaes de leprosos são habitacubs de condemnados. Por- 15 tanto, contra o flagello terrível da peste, que veio accordar a apathia das populações e das auctoridades, algumas medidas sauitarias são tomadas, a partir do decimo quarto século; porém foram ainda precisas longas decurrencias para que estas se tornassem realmente intelli- gentes e efficazes, para que chegassem a re- vestir um caracter internacional, para que recebessem por toda a parte, mais ou menos sufficientemente, as únicas luzes que pudessem guial-as com segurança — as luzes da sciencia medica. As quarentenas se alargam á febre amarella, ao cólera, ás epizootias; collocavam-se médicos sanitários (?) de sentinella nos diver- sos postos de entrada desses flagellos. Os deveres públicos dos homens d‘arte mul- tiplicam se e diversificam-se com as institui- ções; graças ao seu concurso, regula-se a com- merciação e a vendagem das substancias alimen- tares. Renova-se mestno a instituição antiga dos langaijeurs de porcos; observa-se cuidadosa- mente ou submette-se á formalidade da aucto- risação as profissões e industrias susceptiveis de desfavorecer a saude, comprehendendo se 16 nellas a prostituição; occupam-se extraordina- riamente do saneamento das cidades, dos hos- pitaes; estabelece-se um serviço de soccorros aos afogados e asphyxiados; organisa-se o emprego das aguas mineraes naturaes, que vem a ser uma grande riqueza publica, ao mesmo tempo que uma grande fonte therapeutica. Os alienados por iniciativa dos Pinei, tra- tados como doentes ordinários; abrem-se-llies refúgios salubres, onde gozam de toda a liber- dade que comporta seu estado; abrem-se-llies egualmente e prodigalisam-se-lhes cuidados mé- dicos os mais attentos ás creanças aos velhos, aos incuráveis. A descoberta de Jennes provoca medidas preventivas contra a variola; tem-se como ura reflexo dos antigos mediccs das cidades nos médicos das secretarias ou sociedades de bene- ficência, mas n’aquelles que arregimentam a assistência medica nos campos. Organisam-se médicos de estado civil para registros dos nascimentos e constatação dos obtos. A hy- giene e a assistência medica tornaram-se desde o começo deste século um negocio do Estado, muito importante para que fosse comprehen- 17 dida no inquérito aberto pelo Primeiro Cônsul sobre as grandes instituições da França. Hoje, o medico representa, nos institutos de caridade um papel que, por não corresponder ainda a to- das as necessidades, não é de uma importância menos considerável e de grande efficacia. 2? Sobre a medicina do exercito, que obriga o homem da arte a deveres mui espe» ciaes, a antiguidade nos offerece preciosos en- sinamentos. Suçruta consagra um capitulo inteiro aos deveres dos médicos indús, durante a guerra; um delles acompanhou o rei do mesmo modo que o astrologo e o padre. Seu primeiro dever era velar pela preservação do rei, como diz o texto: a saude deste é a saude de toda a nação. Elle deve impedir a fraude do ini- migo que experimenta envenenar as provisões de bocca, a sombra das arvores, o sólo dos caminhos; deve munir-se de instrumentos e remedios uteis, no campo como em outra qual- quer parte. Conservar no exercido de suas funeções a sabedoria, o amor da verdade, o sentimento da justiça. No tempo de Homero, os médicos presentes ao exercito competiam, como officiaes e soldados, entre os combatentes; 18 destacavam-se-os para as necessidades do ser* viço. Nos excrcitos lacedonianos, haviam, no dizer de Xenophonte (Gouv. de Eac. cli XIV, ed. Haase), de permanecer perto do rei com os tocadores de flauta e os advinhos. O ser- viço medico dos exercitos não pareceu modi- ficar-se sensivelmente sob Xenophonte (Cor- lien, Gaz. hebd., 1S70, pag. 389), e mesmo sob Alixandre; porém foi mais fortemente organi- sado no império romano por Augusto. Foi nessa >epoca que appareceu, nos exercitos tor- nados permanentes, o medicus mititaris. Ins- tallam-se enfermarias nos acampamentos; os médicos são obrigados a permanecer ahi, do mesmo modo que nas cahortes, na legião, nos corpos de vigilia, nos corpos de auxiliares; houve também médicos na marinha. Esta organisação, pouco e pouco enfraque- cendo, depois destruida pelas invasões bar- baras, acabou durante toda a idade media, onde os eruditos não assignalam traços de médicos do exercito. Estes reapparecem com Carlos o Temerário, que allia os médicos e cirurgiões ás suas com- panhias; uma pleiade de médicos do exercito 19 se distingue nos séculos seguintes; entre elles o illustre Ambrosio Paré, que foi cirurgião de Carlos IX e de Henrique III. Eiaalmente Sully fundou os hospitaes militares e organisou um serviço de saude do qual o serviço actual pode ser considerado um seguimento e um aperfei- çoamento. 3? Se se considera agora o que se chama actualmente a medicina legal e a jurispru- dência medica e se se encontra rudimentos delias numa mui alta antiguidade vemos os mé- dicos igypcios punidos de morte por se terem afastado dos preceitos da arte. A lei mosaica não os dispensa de nenhuma falia; se ella se occupa do aborto accidental, nada diz do aborto voluntário. Os Asclepiades, ver-se-á melhor adeante, o interditaram a seus discipulos, mas o juramento que elles exigiam delle por isso é um testemunho de mais, do silencio guardado pela lei. Na antiguidade grega e mesmo romana, o aborto voluntário era praticado largamente, num interesse de familia, com o fim de dimi- nuir o numero dos herdeiros; ou no interesse do Estado, para diminuir a população. 20 Sabemos que, em nossos dias e nos paizes onde ha penna de morte, em França, por exemplo, o medico é chamado para esclarecer a justiça em alguns pontos, como no art. 27 do codigo penal, assim concebido: «Si uma mulher condemnada á morte se declara e se é verificado que ella está gravida, ella só sof- frerá a pena depois do parto». Ora, lô-se no iFliano (V que, o Areopago, tendo condemnado á morte uma mulher por crime de envenenamento, foi suspensa a exe- cução ató que a creança viesse ao mundo. Pode-se muito bem presumir que a especie foi submettida ao exame dos homens de arte. Em termos geraes, Hippocrates lastima que a socie- dade não seja melhor protegida contra os des- vios da pratica da medicina; elle lastima que nenhuma penalidade attinja áquelles que com- promettem a segurança publica por sua igno- rância (a Lei). Se bem que a capacidade pro- fissional não fosse então garantida por nenhum titulo legal, a qualidade do medico encubria muitos delitos. E’ a mesma immunidade que confere hoje o diploma em França, não se submet.tendo á 21 repressão das leis sinão as faltas commettidas por ignorância ou por negligencia, com a differença, portanto, que a condição exigida do facto da morte ser involuntária não equivale precisamente ao de resultar de uma impericia. Um maior cuidado da vida humana sob os últimos imperadores pagãos e sob os primeiros christãos traz disposições legislativas concer- nentes ao exercicio da medicina. De principio, o aborto, que é uma das expres- sões as mais manifestas do desprezo da vida, torna-se passivel das penas as mais severas e mesmo logo da pena capital, que foi mantida mais tarde pelos concilios. A responsabilidade do medico é extensa e melhor precisada. O principio de Platão implanta-se nas leis: o medico não é responsável pelos accidentes involuntários de sua pratica; mas a incapaci- dade e a negligencia são punidas por per- seguição dos interessados. A justiça chama o homem da arte a assistir sobre a descoberta dos crimes e sobre a de- terminação das responsabilidades: Mediei pro- prie non sunt testes. sed magis judiciam (piam testemonium (DigestqJ. Quanto aos 22 alienados, se não é certo que a justiça, na idade media, teve recursos sobre o homem d’arte para examinar o estado mentnl d’a- quelles, é que ella os cercou de protecção e não lhes desconheceu a irresponsabilidade legal. Com o direito canonico, o principio da res- ponsabilidade dos médicos é mantido; elle atra- vessa os séculos, algumas vezes exagerado, mas em geral mantido nos limites em que o vemos hoje. E ao mesmo tempo que os progressos paralellos da civilisação e da sciencla dão um conhecimento mais claro e permittem uma protecção mais efficaz dos interesses materiaes e moraes da sociedade, á medida que se esta- belece e consolida o principio da egualiade de todos perante a lei, vê-se apparecer, com a assis- tência medica, um codigo de protecção aos cidadãos contra o crime; do proprio delinquente contra os erros ou as usurpações da justiça; do foyer contra certas ordens de orgias; de operário contra os perigos da profissão; etc. E’ o sopro do progresso que em logar das provas judiciarias do juramento, do fogo, da agua fervendo, da agua fria, da cruz, do campo 23 cerrado, pondo a innocencia ou a culpabilidade do accusado á mercê de uma intervenção sobrenatural, em vez de todos esses costumes cégos e barbaros dos quaes ainda hoje se en- contra o analogo entre os povos selvagens, põe esta alta e mesmo santa garantia da pesquisa medica, que não tem cessado, desde S. Luiz e Philippe o Bello, de tornar-se rnais humana. Os progressos da medicina legal foram len- tos na Europa. Seus iniciadores mais celebres foram: em Erança—Ambrosio Paré (morto no fim do século XVI; na Italia—Paulo Zacchias (meiado do XVII século). 