MANOEL JACOCES JOLIIIIAN, Com officina de encadernação á rua do Corpo Santo n. 80.—BAHIA. Enearrcga-sc dequaesquer cncommen- das relativas à sua arte, apromptando-as com muito gosto e brevidade, como sejâo livros para as repartições publicas, ditos para as casas de commercio pautados ou riscados conforme o modelo que for apre- sentado. / < . , Ct IMPRESSÕES Dl EPIDEMIA. DA EPIDEMIA POR \ ATO AIO DA CRIJX CORDEIRO - NATURAL DA PARAHYBA DO NORTE, E ESTUDANTE DO 6. ANNO DA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA. Miscris succurerc disco. (Virgílio.) BA1IIA TYP. DE CAMILLO DE LELLIS MASSON & C. Largo de Santa Barbara n. 2. 1850 V SAUDOSA MEMÓRIA HE SEII VENERANDO PA! O SENHOR 3aiTo ím Qmt? Coríieirn CONSAGRA O ittUior. INrRODUCÇÍO. Para que me apresente hoje diante de um pu- blico illustrado com foros de—author—hei de mister fazer uma confissão ingénua ácerca d’estc meu trabalho, e de seu desenvolvimento; c tanto mais convencido estou de que devo pagar esse tributo, quanto maior é o meu acanhamento, por isso que nenhuma outra confiança tenho, se não a do pouco que valho. Carecendo de cumprir com esta missão, ainda mais para satisfazer aos curiosos e críticos, que julgam» indispensável este cavaco nas primeiras VIII paginas de todo o livro, eu de boa mente me sub- metto á essas regras antiquarias d’arte, afim de que não lhes caia em desagrado, antes mesmo de me o haverem lido. Ahi vão, pois, algumas linhas, que julguei convenientes; chamem-n’as—prologo. prefacio, ou como bem entenderem. Os grandes movimentos, em geral, deixam sempre após si uma esteira de luz sobre a estra- da do progresso, que, rcflcctindo sobre as scien- cias e as letras, converge para um ponto unico e universal;—o caminho pelo qual a humanidade ha de chegar um dia ao aperfeiçoamento que lhe está reservado no futuro. Assim, pois, essa cen- telha de luz, que resulta do choque de potências heterogeneas e incomprehensiveis , impcllidas muita vez pelas mysteriosas mãos da fatalidade sobre qualquer paiz, é a própria que illumina o grande painel da vida humana, para que o seu povo indague as verdades ate no fundo dos mys- terios, e veja no meio dos horrores c do contraste das situações a sublimidade dos diversos senti- mentos, de que é elle capaz, influenciados pela grandeza de um poder infinito, que nos ensina a amar e a padecer. Acabamos de atravessar uma época critica c fecunda de acontecimentos, vendo máu grado nosso submergirem-se muitos de nossos irmãos no meio do seu cataclysma tremendo. Cumpre- IX nos agora, que estamos salvos, a obrigação de levarmos ao futuro esta nota triste, unindo-a as paginas risonhas e gloriosas de nossa historia. Eu quizera dispor de uma linguagem Lamartinia- na, ajudado das imagens vivas e dilacerantes de Shakspeare, para offerecer-lhe uma copia ex- pressiva dos quadros originaes, que tivemos de- baixo dos olhos n’essa crise: mas infelizmente assim não succede, para que não me caiba essa gloria. Apenas posso reproduzir aqui, sem essa bella linguagem, sem essas imagens, traços ver- dadeiros, se bem que toscos. Ed’esse pouco me orgulho, porque nem os con- temporâneos, nem os nossos successores, que por ventura tenham de lèr este livro, encontrarão desfigurada a verdade, ou por maiicia, ou pelos elementos mesquinhos de que se servem muitos, que tentam debalde lisongear, ou deprimir a ori- ginalidade das épocas, arrastados cegamente pe- las conveniências individuaes, como se vê em numerosas memórias, que se acham em cada uma das épocas da historia de muitos paizes. Que numero d’ellas não tem a França ainda mesmo sobre os menores acontecimentos do sé- culo passado? E vós bem sabeis que o maior numero d’ellas, divergindo entre si, respiram causticidades venenosas , conforme as cores políticas d aquelles que as produziram; e muita vez vamos deparar com a veracidade dos X faetosem outras obras, que tratando francamen- te dos acontecimentos nem por isso se incumbem dc os historiar. Ê assim que as Correspondências ou Memórias dc M.me Duffant merecem menos este titulo que as cartas de M.me de Sévigné; é as- sim lambem que os luminosos escriptos de Saint- Simon, c até mesmo os de Duelos sobre a regên- cia, sãomais judiciosos, e merecem mais confian- ça que as Memórias de Richelieu, que não são mais que apocryphos na phrase dc Noel e dc La Place. Ainda bem que a critica moderna vai tomando o caracter verdadeiro, que lhe compete no meio do vasto campo da litteratura; e para assim o fa- zer ergue-se ella sobre as individualidades e mesquinhezas, desprésa a esterilidade dos argu- mentos, e procura explicar os factos, generalisar as idéas, que acompanham sempre o progresso do espirito, até, chegando ao conhecimento da verdade, poder exclamar—scribitur non solum ad narrandum, sed ad probandum, E a esse ponto tem chegado o espirito do século XIX, o qual em vez de acanhar-se na investigação de futilidades, c perante a exposição grosseira dos factos c dos acontecimentos, procu- ra alimentar-se na philosophia das idéas, no ca- racter da situação, na grandeza dos sentimentos para assenhorear-se do vasto campo de sua e$- phera. Ei? porque 1140 devemos duvidar de nós , XI quando seguimos as sabias lições de Lammenai?. quando adherimos as idéas progressistas de Eu genio Pelletan, expendidas em sua—Profissão d Fé, se são estas obras a expressão do nosso esta- do de civilisação, e de progresso. Basta de divagações; limitar-me-hei a tocar agora no que vol-o prometti, para dar-vos umt idéa mais frisante do que ides lêr. Ninguém terá por certo esquecido as scenas dolorosas, que se deram emquasi todos os pontos d’esta Província nos fins do anno passado, quan- do o cholera-morbus atacava promiscuamente todas as classes de seus habitantes. Por estes ao menos eu serei melhor comprehendido. Longe dos meus e da minha Província natal, abandonado aos únicos recursos de um estudan- te, isolado por entre o grande movimento que fazia succumbir este povo affiicto e soffredor, eu senti profundamente com elle as mais dolorosas emoções, as mais penosas saudades; e muitas ve zes enlevado e absorto no meio de tantos myste- rios senti-me arrastado pela voz piedosa da hu- manidade ao vasto campo da meditação; então o enthusiasmo, que é o aroma do sentimento na phrasc de Eugênio Pelletan, me arrebatava para confirmar a brilhante idéa que elle escrevera em seu livro de ouro — A’ chaque fremissement de ta fibre... á chaque extasc, à chaque explosion de ta lyre interieure tu toucheras Dieu de plus XII près, tu respireras dc plus près, tu sentiras de plus près á la face son soufflé de immortalité.— E como cra eu feliz n’esse momento por poder adormecer assim a cabeça, e mitigar as tristezas, que me confrangiam o peito, sob os influxos de uma contricção religiosa 1 É este livro, pois, o resultado de algumas fo- lhas cscriptas n’essas horas de saudades, em que os trabalhos da profissão que exercia me deixa- vam livre o pensamento. A’s noites, quasi sempre, quando me recolhia á casa, ou quando vigiava no posto sanitario em que servia de ajudante, c que eu tomava a tarefa de traçar as minhas pobres reflexões sobre os apontamentos, que houvera tomado durante o dia. E bem longe estava eu de pensar, que as ve- ria boje impressas n’este volume. Ainda assim elle deve ter muita imperfeição, bem o sei; porque, para bem escrever, diz Buf- fon, é necessário bem pensar, bem sentir e bem reproduzir; é ter ao mesmo tempo espirito, alma e gosto. E quanto estou longe de tudo isso para pretender essa gloria? Não espereis encontrar, pois, uma serie rigo- rosa de todos os acontecimentos, peças officiaes, questões administrativas, estatísticas, e todas as minuciosidadcs que deveríeis encontrar, se fosse esta obra—a Historia da Epidemia; e muito me- nos ainda será uma Memória, que demonstre XIII scienlificamentc o caracter da moleslia com as questões medicas adjacentes, não ! Será tudo is- so feito a seu tempo, por pessoas competente- mente habilitadas. A escolha de um titulo, que bem abranja a natureza do assumpto de qualquer obra, deverá ser sempre preferida por todo o escriptor, mas infelizmenle é esse trabalho muitas vezes difíicil, e quasi sempre impossível. D’ahi nasce ordina- riamente a nimia importância que dão muitos escriptores a uma tal investigação, que além de inútil torna-se as vezes bem caprichosa, dando logar á incohercncias, e até á abusos ridículos. Mas não façamos d’islo questão—ahi tendes o meu pobre livrinho baptisado com o titulo de — Impressões «ln Epidemia—se clle vos não agradar, sede indulgentes, e deixai-o passar, por que além do direito que me assiste de dar-lhe, como pai, um nome, tive cm vista procurar aquel- Ic que mais o exprimisse, e nenhum outro tem tanta relação com a causa que o originou. E vós, mocidade académica, acolhei-o, mas não vos anticipeis em reprovar o que não hou- verdes bem lido, c bem meditado, como outros muitos que se dizem sábios e provectos; vós mi- litastes comigo nas mesmas fdeiras, provamos junctos os mesmos dissabores—pela sancta cau- sa da humanidade; e porque não tenha adqui- rido um nome distincto entre vós, não deixeis XIV dc ouvir, c fazer justiça ao brado do soldado desconhecido. E eu serei satisfeito; porque se não encontrardes o bello desenvolvimento que cu deveria ter dado ao assumpto, o que é devido a falta de dotes intellectuaes, ao menos sentireis aqui a verdade combinada com os mais puros sentimentos, que me vibraram as fibras intimas do coração. Bahia 21 dc Abril dc 1856. (£ ot?cito. IMPRESSÕES DA EPIDEMIA. LIVRO PRIMEIRO. Homem, ente immortal, que és tu perante A face do Senhor? Es a junça do brejo, harpa quebrada Nas mãos do trovador! A. Hercclajío. I. A Bahia, como nunca, sorria-se aos praze- res, ha dous mezes passados. (*) Corriam os dias alegres e cheios de distracçêes para a sua população então feliz. Mas esses prazeres, risos e felicidades, que assim nos embalavam em um mundo todo de (*) Foi no principio do mez de setembro que princi- piamos a escrever estas tinhas. 1 2 encantos e da mais perfeita harmonia, mal o sabiamos nós, annunciavam, semelhantes ao clarão que precede ao raio, grande e horrivel desgraça!... Rapidas mudanças athmosphericas se de- ram; e um principio maléfico, cuja natureza ignoramos, espalhou-se por toda esta linda cu- pula de anil, mudando o tenue véu que nos en- volvia em sombrio e mysterioso sudário. Trocaram-se folgares e risos d’esta pobre província por dòrcs e pranto; trocaram-se os seus mágicos ademans, as suas mais bellas e engraçadas flores por uma longa serie de sau- dades, que brotam tristeza por toda parte!... E nem podia deixar de ser assim, se, desde então, ella geme esmagada sob o pezo enorme do genio das ruinas—ocholera-morbus. Este gigante assolador , atravessando os vastos territórios da Asia e da Europa, che- gou por fim a penetrar nesta parte ainda in- tacta da America, que, vaidosa, julgava-se refractaria aos seus pestíferos bafejos. E pousou sobre a extrema do norte, essa 3 soberba região, invejada das grandes nações do mundo. Ainda não contente com a destrui- ção que ahi fizera passa por sobre os despo- jos de suas victimas, escarnece dos agonisan- tes, sorri do infortúnio e das lagrimas, ergue- se sobre as esbeltas palmeiras, costeia os al- vos comoros, lança o vôo de abutre esfaimado para o sul, atravessa campos e cidades inter- médias, paira sobre esta terra de Sancta Cruz, e derrama o veneno fatal sobre os seus habi- tantes. II. Ei-la, a tempestade que condensa os seus electricos elementos por sobre nossas cabeças! Ei-la que arrasta as suas negras azas por esta infeliz e malfadada terra! Ei-la, e ja impetuo- samente rojando-nos sobre o escuro fòsso da morte!... Ei-lo, o inimigo invisível, e por isso mes- mo o mais terrível, o mais encarniçado, que hoje lucta á braços com a infeliz população da 4 Bahia, deixando a cada golpe rolar sob o seu duro culelo de morte—milhares de victimas innocentes!... E suas familias?! Ah! suas famílias en- voltas no crepe de andrajosa miséria clamarão, e carpirão debalde com lagrimas de sangue. Tudo respira tristeza; os dias conservam-se sombrios e feios; as noites enluctadas e húmi- das!... Parece que a justiça dos céos se cons- pira contra os crimes da terra; e ja assim o traduz o povo que é sempre o propheta dos séculos. E este povo, inspirado por uma luz divina que lhe esclarece a mente, vôa rápido ao vestíbulo dos templos, cujas portas se abrem com doçura de terna hospitalidade para receberem em seu seio os filhos queridos, que se refugiam aos pés de Deos. Oh! quanto é grande o Rei das tempestades, Do raio, e do trovão ! Quão grande o Deosquc manda, em secco estio,. Da tarde a viração ! (*) (*) É do Sr. A. Herculano—Harpa do Crente. 5 Os dias e as noites ja nâo se passam no ocio, nem nos trabalhos da vida, sem que uma lembrança horrível nos acompanhe o pensa- mento, e sem que o pensamento nos arroje em um cabos de não vista tristeza! Oproprio horisontc para onde vôamtodas as nossas esperanças, ainda aquellas mais duvi- dosas; o horisonte que n’esle pequeno ponto do globo sempre se nos tem mostrado o mais risonho do mundo, quer no levante da manhã, quer no sumir da tarde, ei-lo agora despido de suas purpúreas galas, e sempre envolto em uma aureola de sangue, mijo circulo se perde em húmidos e sulfureos vapores. E o cholera, essegenio maligno passeia so- bre ruinas; e prosegue em seu caminho de sangue. III. Terror pânico se espalha entre o povo, e es- te scnte-o ja condensado no coração, porque pressente em cada canto—uma mortalha. 