4? Desde o XVI século, avivam-se de diversos lados uma influencia mais geral e-rnais profunda da medicina sobre a ordem social; toda eco- nomia politica a experimenta. Depois de Bacon, é Bordeu um dos que as- signalam o movimento; ainda um francez Ques- nay, no XVIT1 século, o determina, não preci- samente por applicações directas de conheci- mentos médicos no governo do Estado, porém estabelecendo o princio da supremacia das leis da natureza. Elle creou esta sciencia que rece- beu, embora para logo perder, o nome de pluj« 24 siocracia (força da natureza), e torna-se o precursor das escolas diversas de economia so- cial, que se succederauí depois, até a sociologia dcs nossos dias, dos quaes os apostolos os mais fervorosos têm sido os médicos. 5? Ha finalmente, no circulo de acção da medicina, um ponto a assignalar. Todo o mundo conhece as antigas relações desta sciencia com a philosophia grega. Ha ainda disto hoje em medicina judiciaria e no numero dos problemas sociaes que os governos são chamados a resolver. E este co- nhecimento pleno do homem intellectual e moral, que compete ao medico observador, mais que a qualquer outro; que o presume mais con- tra o erro e o preconceito, que faz convergir para elle uma luz particular sobre as acções dos homens, foi, em todos os tempos, na pratica, um guia, uma força para elle e para os que pediam seus conselhos. Assim se constituiu e lentamente augmentou o dominio no qual o medico, chamado a consa- grar su’arte ao serviço da communhão, contra- hiu deveres públicos. Comprehende-se que o codigo dos deveres privados, que convém a todo 25 o homem da arte, seja estabelecido com mais presteza. Papel privado do medico O dever dictado pela consciência não precisa ser definido. «O dever, dizia Cruveilhier, n’um discurso pronunciado na Faculdade de Medi- cina (1836), é a honra, é a vida moral das sociedades, que enlanguece quando ella se re- lacha, que periga quando ella se extingue». Não ha moral particular para o medico; que elle seja um homem de bem no exercicio de sua profissão, como em todas as outras cir- cumstancias de sua vida, eis tudo. Todavia, esta profissão tem um caracter tão especial; ella confia áquelle que a exercita tão grandes inte- resses; ella o chama a funcções tão delicadas, o encarrega de responsabilidades tão pesadas; ella o inicia a tantos segredos,que submette o cum- primento do dever a condições mais elevadas e mais rigorosas para o medico do que para qualquer outro indivíduo. O objecto exclusivo da profissão medica é, numa unica palavra, fazer o bem; nenhum ou- 26 tro indivíduo tem este grande privilegio. Km todas as profissões deve-se exigir honestidade; a do medico, com a do padre é a unica na qual ha uma forma obrigatória de honestidade de se pôr ao serviço de todos; de elevar o interesse de outrem ao seu proprio; de afron- tar os desgostos e as fadigas; de arriscar a vida pela saude do semelhante, do proximo; ha na realidade uma homenagem que lhe confere a lei, quando crêa para elle obrigações e respon- sabilidades excepcionaes, porque elle é que reconhece n’ella uma certa preeminencia na escala das profissões. A dignidade da arte medica e os deveres dos médicos são correlativos. A primeira condição para que a dignidade medica seja respeitada, é que o proprio medico, mais que ninguém, se compenetre delia. Quando se disser que a sua importância na sociedade, decorrente do bem que elle é chamado a praticar, não deve ser empregada sinão na pratica real do bem e não deve degenerar em uma força abusiva das quaes os doentes tenham de soffrer, elle terá assen- tado, estabelecido a grande regra da sua con- ducta. «Alli onde está o amor dos homens está 27 o amor da arte», está escripto excellentemente nos Preceitos (Hippocrates). Quer dizer que o medico deve ser o servidor, submisso e obe- diente, de todos aquelles que reclamam seus officios? Não, de certo. Se elle tem deveres a cumprir, tem direitos a reivindicar. Os direitos do medico, isso mesmo tem sido o assumpto especial de algumas dissertações e ha um que trata deliberadamente do dever dos doentes (Wolffgand). Recouhecer-se-á, por mais de um exemplo, que a medicina, por isso mesmo que é respeitável, tem o direito de se fazer respeitar; por isso mesmo que ella presta serviços, tem o direito de pedir que se queira bem contar com ella. O devotamento do medico,. a abnegação mesmo absoluta que elle tem de impor a si proprio, em muitas circumstancias, não impede que su’arte se exerça, como as outras, sob a base de um. contracto entre elle e a sociedade; e, se elle se sente elevado acima dos termos vul- gares desse contracto, não é uma razão para que deixe á sociedade toda a liberdade de faltar com esse mesmo contracto. O sentimento dos deveres priyados do medico, ainda que elle deva remontar a própria origem 28 da arte de curar, não seria facil desembaraçar do pouco que se sãbe desses tempos remotos. Na índia antiga, na Chaldéa, no Egypto, onde tuio é de principio hierático e magico, os deveres do medico começam por seconfundir com os do padre e do magico; mas com o tempo, alguns se desprendem e se revelam com certa nitidez. As qualidades exigidas do me- dico indú, por exemplo, não são sem analogia com aquellas que recommendava Hippocrates e esta analogia vae mesmo até ás qualidades physicas. Na opinião de Suçruta. o medico deve ser de boa familia, bello, forte, vigoroso, discreto, amavel, serio, sem pretenção, e alegre; deve ter o maior cuidado da sua pessoa; apresen- tar-se em toda a parte, como amigo; absoluta- mente sobrio em tudo e escravo da verdade. Sua solicitude junto aos doentes deve ser, por assim dizer, sem limites. Somente no interesse de sua reputação e para salvaguardar a digni- dade da arte, elle deve recusar seus cuidados áquelles que achar incuráveis. H’ o que se encontra em Hippocrates; mas o que se encontra a toda a hora é o res- 29 peito do discípulo para com o mestre e a tra- dição deontologica, que era um dos traços mais notáveis da pratica indú. O estudante, solemne- mente iniciado em su‘arte, depois de uma es- pecie de stagio, fazia acto de submissão a seu mestre, o brahmane, e recebia delle uma ins- trucção especial sobre os deveres do medico. O primeiro dever é sempre ter a mais alta consideração com os brahmanes; o segundo é ser cheio de commiseração para os desgraçados: «Evitarás, diz o mestre, todas as más compa- nhias; não darás nunca remedio a um homem condemnado por crime contra o rei; não irás tratar uma mulher na ausência de seu marido e sem o consentimento delle; não receberás delle nada, além d'aquillo que te fôr necessário para a nutrição. O medico não se approximará de um doente sem que seja chamado, etc». Ensinamentos desta natureza não poderiam ser fornecidos pelo Egypto. Este, no tempo de Herodoto, V século antes de J. C., era já coberto de especialidades de todo o genero, remontando talvez á origem da arte, e no meio daquellas seria difficil dizer o que era a deon- tologia medica. Çom os Eebrens uma luz appa- 30 receu. Os mágicos, entre outros deveres, têm o de dar a peste e outras moléstias aos egypcios; padres, tem se visto, encarregados de executar as mesmas prescripções contra as moléstias impuras; são ainda encarregados dos embalsa- mentos. Quando Jacob morreu, José ordenou a seus médicos embalsamarem o corpo de seu pae e elles o fizeram. O medico é honorificado: «Honora medicum propter neccssitatem; da locam medico et non disccdat a te», diz o Livro Santo, que traz disso algumas indicações. A medicina grega do tempo de Homero e de Ho- mero a Hippocrates (cerca de quatro séculos) não foi, como estabeleceu Daremberg, absorvida pela theurgia; o dever medico privado, que se poderia chamar livre, o que não procede de um ritual, devia ter seu logar ahi. Um facto permittiria, nos parece, affirmar: é que a obscu- ridade se dissipa subtamente com Hippocrates. Ora, a obra, trazendo o nome d’aquelle se chama o pae da medicina, não é toda de um homem, nem obra de um momento. Qualquer porção pessoal que se possa dar ao medico de Cos, duas coisas são absolutamente certas: é, pri- meira, que esta obra seja collcctiva; em se- 31 guida, que ella represente um estado da sciencia realisada em parte por progressos anteriores. O que é verdade da parte scientifica não pode nunca deixar de ser da parte profissional. O Juramento é, além disso, um testemunho muito provável, como se vae ver num instante. Elle está sempre nos 5 livros hippocraticos denomi- nados; Do Medico, Da Decencia, Preceitos, Juramento e A Lei, contêm um verdadeiro codigo de deontologia medica, que bastaria para formar o homem de bem, de quem falíamos a todo o instante. A serie dos deveres não está exposta methodicamente nem com detalhes, mas em traços breves e como aphoristicos; cumpre reproduzil-os, taes como são, sem -os separar. Será isso um excellente preliminar, uma espe- cie de argumento para a serie deste artigo; ahi ver-se-á como, do mesmo modo que deon- tologia indú, ás qualidades moraes do medico, as que correspondem a seus deveres os mais essenciaes, estão misturadas a qualidades pura- mente intellectuaes e mesmo a qualidades phy- sicas das quaes algumas não dependem talvez da vontade. Eis a passagem pela qual se abre o livro Do MEDICO. 32 Eu tenho a boa fortuna, a felicidade de dever a traducção inédita dessa passagem ao professor E. Egger, cujo nome só basta para garantir a sua felicidade; «E’ uma recommen- dação para o medico ter uma boa physiono- mia e perfeita saude, conforme o tempera- mento. Porque, de um medico mal disposto, deslei- xado, suppõese que não saberá cuidar bem de outrem. E’ ainda necessário que seja acceiado de sua pessoa, bem vestido e que use perfumes agra- daveis, cujo odor nada tenha de suspeito. Por- que tudo isso predispõe o doente em favor delle- O medico discreto, deve também, quanto ao moral, observar o que se segue: saber de principio se portar, depois regular bem a sua vida, porque isso lhe convém muito á reputação. Convém que elle tenha o caracter de um per- feito cavalheiro e que com isso seja, ás vezes, grave e carinhoso. Porque o excesso mesmo de zelo o faz menos respeitado. Que observe o que pode ser permittido, porque os mesmos officios rendidos raramente ás mes- mas pessoas bastam para contental-as. Quanto 33 á sua compostura, será de um homem reflectido, sem arrogancia. De outro modo, parecerá arro- gante e duro. Pelo contrario, se elle se entrega ao riso e á galhofa, torna-se aborrecido, do que convém de todo abster-se. Que seja honesto com todas as suas relações, porque a honesti- dade lhe serve muitas vezes de um grande pro- veito; os doentes tem trabalho grave com o medico, entregando-se-lhe sem reserva; a todo o instante, este vê mulheres, raparigas, objectos do mais alto preço; é necessário pois tornar-se senhor de si, em todos os sentidos. Eis o que deve ser o medico no physico e no moral». No livro Da Decencia encontram-se conselhos analogos. Nenhuma affectação nos vestuários, um caracter grave, urbanidade, em uma pala- vra, sobrio; nenhuma ostentação. Certas recommendações concernem mais di* rectamente á pratica, como a de ver frequen- temente o doente e observar as infracções que pode commetter, cujos effeitos viriam a ser pos- tos a cargo do medico. Nos Preceitos, certas passagens são ainda relativas ao vestuário, aos abusos da palavra, mas é sobretudo recommendado ao medico não 34 começar por se occupar dos honorários, de pro- porcionar a taxa delles aos recursos dos doen- tes, chamar consultantes nos casos graves e embaraçosos. E’ ahi que se encontra uma passagem ('cap. VIT) muitas vezes citada sobre os charlatães, sobre os ignorantes, oppobrc du monde, que chegam ao successo por toda a sorte de pro- cessos desleaes. A proposito de honorários, é preciso lavar a Hippocrates a pecha que lhe era attribuida de não dizer uma palavra sobre a medicina gratuita, em favor dos indigentes, a O Jura- mento não impõe o medico, em caso algum se isso não disser respeito com seus mestres e proximos, exercer gratuitamente sua profissão; em uma palavra, não se fez mensão dos pobres no juramento medico de Hippocrates», diz M. Brian (Assistência publica entre os Romanos, pag. 101J, e elle accrescenta: «Nada prova melhor que este facto quanto aos homens, mesmo os mais esclarecidos e os melhores..., estavam ainda afastados do sentimento da phi- lanthropia a mais Êlementar». 35 Ora, de um lado, Hippocrates cão saberia ser responsável por uma lacuna num documento que elle talvez não redigiu e que seria ao todo ou em parte uma herança, um património da familia dos Asclepiades; e doutro lado, no livro Dos Preceitos, devido verdadeiramente a Hippocrates, o auctor, voltando uma segunda vez sobre o preparo do medico, exprime-se assim: Prestae serviços gratuitos em memória de uma obrigação ou pela boa reputação do doente, Se se offerecer occasião de soccorrer um homem forasteiro e pobre, é o caso de in- tervir. L’ como uma especie de justificação deste preceito que elle accrescenta a maxima já ci- tada: «O amor dos homens é também o amor da arte». Alem disso, não ha ahi uma concepção plena da assistência medica livre, isto é, gra- tuita, mas também vê-se que não é exacto apre- sentar o pae da medicina como não o tendo prescripto em caso algum. O livro d’ A Lei insiste particularmente so- bre a vantagem da instrucção primaria. A 36 instrucção começada desde a infancia «é se- meadura feita na estação conveniente»; é como o ar em que as plantas confiam a sua nutri- ção. Ilippocrates levanta-se ás vezes contra «a timidez que revela a impotência e a temeridade que revela a inexperiencia». Citemos emfim o juramento, este juramento no qual se acolhe geralmente o nome de Hippo- crates. Todo o texto desse documento traz a marca de uma tradição mais ou menos longa e algumas de mais passagens parecem bem pro- var que ha uma sahida do templo para se transmittir, com os proprios ensinamentos scientificos, aos seculares de Asclepiades, que não parecia mais duvidoso, desde os tra- balhos de Daremberg, a que Hippocrates tinha compartilhado (consultar sobre o assumpto. F. Fournier, na gaz. Lebd. 1 £81, pag. 216). Em- prestamos ainda a M. F. Fgger a traducção do Juramento (completado em dois pontos) inserto nas memórias de titteratura antiga pag. 284: «Fu juro por Appollo medico, por Asclepios, Hygia e Panacéa e temo a todos os deuses por testemunho, como todas as deusas, de cum- prir, conforme minhas posses e razão, o jura- 37 mento do qual este é o texto: estimar, tal como a meus paes, áquelle que me ensinou esta arte, de fazer ccm elle vida commum e, se pre- ciso fôr, dividir com elle os meus bens; ter seus filhos por meus proprios irmãos; lhes en- sinar esta arte, se elles tiverem precizão de aprendei a, sem salario nem promessa escripta; fazel-os participarem dos preceitos; dar lições e toda a complexação do ensino a meus filhos, do mestre que m’a ensinou, aos discípulos inscriptos e convidados conforme o regulamento da profissão, mas somente a estes. Applicarei os regimens, para o bem dos doentes, conforme minhas posses e convicções, nunca para pra- ticar injustiça ou fazer mal a alguém. Não darei a ninguém, para lhe satisfazer, um remedio mortal, nem um conselho que o in- duza á perda. Do mesmo modo, não admnis- trarei a uma mulher uma substancia abortiva. Conservarei puras a minha vida e minha arte. Não praticarei o corte nem mesmo sobre um calculo (manifesto); deixarei aos práticos esta operação. Km toda a casa onde eu fôr entrarei para o bem dos doentes, permanecendo longe de todo o damno voluntário e de toda a se- 38 ducção, e, sobretudo, longe dos prazeres do amor com as mulheres ou com os homens, quer livres quer escravos; o que no exercício ou fóra delle e no commercio da vida e verei cumprido o uramento com fidelidade, que me fará gozar a vida e a arte com boa reputação entre os ho- mens e para sempre; se eu disso me afastar me aconteça o contrario e a meus filhos » Digamos de passagem que o texto relativo á operação de corte deu logar a numerosos cotn- mentarios e que muitos o observam como alte- rado. Aquelles a quem esta questão interessa a acham exposta e examinada com uma clareza perfeita e grande auctoridade em uma conside- ração de M. Bailly (d’Orleans) sobre uma me- mória de M. Charpignon (vide gaz. hebd, 1881, pag. 152J. Analisemos depois, apezar da distancia das duas épocas, um outro juramento medico em versos gregos, muito pouco conhecido, de data incerta, mas que pode passar por trabalho de algum rhetorico do IV ou V século, antes de J. C. Eis esta muito vulgar peça: «Eu juro pelo Deus suberano, em palavras sinceras, não anni- 39 quilar por moléstia a homem nenhum, extran* geiro ou do meu paiz, com auxilio de praticas homicidas; que ninguém me reduzirá, por dadi- vas, a commetter um crime horrido, ministrando a alguém remedios funestos, capazes de lhes causar um mal mortal, que mesmo por amizade eu não me encarregarei de administral-o a cutrem. Mas eu levanto ao céu piedosas mãos e em tudo eu só tenho pensamentos isentos das nodoas de crime. Km me applicar a fazer o que puder para salvar o doente e a todos proporcionarei a saude que conserva a vida. Notar-se-á entre os dois juramentos a diffe- rença que, o primeiro, defendendo o mal, or- dena o bem, emquanto o segundo aconselha apenas abster-se dos actos criminosos. Este poderá hoje ser restabelecido pelo co- digo penal. Alguns