6 Silencio profundo reina por toda a cidade, interrompido á instantes por esse rodar áspero e medonho dos carros fúnebres, que conduzem os restos mortaes dos pobres martyrisados no duro enxergão dos hospitaes para o frio chão de um cemiterio. Lá sc ouve também o mono- tono tanger dos sinos, lançando nos espaços es- ses echos lugubres como o gemer dos finados: melhor seria que se conservassem mudos para não despertarem saudades em corações ja ul- cerados; para não impacientarem os moribun- dos, cujo alento se extingue; porque esses sons lhes repercutirão n’alma. (*) E sensível vêr-se hoje o caracter d’este po- vo, tão sombrio e carregado, quanto era ou- trora risonho e jovial. Elle traz a fronte aba- tida e triste como a do condemnado, que ja no patíbulo aguarda o golpe da sentença fatal. As ruas ja não tremem continuadamente debaixo das rodas de pomposos carros, nem (*) Escrevíamos esle paragrapbo quando nos veio sôar aos ouvidos um dobre de sino. Advertimos porém, que dias depois foram estes dobres prohibidos. 7 sob os pés de fogosos cavados, que vòam aos caprichos da vaidade humana para o centro dos prazeres, nãoí Ricos e pobres, velhos e môços, caminham com um passo incerto, como que apalpando o terreno mais ou menos falso que os liade absorver. E quem são esses, que mais apressados caminham atravessando as ruas, c para osquaes os caminhantes olham com respeito, e admiração? Ah! missão honrosa e sublime daquelles, que, no meio das desgraças, a custa de altos sacrifícios, sorriem com doçura aos infelizes para trazerem ao seio das famílias allivios e consolações. Sim, estes são os homens da arte, são os ti lhos do velho de Cós, que não poupam suas debeis forças para soccorrerem a humani- dade afflicta; embora zombe de seus esforços e de sua razão—o carniceiro inimigo,—ex- pondo-os ao juizo critico, mas estúpido da ig- norância. (*) É sempre o medico o nome dôce (*) A ailusão é lançada á aquelles que então injusta e mordazmente criticavam dos médicos c estudantes, ou por desafleições particulares, ou por sustentarem estes cavalleirosamcnte o seu caracter. 8 e suave, que roça os ouvidos do enfermo, ain- da o mais sceplico, quer ancêe sobre o duro leilo de rigorosa miséria, quer sobre macias côlchasde orgulhosa opulência. Mas não, agora não ha dislineção de clas- ses; porque todos se acham sorprendidos por uma única força que os domina; porque lodos têem o mesmo pensamento, o morrem pela mes- ma causa. É esta uma lei natural, diante da qual o ho- mem para na carreira de seus desvios para voltar sobre o reclo caminho de sua consciên- cia. E por isso cremos, e cremos profundamen- te, que a expressão triste e sombria, que ea- racterisa anormalmente os habitantes d'esta província, é uma verdadeira manifestação de seus sentimentos de suas agonias. Em condi- ções taes parece impossível que, o fingimento, a hypocrisia, tenham pousada na face de al- guém, a menos que não seja o proprio envia- do da destruição. E n’esle estado lastimoso nos achamos espe- rando fervorosamente pela misericórdia Divina. 9 IV. Áinda isso não é tudo! continuemos : A desgraça, esqualida e negra, imprimiu com a sua pesada mão de ferro caracteres in- deleveis, e mais medonhos ainda, sobre o co- ração da Cachoeira, d’essa cidade outr’ora in- vencível e heroica na defeza dos seus brios. Lá se achou, coiladinha, desamparada aos rigores da tempestade, qual plantinha isolada sobre o cume pedregoso da montanha, que verga sob o açoite do furacão, e mirra aos ar- dores do estio. Lá a envolveu de um mortuário véo esse ílagello tão desabrido, tão singular que tem visto o mundo. Sim: horrível e formidável vai desenvolven- do o cholera sobre este litoral lavores negros, que reflectirão para sempre nas negras pagi- nas da nossa historia; e cujos caracteres, atra- vessando os séculos, impressionarão a mente das gerações vindouras; e estas se lembrarão com pasmo de tão infeliz era, cuja memória 10 lhes fará verter amargo pranto de dôr e de saudades. Não são contos de fadas o que aqui descre- vemos, não; são factos, e factos infelizmente bem verdadeiros, observados por todos, e re- gistrados nas secretarias, os quaes dormem hoje o somno da indifferença para erguerem- se no futuro como espectros do passado, apon- tando ou lembrando com as ósseas phalan- ges das mirradas mãos quaes os atalhos que se devem seguir para salvação da humanida- de, e poupar ao mundo tão escandalosa his- toria. Ei-lo, o povo da Cachoeira, que para aqui emigra; ei-lo, que desembarca, porque é esta capital ainda assim mais feliz que a pobresinha de sua irmã! Emigração funesta; cujo resultado é sempre triste nos annaes da cxperiencia. Todos os dias chegam de lá esses pequenos vapores pejados de povo que desvairado procura um terreno mais firme; ai de alguns pobres e loucos sem familias, sem fortuna, 11 porque as suas famílias e conjunctamenle as suas fortunas entranharam-sc pela terra fria, como que impellidas pelos clectricos elemen- tos de um formidável raio. E triste e bem doloroso o especlaculo que nos oílerecem as pessoas que assim desembar- cam; esse desalinho, e ao mesmo tempo essa avidez com que fogem espavoridas da desgraça bem nos attestam as dôres profundíssimas que laceram-lhes o coração. Vêde!... Quem são aqucllas duas meninas, ja no albôr de sua juventude, que caminham sobre o caes?!... Quem são ellas, que voltam sobre os mesmos passos; que com os olhos in- quietos e espantados parecem procurar al- gum novo caminho, alguma cousa, alguém cmfim?!... Ai d’ellas... São duas victimassacrificadas aos caprichos inexoráveis do cholera! São duas orfanzinhas, que, perdendo os bens mais apre- ciáveis de sua vida, foram innocentinhas arre- messadas por entre a multidão dos emigrados sobre praias desconhecidas. 12 Ei-las, quaes dons botões de flòrcs—que ao desabrochar cahiram sobre a própria foice que as separou do tronco. E daqui a pouco, quem sabe? Talvez desfolhados sobre um char- co immundo.... Vêde-as, como são bellas assim com os lin- dos olhos intumecidos e húmidos,—com as fa- ces rubras de pêjo, com os lábios cerrados e contrahidos, com os cabellos e vestes em des- linho, com um caminhar incerto e vacilante!... Vêde-as; alli param como que espantadas ead- ' miradas de si, como que duvidando da própria realidade como dos seus meigos sonhos de virgem, que vaporosos se apagavam ao alvo- recer da manhã; mas então eram felizes, por que ao despertar trocavam-os pelos risos e bên- çãos de um pai, e pelo sancto abraço da cari- nhosa mãi; e agora? — Agora o sonho da desgraça é terrivel, porque persiste! E quando se extinguirá?— Talvez no tumulo.... Eis o que acabamos de presenciar no meio d’ossa onda de povo, que fremente se derrama 13 pelas ruas d’esla cidade. E a esperança de salvação, que o guia, ainda maiores desgra- ças nos prognostica. V. Abandonada!... Abandonada a formosa filha do Paraguassú, que ainda a pouco sor- ria-se feiticeira aos encantos, e adormecia des- cuidosa embalada pelo sonoro e cadente mur- múrio do extremoso pai!... Abandonada de seus queridos filhos como a arvore sêcca despida de suas folhas; ou por- que arrebatou-as o furacão da tempestade; ou porque interceptou-lhe a seve o ninho de ve- nenosa serpente! Abandonada, emllrn, por aquelles, que po- dendo salval-a, concorreram para asua queda; sem se lembrarem elles, que o dever e a hon- ra ahi os detinha até erguerem o pendão da victoria; ou vergarem com dignidade sob a foice do tremendo segadôr, e sobre a mesma campa. 14 Assim procede o digno e verdadeiro piloto, ainda mesmo que a cerração e o medo lhe pro- porcionem a fuga—clle—só agarra-se á taboa dos destroços, quando esta a ninguém ma is' póde ser ulil. A Cachoeira, cidade populosa, ecommer- ciante acliva, agora tão maldicta como a mys- teriosa gruta de Walderhog, olha agonisante para os seus despojos de uma maneira tão to- cante, que arrancaria lagrimas do estrangeiro ainda o mais endurecido, que indifTercnte ou- sasse estudar sobre as suas ruinas. Km poucos dias ella oíTerecer-lhe-hiaannos de meditação. E quem deixaria de se commover em pre- sença de tal espectaculo?! Nada mais triste e repulsivo do que encon- trar-se pelas ruas cadaveres insepultos e dis- formes; eadaveres encerrados no interior das casas, e ja em decomposição pútrida; porque as próprias mãos, que cheias de vida fecha- ram-as á noite para descansarem das fadigas do dia, ja frias c inanimadas não as poderam abrir ao alvorecer da manhã! Oh! isso é tão 15 horrível que nos abala até a ultima e mais re- côndita fibra d’alma. Pais e filhos, maridos e mulheres loucos, se repellem horrorisados do mal, que tudo faz tombar sobre as próprias bases; mas a força dominante da infecção osaltrahe sobre o mes- mo espaço e ao mesmo tempo; e ai d’elles que fulminados rojam sobre o mesmo tumulo!... h quem ousará impedir que o vulcão arre- bente, quando o terreno que o nutre lhe oflere- ce condições indispensáveis a sua existência; quando esse terreno comprimido reage sobre o espaço pela força immensa do calor que o pe- netra e lhe dilata as entranhas? Quem ousará apagar-lhe a afogueada cratéra, quando esta encadescente vomita em catadupas columnas de fogo, cercadas de ennovelado fumo, que do- minam os espaços?... —Deos!... sim, e só Deos!... A’ elle elevemos as nossas humildes vozes, as nossas supplicas; elevemos, ócachoeiranos, os nossos hymnos e louvores; porque só o in- linito poder de Deos seria capaz de amainar a 16 rigida tempestade, que cahira sobre a cidade da Cachoeira. O inimigo quizera reduzil-a ao nada porque— Fumo e fogo respira quando irado:— Porém se Dcos mandou, Qual do norte impcilida a nuvem passa Assim elle passou ! (*) Ainda se ouvem ao longe da cidade os úl- timos rumores da trovoada , que parecerá àquelle povo serem ainda os últimos ais dos moribundos. Mas apagar-se-hão em breve, se a nossa contricção for verdadeira. Esse Deos misericordioso, assim como ouviu as nossas suppHcas, nos enxugará o pranto. VI Agora cumpre-nos dizer duas palavras em favor daquelles, que caminharam conv pé firme para o seio da Cachoeira, quando de lá fugiam (*) A. Hereuluno—A Harpa Jo Crente, pag. SG c ST. 17 os seus filhos, os seus habitantes; quando essa cidade pendia sobre os seus alicerces ameaçan- do minas. Queremos fallar, como ja o tereis por cerlo advinhado, d'esses moços, que, bebendo lições de humanidade no positivismo da verdadeira sciencia a que se dedicam, ergueram-se como pa*rioticos soldados no campo da sanguinolen- ta batalha. Fiéis á sua divisa, honraram a san- eia bandeira que os symbolisa, por isso que desempenharam com gloria, zelo, e humanida- de a praclica da alta missão, que Deos nos concede sobre a terra: embora tenhamos de lamentar alguns d’estes, cujas forças se que- braram de encontro á barreira ingente da morte. Ja que os não podemos elogiar como o sen- timos dentro d’alma, limitar-nos-hemos ao que nos corre como um tributo dizêl-o; por isso que foi, e é incontestavelmente da parte dos meus collegas a maior dedicação. Honra a lodos quantos se empenharam com prestígios, bens de fortuna, forças e braços 18 pela saneia causa de Ião humana fraternidade, Honra aos académicos desinteressados e li- vres, que, pelo unico sentimento de humani- dade, desprezaram o aborrido descanso do in- diííerentismo para luctarom contra gigantescos obstáculos erguidos e íluctuantes entre o povo, como para o fazerem provar das misérias do mundo. Honra ao paiz, que os viu nascer, e que taes filhos possuo para entregar-lhes algum dia com a maior confiança e certeza os insondáveis myslerios do futuro. Todos, (ou maior numero d’elles) longe de seus lisongeiros interesses, e bem longe de suas carinhosas famílias, intrépidos e com mo- vidos pelos irmãos, nem vacillaram em aceitar as commissões difficeis, que pouco generosa- mente lhes oflerecia o governo. Voaram rápi- dos ao embarque, coitadinhos, lançando os olhos húmidos para os céos em signal de quem busca o ponto onde brilha uma unica espe- rança. Oh! se os visseis n’essa hora saudosa do 19 apartamento, n’essa hora do embarque, quan- do milhares de pensamentos juvenis lhes cho- cavam a mente; quando pungentes saudades lhes martyrisavam o coração!... Oh! se os vísseis, diríeis, que eram inspirados pelo Se- nhor, c tocados pela sua divina graça. Alguns d’entre estes, que, n’es?a hora de saudosa des- pedida, nem um seio materno, nem uma bên- ção, nem um abraço de irmã, nem um lenço tiveram que lhes enchugasse as lagrimas, dei- xaram vôar sobre as azasda briza, que se des- Ijsava mensageira sobre a superfície dos ma- res, um prolongado suspiro como o adeos da despedida. E esse prolongado suspiro, e esse adeos de despedida foram enviados por elles pousar a centenares de milhas distantes sobre os seus queridos c saudosos ninhos.