dos traços do programma de Hippo- crates que alliás elle augmentara ainda em muitas partes da collecção, acham-se em di- versos auctores da antiguidade; esses sobretudo que dizem retpeito á observação dos doentes, á experiencia, a bôa firmeza, a honestidade 40 dos processos, etc. Aristoteles doente se asse- nhorava, de principio, dos conhecimentos práticos de seu medico, exigindo delle uma exposição do caso e uma justificação dos meios de trata- mento. E’, pelo menos, o que se lê nas histo- rias de zEClien. A superioridade da experiencia da eru- dição no medico é muitas vezes affirmada, Luciano, especialmente, compara o medico ex- perimentado ao musicista que sabe cantar, e o medico erudito ao musicista que só conhece a melodia e a harmonia. Ainda é muito bom que o cantor conheça a musica, e, por motivos analogos, que o medico não fique extranho ás doutrinas. Hippocrates proclamava a alliança intima da philosophia e da medicina; Galiano concebe ou acceita este pensamento a seu modo, proclamando a excellencia do methodo racional e da sciencia lógica e fica fiel em sua Exhor- tação ao estudo das artes, onde elle colloca em primeiro logar a medicina. Ha alli quali- dades intellectuaes. Consideremos as qualidades . moraes como numerosas plantas que, no charlata- nismo, mostrando quanto se apreciariam e quanto também ellas faziam falta. 41 A proposito do charlatanismo, se ‘se folheas- sem os antigos auctores, achava-se ma is de uma menção, sinão do exercido illcgal (a epoca não permittiria mais a palavra) pelo menos do exer- cício intruso. Elle resulta mui claramente dos textos de Kippocrates, que muita gente exercia a medi- cina sem se submetter ás regras da profis- são. O mal não é nem parado nem diminuído e é por isso que não ha interesse em dar teste- munhos particulares. Mostrarei todavia um exemplo do que disse, á guiza de distracção: Foi na XIV fabula de Phedos, intitulada — 0 Sapateiro Medico. Esse falso confrade, sem mérito, vendia um antidoto, porém certo dia teve negocio com um rei. Este finge misturar veneno ao antidoto e ordena ao sapateiro de engulir tudo aquillo; o sapateiro recusa beber e o rei diz ao povo reunido essas sabias pa- lavras : ... capita vostra nom dubitatis crederc Cai calceandos nemo commisit pedes. E isto conduziria aos remedios secretos. Na Ipayásottosaypa de Euciauo, que teve a bondade, como se vê, de occupar-se muitas 42 vezes da nossa arte, a gotta ameaça com sua vingança dois médicos syrios, que pretendem possuir um remedio contra os botes delia. A questão dos honorários é uma das que se pode espalhar por mais longe. Na especie de codigo deontologico dos indús, o medico tinha direito a uma remuneração, porém devia pro- porcional-a ás condições do doente e se conten- tar com a necessidade de um pequeno, «aceres- cimo de consideração»; e a instrucção do mestre lhe recommendava fugir da avidez do ganho, do lucro. Incapacidade de trabalho, perdas e damnos, despesas com a moléstia, toda a jurisprudência precisa, sobre a matéria, lá esta. O uso de pagar aos médicos os seus cuida- dos é alliás tão natural e tão legitimo que deve existir por toda a parte e em todos os tempos. Isto é bastante conhecido no que diz respeito á Grécia e Roma para que seja preciso insis- tir. Aristoteles toma o cuidado (em sua Polí- tica, se me não engano) de mostrar quanto é justo que o medico, depois de ter tratado seu doente por amizade, receba delle uma recom- pensa por tel-o curado (agris sanatis, mer- 43 cedem aceipiunt). Infelizmente, muitas passa- gens dos auctores, fazendo allusão aos honorá- rios, testemunham, ao mesmo tempo, esta cica- triz eterna de incurável da cubiça. O mesmo Aristoteles faz allusão disso em sua Ethica, a proposito da mentira. Conhece-se ainda a his- toria do medico de Aspasia, a respeito da 7E}lien (Hist. I XII, c. I). Toda a rapariga, ella teve um tumor no mento, o pratico, ao qual seu pae a mostra, promette cural-a, mediante tres stateres (moeda das cidades gregas da Asia), não as possuindo o pae, o medico res- ponde que, não tem medicamentos. Isso não se entendia nada com a medicina gratuita nem com o ajuste. Porém a mais no- tável das citações que se pede fazer é a de um preceito de Ilippocrates (não contido no Juramento), que achará sua applicação mais adeante: «Se começaes, diz elle, por vos occu- pardes des honorários..., occasionareis em casa do doente este pensamento, que, não havendo convenção, partireis e o deixareis, ou que vol-o abandonareis ou nada receitareis para o momento presente. Não vos occupeis pois de fixar sala- rio...; va1e mais fazer censuras ás pessoas que se 44 tem salvado do que exigir das que estão em perigo». No que diz respeito aos médicos romanos, encontrar-se-iam em Plinio exemplos de for- tunas que não attestam desinteresse itnmode- rado. 10’ justo todavia recordar que elle, por vezes, fez uso dessas riquezas, em proveito da indigência ou de qualquer fundação publica. Quanto aos médicos officiaes, gregos ou ro- manos, vimos que eram retribuídos pelas cida- des. Subsiste duvida sobre a maneira, o meio desses tratamentos, necessariamente variaveis; entretanto, uma util indicação é permittida para o caso desse Demccedes, que, recebendo cm Egina um talento fpouco menos de 6000 francos), foi attrahido para Athenas pelo incen- tivo de um tratamento de 100 minas (cerca de 1000 francos); e indo finalmente a Samos, onde Polycrates lhe assegurou dois talentos. E’ este mesmo Democedes de Cretone que, feito pri- sioneiro dos Persas e conduzido em escravidão a Suza, curou Darins de uma torsão e a mulher de um tumor no seio e foi accumulado de honras por esse rei. E’ provável que esses médicos das cidades, que tinham por funeção 45 especial tratando indigentes, não recusassem os soccorros de su’arte ás pessoas pobres que os consultara e que elles recebiam a paga, como fazem hoje os nossos médicos de beneficencia, retribuídos pelo município. O que diz Diodoro de Sicilia (I, 1, c. L XXXII,3) do salario con- cedido pelos fundos públicos a esses médicos egypcios, cuja pratica vimos já, encadeada em um codigo therapeutico, não se deve applicar senão a uma classe restricta de médicos, a mé- dicos officiaes. pois se vêm no Egypto homens da arte se ampliar a todas as sortes de espe- cialidades escolhidas, outros se deslocar livre- mente e ir para fora mesmo do paiz, a cha- mado dos doentes. Os honorários induzem as recompensas por via testamentaria. Conhece-se este artigo do codigo penal francez que declara não validas as disposições entre vivos ou testamentarias fei- tas por doentes em favor dos médicos que os trataram no periodo da moléstia de que vieram a fallecer. Com a restricção desagradavel que termina o artigo, um medico não pode se assegurar do reconhecimento posthmo de seu cliente, que, 46 abandonado em sua ultima moléstia, o que d por vezes espinhoso, embaraçoso, porque elle não sabe sempre se a moléstia actual será a ultima, e também porque, debaixo do golpe, deste abandono, o proprio reconhecimento po- deria morrer antes do paciente. Alcimenes d atormentado por febre; seu pul- mão d como que dilacerado por espadas; uma asthma embaraça-lhe a respiração. Chega Cal- lignothe, de Cos, medico sentencioso, medico da cabeça aos pés, como dizia Molière, examina o rosto do doente, toma o pulso, consulta o Tratado sobre os dias de crise e pronuncia, por fim, a sentença: «Se a garganta deixa de ser extridente, se os pulmões não sopram mais, se a febre não embaraça mais tua respiração, não morrerás ainda da pleurisia, porque tudo isso nos presagia um restabelecimento proximo. Toma coragem; todavia, faze vir um tabellião; dispõe sabiamente dos teus bens; deixa de con- duzir, para o futuro, uma vida inquieta; e a mim, teu medico, por preço desta boa ordenança, mette-me na terça do leu 'testamento». Até os tempos modernos, de costumes diffe- entre se a complicação mais ampla dos elemen- 47 tos de civilisação, tem umas vezes excitado, outras vezes enfraquecido ou inclinado,por outras maneiras, o sentimento publico sobre as quali- dades privadas do medico, o fazem é ficar o mesmo; elle não podia mais mudar sinão a consciência humana. Bastará, para se convencer disso, transportar-se em seguida ao XVIII sé- culo e abrir Hufeland e J. Frank, que fize- ram, sobretudo o segundo, uin estudo minu- cioso do assumpto. Não é mais do que um commentario dos antigos preceitos, renovados e adaptados ao tempo e ás circumstancias; o me- dico deve ter uma compostura conveniente, e. finura dos sentidos; elle deve ser comedido, de vida regrada, amigo dos semelhantes, circums- pecto, paciente, modesto, de espirito recto, de memória firme, instruido sem dar muito tempo ás lettras, erudito sem muito conceder aos sys- temas, etc. K eis quasi textualmente o resumo pelo qual J. Frank termina seu opusculo: as qualidades que devem determinar na escolha de um medico são: a probidade, a discrepção, o amor da humanidade, a indulgência para com os outros, severidade para si, um inteiro devo- tamento pela su’arte, um zelo ardente por seus 48 progressos, costumes simples e rectos, um ca- rácter desinteressado. Independente sem altivez, o medico alliará a paciência á coragem, a firmeza a um julgamento solido; terá o raciocinio seguro e prompto e a imaginação moderada. Eis pois o resumo dos deveres públicos e pri- vados dos médicos e, accessoriamente, de certas qualidades physicas ou intellectuaes que têm sido, em todos os tempos, pregadas aos ho- mens da arte. Na categoria das questões implicando a das qualidades e deveres privados do medico, ha aqui, comportando outros pontos de vista além do da deontologia, alguns que devem ser egual- mente tratados á parte; taes são, por exemplo: a do segredo medico, que levanta questões de ap- plicação jurídica, e a dos honorários, que, to- cando de um lado á moralidade do medico, affecta também seus direitos e faz parte do problema da organização profissional. Deveres públicos do medico Aquelles dos deveres que se poderiam chamar funccionaes, porque dizem respéito a funcções 49 exercidas pelo medico, tendo sido, como acabamos de dizer, estudadas em outro logar, resta-nos somente apresentar algumas considerações geraes sobre a parte que o medico pode e deve tomar na obra progressiva da humanidade. Aqui não se pode tratar da sociologia propria- mente dita; que o homem tenha passado por numerosas transformações para a vir a ser o que é, e que os aperfeiçoamentos indefinidamente produzidos pela lucta pela existência e pela relação natural constituem um ensinamento para as gerações ulteriores, é ainda um problema cheio de obscuridades, digno todavia das medi- tações do medico; que a physiologia humana deve fornecer só a si mesma as bases de uma physiologia social; que a humanidade possa ser corrigida, elevada, uniformisada pela applicação universal de uma bôa hygiene e por uma satisfação mais completa e mais egualitaria das necessidades instructivas do homem, é uma ordem de idéas que, não podendo ser absoluta- mente falsa, recommenda-se mais ao medico do que a qualquer outro. Que, sem ir inteiramente muito longe e ficando mais ou menos na orbita um pouco vaga de Quesiiay, se estabeleça um 50 parallelo entre as leis da economia humana c as da economia social; que se criem uma physiologia, uma pathologia, uma hygiene e uma therapeutica politicas, extraidas inteiramente de um conjuncto de factos positivos e scientificamente estabeleci- dos, todo o medico deve se prestar a isro porque lm ahi uma parte de verdade. Quanto mais alguém tem occasião de fazer intervir a acção moral; tanto mais esse alguém tem os meios de fazei-a crescer; somente esses meios não differem talvez daquelles que estão á dis- posição de todos, e elle se engana quando imagina que, porque tem preso um sentimento a um orgam, estará mais apto que qualquer outro a aperfeiçoai-o. Não, os proprios instinctos, como a intelligencia, aperfeiçoam-se pela educa- ção, isto é, por um processo do qual a acção vae da funcção ao orgam, não do orgam á funcção, e se subtrae também em parte á especialidade scientifica, á excepção da mais ou menos habilidade e dos successos na applicação. Demais, feitas as contas, ella pertence ao ele- mento physico como ao elemento sommatologico ; ha uma educação de systema muscular; ha também uma do moral e do intellecto. Como 51 quer que seja, a influencia dos médicos na socie- dade não está subordinada ao valor destas especulações. Resta-lhe a iniciativa junto aos poderes públicos, aos quaes compete fazer conhecer os desiderata da hygiene, que é elle o primeiro a perceber sempre, e que elle lhes ensina a satisfazer; resta-lhe su’acção indivi- dual no circulo de suis relações e em todos os generos de interesse social, onde as instituições fazem appello a suas luzes. O medico privado pode e deve ser o braço do medico publico. Kste aconselha ás administrações, aos poderes do Rstado e lhes fornece os elementos das leis ou dos regulamentos sanitários: aquelle acon- selha aos particulares e os esclarece sobre as applicações das prescripções legaes e adminis- trativas. Quantos detalhes, além disso, escapam ás medidas officiaes; quantas eventualidades ás quaes não podem prever as disposições regula- mentares as mais precisas e as mais previdentes! Contra as influencias epidemicas, contra as causas ds insalubridade das habitações, contra certas influencias nocivas das profissões, etc. Diariamente, o medico está no caso de supprir a insufficiencia inevitável das medidas de pro- 52 phylaxia, dos regulamentos da edilídade, ou de policia medica. O medico ahi só deve esperar que se provoque seu aviso. Que a assistência aos indigentes, aos enfermos, ás crianças orphãs ou abandonadas tenha no medico um apostolo e um agente; que elle seja um inspirador e um exe- cutor das obras de caridade. Melhor que qualquer outro, elle conhecerá as misérias a suffocar; terá sido muitás vezes o seu confidente, Quantas intenções criminosas não vê elle passar por suas vistas! Quantas, mesmo, se elle é um pouco perspicaz, não advinha que se esforçam por occultar-lhe. Aborto, infanticidio, suicidio. enve- nenamento, tudo isso se trama o mais das vezes, se não deante do medico, pelo menos a seu lado; indicios, porém, algumas vezes vêm advir- til-o disso; que elle se aproveite delle para emprehender uma obra de utilidade. Nessas gra- ves circumstancias, elle ainda pode fazer mais. As confidencias que elle tiver recebido, espon- tâneas ou provocadas, ser-lhe-ão, algumas vezes, uma occasião, não somente de impedir uma acção má, porém ainda de determinar uma bôa; e essas deverão se felicitar, que terão dado por desenlace a uma gravidez illegitima, em vir de 53 um acto criminoso, uma união que salva, ás vezes, o filho da morte e a mãe da deshonra. Não insistiremos muito nos deveres do pratico nas occurrencias que são da alçada da medicina publica, porque esses comportariam pontos de vista muito numerosos, que um pequeno numero de exemplos deixam, além disso, facilmente advinhar. Eu passo pois ao estudo das quali- dades privadas que convêm ao medico. Qualidades e deveres privados do medico Deixando de lado o que ha de necessariamente banal num tal corpo de preceitos, vamos pro- curar indicar as principaes regras da conducta do medico: í? em face de si mesmo; 2? em face dos doentes; 3? em face dos collegas. Demais, certos preceitos, por mais banaes que sejam, podem motivar ainda algumas indicações uteis ao novo medico. PROCEDIMENTO DO MEDICO EM FACE DE SI PROPRIO Nesse ponto de vista ha a considerar succes- sivamente as qualidades extrínsecas, as quali- dades intellectuaes, litterarias e scientificas, finalmente as qualidade moraes. 54 Qualidades extrínsecas. — Reunimos sob este titulo o que concerne ao pliysico, á condição social e ao genero de vida. Nunca estivemos tanto de accordo com Hyppocrates sinão quando elle exprime o desejo de que o medico seja bem nutrido e de uma apparencia moderada. Esse desejo transmittimos escropulosamente a nossos confrades, permittindo-nos accrescentar que a bôa saude e a falta de obesidade são os fructos de uma vida sóbria e activa. Além disso, convém que o medico tenha os sentidos intactos. J. Frank insistia sobre a utilidade de uma bôa vista; apoiar-se-ia hoje num bom ouvido, em honra á auscultação. Um bom olfacto não seria menos a desejar, quando se pensa no cheiro de rato dos typhoides. Outros escriptores exigem do medico uma voz agradavel. Não sejamos irreverentes para com pessôa alguma, sobretudo para com o divin vleillard; não é, ainda uma vez, a titulo de deveres, que se recommendam essas honrosas disposições corporaes, mas a titulo de qualidades das quaes o cliente tem de pedir contas; e é o que diz formalmente o opusculo de Frank. O mesmo observa para a idade. Tem-se a idade que se 55 pode tér; mas o que ú certo é que, raras exce- pções ú que trazem os signaes delia nas tendências do espirito e nos hábitos. «Um amigo, escrevia Réveillé-Parise, em um folhetim, sobre os novos e os velhos médicos, me fazia exa- minar em uma assembléa poupo numerosa a quantidade de cabellos naturaes e de suas nuanças, e comprehendidos ahi os cabellos brancos ; depois a serie das falsas madeixas; a serie das cabeças calvas, a serie das azas de pombo, a serie dos chinos, e elle sustentava, não sem razão, que a serie das idéas era relativa a essas differenças». Se a idade, segundo uma expressão pitoresca do mesmo auctor, do qual Manuret se adorna num livro que tivemos de citar, se a. idade em- branquece as opiniões com os cabellos, esta, applicada á nossa profissão, é muito mais verda- deira hoje que ha 50 ânuos, porque é necessário mais actividade e’vigor intellectual para acom- panhar as evoluções tão pronuciadas, tão rapidas, tão desattentas da sciencia contemporânea, /vitnmemann fazia