—Lição sublime! — Honra também á esses anjos de caridade que os acompanharam, robustecendo a fragili- dade que lhes é própria com a pureza de seus sentimentos nobres e de seu verdadeiro amor. Virtuosas e pobres mulheres, que,—louvo- 20 res lhes sejam dados,—rasgaram o véo em- prestado, que lhes occultava a belleza, para lançarem-se compassivas c dóceis no mundo de seus anhelos, podendo assim cumprir a sua angélica missão, a sua verdadeira crença, a caridade em dm. t IB. Ja deveis saber como hiclaram com esmero e resignação esses desvelados moços na cidade da Cachoeira; lnclaram, eluctaram muito, não só contra o terrível mal epidemico, mas tam- bém contra as suas terríveis consequências, necessidades e falta de meios de subsistência; hirtaram emfim contra a desordem do povo, motivada por aquelles que o deveriam conciliar, garantir e animar em tão fatal e horrorosa crise. Onereis ajuizar melhor de seus pezados tra- balhos;—quereis admirar a coragem e dedi- cação com que se lançaram no meio da desor- dem e confusão do povo, desde o momento que 21 lá aportaram; poupar-nos-heis o trabalho de contar-vol-o; lançai as vistas sobre as ultimas paginas deste volume, ahi achareis impressa uma carta, ou antes um relatorio dirigido por elles parlicularmente ao nosso digno mestre o Sr. Dr. Salustiano Ferreira Souto, o qual nos concedeu publical-o. Sim : luctaram muito, e a maior prova é, que alguns destes, sendo marlyres de sua cons- tância e de seus desvelos, succumbiram ao pezo de fatigantes trabalhos, superiores ás suas forças. Morreram, mas deixaram, nesse ulti- mo alento da vida, gravadas em nossos cora- ções, saudades eternas, saudades profundas aos seus irmãos e companheiros. E com que pezar e dolorosos sentimentos não deixaram lambem elles suas famílias, que lisongeiramenle depositavam em taes filhos o futuro e a vida? Amarguradas e inconsoláveis ahi deploram a sua negra sina. O seu esperar conlinuo entre ancias e susto terminou com a certeza de que 22 elles mergulharam-se para sempre no revolto oceano da morte. Mas não: ainda no meio d’esse horisonte enncgrecido, que lhes deixou a morte, um raio de luz beneíica brilhará para communicar-lhes ao coração a saneia causa de tão grande sacrifício, para lhes amenisar o acerbo pungir d’alma. Deos receberá em sua bemaventurança as suas almas assim purificadas nos seus proprios sacrifícios; tile velará também sobre essas famílias aftliclas, que sofirem por amor da hu- manidade. Enós, irmãos e companheiros, depositamos hoje sobre as campas, que nos separam para sempre, uma lagrima de saudosa memória e de reconhecimento eterno ¥181. E não para ahi o hediondo quadro que nos propozemos a copiar; mal lemos levantado a ponta do seu mysterioso e enluclado véo; e ja o seu negrume nos embacia o coração! 23 0 cholera, o incansável vagabundo cami- nha, e caminha sempre com passos capricho- sos, ora demorados, ora rápidos, transforman- do qualquer cidade ou aldeia, ainda as mais saudaveis e florescentes, em minas e cemi- térios ! Insondáveis myslerios, oh! meu Deos! Parece que o gigante domina a terra, o mar e o espaço; porque a um só tempo lança o seu terrível germen de extermínio por sobre essas pequenas cidades, villas e povoações, como outr’ora o fizera pelas—grandes capitaes do mundo. E assim vai impetuosamente rouban- do-nos a felicidade, o socego e a vida, simi- lhante á estrepitosa correnteza de caudaloso rio, que, reforçada pelas aguas de uma abun- dante cheia, vai devastando as searas e as fio- rinhas de risonhos campos. Vède esses pequenos barcos e vapores, ou- tr’ora tão inftinados e garbosos que navega- vam pelos diversos braços de rios, que como outras tantas veias, circulam o magesloso seio dVsta pittoresca província. Encarai-os, e vê- 24 de o aspecto sinistrí) que agora apresentam. Oulr’ora esses pequenos vasos á porfia zom- bando dos aguaceiros da tempestade, e ador- mecendo sobre o leito de bonançosas aguas, levavam e traziam—o progresso, a paz e a felicidade de mistura com a alegria de agrada- veis noticias. —Mas agora?... —Agora somente annunciam o quequizera- mos ignorar... Annunciam-nos a sentença!... K sentença barbara que fulmina corações, e nos deixa o pensamento absorto na contem- plação do nada!... IX. 0 nevoeiro, que desappareceu da cidade da Cachoeira, condcnsa-se agora tomando maior espessura, e mais sombrio caracler por sobre a cidade de Sancto Amaro; lá desce a sua manga fulminante sobre os habitantes d’essa cidade, ainda mais infeliz que aquella, por que vê com espanto o no maior desespero fuzilar o 25 raio doeholera, ale então desconhecido, e os seus queridos filhos, trémulos, espavoridos, c immcdialamenle lividos cedem o dôce respirar da vida ao envenenado sopro da morte. K Sancto Amaro que agora ofierecc, qual nigromanlico thealro, ás vistas daquelles que a contemplam ainda mais horroroso espectacu- lo que aquelle observado pelos gregos nas Eu- menides de Eschylo. Ahi o numero de victimas é prodigioso, a desolação c incalculável. A topographia da cidade dc Saneio Amaro ja nos fizera prever as condições desfavoráveis que tinha para impedir, ou deixar de acolher em seu seio o violento inimigo, que a leva ao sacrifício e á morte. As medidas hygienicas ahi eram então inleiramente desconhecidas, graças á sua eslrolla. Aquelle pobre povo incauto é surprendido pelo mal epidemico, como o caminheiro que descuidoso dorme ú sombra de frondosa arvo- re, e acorda nas garras do carniceiro lobo. —E assim succedeu!.... A lncta se trava, o encontro é renhido e san- 26 guinolcnto, o-s golpes se desferem, e são cllès tão ligeiros e repetidos que o chão se junca de cadaveres. De todos os lados se ouvem surdos gemidos e delirantes supplicas; de todos os lados se vêem misérias! Aqui—enlouqueceo pobree lastimoso pai de familia, o único que resta para presenciar a sua barbara sorte—nos despojos de sua vida, —íluctuantes em um pélago de agonias!... Ei-lo, que fita os encovados olhos sobre os ca- dáveres no accesso da febre... e murmura.... No maior desespero da dôr agarra-se aos lívi- dos cadaveres dos tenros filhos e da carinhosa esposa, mira-os, estreita-os ao coração, em- bala-os, julga-os dormindo, e no mesmo ins- tante dominado pela terrível reacçâo dador, tão rápido como o pensamento, repelle-os, evi- ta-os e ai d’elle que furioso foge deixando escapar por entre os dentes cerrados uma gar- galhada infernal!... E mais tarde vê-lo-heis sorrir e chorar; can- tar e gemer, deslembrado das misérias da vi- 27 da, na húmida e estreita cella de um hospital cercado de ferreas grades!... Alli —se veem infelizes agonisantes, atira- dos sobre o duro chão que lhes serve de leilo, filhos abandonados dos pais, pais abandonados dos filhos, sem um amigo, sem um parente , que junto vele, que lhes administre soccorros, sem um braço forte e bemfazejo que os ajude, e os salve do precipício em que estão prestes a cahir! E mais tarde vêl-os-heis cadaveres, e não só cadaveres, mas—pasto de vermes sobre o proprio leito, que então lhes servirá de tu- mulo !... Acolá—se veem famílias inteiras que mor- rem á fome e á sêdc, em consequência do cruel açoute do mesmo mal epidemico. Os filhos, coitadinhos, supplicantes e chorosos abraçan- do-se ao; pais, e estes desbotados e como que insensíveis á fome e á sede dos filhinhos nem uma lagrima, nem um gemido, similhanlcs ao mármore, ou a essas grandes massas de granito, que se erguem sobre os mares, ina- 28 bal.aveis ao gemer das vagas, e ao sussurrar dos ventos. E mais tarde vêl-os-heis chorar; mas é en- tão sobre algum cadaver, que lhes pesa sobre os braços, ou diante de uma fogueira que á fo- go lento lhes devora as entranhas. Tal é a dôr, e a desesperação, que faz da cidade de Sancto Amaro um luctuoso theatro, onde se representam scenas similhantes ás que mal acabamos de esboçar. O povo descrê! O commercio pára! À falta de viveres e de medicamentos cresce ! As au- thoridades fogem! Os trabalhadores cançam ! As medidas preventivas e salutares faltam! Os meios extinguem-se! A desordem começa ! K o naufragio é doloroso... Horror!... Bem nol-o diz um escriptor mo- derno: «A vida é uma enfiada de pequenas misérias que o philosopho desfolha ás garga- lhadas. » As ruas, as casas, as estradas lá se acham juncadas de cadaveres. O rio, o fatal rio, que corta ao longo essa cidade em um só dia, arre- 29 bata na sua correnteza um maior numero d’eb les, que as aguas negras do Sena por muito tempo não o fizeram, encobrindo em seu seio a escandalosa historia da torre de Nesle. X. Tomos lembrança que Sismondi, na sua his- toria das republicas italianas da idade media, nos falia de uma grande epidemia qno aceom- mellera a Florença, e muitos outros paizes. De todas as epidemias que tôcm ceifado a hu- manidade foi esta por sem duvida a que mais humilhou-a. Em 1345 elta manifestou-se no Egypto, na Syria, na Turquia e na Grécia; em 1347 na Sicilia; ern 1348 infectou toda a Italia, re- servando Milão, e alguns cantões situados ao pé dos Alpes, onde o mal fez-se apenas sentir. Neste mesmo anno—franqueou as monta- nhas, estendendo-se á Provença, á Saboia, ú Borgonha, e chegou a peneirar á Catalunha. Km 1349 a terrível peste dominou todo o 30 Ocidente até as margens do mar Athlantico, a Barbaria, a Ilespanha, a Inglaterra e a Tran- ça , poupando unicamente—Brabante , que apenas ressentiu-se do contagio. Em 1350 caminhou ao Norte, invadindo a Frisa, a Allemanhá, a Hungriar a Dinamarca e a Suécia. E foi tamanha a calamidade que occasionára a destruição da republica da Is- landia, sendo tão grande a sua mortalidade , que os habitantes d'esta ilha de gêlo, emigra- dos e perdidos, deixaram de formar um corpo de nação!!!... Mas essa epidemia, singularmenlecaracteri- sada pelo—gavocciolo—(* i, sendo amais cruel das de que se tem memória, comtudo o seu horror, suamheria, relativamenle á cidade de Sancto Amaro, não foi maior. O calculo de sua mortalidade em toda a Europa foi de Ires quintos de sua população, nos observa o mes- (*) Os symptomas d'esla moléstia não foram os mes- mos cm todos os paizes que aqui mencionamos, mas em Florença foi caprichosamenle caracteiísado o mal por esse tumor denominado gavocciolo, que vinha em muitas partes do corpo, e de preferencia nas a\ lias. 31 mo Sismontli. Oh! é espantosa, é verdade , mas admira que ainda assim não presenciasse aquelle povo alguma cousa de mais, que em Sancto Amaro se dá. E, com eíTeitolá os poucos que hiam vivendo ainda , jamais consentiam, que cadaveres putrefeitos se conservassem dentro das casas por abandono como infeliz- mente por eá aconteceu; ainda mais, todos lá foram enterrados. Todas as manhãs, os paren- tes, os amigos, e quando não, os proprietários, ou os encarregados de taes commissões, reti- ravam das casas os cadaveres e collocavam-os nas portas, para que assim fossem vistos, e le- vados á sepultura em taboas ou em carros. Que espectaculo! ver assim enfileirada nas ruas uma multidão de cadaveres, que habita- vam as casas?!... Estamos convencidíssimos que então não era só a caridade que exaltava o povo a ponto de o fazer praticar tão sublime virtude, não; mas sim o proprio inslincto de conservação que o levou pelo mesmo caminho, receiando, e com razão, que mais feio, e mais horrivel 32 só ri a o quadro, se deixado o paslo do cadáve- res para nutrimenlo e corrupção do ar. Não lemos prolonção de querer exagerar o espectaculo que nos olTerece infelizmenlc—o eholera—n’esta província, nem pretendemos comparar a destruição, não; porque—ainda temos sido mais felizes que aquelle desgraçado poVo. E vejamos a sua estatística. « Na ) ran- ça—em Marselha 10,000, S. Diniz 1,'sOO, Avignon 30,000, Paris 80,000, Slrasburgo 20,000, Lyão 45,000, Bourgonha 80,0 ;0, Provença 120,000.—Km Lubeck e Florença morreram 90,000, cm Nonvych 50,000, igual numero íoi enterrado em Londres em um sócemilerio: em Veneza morreram 100,000; a povoação de toda a liespanha foi reduzida a dons terços; no Oriente, dizem, morreram 20,000,000. O genero humano erntim foi re- duzido a um terço.» (') Kste resultado dá uma relação apresentada á Clemente VI sobre a (’) Veja-se a These do l)r. Thoiruz do Bomfim Es(ii- »«!a. 33 mortalidade na Europa, e não differc muito do calculo que nos oííereceo nosso chronogra- plio na sua historia. Diz Sismondi que foi a perda ein toda a Europa de Ires quintos de sua população, como a pouco dissemos. Em Sane to Amaro, ou fosse devido á igno- rância do povo, não prevendo as funestas con- sequências de sua inércia, ou fosse negligen- cia, e incúria de quem deveria velar sobre o serviço publico, e bem estar da humanidade, o facto incontestável é, que se encontravam á cada passo cadaveres abandonados pelas ruas, e em montões pelas casas, apar de mo- ribundos, putrefeitos por toda a parle, servin- do de pasto aos cães e aos porcos, e estes des- membrando-os arrastavam os fragmentos á vista de todos quantos ainda ahi existiam pa- ra complemento do quadro mais dilacerante que o mundo ha visto!... X2. 0 que acabamos cie narrar licará para sem- 34 )>re gravado em nossos corações, como uma nodoa negra nas paginas douradas de nossa historia. —Eiso que é o mundo!... Em um dia o homem ergue-se sobranceiro á todos os entes, como o mais perfeito e o ma is feliz d’elles; dá leis ao mundo com um unico aceno de sua regia cabeça, e no dia seguinte, —deslhronado, escarnecido, rola os degraus do miserável egoísmo, e lomba no pó para servir de pasto aos entes mais rasteiros da creação! A sua vida, tão ephemera como a das llò- res, na phrase de Fenclon, se escôa rapida na torrente de caudaloso rio, para submergir-se nas vagas do lodoso olvido, que é o oceano da morte. Assim passam as gerações, caminhando sempre com o volver dos séculos para o occi- dente que as recebe um dia; por isso que cada um atomo da humanidade caminha desde que o envolve a luz, sem que possa dar um passo retrogrado para subt.whir-se aos abrolhos 35 dessa estrada invariável e eterna, que o con- duz ao frio marco de pedra, que lhe servirá de tumulo. E caminha sem que possa, um instante, de- morar-se e descançar os pés sangrentos sobre a illusoria planície de tlòres, que atravessa um só dia na fastidiosa peregrinação da vida. Esta verdade philosophica ja nos foi trans- miltida por S. João Chrisostomo, porque assim se exprime em letras evangélicas—« O sorrir do dia succede ao pranto da noite, as rigoro- sas estações ás estações agradaveis; porem os males da vida são contínuos e pesam sobre nós sem descanso. » XII Voltemos á Saneio Amaro : Ainda aquella cidade pede soccorro á esta sua capital; quasi extincta, no meio das cham- inas que a devoram, ainda lança os seus amor- tecidos olhos para esta cidade, como a filha 36 carinhosa c terna, (jue, no ultimo momenlo do sua vida, estende osseus delgados bracinhos pa- ra a chorosa e consternada mãi que a abraça. Vôde esta nova onda de povo que para aqui emigra! Como salta clle ifesla nova terra, af- fliclo, assustado e allerrador?! Não ve- des?!... Pois se visseis dirieis, que eram, pelo sombrio e singular aspecto de seu caracter, os supplieiados do inferno de Dantc que fugiam ao castigo. Ei-lo, entregue ao acaso, e á obscuridade da sorte, que se derrama pelo seio d’e>ta capital, sem rumo, c sem destino; mas com um pensa- mento único que ferve-lhe na mente e absor- ve-o todo—a esperança.