lembrar que o numero dos annos não é uma bôa medida da experiencia adquirida, emquanto J. Frank aconselhava ás familias de só se confiarem nos (médicos práticos) 56 de idade um pouco avançada; o que não era nada lisongeiro para os moços. No fundo, entretanto, é a opinião de Tfrank que conduziria o raciocínio para nossos dias. Resta, em medicina pratica, sob as vegetações luxu- riantes da sciencia moderna, ura velho fundo encetado, solido, sempre fecundo, da qual se affasta, de bom grado, a mocidade, mas que reivindica a idade madura. De um outro lado, não é de cançaço e da somnolencia dos velhos práticos qne se pode esperar um conhecimento profundo e uma applicação resolvida das grandes descobertas, que se succedem em physiologia, em pathologia, em therapeutioa. Donde a consequên- cia, que seria na idade mediana que o pratico viria a offerecer as maiores garantias, se elle não tivesse ao mesmo tempo que prestar tão grandes contas da capacidade individual e se não houvesse velhos aventureiros-e moços rotineiros, O porte, o garbo, que não são já de todo qua- lidades da natureza e os quaes a vontade é que adquire, são dignos de uma mui seria attenção, Os hábitos de vida que contraem os estudantes, attrahidos, muita vez, pela exigencia da moda, pelas excentricidaes ou pelas negligencias de 57 vestuário, a uma loquacidade, a cruezas de lin- guagem, de que nem todos se podem despregar ao entrarem na carreira. Outros ultrapassam a um excesso contrario e procuram a importância num grande cuidado de si proprio, substituindo a roupa, o gorro ou o chino e outr’ora, pela veste da moda e a gravata branca. Não só conhece- mos o titulo de uma obra de Triller (decimo oitavo século; sobre os odeurs do medico. Não ousamos pois nos aventurar sobre o sentido que elle dá á palavra odeurs, mas suppomos que elle zomba dos mediços mui cheios de pomadas e mui perfumados. Attendendo a isso, retemos as palavras de Iíyppocrates em % seu preceito 10 (ed. Littré): « Vous fuirez le luxe des mouchoirs de tète en vue de gagner des maladies et les parfums recherchés.» Hoje, toda a maneira de modernisar vem, em reali- dade, do archaismo. Na nossa sociedade, fechada aos prestígios de todo o genero, o verdadeiro bom tom é o da simplicidade sem descuido, da urbanide sem affectação e da gravidade sem ♦ sobr’olhos; a decencia, emfim, o decens habitus. Vimos atraz o commentario de Hippocrates sobre a decencia. Cicero nos deu uma difinição admi- 58 ravel delia. E\ diz elle, «como uma certa fiôr da virtude». E pouco mais adiante: «A decencia que se envolve nas acções e nas palavras, nota-se também nos movimentos e nas attitudes do corpo e comprehende tres coisas: a graça, a compostura dos gestos e a pose (XXXV). No meio dos successos que acabam de ser indicados está um outro, mais efficaz talvez e que deriva dos costumes contemporâneos. O amor do bem-estar tem augmentado singularmente no decurso deste século. A commodidade tem des- cido nas classes inferiores e o luxo nas classes médias. O medico visa pois o luxo; além disso tende accentuadamente por soffrer uma exigencia que pesa no mundo dos negocios; a de provocar a confiança publica para todo o conjuncto de demonstrações e de decorações exteriores que se chama o apparato. O clironista conheceu os apo- sentos deDupuytren, de Marjolin, de Lisfranc, de Fonquier, de Chomel, de Andral, de Luiz. Fram sufficientemente espaçosos, decorados convenien- temente, dispostos praticamente, relativos ern todo o ponto com o uso profissional e com ordem, Eram apartamentos judiciosos. Hoje apenas satis- fariam a práticos da classe média. De baixo ao 59 alto da escada, as habitações se augmentavam e embellezavam do mesmo modo e pelo mesmo motivo que as lojas de novidades, os açougues e as padarias. 10’ mais ou menos uma necessi- dade do tempdèfc De resto, se tratamos disso aqui não é, convém dizer, para criticar do luxo dos médicos ricos, que e para elles um direito, quasi um dever; louvamol-os, ao contrario, por desviarem o excesso de sua fortuna para a commodidade. Comiucta do medico em face dos clientes O medico novo, que entra na carreira, cheio de fé e de ardor, que só tem visto doentes nos hospitaes, onde a passividade do soffredor cor- responde á dominação necessária do chefe do serviço, acha-se, muita vez, desconcertado no meio novo, onde elle tem necessidade de certas coisa para si, tanto quanto para o doente. As disposições do espirito que elle encontra são principalmente o scepticismo, os preconceitos e certas idéas religiosas. O scepticismo, em face da arte medica, não pode morrer tanto quanto esta arte permanece, em uma forte medida conjectural. O publico 60 mn julga o conjuncto dos médicos como se vê que elle julga um medico em particular; isto é, por seus serviços. Certas moléstias se obstinam de ser curá- veis; quantidade de moléstias curáveis não se cura; isso é sufficiente para mostrar perempto- riamente ao publico que a medicina não é uma sciencia inteiramente positiva. Ao lado dos scepticos verdadeiros estão os falsos scepticos. Por desgraça ou por felicidade, nos reconhe- cem justamente, pela maior parte, em seu modo pelo mal, por suas agitações e suas inquieta- ções, quando este mal os domina. E’ um caso de diplomacia medica; é necessário lhes conservar, como se diz vulgarmente, la dragée haule, tratar ligeiramente de suas afflicções, lhes administrando os remedios que são neces- sários, fazendo que tudo brilhe em seus olhos, a variedade dos meios que se vêm dar bom exito, até que sejam levados a reclamar, isto é, até que sejam reclamados por elles pró- prios. E’ particularmente nesta classe de clien- tes que são administradas as medicações pallia- tivas que, fazendo cessar um symptoma incom - 61 modativo, marcam, pelo menos num ponto, a realidade da therapeutica. Muitos de entre nós conhecem esses dúbios obstinados que têm perpetuamente, mesmo em seus escriptos, ridicularisado a medicina e que iam consultar todos os práticos de nomeada. K’ que o scepticismo exaggerado, se não affirma nunca que uma coisa é; duvida igual- mente que ella não o seja. Mas a condição prin- cipal para exercer no scepticismo uma acção salutar, é de não o ser mesmo, como lhe foi attribuida, anteriormente, uma verdadeira obri- gação profissional. Iriamos accrescentar: ou de não o parecer; mas não: um medico que não crê na sua arte trae-se inevitavelmente. Incré- dulo ou inhabil, taes são os qualificativos, dos quaes, um, pelo menos, o espera pelo pré- mio das suas hesitações ou de sua inércia. Muitas vezes, vê-se o medico sabio desco- brindo, explicando ás pessoas exclarecidas as incertezas da arte presente; mas que elle não seja menos fervoroso em empregar tudo o que esta arte tem ainda de poderoso, todos os ser- viços que ella presta ao homem e á sociedade. Ha, é preciso notar, muito poucos médicos 62 scepticos, realmente, si por scepticismo se com- prebende a negação mesmo pela arte. O empirismo e a sciencia reunidos conspi- ram mui fortemente contra elle; mas aquillo que se sente escoar inteiramente pela duvida, deve achar, na consciência do homem de bem, a força para resistir. O cliente de preconceito é inteiramente diffe- rente do sceptico. Não é a fé que lhe falta; elle tem, ao contrario, uma confiança robusta na efficacia dos remedios; somente elle o applica sem discernimento. Idéas falsas e concentradas na natureza de tal ou qual moléstia, na acção de tal ou qual planta, na influencia de tal ou qual es- tação, 11a utilidade ou no perigo de tal ou qual pratica hygienica, o tornam surdo a todos os conselhos que não se adaptam a seu modo de pensar. Diversos preconceitos desta natureza, achare- mos enraizados com muitos outros nas classes superiores como nas classes operarias ou na dos camponezes. Muitos dentre elles não podem ser directamente combatidos sinão pela persuasão ou pela auctoridade do medico; outros podem ser transformados; 0 medico não perdendo re- 63 curso para subtrahir-se a sua influencia, mos- tra a intenção de não contrarial-os. Regras particulares de conducta não podem ser traça- das aqui; é á habilidade e ao saber que cada um deve ter para aproprial-os ás circumstancias. A reli(jião,quando se torna supersticiosa,conduz ao preconceito; o preconceito religioso tem muito mais força do que o precedente. A’ superstição nasceu, por fim, irmã da medicina, pois que toda a medicina antiga attribuia as moléstias a causas sobrenaturaes e procurara-lhes o remedio na magia. Este parentesco nunca se rompeu e o elemento religioso, em todas as épocas, interveio na cura das moléstias. A virtude curativa que se attribue hoje ao contacto das relíquias ou á ingestão de uma agua sancta, é da mesma ordem, por exemplo, daquella que se dizia dotada de magia. Vespasiano, no dia em que, após uma reve- lação de Séraps, elle curou um cego, cuspindo- lhe nos olhos e um alejado, dando-lha um socco no pé (Suétone, Vespasiano)/ Este concurso de creanças em todos os tempos e em todos os logares deve contribuir para protegel-os contra todo o mão procedimento da 64 partedo medico, qualquer que seja a religião a que este pertença. E’ antes um facto permanente da historia da humanidade Qualquer homem, mesmo catholico, pode pensar no que lhe agrada sobre crenças que não são artigos de fé; mas é obri- gado a respeitai-os rigorosamente. Quando o me- dico chegar pois a perceber, mixturado com as poções, um frasco de agua de Lourdes ; preso ao pescoço do pacienje, uma medalha de Pa- ray-le-Monial, suspenso acima do leito, um ramo de buxo (vegetal) bento, em um altar, privi- legiado, nada deve dizer, nada deixar parecer que possa semelhar uma desappaovação desses recursos trazidos á medicina. Pode bem ser que, no feliz exito da moléstia, essas praticas tenham, aos olhos da familia, a principal honra da cura; nenhum, resultado terá o medico em adherir a esta apreciação; não lhe é prohibido mesmo reivindicar o direito de su’arte; porém que o faça calmamente, amigavelmente, pondo sempre o goso do successo acima da offensa ao amor proprio. Com mais forte razão respeitareis e, em certas occasiões, auxiliareis a pôr em pra- tica os dogmas fundamentaes de uma religião qualquer. 