— Ncão é possivel fugir de um tal inimigo, que nos manda amortalhaonde procuramos refugio. Vêde:—muitos d’clles tremem , fraqueiam e cahem dominados por uma força maior que não podem vencer, c esta força é a mesma po- tência do mal que desgraçadamente procuram evitar. K morrem similhantes á aquelles fugi- dios que nos desertos dWsia são submergidos 37 pela arenosa tempestade, não obstante os es- forços empregados na veloz corrida. Os vapores, que á pouco vieram pejados, vomitando aqui esta multidão de emigrados , retrocedem agora isolados, anão serem alguns médicos, estudantes e algumas irmãs de cari- dade, que compungidos levam—soccorros e esperanças. Pobres athlctas, quão fracas são as vossas armas!... E por isso ainda mais sancta é a vos- sa dedicação. Corajosas e humanas mulheres que tão re- commendadas se fizeram pela nobreza de sen- timentos, pela firmeza de caracter, pela docili- dade de coração e pela humildade piedosa para com os enfermos que trataram n’esses logares os mais perigosos. Marcham com pé firme e angélica resigna- ção; a sua divisa é—a caridade—é a caridade evangélica que as conduz—como outr’ora a columna de nuvem e fogo aos Israelitas pelo caminho da verdadeira religião de Christo. É a caridade evangélica? essa nova virtude, que 38 «ascmi com o cbristianismo, plantada sobre as minas dos barbaros, qne fal-as pisar em al ca- bias de flòres por onde o mundo só encontra- ria emmaranhados espinhos, que fal-as beber doçuras na mesma fonte em que o mundo so- mente libara azedumes de amargurado fel. È a caridade evangélica, emfim, tãodôce como o sorrir da innocencia, tão pura como a verda- de He Deos, que as alimenta, que as fortifica na terra como outr’ora fortificara aos sanctos pregadores da fé, que arrostraram as tempes- tades dos mares, os calores dos desertos, os gèlos dos polos, os fogos dos tropicos por tre- zentos annos de perseguições; mas que o Deos do cbristianismo invertera-os em trezentos an- nos de triumpho, e sem numero os de gosos. Foi assim, na bella phrase de um escriptor portuguez, sobre as azas da caridade que a tocha da fé voou de uma extremidade a outra do mundo. E estes cenobitas, que a propagaram como o orvalho sereno das almas religiosamenle christãs nos paizes incultos, povoados de tri- 39 bus selvagens, e de anlropophagos, sem outra recompensa, que o amor do proximo e felici- dade dos povos, sem outra esperança, que a de pungentes martyrios; sim, estes cathequistas abraçariam, se ainda hoje existissem, estas mulheres, porque são irmãs na caridade, por que são irmãs no pensamento, e o serão lam- bem na vida eterna. *111. E n’eslas horas mortas da noite, horas de saudades e de profunda melancolia para quem vela na dôr e só adormece no pranto;—para quem sonha felicidades, e desperta no horror da desgraça;—para quem esteude os braços á esperança, e só estreita um eadaver;—para quem vê apagar-se o astro que lhe reflecle a vida;—para quem procura a vida e sente-se descansar no tumulo.... N’estas horas de an- cias e martyrios quizeraroos que vísseis estas creaturas, ou antes estes anjos de caridade na practiea de sua mais nobre missão, encerradas 40 lã no interior lugubre dos hospitaes. (*) Repe- timos agora o que ja vol-o disse o poeta— « Entrai, entrai dentro d’elles, e que de see- nas tocantes e enterneeedoras havereis de con- templar! ... Aqui junto do leito em que se estorce O triste no hospital, Eu a vi desferir saudosos threncs Com riso divinal. A' luz mortiça de funerea tocha Ei-la depois em supplicas por nós; Irmã na vida, irmã depois da morte, Tem sempre a mesma voz! Do Ser Eterno imagem peregrina Baixada lá dos cóos, Assim a creio, quando nos conforta Com o sancto amor de Dcos. Chama-lc o mundo irmã da caridade. Sem saber a palavra que traduz; Anjo dos pobres, li Uva do Evangelho, Tu és irmã da Cruz! ('*) (*) Hospitaes levantados nas cidades de Cachoeira Sancto Amaro, ele. '(**) Agrário de Souza Menezes, 41 Oh! amigos leitores, se entrásseis ahi vêl-as-hieis, como esta que imaginou o poeta, cuidadosas, ternas defronte dos leitos e á ca- beceira dos enfermos administrando-lhes soc- corros; e quando estes nem mais forças tinham em seusorgãos reseccados para reagirem sobre a acção dos medicamentos fortes, ao menos ouviam as encantadoras vozes, as religiosas phrases de consolação quecahiam dos lábios d’estas caridosas mulheres sobre o peito com- primido, como se fossem harmonias dos céos que lhes orvalhassem o coração, e lhes dila- tassem a vida. Vêl-as-hieis á deshoras, através a frouxa luz da alampada pendente no espaço—entre as luguhres paredes do hospital, erguerem-se como os anjos nos delírios de um sonho, e su- mirem-se por entre cadaveres e moribundos como se fossem—vaporosas sombras! !... E depois vêl-as-hieis de novo, abraçadas com um Crucifixo, reappareeerem no reflexo de uma luz, como por encanto, pallidas, abatidas, sof- fredoras, mas sempre com um sorriso angélico pa a o agonisanle que nos seus braços lhes en- trega a vida!... Vèl-as-hieis n’esse thealro de tristeza, e de dôr (*) tão resignadas e fortes de espirito como archanjos do Senhor aguardando prémios para distribuir as almas. E no entanto as suas for- cas physicas eram ja gastas—pelos trabalhos pesados do dia, e pelas longas vigílias da noi- te, quando uns dormiam ao seu lado o somno inquieto do marlvrio, e outros o profundo da eternidade. Vél-as-hieis (ainda mais tocante c piedo o espectaculo!) transporem as sombrias paredes do respeitável edifício, atravessarem o limiar, e por fim lançarem-sc silenciosas, protegidas pelas trevas da noite, na solidão das ruas. —E para que? nos perguntareis agora:— para procurarem o descanso entre as risonhas 42 (*) Podera-sc chamar lambem de horror, por que é muito sabido pir todos, que os cadaveres ficavam arru- mados uns sobre os outros no hospital dias c noites cm presença dos enfermos c moribundos, que inces- santes reclamavam a ausência de tal espectaculo pa- ra elles multo doloroso.—Na Cachoeira. 43 paredes de uni commodo asylo, lâ bem distan- te dos infelizes, onde riáo podesse chegar o echo de seus gemidos e lanyentos? Para trocarem o ar impuro das enfermarias pelo sereno e per- fumado dos livres campos?!... Não!... mas sim em procura de um rio que murmura ao longe, e para onde furtivas com presteza correm. E se as seguísseis?... Oh! verieis então com que avidez se encaminhavam para esse rio que asattrahia,—e onde deparariam eom o lhesouro desejado. Chegaram a cristalina corrente, encheram algnns vasos d'agua, e rapidas ei-las, qne vol- tam para a triste habitação dos enfermos, con- tentes por trazerem sobre a fragilidade de suas mãos de mulher o balsamo aos irmãos mori- bundos, que sequiosos e supplicantes lhes pe- dem um gole d’agua para apagar as chammas ardentes que lhes queimam as entranhas. (’) (*) Este é um facto verdadeiro, e que muito nos en- thusiasma referil-o: deu-se cm uma noite na cidade da Cachoeira, 44 Ah! como não voltariam ellas cheias de or- gulho, e triumphantes ao recinto daquelle hos- pital?! Como nao lhes pareceriam doces as fei- ções cadavéricas d’estes enfermos, que sup- plicanles deixavam rolar sobre a descarnada face uma lagrima de terno reconhecimento ? ! Anjos dos céos, quem deixará de cornrno- ver-se diante de vós, quando assim infiltrais nos corações mais frios esse fogo divino de vossa graça? Quando vos contemplamos if es- te perenne e magestoso holocausto, senlimo- nos arrebatados voar até as vossas plantas. Agora, mais que nunca, apreciamos as vossas virtudes, que tão bem traduzidas foram na elegante phrase do grande Chateaubriand. « K nos grandes acontecimentos da vida humana, que os costumes verdadeiramente religiosos ofíerecem aos infelizes as suas consolações. » Que doçuras, que magia não derrama a virtude por sobre aquelles que a praticam, que a seguem como o seu idolo, como a sua es- trella maga, como o seu pharol nas tempesta- e> da vila?! 45 Sino, estes vivem immersos em um mar de luz, e de bonança onde vão reflectir os beneti- cos raios da misericórdia Divina; porqiic com- prehendem as misérias do mundo, e o contras- te das glorias infinitas da \ ida eterna; porque vêem na caridade, essa filhado maisdôce sen- timento d alma, os verdadeiros altributos da religião, que se fundem lodos no amor de Deos. XIV. Deixemos por agora estas reflexões, e trans- portemo-nos ainda á cidade de Saneio Amaro; continuemos a sua desgraçada historia, e ve- remos alguma cousa de mais do que temos descripto até aqui n’estas curtas e acanhadas linhas. Agora mesmo acaba de chegar de lá o va- por, tiazendo-nos noticias bem tristes. A cidade toma um aspecto horrível, amea* çador, e negrejam lodos os seus pontos; a desgraça é maior. Os seus habitantes, inquietos, e accommel- 46 tidos como por uma especie de loucura, atra- vessam as ruas em diversos sentidos, olhando para todos os lados, como se os seguissem medonhos espectros. Mulheres desgrenhadas, umas furiosas co- mo leóas, outras, cujas faces só revelam amar- gos sentimentos c profunda tristeza, appare- cem no limiar das casas, banhadas em pran- to, deixando escapar por entre soluços e sus- piros os nomes charos de mãi, filho, irmã, es- poso e amigo. Palavras surdas, mal articuladas e sem nexo, se ouvem sussurrar no espaço, como um signal myslerioso, que ao mesmo tempo reve- la desespero, dòr e saudades. Uma explosão de alarido parece tudo in- cendiar, e um mar de lagrimas parece em opposição querer apagar o volcão que arre- benta. —Mas qual a causa de tudo isto? 1 —Ides ver: Vaporosas chammas de grandes fogueiras lançam n’essa athmosphcra ja empestada som- 47 brias massas de fumo, e similhanles áã de grandes incêndios, o calor augmenta , e as lavas parecem vôar ás nuvens. E, comtudo, estas fogueiras diíTerem dos grandes incêndios pelos seus combustíveis, — pelas suas ardentes e coloradas chammas,— pelo seu envenenado fumo,—pelo seu especla- culo emfim hediondo e triste. Um numero enorme de pútridos cadaveres se amontôa, e o facho ardente do desespero lhes communiea o incêndio!! As matérias combustíveis se decompoem ; crepitantes labaredas parecem absorver o es- paço; mephilicos vapores se desprendem para lançarem sobre a própria cidade e suas visi- nbanças pestíferos miasmas, o terror, e a morte!... Ei-lo, o espectaculo tristíssimo que nos of- ferece agora a cidade de Sancto Amaro; tão lugubre, e feio como o inferno dos povos ido- latras, dos povos barbaros nas tragédias de Eschylo, ou de Sophocles. 48 Que jazigo para os mortos!... Que exem- plo para os vivos!... Medida extrema, e desesperada, que só po- deria partir daquellas cabeças; porque sof- frem, e soflrem muito.—O enterramento é impossível á tempo;—a fogueira supprirá:— assim imaginaram, e assim o fizeram. As suas cabeças loucas, e fulminadas pelo raio do ex- termínio, ja não sabiam qual o caminho mais seguro que deveriam seguir, nem o que deve- riam fazer em lucta com tantas e tão repetidas desgraças. N’estc contlicto aposição daquelle povo era difticil e perigosa , a sua vida—anormal, e muito adversa—a sua sorte. Suas faculdades, sua razão, suas sensações, suas idéas estavam tão alteradas—quanto impassível e absoluto era o genio mau da destruição. VI. Ajnnetemos, leitores, estas idéas mal ex- pressas, concentremos no espirito a multidão 49 de pensamentos, reunamos sobre o coração ião fortes emoções, para ajuizarmos então do ef- feito, que deveria ter produzido—tão singular e espantosa scena sobre o ja martyrisado povo de Saneio Amaro. Imaginemos, qual o sentimento—qual a profundidade das chagas, que corroíam o co- ração daquelle desgraçado povo em presença daquella fogueira de carne humana!... Imagi- nemos ainda, qual a intensidade da dòr, que profundamente magoava-o, vendo diante dos olhos consumirem aschammas os restos mor- taes de suas vidas!... As mais lamentam os rharos filhos, tendo os olhos entumecidos e pregados sobre os seus restos, que se redu- zem á fogo e á fumo. Os fdhos lamentam e choram sobre as cinzas dos pais. As mulheres vêem evaporarem-se para sempre na escuri- dão das trevas os amantes e companheiros de sua existência, e reciprocamente se chocam ahi os sentimentos d’alma, e os soffrimentos do corpo ! Que de imprecações... Que de blasphemias 50 não se ouviriam sahir dos lábios sequiosos d’cssa genle desesperada e louca pelo excesso de tantos rigores d’uma sorte mesquinha que nos acompanha?!... Sim, imaginemos ainda como resultado de tudo isto a—infecção,—que, nutrindo-se de novos elementos proprios á sua existência, deveria atacar c com mais rápido desenvolvi- mento esse miserável povo. E, depois de ter- mos tudo bem rcfleclido na imaginação, tere- mos lambem de firme convicção um prognos- tico, não só atterrador, mas ainda fatal e hor- rível para nós. E não nos enganamos; porque assim suc- cedeu no dia seguinte. O genio maligno sor- riu-se, e, cuspindo a sua saliva envenenada sobre a face do povo, fô-lo victirna do seu es- carneo e de seus inexoráveis caprichos. A mortalidade augmentou, e com ella lodos os generos de misérias. 51 1VI Em verdade, o espectaeulo era bem singu- lar para que o povo deixasse de temer o an- tropophago íilho do Ganges, que como author do drama , soberbo, regosijava-se de vôl-o representar. Ahi n’esse mortuário amphitheatro, cujo incêndio ja referimos, não havia distineção de classe, nem de sexo. A igualdade imperava entre os mortos como um acinte aos vivos, so- bre os qnaes ella não tinha podido ainda esten- der seu manlo, e prender em seus vínculos. À. variedade nas còres das mortalhas; (*) a variedade nas raças; a variedade nos sexos e nas idades, esmaltavam o throno cambiante ahi implantado da—Igualdade—. Meninos, mAços e velhos, solteiros e casa- (*) A variedade nas côrcs das mortalhas—Esta novi- dade não deve sorprender aos leitores, se souberem que os cadáveres (em maior numero) eram amorta- lhados, ou envolvidos nas baetas que lhes haviam ser- vido de cobertas. 52 dos, todos ahi entrelaçados, confundidos apre- sentavam um quadro que poderia servir de es- earneo ás miseráveis ambições dos homens; segundo as idéas do plulosopho que só en- cherga n’essas dislincções sociaes prejuízos do mundo. Senhores e escravos beijam-se com algido contacto, estes sobre aquelles indislinctamen- te... E quem penetrará os mysteriosos segre- dos da morte?!... Quem sabe o que teriam si- do ellcs na vida?!... Inimigos talvez!... Estes sotfrendo os mais duros tractos de um infame e escandaloso captiveiro, aquelles transforma- dos em carrascos ou carniceiros, abusando de sua abominável missão de senhor, como feras estúpidas diante de suas.fracas prezas. Não é assim o pensamento do muitos se- nhores, é verdade, e nem o podia ser; porque á razão mais ou menos cultivada d’estes repug- na abraçar similhantes baixezas e degradação indignas do homem moral. A indulgência, que procede das almas delicadas e nobres, cahe não só sobre os defeitos como também sobre 53 os vieios d’essa miserável classe de escravos, similhante ao orvalho da candida neblina que chove seus frescores, reparte os seus thesou- ros igualmente por sobre as veladas flôres dos jardins, e por sobre aquellas agrestes, despre- zadas na aridez das campinas e na espessura das selvas. Se alguns escravos em nossa terra reúnem defeitos e vieios, estes não são mais que o re- sultado de uma condição indigna do homem á que elles estão sujeitos contra todas as leis di- vinas e humanas. Uma tal condição é mais que sufficiente para o seu embrutecimento, e por consequência para os desvios daquelle cami- nho por onde todos devemos seguir em nossa vida moral. Parecerá isto uma digressão no assumpto de que tratamos? Não, não o é por certo; por que sendo esta infeliz classe a mais abjecla, a mais soíTredora nos tempos de bonança, o tem sido ainda mais n’estes—de cholerica tempes- tade. E devido á que? Ainda á sua condição fatal. 54 Algunspfoprietarios, poucosé verdade, ou por louvável philanlropia, ou por experientes, honra lhes seja feita, conservam sempre nas melhores condições hvgienicas esse rebanho de que elles nimiamente zelosos são dignos pastores. Agora mesmo lemos sido testemu- nhas de tacs exemplos vendo-os conlraetarem médicos para d’elles curarem; não poupando ara este fim os maiores sacrifícios. Não os citamos aqui; não só porque são elles bem co- nhecidos; como também tememos ofiender a susceptibilklade de sua modéstia. Mas infeliz- mente, e para vergonha nossa, a maior parte dos proprietários, e ordinariamente os mais ricos, olham com desprezo para estes infelizes, como para uns cães que só lhes servem de nstrumenlos cegos e vis no aeeumulo de sua desgraçada fortuna, porque a ambição—« es- te desejo insaciável de se elevarem ainda mes- mo sobre as ruínas de seu similhante »— na phrase de Massilon, é o seu único pharol na miserável vida. E quem não sabe, que esta verdade é prac- 55 ticada pela maioria de grandes e ricos proprie- tários, os mais proprios pela posição indepen- dente que oceupam na sociedade, a darem evemplos de humanidade ? Vos bem o sabeis, e melhor o tendes visto ahi por esse centro, onde impera o e>lupido egoismo de lamacenta aristocracia* \1ÍI. Temos viajado algumas vezes por le- gares, onde eslão situados engenhos, e outras fabricas de industria nacional, fontes da ri- queza de todo o paiz; lemos visto e observado as suas forças que dimanam sempre de mui- tos braços; e estes braços—são aquelles de que falíamos, sem liberdade, sem garantias e sem recursos, obedecendo machinalmente à arro- gante e estrugidòra voz de barbaros senhores. Mas ainda assim esta gente escrava, e gros- seiramente estúpida, seria feliz no acanhado pensamento que lhe volteia a mente, se fossem devidamente apreciados os seus trabalhos, 56 respeitados os seus sofTrimcnlos por aquelles que os desfructam sem uma recompensa gra- ta, sem um carinho, sem uma phrase de ani- mação e de esperança. Mortos á fome e á sede, cubertos de andra- jos (jue mal cobrem-lhes as carnes; sem lem- branças do passado, sem idéas do futuro, cami- nham tiritando, depois de duas horas de le- thargico somno , pelo trilho quotidiano para um serviço pezado e fatigante, á que ja os acostumou a sorte mesquinha. £ lá bem longe de uma outra vida, que não seja aquella, pas- sando-lhes somente pela imaginação , como uma lembrança — o azurrague,—manejam continuadamente os grosseiros instrumentos com as suas ja gastas forças, indifferentes, coitados, á humidade ou â aridez do terreno, e assim vivem solírendo, inabalaveis, como se fossem gigantes de pedras, as inlermiílencias bruscas c rigorosas das estações!... E nem um signal de inquietação ou de leve desgosto; porque então serão castigados com incrível iniquidade. 57 Assim predispostos, physica e moralmente,' á conlrahirem moléstias, são os escravos em maior numero viclimas da epidemia reinante. E um facto que não poderá ser contestado, ainda mesmo pelas melhores theorias dos que concorrem para os seus softrimenlos, e tama- nha perda da humanidade. Debalde o ambicioso procura um atalho im- mundo e illicito para chegar mais rápido á fonte desejada, (pie conlinuamenle se lhe tem figurado na mente em seus dourados sonhos. Debalde, sim, porque essa correnteza de ouro, em que eile julga loeupletar-se, se transfor- mará um dia em violento redemoinho, e a fon- te em caudaloso rio que o submergirá ainda mais rápido. Assim tem suceedido á muitos dos nossos proprietários, acostumados a saborear os fruc- tos, sem lhes importarem as arvores que os produzem. A terra cansa; a seve se altera e falta; as arvores definham; e os fructos em murche* eem: assim morrem os escravos. 58 Agora, em vez de se queixarem de si, da própria ignorância, e falta de humanos e vir- tuosos princípios, blasphemam—bradando contra a sorte! Em vez de eollocarem os seus captivos em melhores condições salutares, e arrependidos pedirem com humildade á mise- ricórdia Divina, clamam contra os céos incle- mentes!... Não temos pretenções de propheta, nem de moralista; mas temos o direito de comparar os fados com os verdadeiros princípios da scien- cia que abraçamos; e a comparação entre os factos e os princípios da sciencia medica nos attesla cabalmente, que a mortalidade maior, e principalmenle a dos escravos durante este màu tempo, é devida em grande parte á ne- cessidades e mesquinhezas da parte dos se- nhores. Infelizmente estes entes escravos fa- zem parte avultada em nossos.capitaes, para maior atraso do paiz. E verdade que o cholera aqui não respeita classes, nem condições; assim como em todos os paizes por onde tem feito o seu curso. Mas 59 isto provará que a situação, os hábitos, e o regimen não influam em nosso organismo para dispôl-o em condições mais ou menos apropria- das á contrahir o virus epidemico ? Por certo que não; e multidão de factos em idênticas circumstancias n’esses mesmos pai— zes ; ssim o provam. Deos queira, que taes senhores que assim praticam, abusando dos direitos que têem so- bre essa classe imbecil, recebam como lição a que infelizmente se tem dado n’esta província. Deos queira, que o nojento egoismo, e igno- rância de alguns se dissipe, e uma sorte me- lhor aguarde á esses pobres escravos, a elles, e a nos. X%III. Mas acaso terminamos a historia da infe- liz cidade de Saneio Amaro? —Não: Lancemos as nossas vistas sobre eila, ainda bem que de lá chega o vapor.—Quando ja nos 60 preparavamôs para noticiar-vos que a epide- mia diminuia de intensidade ahi, e por conse- quência diminuiria também a dor que vos cn- lucta a alma , eis que somos de novo sor- prendidos por noticias, que acabamos de re- ceber , bem tristes e desagradaveis, cuja lembrança nos faz tremer a penna que temos na mão. A epidemia continua sobre a cidade tornan- do ainda maisfeio elugubre o seu aspecto. O delirio cresce, novas fogueiras se ascendem; por isso que sendo o numero dos cadaveres insepultos enorme, os intrépidos trabalhadores não poderam vencer de um só esforço a repug- nante tarefa, que] emprehenderam no deses- pero da lucla. Debalde tentamos traçar sobre este' papel a sombra dos vultos negros, que se desenham no fundo do original e medonho quadro. De- balde, sim; porque estes pobres caracteres na- da exprimem, para que possam trazer-vos a idéa a similhança do verdadeiro e deplorável estado da cidade de Sancto Amaro- 61 Muitas vezes ouvimos um gemido surdo, um suspiro abafado e profundo, sem sabermos avaliar da dor que o produziu ; pois assim geme o seu povo, e muitos ignoram o que lhe vai pelo coração. Aqui mesmo n’esta capital, aliás tão visi— nha, tão intimamente ligada áquella, ignora- se muito. E, para prova do que hemos dito, demos peso e consideração ás palavras da- quelles, que uma vez lá foram, e voltaram (dizem elles) admirados de si, porque ainda vivem. A’ elles parece quasi impossível que se tenha arrostado impunemente a falsidade daquella athmosphera impestada e daquelle terreno, ou antes daquelle cemiterio. Elles, ao contarem a sua tremenda historia, ainda sen- tem contmoções profundas, e como que esco- lhem expressões para similhante narrativa, porque é singular, desconhecida e nunca vista entre nós; seus lábios convulsos tremem, seus olhos se contrahem, temendo deparar de novo com o phantasma que têem na imaginação, suas.faees empallidecem, suas palavras rapi- 62 das c mal pronunciadas bem nos exprimem o que desejam e vacillam publicar. Agora mesmo, dizem elles, aproximai-vos meia legua daquella agonisante cidade, apro- ximai-vos, e immediatamente senlireis respirar os mephiticos vapores de uma athmosphera impura, pesada e fétida, como se estivesseis em uma matança immunda, onde eííectiva- mente corre o sangue vivo sobre o sangue podre. E no entanto mergulhados n’esse lago de veneno; fluctuantes na borda de um abysmo lá se acham aquelles moços, que livremente trocaram as commodidades de seus domicílios e o seio de suas famílias pelos rigores de uma vida inquieta, atribulada, e cheia de mil dis- sabores. Bem dignos são elles de admiração, embora não saiba o governo aquilatar uma tal dedicação e coragem, illudindo-os; sabêl-o-ha a humanidade que recebeu os seus benefícios, e sabe-o Deos que os guia. A desordem ahi reina, o povo intimamente convencido da idéade contagio persiste em sua 63 obstinação; foge—dos cadaveres em vez de os enterrar, o abandono cresce, e o resultado ja o sabeis qual deverá ser. XIX. Continuam estes, que de lá vieram, em sua celebre e singular historia: Aquclle que à deshoras transitar as ruas de Saneio Amaro só e calado, encobrindo por entre a espessura da noite as rugas da face, e as lagrimas dos olhos produzidas por um dia de profunda meditação, julgar-se-ha por certo na mansão dos mortos, não porque essas ruas estejam desertas e tristes, não porque ellas recordem as desgraças do dia, não; seria assim o seu juizo trivial e imperfeito, mas sim por que a cada passo tropeçará n’um cadaver, e cada cadaver lhe faltará da morte. O canoeiro que, na mesma hora de solidão e de saudades, navegar descuidoso por aquelle i io acima, julgar-se-ha transportado para o fabuloso—Acheronte, porque ouvirá de quan- 64 do cm quando bater-lhe a prôa alguma cousa estranha, e no mesmo instante commovido e frio, máu grado seu, verá alravéz o espesso véu da noite um cadaver franquear-lhe a pôpa. Querem os leitores ouvir ainda um facto, que encerra cm si tanto dc repugnante, quan- to de verdadeiro? —Ei-lo, é a consequência do que acabamos de referir. Imaginai os viandantes mais sequiosos d’agua, que, longe d’clla, desenham em sua phantasia crystalinas fontes cm que hão de re- frigerar-se, quando se poderem sentar sobre a fresca relva que ellas orvalham; c que, pos- suídos do enlhusiasmo d’esse doce sonho, a surro com que outr’ora a adormecia o arvore- do das malas c dos bosques, vestido de avelu- dado manto côr de suas esperanças. Debalde, sim, porque esse rio ainda revolto e turvo, esses campos ainda crestados, esses 80 valles e montes ainda sem verdura e sem flores, esse céo sem alegria, esse arvoredo sem folhas por or.de gemiam c suspiravam os ventos, por onde sua visavam as auras o melodioso gor- geio dos passarinhos; tudo emfim ainda se re- sente de uma tristeza indisivel e lugubre; por que ahi pousou sobre tudo o genio das ruinas!.. Eis o que foi, e o que é bojo a cidade de Saneio Amaro. Era mais ou menos feliz a sua população; em poucos dias crestou-a o arido e envenenado sopro da desgraça, e agora, se bem que o vento máu passasse; muilo tempo será preciso para equilibrar-se no ponto de onde a rojara o sedento algoz. Agora, amigos leitores, que ouvistes o la- mentoso celiodc Saneio Amaro, que comprc- hendestes a sua posição , e as suas misérias, sahi d’esla cidade que ja vos é tão conhecida, segui para o cenlro da província, e lá no meio íEessas estradas pouco habitadas ainda pre- 81 scnciareis scenas bem tristes, filhas (fo mesmo llagello. Segui, que haveis de encontrar atravessados sobre o vosso caminho cadaveres de pobres viajores: segui adiante, que haveis de encon- trar aintía cadaveres de alguns proprros habi- tantes d’esses desertos que fulminados cahiram ao rápido golpe, sem que podessem cliegar , dous passos mais, á porta de suascabarias: segui mais adiante, e vereis n’essas cabanos que tantas vezes deram alegre c gostosa hos- pedagem a senhores, ricos ou pobres, que tan- tas vezes mataram a sede a peregrinos, uma transformação pungente, cujo espectaculo vos horrorisarâ. Não mais encontrareis uhi os seus bemfasejos epobres proprietários, sorrindo com hospitalidade aos passageiros, mas sim os seus innocentes e desvalidos litbinhos sós, espanta- dos, entregues ao medo, ao frio, á fome eá sede, desamparados emlim, lançando os cho- rosos e dilatados olhos para a estrada em pro- cura de uma esperança ! 