65 Dcvotameuto, actividade. — No momento em que recebe o diploma, o novo doutor re- veste-se da pose de uma profissão que não se assemelha a nenhuma outra, ou ainda melhor, entra para uma Ordém votada aos sacrifícios e á beneficencia. E’ na humildade de candição que o dever falia com mais força. Ahi não ha dessas clien- tellas indecisas, vacillantes, onde a duvida resu- me, mais ou menos, todas as relações do doente com o medico, mas ao contrario, em um circulo estreito e sempre o mesmo, uma intimidade de relação que provoca o devotamento, que chama a mil serviços, que impõe o desinteresse. Dize- mol-o já, se o medico exerce uma profissão livre, esta encontra sua cadeia em si mesma, em seu proprio destino, que é fazer o bem, Ora, o bem não se pode vender nem medir como uma mercadoria; o bem não tem valor venal, que lhe permitta ou faculte a lei da oíferta e da procura. Deve-se effectuar por todo o preço. Abnegação. Ingratidão dos clientes. O de- votamento prodigalisado á pessoa que soffre, a fadiga, o trabalho que por elle fosse imposto ao doente, o allivdo que lhe proporciona, as pa- 66 lavras doces e consoladoras com que lhe anima o espirito, tudo isso pode ser como se não exis- tisse. Enlevado pelos primeiros successos,' encan- tado pelos primeiros testemunho de gratidão que recebe, o extreante se satisfaz em conside- rar a familia para sempre obrigada, agradecida a elle e soppõe-se inexpugnável em uma tão triumphante posição. Talvez tenha elle ainda em memória, do tempo do lyceu, a ode de Vir- gílio a seu medico Antonius Musa. Brandura, sensibilidade, caridade, benefi- cência. Ter-se delicadeza e bondade para com os doentes, deveria ser por necessidade de os consolar? E, portanto, a dureza de coração e maneiras bruscas não são muito communs entre os mé- dicos. Paciência. Se se quizesse escrever um tra- tado da paciência para uso do pratico, se a consideraria com relação á moléstia, com re- lação ao doente e com relação ao publico. A paciência do medico em presença do doente é um fructo de experiencia. Ealta ordinaria- mente no medico novo que, não conhecendo o 67 que se poderia chamar os costumes das mo- léstias, sua evolução expontânea, as variações de que são susceptiveis na sua marcha e em seu termo, a influencia que recebem da idade, do sexo, da herança, da coexistência na casa do proprio doente, não contam nunca com o tempo e se esgotam com medicações inúteis ou incom- modamente perturbadoras. Auctoridade, energia, intimidação. A pa- ciência não exclue a energia; ao contrario, pre- para-lhe uma boa entrada. Descrição. O medico que se limitar ás pres- cripções do art. 378 do codigo penal francez cumpre imperfeitamente o seu dever. Como diz justamente M. Tourdes, tratando do segredo medico a obrigação moral é aqui muito mais clara que a obrigação legal, injeita as excepções e as restricções. O codigo penal só visa as pessoas depositarias de segredo por estado ou profissão; o codigo moral reprova toda especie de indiscrição. O accesso no lar domestico a toda a hora de dia e de noite o inicio a to- das as intimidades da vida de familia, o direito implícito de pesquiza nesta vida honrosa ou não, o que pode ser util ao seu diagnostico e 68 tratamento, lhe constitue uma posição de con- fiança que jamais haveria texto que lhe pudesse discrever. Prudência. Tem sido motivo de questão em therapeutica, a proposito das qualidades intel- lectuaes do medico. A prudência de que trata- mos aqui concerne á conducta em face do doente. Consciência. Não ha, por assim dizer, qua- lidade de facultativo cujo exercicio não esteja submisso ás inspirações de uma consciência ho- nesta. Trata-se aqui de uma honestidade ap- plicada ao tratamento dos doentes ou, mais geralmente, ás relações immediatas que esse tratamento estabelece entre o doente e o me- dico, que merece precisamente ao homem da arte o nome de consciência. Desse ponto de vista decorre um certo numero de preceitos. Conducta do medico nos casos particulares Opportunidade das consultas. — Unfeland observava como muito problemático em geral a vantagem das consultas. Klle receiava a indifferença do medico, tra- tando pela medicação nova, a suspensão da sua 69 iniciativa. Estas censuras não são sem funda- mento, e é, muita vez, a maneira de agir do consultante que as justifica. Este confrade, que suppomos instruido e que a idade e uma pratica activa tornaram-no expe- rimentado, traçou para si, em face do paciente, um plano de conducta, extrahido dos hábitos de saude, dos antecedentes da causa, da existência de symptomas actualmente desapparecidos, de sua ordem de successões, etc. Moléstias chronicas incuráveis. — Com ou sem consultas, o medico tem deveres particulares a cumprir para com os doentes incuráveis. Ou estes conhecem sua situação ou a ignoram. No primeiro caso. traçamos, fallando da pru- dência, a linha de conducta a seguir e acaba- mos de accrescentar a isso um traço, a pro- posito das consultas. No segundo caso, a acção do medico pode ainda se exercer com proveito do moral. E’ ao medico, com effeito. mais que qualquer outro, que compete possuir e inculcar a outrem a força de caracter e a tranquillidade d’alma que zombam de todos os mãos trata- mentos da fortuna. Imminencia da morte; morte confirmada — 70 Km realidade, todos morrem de uma moléstia incurável; tudo chega, por caminhos diflerentes, ao termo onde o mal torna-se maia forte de que todos os recursos da arte e da natureza. Os preceitos que acabam de ser indicados acharão aqui sua applicação; é necessário sempre fortificar, consolar e animar; porém o momento impõe ao medico cartos deveres particulares. A severa linguagem do estoicismo feria com muito alarde o coração enfraquecido e o es- pirito do moribundo. Mortificava, feria, quasi sempre a familia. Pia aqui dois pontos de grande importância para o pratico: Na approximação da agonia, muitos doentes, immoveis, de olhos fechados e parecendo extra- nhos a tudo aquillo que se passa em redor delles, ouvindo as conversações. Importa consequente- mente estar prevenido contra a indiscreção quando a familia interrogal-o perto do leito do doente e recommendar-lhe que se abstenham de reflexões improductivas. Por um mesmo erro de apreciação, o medico se apressa, muita vez, de pôr fim a todo o tratamento. Pode resultar disso mui sérios in- 71 convenientes, mesmo para si. Os términos funes- tos accarretatn quasi sempre grandes surprezas aos mais experimentados; uma com a que parece definitiva se dissipa; o pulso que fugia se reani- ma; a pelle fria e viscosa se-aquece e a vida se prolonga além do termo previsto. Então, a falta de tratamento, de principio acceita pela familia, não lhe parece mais supportavel e ella começa a lastimar-se. O doente morre—Qual deve ser a conducta do medico? A principio, é de praxe que elle não assista aos funeraes, afim de não recordar, com sua presença, scenas dolorosas, sobretudo se se tivesse alguma falta a lhe censurar. Mas esta praxe está longe de ser rigorosamente seguida; é em grnnde parte subordinada ás relações extra-profissionaes do medico com a familia e mesmo uma satisfação a dar, muita vez, a esta com que se une na cerimonia fúnebre. Seja como fôr, o medico não deve hesitar em visitar a familia nos dias que segue o nojo. Uma longa ausência arrisca, sob a influencia de palestras iutimas, vir a ser definitiva. Com- municaçôes immediatas permittem corrigir falsas apreciações; permittem, finalmente, em todo o 72 caso, a um medico julgar da situação em que ficou na casa. Alienação mental. Uma questão mui grave de deontologia paira no assumpto da alienação mental. O direito