82 Ai (1’elles!... Dormiram ao lado dos cari- nhosos pais, edespertaram—orphãos!... Qual será a negra sina d’esles infelizes em uma idade de verdura, e ja sem arrimo dos paternos braços, que tantas vezes os subtraln- ram ao perigo, ao frio, á fome e á sède?! — Quantas pérolas, as vezes bem preciosas, não se peidem e para sempre, quebrado em um só ponto o delgado frio que as prende? Quar.las desgraças não arrasta uma só vida sacrificada assim de repente aos caprichos de um genio máu?!... Quem sabe o que viriam a ser no futuro es- ses desvalidos, se outra vida lhes sorrisse de- baixo das azas de carinhosas mãis, e das vis- tas de pais honrados e trabalhadores , se a desgraça, essa filha do peccado, não lhes im- primisse na fronte em caracteres indeleveis a palavra—miséria! — Embora nascidos e creados bem longe dos homens, ede suas intri- gas, embora grosseiros e rústicos... bá bem longe dos pomares, e da estrumada terra do lavrador zeloso, erguida sobre o areal dacam- 83 pina, ou sobre o cascalho de uma fragua, cres- ce também e floresce a bella, a frondosa ar- vore, que estende as suas voluptuosas ramas sobre os viandantes e passageiros de qualquer condição que sejam. E estes, ricos, ou pobres, ja de longe acenam, c suspiram por ella com saudades, como suspirariam no cimo de um serro por uma fogueira em noite gelada e feia, ja de longe faliam com prazer dos seus adoci- cados fructos, de sua agradavel sombra para o entretenimento e descanso da fadigosa jornada. WIV. Quem poderá descrever ao vivo a desor- dem e agitação, que communiea pela primeira vez este inimigo poderoso sobre os risonhos campos do nosso Brasil ? Quem poderá descrever os movimentos in- sólitos, que o açoute da peste imprimiu até nas arvores, nas relvas, nas florinhas de nos- sos incultos terrenos? Que de vezes, distante dos miasmas das ch 84 dades, bom longe do bolico dos homens, lá so- bre a casinha da serra, ou sobre a choupana isolada no fundo de um valle, ou de uma flo- resta , não tem ido pousar o negro mocho para annunciar a chegada do monstro, que até lá peneira afim de roubar a vida do roceiro, ou do pastor que alli vive innocenle com a sua fa- mília, com a natureza, e com Deos?!... Perguntai á BuíTon, á Bernardin de Saint- Pierre, estes insignes génios, amigos da natu - reza, se o reino vegetal é insensível ás impres- sões estranhas, e quaes as delicias dos que n’elle habitam, para comparardes então, quão apreciáveis são estas victimas do cholera, ain- da aquellas que parecem menos importantes na sociedade earrompida dos homens. BuíTon vos dirá, que a cidade, essa gigan- tesca massa de edifícios, onde os nossos olhos se embebem em um movimento continuo, é uma solidão mil vezes maior que a das llores- tas... Que o homem do campo e das florestas é ainda mais util aos seus similhanles, e mais são aos olhos de Deos; porque as arvores, as 85 llòres, os ribeiros são outros tantos seres para elle, com os quaes communica innocen temente sem fingimento esem mentira, e com os quaes aprende a ser bom e verdadeiramente religio- so; porque a sua vida exterior é a natureza, a immensidade e o espaço; a sua vida intima é a de um ser supremo que reconhece, eadmira, muito embora não se possa elle exprimir com a hypocrisia do mundo. Saint-Pierre vos dirá, que n’essas selvas existe uma nova sociedade, animada de paixões e de vida, onde o homem aprende a ser vir- tuoso e honesto; porque communica com Deos admirando a natural belleza de suas obras. Vêde: uma arvore inclina-se profundamen- te ao pé de sua visinha, como diante de um ente superior, a outra parece querèl-a abraçar como amiga, uma outra se agita em todos os .sentidos como se estivesse perto do inimigo, e não se engana, que a ameaça o furacão. O res- peito, a amizade, e o temor parece passar de uma a outra como no coração dos homens. Muitas vozes o vetusto carvalho eleva seus 86 longos e descarnados braços sobre todas as outras arvores, como um velho que nasceu em outro século, e vive agora indifferente ás agitações dos que o cercam, c no entretanto elle se faz ouvir com respeito pelos moços, lançando no espaço um ruido profundo e me- lancólico, que nos arrasta á uma tristeza cheia de doçura e de amor. Assim os murmurios de uma floresta, e as bellezas do campo, não podem ser indiflerentes á estes homens, que traduzem os accentos da voz do Senhor em puro e singular metro. Elles exprimem de coração com suas ex- pressões rústicas o pensamento de que se apro- veita o poeta nos seus bellos e elegantes versos: « Nos brandos rumores que faz o arvoredo, Eu ouço os acccntos da voz do Senhor; Nas folhas mimosas descubro seu dedo, Seu hálito aspiro no aroma da flor.» (*) estes homens grosseiros, não deixam, com tudo, de ter um coração puro e bemfa- zejo. O roceiro, ou pastor que vive acostuma- (*) Joaquim da Costa Ribeiro. 87 do lá nos seus desertos, que prefere unia ali- mentação grosseira e má aos gosos de sabo- rosos manjares; que prefere a solidão ao tu- multo das sociedades; que ama os seus raios solares projectados sobre a sua cabeça, que- brados nos ângulos da rocha, livres sobre a verdura do monte, e escaços no sombrio valle; que ama a enxa la e o bordão, como ao seu machado; que trabalha ao rigor do sol, c da chuva; que lava-se de abundante suor duran- te o dia, não com a ambição de subjugar os outros, mas para soccorrer aos seus similhan- tes, e não ver perecer á fome a esposa, e os filhos; que se julga feliz aquecendo-se á noite de volta do trabalho cm roda de uma fogueira defronte da pobre cabana; que vê ahi adormecerem os filhinhos no seio de sua des- velada mãi á custa de suas historias magicas, porém innocentes! Este homem, digo, não po- de deixar de ser feliz, e util á seus siinilhantes, quando por ahi se vêem desgarrados. Pois até lá, entre os felizes habitantes das estradas, das campinas, dos valles, e das mon- 88 tanhas peneira o destruidor das gerações mo- dernas; sopra o tufão, que pousa sobre a fo- lhagem ondeante das arvores, e sacode ao lon- ge os zephiros que n’ellas se embalam, oseilla com movimentos bruscos em os seus ramos , transporta as suas folhas a desmedida altura, e fal-as cahir por terra murchas e seccas na. aridez do sepulchro. Hem rijo sopra o nordeste. Que os ramos de folhas despe Passando além, E as pobres no chão prostradas, IScni sentidas, nem choradas São por ninguém ! Que vaidades serão estas T llontem tudo inda eram festas, Hoje no pó! llontem tuda era festejo: Mas hoje nem sequer vejo He vós ter dó. Ai oobres folhas coitadas, Sozinhas, abandonadas Por esse chão ! Tão orfãs e desvalidas Andam no mundo perdidas Que Iristes sãol (') (_-) L. A. X. Palmeirinu 89 Simillmnlc ao tufão que assim rugindo se arremessa sobre as arvores, desprega suas verdes folhas, c as arremessa no chão. O cho- lera pousando sobre as cabanas d’esses pobres trabalhadores, vai-os arremessando no pavo- roso antro do sepulchro... Ora, se a perda é relativa ao apreço do ob- jecto perdido, deveis agora ajuizar da cruel- dade, e dos resultados sensíveis, que vai dei- xando até na rústica morada dos nossos cam- ponezes o bafejo envenenado do inesperado hospede. XXV. Quer no campo, quer na cidade, assim vão- se acabando as vidas em nossa terra, ainda tão poucas para o cultivo da nossa lavoura e augmenlo do nosso commercio, ainda tão pou- cas para manutenção de nossa industria, e fi- nalmente de nosso progresso e desenvolvimen- to social!... Este joven paiz, invejado do mundo pela 90 sua posição geographica, pelas suas naturaes riquezas, pelos mágicos encantos que o ador- nam , vê-se agora obrigado a recuar alguns passos no seu caminho, para deixar que eva- pore-te a nuvem espêssa c de má natureza, que faz sombra aos monumentos de suas cidades, que desbota c desfolha as ílôres mais viçosas dos seus risonhos campos. O nosso Grão-Pará foi o primeiro que virou a taça do amargo fel; passou primeiro que as suas irmãs pelas provações dolorosas e as mais tristes. Concentrou a sua dôr no Cametá, por- que foi ahi o infeliz arraial escolhido pelo pa- voroso inimigo para o seu alojamento. O drama começou. E d’esle ponto centrífugo partiram \ or sobre o território de Belém aguçadas seitas, que bem attestavam serem manejadas por força de uma vontade de ferro; e cahiram tão ligeiras c mor- tíferas sobre aquelle povo, como outros tantos raios de extermínio. Honra áquelle povo, que não fraqueou na lucta, elucta renhida que fez cahir muitos del~ 91 les, quando administravam aos ii mãos feridos obalsamo salutar com os maiores desvelos e cuidados. E,—cousa notável, que não se deu por cá— o exemplo de intrepidez, e de mais louvável de- dicação partiu do chefe da provincial... .(*) Esse illuslre cidadão mostrou ao paiz, que ifelle depositara a sua confiança, que era dig- no de reger aquella província, não só na paz e descanso, como também nas suas revoltas e tribulações. Não poupou um só instante de sa- crifício para acudir com promplo soccorro ao thesouro immenso que guardava—a humani- dade.—E fez ainda mais; não contente com a execução prompta de seus agentes, partiu para o ponto mais perigoso, lançou-se no foco da in- fecção para corajosamente animar o povo de Cametá, e de seus arredores! De feito, se não fora tão sublime exemplo dado áquclle povo, (*) Era cnlio o Sr. Dr. Angelo Custodio Corrêa, como primeiro vicc-presidente da província do Pará, que a administrava, por occasião dc ter-se retirado para a ca- mara dos deputados na còrte o seu presidente. 92 leria elle talvez presenciado alguma das scenas tumultuosas e hediondas das que se represen- taram cm Sancto Amaro, ou Cachoeira. O heroico valor e a desmedida coragem d’es- le bom chefe levaram-no ao cimo do maior pre- cipício; o sedento inimigo, vendo que elle era a barreira ingente, que frustrara muitos dos seus planos sanguinários, furioso o encara, e fal-o tombar no abysmo!... « Morreu!... porém na liora derradeira « Inda resplandeceu! O homem juslo « Entre as rascas do eterno passamento, « Em ancias c fadigas se altribula; « Mas no momento de deixar a terra, « Para voar á Dcos forças recobra, « E como astro da fé no Ceo da morte, « Qual em vida luziu, luzindo acaba. » (*) Por amor dc seu povo ellc trocou as commo- didades de um palacio pelas fadigas da lucta; as etiquetas e galas de seu gabinete pelas mais tocantes scenas dc andrajosa miséria, e a sua farda bordada por um pedaço de mortalha!... Gloria eterna sobre a memória de um gover- {*) Liurindo José da Silva Rabello. 93 no fão bem escolhido para salvação de um po- vo. Lamenta comnosco, ó Patria, a perda de um filho benemerito; desfolhemos sobre o seu tumulo um punhado de saudades; e gravemos sobre a sua lousa tão fria como o seu cadaver as palavras memoráveis do poeta:—Será este o seu epitaphio— « Morreu I... mas grande foi. Da Liberdade « Filho amante nasceu; d’el!a soldado « Morreu firme em seu posto... » (*) WVI. À sina do monstro sendo a de um caminhei- ro perpetuo, segundo a ficção de Eugênio Sue, o judeu errante prosegue no seu eterno cami- nho, e prosegue para as cidades mais populo- sas do nosso império, onde pode saciar a séde de sangue que o devora. Não lhe bastaram as viclimas que fez no Pará; aportou á Bahia, visitou todo o seu lilto- ral, aqui existe, e recreia-sc transformando cm (•) L. J. S. Ra b cl Io» 94 Cametá qualquer villa ou povoação por onde passa. Maldito peregrino, que ainda bem não deixaste esta infeliz província, e ja o teu corte- jo de morte ataca a mais bella, a mais formosa e a mais rica de nossas cidades,—a côrte do nosso império! (*) Fallando-vos até agora especialmente das difficeis circumstancias em que se acharam as cidades de Cachoeira e Sancto Amaro, não penseis que omitlimos as outras cidades e po- voados, que enfeitam o pittoresco reconcavo d’esta Bahia, porque deixaram de soffrer, não, tocaremos n’ellas de passagem porque nada le- remos a accrescentar no seu geral aspecto. Fo- ram estas duas cidades as primeiras descriptas; porque também foram as primeiras aeeommet- lidas, e as mais martyrisadas. Os traços mais ou menos escuros e fortes, que n’este bosquejo encontrardes, não julgueis serem elles erro, ou (*) Quando escrevemos estas linhas não restava mais duvida, que o cholera-morbus atacava, e ja com alguma intensidade, a còrtc do nosso império. 95 engano nosso; criminai antes a nossa sensibi- lidade. Ora, se estas duas cidades, sendo as mais populosas c mais ricas, as suas communica- ções com esta capital as mais directas, e mais rapidas, sofireram tanto; ja tendes um exem- plo para a vossa fina compi ehensão das misé- rias das outras, que igualmente participam dos rigores da peste, senão tantos, ao menos penosos, relativamente á sua população. Agora mesmo, essa nuvem sempre fatal, que vistes desapparecer de sobre as duas in- felizes, lá negreja, e communica a sua mor- tuária sombra á cidade de Nazareth, que, ti- ritando de medo, paga um tributo injusto, acompanhando na dôr e no lamento as suas luctuosas irmãs. Agora mesmo, lá se acha ella no conflicto; o seu pranto corre, e oluclo se estende até às suas povoações—Aldêa , Capella e Lage; o echo surdo e tristonho, que lhe sahe do intimo, vem repercutir no coração d’esta capital, que sem- pre como mãi se amofina e se chora. 96 Lá parle o vapor a levar-lhe soccorros, que esta capital lhe envia. —Mas quaes são os soccorros?... —Tudo quanto aconselha a razão timida, c ja desorientada daquelles que a dirigem... Ainda assim estes soccorros, mais ou menos providentes e salutares, chegariam a tempo, e seriam mais ou menos profícuos, senão fòra a desordenada execução de uns, e a incúria e impiedade de outros. Ê uma verdade firmada em factos, com pezar o dizemos, e factos bem presenciados e sabidos por todos. Quem o diria, que ambições ridículas e mi- seráveis concorreram para maiores calami- dades e augmento dos nossos males?! É triste e lamentável, que em similhante crise existam caracteres tão estúpidos e des- humanos, que se aproveitem da inexperiência e boa fé de alguém para venderem generos podres, e se não podres, avariados e falsifi- cados !!! Generos, que deveriam ser os mais sãos; 97 por isso que iam ser enviados para Iogares, oft* de a pobreza afílicla gemia, esperando-os co- mo um milagre dos eéos para minorarem, se não o sofTrimenío da pesle, ao menos o da fome que d’ella resultara. Logares estes, que, por si sós, pelo seu deplorável e pavoroso estado, pela miséria do seu povo emfim, requereriam do homem, ainda o mais corrupto, um trato serio e licito. É vergonhoso e mais lamentável ainda, com horror o dizemos, que iguaes falsificações se déem em algumas casas de generos inteira- mente ditferentes, porém mais preciosos, casas estas onde o pezo e a medida devem equilibrar sempre no mais justo fiel a vida e a morte!!!... É formidável!... Sentimo-nos commovidos ao conlarvol-o; mas ahi vai referido, porque é uma verdade, e uma verdade que muito nos impressionou. Parecerá incrivel, que aos olhos de um po- vo christão se representem taes scenas só dig- nas de assassinos, quando as leis sagradas da 98 nossa religião, deixando caliir sobre nós as doçuras do Evangelho, nos ensinam a praticar actos de virtudes. Parecerá incrível, repeli- mos ainda, que tal commercio vil e miserável nasça do seio d’estc mesmo povo christão , quando—« Deos nos impõe, diz Sancto Agos- tinho, a obrigação de soccorrermo-nos uns aos outros nas necessidades e afflicções. Ao não praticarmos estes actos de benefi- cência com grandes sacrifícios , como fazem aquelles verdadeira e restrictamente religio- sos, tocados da Divina graça; ao menos prati- quemol-os na vida com amor e humanidade, si— « É a humanidade, de preferencia ao sa- crifício, oque Deos exige de nós. » (*.) E, sem temor á Deos e ao mundo, esses pro- fanos ambiciosos rasgam assim as paginas sa- gradas dos livros sanctos; porque, impios co- mo Tertulo, (**) não distinguem as acções mo- raes e virtuosas; cegos como os Phariseos e (*) S. Math. IX, v. 43. (*') Veja-se na Biblia — Actos dos Apostolos cap. XXIV. 99 Sabduceos, que ousaram querer experimentar o poder de Deos, (*) provocam a sua cólera; porque não vêem a luz que brilha sem mancha na felicidade eterna. WVII. As cidades de Yalença e de Maragogipe ja á muito que soffrem, e também pranteiam as suas desgraças. Yalença, relativamente á sua população, não tem apresentado nenhuma das scenas lú- gubres, que ja vos referimos. Ao menos ainda não nos feriu o timpano com o rouco e medo- nho gemer de grandes queixumes, como as suas irmãs no horror de suas desgraças, em- bora a epidemia vá se estendendo pelas suas circumvisinhanças, especialmenie pelo muni- cípio de Jequiriçá, aonde nos consla ler ella tomado um caracler mais aterrador. Por esse lado tem a cidade de Yalença, graças á sua (*) Veju-se ua Bíblia—S. Math. cap. XVi. 100 estrella, sido mais feliz nas tribulações, na desordem e nas misérias. Mus ainda assim esta rica e engenhosa ci- dade, que se tem feito notável pelos seus pro- ductos, que só alteslam o progresso de seus fi- lhos industriosos, para agora timorata na sua carreira laboriosa c de gloria para dispcnder toda essa aclividade no promplo soccorro de seu povo pezaroso. Maragogipe tem conlinuamenle supporlado o pezo da peste, desde que ella se manifestou em Cachoeira, pouco mais ou menos, e sugeila sempre ao ludibrio da mesquinha sorte, vai lendo melhoras e recrudescências, como quasi todas em maior ou menor escala. Tão cruel tem sido a sua sorte, quanto irreparável a sua perda. A betla e heroica ilha de Haparka, que sempre vaidosa se ostentava com seus naluraes encantos sobre as aguas, agora também em desalinho chora. Fronteira á esta cidade como a querer disputar-lhe encantos, ella donosa, as vezes esquecia os seus, para namorar o estran- 101 geiro que a mirava sempre com ávidos olhos, logo que a descobria, quando enfastiado da lon- ga viagem vinha descansar n’este hospitaleiro porto. Agora llaparica, embaciadaetriste, não mais se revê no brilho dos astros que giram sobre o seH asselinado lecto, nem no espelho das varias aguas qim a circumdam, nem r.o seu leito de verduras. Não se revô nos seus astros , e no seu anilado céo, porque uma nuvem se lhe in- terpõe nomeio para deixar cahir sobre ella a sua resfriada sombra, que lantoaempallidece! Não se espelha nas aguas que a banham; porque não quer ver o seu retrato cadavérico, carpindo a sua desventura, muito embora ve- nham estas beijar-lhe as plantas, mollemenle correndo dos saudosos rios, lisas e côr de espe- ranças; muito embora venham aquellas enca- pelladas e tristes, partindo furiosas do seio do gemebundo oceano para lançarem-lhe ás praias lagrimas de saudades, desfeitas em brancas, espumosas flores! Não se miraem seu leito de verduras, porque 102 este empallidece c d ixa c-ahir as suas flores, e porque eslas flAres desbotadas e seccas se acham impesíadas também do hálito venenoso do eholera!... Surgi agora, ó veteranos guerreiros, vinde presenciara dama, por quem outr’ora désles a vida, para vêl-a triumphantc no carro da vic- toria; quebrai a lousa do sepulchro, atravessai este mar, e ide vêl-a na hora da agonia á bra- ços com o infernal ii imigo; ide, perguntai-lhe: One é do covarde inimigo que ousara man- char-te as praias, e crestar-te as flôres?.... Quem faz murchar o viço dos teus verdes lou- ros, ganhos nos dias mais gloriosos de um po- vo livre?... Quem imprimiu sobre a tua gar- bosa fronte esta lívida tristeza!. . Quem ousou roubar-te o pendão de amor e gloria, para dei- xar-te plantado no terreno fértil este ramo de fúnebre cyprestc?! E cila vos responderá em pranto:—E invisí- vel o maldito inimigo que me ataca traiçoeiro, sem que eu possa descubrir-lhc a face para cus.- 103 pir-lhe a saliva do desprezo: nada valem vossas forças, voltai, ide descansar cm paz sob os vossos louros, que serão eternos sobre vossas campas. E o inimigo continua ainda mais furioso por (pie recreia-se matando! WU31 Uma perturbação geral agita, ecomnmve o povo (Testa província; porque a cada momento vem chocar-lhe o coração uma nova onda de tristeza. A um só tempo, cousa admirável, rompe-se o equilíbrio entre a vida e a morte por todos es- tes contornos, e as victimas do eholera rojam indislinctamente na villa de S. Francisco , no Iguape, Nagó, Coqueiro, Jaguaripe, Passe, Bom-jardim, e muitos outros povoados circum- visinhos á esta cidade; e tão agradaveis e pilto- rescos que eram, e tão tristes e repulsivos que se acham agora! K assim, debaixo das mesmas condições 104 mórbidas, estes togares vão soíTrendo os tratos bruscos e barbaros, que o tétrico algoz lhes communica com monstruosa impassibilidade! Nem sequer estes logares podem ser con\o- nientemente providos de immediatos soccorros, porque apenas acabamos de os mencionar, e ja novos queixumes, e amargurado pranto fa- zem-sc ouvir com horror em outros pontos, co- mo sejam na Pirajuhia, Coligipe, Maré, Pari- pe, Praia-grande, e mais ao centro na villa de llaguahi, na freguezia da Saubara, na de San- tWnna do Catú, &c.! Sentença barbara'.. . E não para abi o domínio do algoz! Onereis saber até onde elle se estende?— En- trai em palacio, e lá vereis as inscripções aber- tas para esses pobres e inexperientes académi- cos, que, não obstante a pouca generosidade e franqueza da presidência, de novo acceilam as commissões difficeis, e parlem. Agora mesmo se preparam n’esta cidade ambulancias com medicamentos e mais soccor- ros para algumas comarcas do sul, que ja se 105 resentem dos rigores dos primeiros symptomas do mal; e para lá caminham com um dos seus mestres (*) os académicos sempre prestantes e zelosos pela causa da humanidade, similhantes no ardor á intrépidos e briosos guerreiros, que distribuem ao mesmo tempo com prodigalidade os seus soccorros por todos os pontos, em que se vêem atacados os irmãos e companheiros de armas. Se vos repelimos ainda aqui o valor, c admi- rável coragem com que se tem distinguido esta classe de esperançosa mocidade, olvidando ella toda e qualquer reflexão, que por ventura lhe houvesse feito o espirito de pensadores e pru- dentes, que se pouparam a tão arriscadas com- missões, não é por vaidade, nem para fazer d’esta gloria o seu escudo de defeza na carreira em que trilham; não! Mais nobre e saneia é a sua missão. Esta classe não só descrê das pro- (') Fjí o Sr. Dr. Malaquias Alvares dos Santos. Co- mo membro da junta dc hygiene, fòra elle encarregado d esta commissâo exploradora, levando comsigo alguns académicos para os ir deixando, como lhe conviesse, nos logares accommcUidos do mal. 106 messas do governo, como lambem regeita-as, porque elle as não pode fazer, conscienciosa- menle fallando. (*) Sim, basla-lhe somenle o que lhe é devido no contracto, cuja falta é uma crueldade da parte do governo, um escandalo perante a justiça e a lei. E para o seu escudo na laboriosa e arida vida basta-lhe a verdade do suave canto do psalmista, que é-lhe gravada no intimo do coração:—« Bemavenlurados os que cuidam sobre o necessitado e o pobre: o Senhor os livrará do dia máu. » (”) O conhe- cimento da acção nobre c virtuosa é todo o seu orgulho; as ninharias despreza-as, porque esta esperançosa phalange de môços tem força bas- tante para olhar com indiflerença o que por ahi chamam perdão e favores. Assim como a vistes briosa no confliclo e na tuela epidemica, sempre com doçura diante de infelizes, de moribundos, e resignada pizando (*) Faliava-se então no perdão do exame das matérias do anno. E o povo até pensava na'terra, senão os despojos palpá- veis de sua vida passiva ou material. Por uma mvsteriosa combinação de dous princípios, que ■ constituem-^mo homem duas vi- das, e dous mundos,.resulta o seuoscillar con- tinuo no mar livre das paixões e da razão. O homem, assim constituído por duasdorças he- lerogeneas e sensivelmente oppoSlas, raras ve- zes se equilibra entre ellas; porque machinal- mente cede ás impressões de uma d-ellas que o arrasta—; d’ahi vem que Socrates é um mo- dèlo de virtudes, os seus verdugos são modelos de crimes; Salomão espalha por sobre os seus súbditos—moralidade e justiça; Ileleogábalo e Caligula pervertem os contemporâneos, e 165 legam á posteridade exemplos de immoralida- des e corrupção. £ as vezes estas forças obram t tão violentas a favor ou contra a natureza que arrebatam o homem ás alturas, ou rojam-n’o nas profundezas do abvsnio; eis porque Anto- nino dieta piedosas lições á seus filhos, o Nero é o tétrico assassino de sua mãi. É formidável! Pois as paixões, que assim conduzem o ho- mem, desenvolvendo-se com tendências apro- priadas ao bem e ao mal, podem desvial-o do verdadeiro caminho que deveria seguir; po- dem preeipital-o no inextricável labyrintho das sociedades, onde se revolvem ao mesmo tempo a virtude e o vicio, a innocencia e a corrupção, —esta manchando aquella, como a venenosa serpe sobre a vergontea viçosa do arbusto que se balouça com bellas e fragrantes flores;— podem as paixões, emíim, fazêl-o caminhar in- quieto, ou furioso por sobre as minas de sua vida, marlyrisai-o á face do muqdo, ou aliral-o desprezado e esquecido lá no remanso da soli- dão; mas nunca apagar.