recusado ao cirurgião de sub- metter a uma operação uma pessoa sã de es- pirito, que não tenha consentido, deve elle lhe conceder em presença dos alienados? Esta questão foi, em 1876, submettida á Sociedade Medico-psychologica, pelo Dr. Billod. Paixões. Parece, depois de tudo o que está escripto tendente a influencia das paixões sobre a saude, que o medico achará ahi sempre ma- téria para inspirações uteis ás necessidades de sua pratica; desenganam-se. Ha interessantes obras de Marc, Antoine Petit, Tissot. Descuret, Cerire, Reveillé-Parise sobre a medicina mo- ral; mas quando se experimenta tirar delias alguns preceitos bem definidos, além dos pre- ceitos geraes escriptos no proprio livro da con- sciência, achamo-nos como em presença do vacuo. Dentre todos estes auctores, Reveillé-Parise foi o que deu a seus estudos a forma a mais 73 pratica, seguindo a paixão nos seus effeitos ge- raes sobre o organismo, depois seus effeitos particulares sobre os humores e sobre as gran- des vísceras, cerebro, coração, figado, estô- mago; fazendo revoltar as analogias sympto- maticas da dôr physica e da dôr moral, formu- lando emfim um tratamento apropriado ás diversidades que elle acaba de estabelecer. PPOPOSIÇÕES Tres sobre cada uma das cadeiras do curso medico-cirurgico. Proposições Anatomia descriptiva I E’ a capsula Bowman que se encontra em feixe de capillares denominado glomerulo. II A ramificação do vaso afferente glotnerular é que o origina. III \ • ~ ✓ Este vaso afferente glomerular é arterial, embora se origine de capillares. Anatomia medico-cirurgica I A friabilidade do tecido hepático explica as roturas do figado, consequentes dos trauma- tismos abdominaes. II A hemorrhagia é o accidente mais grave das feridas do figado; eis porque, receiada esta complicação pelos signaes clinicos, deve*se abrir o abdómen procurar a ferida e sutural-a. 78 III O figado é a séde predileta dos kystos hyda- ticos. Histologia I A mucosa uterina modifica-se durante o pe- ríodo menstrual. II O epitelium cahe em cada menstruação, sof- frendo uma muda mensal, que corresponde á ovulação. III Esta muda é também observada nos animaes, na epoca do cio. Bacteriologia I O treponema pallidum de . Scliaudinn pode ser observado vivo nas preparações frescas, II E’ nos frottís corados que melhor podemos observar a sua estructura. 79 III Embora o deposito metallico prejudique ao estudo morphologico, é a impregnação dos cor- pos pelo nitrato de prata que revela maior nu- mero de treponemas. Anatomia e Phisiologia paíhologicas I A adipose e a iteatose tem valor pathologico differente, II Na primeira, as funcções physiologicas e chi- micas do protoplasma cellular são conservadas, embora embaraçadas nas suas manifestações. III Na segunda, o protoplasma cessa de viver e todas as suas funcções desapparecem. Physiologia I A farradisação intra-craneana do motor occular externo desvia o ollio para fóra. 80 II E}’ o recto externo o unico tnusculo iriervado ppor elle. III E)’ ura nervo essencialmente motor. Therapeutica I Dos saes solúveis de magnésio é o citrato o que tem acção mais lent^. II K’ preconisado internamente em solução gra- nulada effervescente, limonadas ou poções, na dose de 30 a 60 grammas. III Na dóse de 2 a 4 gramma, obtem-se effeito purgativo nas crianças. Medicina legal e Toxicologia I O medico perito tem grande responsabilidade. 81 II O principal papel delle é ser justo no exame medico-legal. III O seu exame deve ser minucioso e conciso, por isso attendido, in primo loco. nos tribunaes* Hyegine I O casamento é uma força valiosa para a nação. II Ha pessôas que se devem casar. III Outras porém ha para quem o casamento não se deve realisar. Pathologia cirúrgica I Chatna-se ostite a inflammaçao infectuosa de um osso, II Esta ínfecção é determinada pelos agentes 82 microbianos como sejam: os bacillos de Koch, Eberth, colibacillo, pneumococcus, staphillo e streplococcus. III A sua séde inicial e as suas lesões funda- mentaes são encontradas na zona da ossifi- cação. Operações e apparelhos I A syphilis terciaria attinge, muita vez, o ma* ximillar superior. II Desenvolvem*se, varias vezes, gommas e os teomyelites do osso. III Nesta hypothese, a intervensão cirúrgica é preferivel á therapeutica especifica. Clinaca cirúrgica, (l? cadeira) I E’ recommendado por Dieffenbach a extir- pação parcial dos angiomas da face. 83 II A operação deve ser rapida por ser abun- dante a hemorrhagia. III As injecções exagubentes feitos com uma so- lução de perchlorureto de ferro e licor de Pierrô (modificado) são recommendados pelo Pharmaceutico Anlier e Marestin. Clinica cirúrgica, (2* cadeira) I Hypospadias é um vicio de conformação que consiste n‘utna abertura congénita e anormal na parede inferior da arethra. II A sua mais frequente forma é a balamica peniano-anterior. III Corrige-se este vicio, dissecando a urethra, immobilisando-a e transportando o meato hy- pospadico para a extremi lade da Glande. 84 Pathologia medica I A variola é moléstia infectuosa, revestindo-se de duas formas principaes: ;confluente ou dis- creta. II Somente nos primeiros dias da moléstia tão encontrados os seus germens circulando no sangue. III Fixam se depois na pelle e nas viceras. Clinica Propedêutica I O reactivo de Boureau precepita as albuminas verdadeiras. II A albumina do periodo secundário de cyplii* lis é geralmente mais abundante do que a ter- ciária. III A albuminúria pode faltar nas nepliro-syphi- e do tercianismo. 85 Clinica medica, (1* cadeira) I A superalimentação é prejudicial no trata- mento da tuberculose. II Ella dá lugar á formação de ptomainas que intoxicam o organismo ao envez de fortifical-o. III A immobilisação do thorax é um bom meio auxiliar no tratamento dessa moléstia; deve sempre ser preferido pelos resultados beneficos que pode curar. Clinica medica, (2* cadeira) I O paludismo é produzido por um parasita denominado plasmodium tnalarie ou liemato- zoario de Laveran. II A vida desse parasita tem duas phases: uma assexuada no sangue humano, cutra assexuada no estomago dos anopheles. 86 III A prophylaxia do paludismo reside na dis- truição dos culicidios e no impedimento de sua acção transmissora. Historia nataral medica I Os insectos respiram por meio de pequenos tubos cylindricos chamados trachéas. II As trachéas se communicam com o ar exte- rior pelos stigmas collocados nas partes lateraes do corpo. III As trachéas fazem igualmente parte do appa- relho circulatório. Matéria medica, Pharmacologia e Arte de formular I Os pós simples ou formados de uma só substancia em estado de pulverisação são geral- mente offiicinalis. II Entretanto, os pós compostos não só são 87 constituidos por muitos productqs pulverisados, como também são quasi todos magistraes, III Os pós simples podem ser de origem animal, vegetal ou mineral. Chimica medica I O citrato de magnésio é um pó crystallino, branco, insipido, facilmente acidulado, solúvel n’agua fervendo. II Submettendo-se sua solução á ebolição turva- se, deixando deposito de citrato básico, amorpho. III Geralmente obtem-se o citrato de magnésio pela acção da solução acquosa do acido citrico sobre o carbonato de magnésio. Obstétrica I K’ incontestável a influencia da syphilis so- bre a prenhez. 88 TI Esta influencia é dependente do periodo e do tratamento da syphilis. III O aborto e o parto prematuro são as termi- nações frequentes da prenhez em mulher syphi- litica. Clinica obstétrica e gynecologica I A versão é uma operação que tem por fim modificar a apresentação do féto II Esta alteração fétal pode ser feita por ma- nobras, externas, internas ou das duas combi- nadas. III A versão quando feita com pericia e oppor- tunidade é uma magnifica operação. Clinica pediátrica I A As creanças adquirem a syphilis pela ama- mentação ou por hereditariedade, 89 II Dahi o cuidado que se deve ter com o alei- tamento. III A syphilis hereditária pode se manifestar precoce ou tardiamente. Clinica ophtalmologica I A verdadeira choréa do olho é o nystagmus. II A distancia distincta é para uma vista sã, ordinariament de 25 a 30 centimetros. III A faculdade de accommodação da vista falta nes myopes e nos presbytos. Clinica dermathologica e sypliiligrapiiica I A gomma é a unica lesão pathognomonica do rim. II Km consequência do seu ámollecimento e reabsorpçãô' resulta a formação de nm tecido cicatricial vulgar. 90 III De todas as nephrites chronicas, a da etio- iogia syphilitica é a unica talvez susceptivel de cura. Clinica psyciiiatrica e de moléstias nervosas I A hereditariedad é, sem duvida, a causa rnais poderosa e mais importante das da loucura. II A irregularidade da solidão, o celibato em summa, favorece o desequilibrio mental. III As estatísticas demonstram que a alienação mental é mais commum nos homens. Visto. Secretaria da Faculdade de Medicina da Bahia, em 30 de Outubro de 1911 O Secretario. Dr. Menandro dos Reis Meirelles.