-lhe do coração essa 166 luz que lhe acende, se não o espirito sobre os átomos da matéria, ao menos a revelação divi- na sobre o senlimenlo intimo de sua existência. E ésla luz que o leva ao tumulo, é a que lhe reflecle sobre o embotado coração—Deos e religião! líaqui se vè que é inrpossivel, que o homem sentado no mais elevado degrau d’este grande amphitheatro que occupa o mundo, vendo á seus pés prostradas iodas as classes de sêres, de9de os mais collossaes giganles ate os mi- croscópicos animaculos da escala zoologica, não sinta, por isso mesmo que se acha supe- rior, girar sobre a sua altaneira cabeça esses milhões de mundos; e é ainda mais impossível o não conhecer, que, calcando todos estes mun- dos, c sentado lá no throno celeste, existe o Ar- chitecto de tantas maravilhas que nos deslum- bram, mergulhando-nos no exlase profundo de mageslosa contemplação... Sim, é impossível que o homem, ainda o- mais idiota, não experimente alguma vez na vida a necessidade de sentir; e se sente, as 167 emoções fazem-n’o sahir do inditlerentismo só proprio da matéria para lançarem-n’o nos campos do infinito. E tanto esse indiflerenlismo é repugnante ao homem que, nas primeiras idades, nos tempos primitivos, elle despertando em um mundo no- vo, por isso que acabava de nascer, cheio de pasmo no meio das maravilhas que o deslum- bravam, que envolviam-ifo todo n’essa terra então deserta, sem familias, sem povos, sem governo, sem vícios, sem costumes, sem lei, a sua primeira expressão, a sua meiga voz, a sua balbuciante palavra foi um hynmo tão puro co- mo o era a sua alma, a sua lyra desprendeu das cordas notas tão profundas quanto sonantes para acompanhar as tibras que lhe vibraram no coração; e o êrmo respondeu no eclio Deos, ereaeão e vida. O homem então o homem aban- donado á natureza, na elegante frase de M.me de Stael, «deixava-se conduzir pelas varias dis- traeções dos objectos exteriores, seu pensamen- to, como a sua vida, errava similhante á nu- vem que gira no espaço, mudando de fôrma e 168 de direcção segundo o vento que a impelle. » Mas nunca o sentimento de religião se lhe apa- gara n’essa vida errante e solitaria; porquan- to a razão e o instincto lhe dictavam a prece que o coração palpitante reflectia em harmo- niosos hvmnos! Lancemos as viátas através os séculos sobre as primeiras gerações, vejamos o seu primeiro livro sagrado, e lá encontraremos estas ver- dades nas paginas do Genesis, este grande poema que nos abre as portas da mundo. \. Não é niuilo para admirar que a atíliguida- (íe, essa nova geração que succedeu á época fabulosa, ou primitiva (como classifica Yictor Ilugo) de que acabamos de fallar-vos, tivesse por culto religioso a idolatria, se ella vivia submergida sob as trevas do paganismo, n'es- sa defeclibilidade com que lucta o espirito, quando cliega a altingir a immensa grandeza, a sublimidade de uma maravilha, ignorando a 169 verdadeira causa que a produziu; por isso os antigos adoravam a obra da creacão em vez do Creador! Por uma contradicção, íilha antes da ignorância que do erro, idolatravam tudo quanto lhes parecia superior e admiravel *com uma volubilidade tal, que no mesmo instante rojavam do throno essas imagens para ergue- rem outras. Assim eregiam altares à imagem da mulher, davam â essas deosas o nome de Yenus, Flora, etc., e no entanto eram as po- bres mulheres, frágeis creaturas, alvo de seus rigores e desprezos, eram estas infelizes tão bellas quanto delicadas as suas próprias es- cravas !... Acreditavam na Divindade, porque não po- diam deixar de acreditar nas maravilhas do seu poder, mas, coitados, vagavam de incerteza em incerteza, sem que podessem conhecer esse verdadeiro Deos que os levantara do cahos. Dahi partiam as fracas bases de sua religião; dahi partiam os desvarios de suas ignóbeis paixões. Os seus barbaros costumes obstavam ao desenvolvimento das faculdades sensitivas e delicadas; por isso jamais poderam encontrar nas mulheres o ser igual pela alma, e pelo amor, para se estreitarem na vida em um am- plexo de felicidade, para dedicarem-lhes os sen- timentos puros do coração, e para viverem em uma nova existência. Lembramo-nos agora de um trecho de Victor llugo, cujo pensamento, apoiando o que hemos dito, virá supprir as lacunas de nosso escripto, e proteger o atrevi- mento de nossa penna mal preparada. «As sociedades idolatras de lloma e de Athenas desconheciam a celeste dignidade da mulher, revelada mais tarde aos homens pelo proprio Deos que quiz nascer de uma íilha de Eva.».(*) Os antigos, da mesma sorte que erigiam altares á essas deosas voluptuosas, em honra das quaes consolidavam o hediondo e miserá- vel svstema da polygamia, alevantavam do pó da terra, para regerem os seus destinos, áquel- les homeus que em suas sociedades se torna- 170 (*) Veja-se em suas obras—Litterature e philosophie mélées. 171 vam notáveis por qualquer distincção, ainda mesmo pueril, ou criminosa; e vejamos a sua historia que ahi depararemos com numerosos exemplos. Vejamos os seus grandes poemas, e ahi saberemos quaes foram então os seus he- roes; as divindades e os seres da terra ahi se misturam, se amam com voluptuosidade, se guerreiam e se confundem sem aquelle senti- mento proprio á seus caracteres! Bem nos con- lirma M.mc de Stael, quando assim se exprime —« Vejamos em Homero, o seu maior poeta, que Júpiter é provocado por Ajax, que Marte é disputado por Achilles! » Ainda assim elles tinham uma religião!... Se elles acreditavam, e mais ainda idola- travam as diversas ficções da mythologia, se adoravam os seus heroes, se confundiam as sensações e os sentimentos, se muitas de suas virtudes, hoje conhecemos, que não são mais do que vicios, e até mesmo—crimes, se os seus costumes eram barbaros, é porque navegavam no oceano marulhoso da existência, impellidos pelo forte vento das paixões, sem o pharol que 172 mais tarde appareceu para guiar a humanida- de á porto seguro de salvação. Foi então que o Filho de Deos se revelou ao mundo; foi então qHe a religião chrislã rasgou o véo que a en- cobria nas alturas dos céos, desceu triumphan- te ao mundo para harmonisal-o, e uma rege- neração se fez no orbe inteiro. As idéas nobres e cavalherescas, que dahi partiram, illuminaram com uma chuva de luz as trevas da barbaria que enluctavam o templo pagão. A estrellamaga do christianismo para logo equilibrada se viu na abobada celeste; brilhou, e brilhou constante, mandando em ca- da um de seus raios sobre os seus filhos uma nova luz de intelligencia, uma nova prova de felicidade. Uma era nova se abriu para a hu- manidade; e os apóstatas de então foram bem felizes, não só por gozarem das delicias do no- vo caminho que trilharam, mas também por legarem â seus filhos e à posteridade a reli- gião verdadeiramente pura e sancta, a religião de Christo. • 173 XI. « A religião é ornais poderoso movei que leva o homem ao bem, por isso que a fé colloca-o sob a inspiração da Divindade, obrando com todo o seu império sobre a vontade e o pensamento. » Assim se exprimia o cardeal Maury, tratan- do da Igreja christã do alto de sua cadeira; e não foram suas palavras estereis nos corações d’aquelles que as comprehenderam, e nem fo- ram estereis para o mundo os princípios sãos e puramente religiosos, que proclamaram os gé- nios desde os antigos, bem como os Socrates, os Platões até os Feneíons, os Massilons, os Bos- suets, os Bordaloues , os Montesquieus, os Pascais, os Raynals, os Marmontels, e até os proprios Voltaires, que, espalhando sobre toda a Europa sophismas e erros com espantosa ha- bilidade, entraram com grande contingente pa- ra o descubrimento da verdade, que foi, e será sempre o triumpho da religião christã, e a glo- ria das gerações modernas. 174 Oh! quantas discussões metaphysicas, ari- das e absurdas, não se quebraram sobre o pro- prio escudo—o fatalismo—no momento ven- turoso em que os seus campeões pensavam pul- verisar os preceitos Divinos e as verdades mo- raes!!... Quantas idéas scholares e nimiamen- te pueris não se alevantaram para de novo ca- hirem vergonhosamente sobre o charco impuro de onde nasceram?!... Que nos importa, que o pyrrhonico physio- logista leve a ponto o seu materialismo de que- rer-nos provar pelos grandes conhecimentos analyticos, que os nossos caracteres e funcções são necessariamente o resultado de nossa orga- nisação, e que por consequência em nada os modificam as impressões e reflexões de nosso espirito, ficando este dominado pelas leis da matéria e da fatalidade? Que nos importa, que o exagerado philoso- phismo de pobres sophistas queira estender o seu dominio, á fortiori, por sobre os campos do infinito, reduzindo á formulas os segredos mais intimos de Deos? 175 Que nos importa, que o scepticismo e o pyrrhonismo se contradigam , e que muitos outros systemas hereticos, ainda aquelles que se julgam—osmais certos e dogmáticos, quei- ram , senão destruir, ao menos oífuscar o brilho da sancta fé, o espirito da religião chris- tã, se esta íé, se este espirito nasce hoje no co- ração de seus Filhos ao despertar na vida, si- milhante aos perfumes da flôr que se espandem ao desabrochar das pétalas? Quem nos poderá arrancar a crença, que purilicou-a o proprio sangue de Christo para a nossa redempção ? Muita razão tinha o poeta para dizer em ca- dentes versos: Tcntem sophismo, pedantismo embora, Trocando uns termos, inventando outros, Explicar o que a mente não alcança. (*) E só assim é, que neophitos e sectários de doutrinas falsas e perigosas têem querido es- (*) Visconde da Pedra Branca, no seu poema—Qs Tumujos. 176 torvar a marcha progressista das sociedades christãs, aífectando miseravelmente poderem demolir o grande e magestoso Edifício do chris- tianismo. E nem sequer de leve o abalam!... Debalde similhantes idéas tentaram erguer-se ainda uma vez sobre espíritos fracos e ociosos do século de Luiz XIV; debalde sim, porque o proprio cataclysma, que procedeu das evolu- ções políticas, foi muito bastante para submer- gir em sua onda negra esse proselytismo es- candaloso, que miseravelmente aproveitàra-se dos desvarios de uma corte desregrada e dis- soluta, da desordem de um povo calcado e coado, e das loucuras de ânimos exaltados e perigosos, para lançar o seu germen maleftco. Os iconoclastas de então., arrastados por uma potência infernal, lançaram-se sobre os em- blemas sagrados da sanda religião, como se fossem os mais bravios e sedentos animaes e no delirio insano da febre pútrida ousaram querer despedaçal-os! Miseráveis que tenta- vam uma parvoíce á custa de tamanho sacri- légio. 177 Ainda assim o grande ediíicio chrislão, ven- do á seus pés rolar ondas de sangue, permane- ceu inabalavel e sobranceiro, e a sua victoria foi completa. E o será sempre, porque a crença universal cada vez mais se solidifica no cora- ção das gerações modernas para garantia de um futuro bem lisongeiro. VII. Ahi passam os tempos, e a cada uma de suas pegadas um novo laço deixam para consolida- ção da fé christã, da crença geralmente esta- belecida nos paizes mais civilisados. Ja hoje ninguém ignora que a liberdade dos homens, o grande progresso da intelligencia, as idéas mais philantropicase moraes, que des- cem da cabeça dos reis ao coração dos povos, têem partido incontestavelmente do christia- nismo, do seio de suas instituições. Esta reli- gião, que por toda a parte tem imprimido o sêllo da verdade para destruir o erro, e esmagar a mentira de falsas crenças, tem levado também 178 ao seio do socialismo polilico reformas conside- ráveis, quer na marcha dos governos, quer na communhão dos povos. A sua origem sendo democrática, cremos com Lopes de Mendonça, que os seus princípios moraes são o ideal de todo o governo livre. Cremos com Lamartine que a sua linguagem prophetica, a sua elo- quência biblica, entendida facil e admiravel- mente por todo o mundo, não só faz rodar os orbes em torno das tribus dos desertos, mas ainda troveja sobre a cabeça dos monarchas espalhando os seus relâmpagos. Será uma exaltação de nosso espirito que nos eleva á tanto?!... Será o fervor juvenil que nos enthusiasma?!... O delírio de um sonho poético que nos faz caminhar assim pelas deli- cias do christianismo, sem enchergarmos as suas fraguas?!... Oh!... não... Todos os dias gemem sob o prelo as impres" sões que seus fastos nos mostram. Além de muitos outros livros, que por ahi correm im- pressos em douradas tarjas, como padrões de 179 gloria da nossa saneia fé, bem conhecido é o livro typo do sabio Chateaubriand. Livro de regeneração veem n’elle os contemporâneos; e de verdadeira sabedoria dirão os vindouros. O seu author orgulhoso de si e da humanidade deu-lhe o nome de—Genio do Chrislianismo! —E nem outro titulo o poderia substituir, por que o Genio inspirado foi escrever este livro á sombra da frondosa arvore da religião, res- pirava o aroma suave de suas viçosas flôres, quando o sopro de Deos fôl-as cahir sobre suas paginas. Eis—o Genio do Christianismo. Basta : a nossa missão pede-nos a continua- ção de outro assumpto. Parece-nos ja ver os leitores enfastiados, porque os levamos por um desvio longo, quando anciosos procuram o ter- mo da jornada. E têem n’isso bastante razão, mui princi- palmente, porque n’este desvio que fizemos pelos caminhos da religião, as variedades que por ventura devessem encontrar em nada aug- mentarão o cofre de seus conhecimentos e a crença de suas doutrinas; paciência, >. DescuI- 180 pem a nossa franqueza, porque uma força es- pontânea, que fez-nos palpitar o coração, im- pelliu-nos (pobre pigmÔo) a levantar o vôo, não podemos subir a esses plainos do céo por onde se espanêjam as a guias; não; a pequenhez de nossas azas apenas ergueu-nos sobre a terra. E é o quanto nos basta, porque pensamos com o moralista:—« Potir être satisfait de soi- même il faut ne tracer que des ecrits que reveillent des sentimens purs.» (*) E poderíamos nós ser índiíferenies as emo- ções d’este povo, que se chora e se acaba victi- ma da peste que açouta esta província?. í; Oh! nunca, os seus gestos e maneiras, os seus ro- gos, as suas preces, procissões e tudo mais que só nos prova a infallibilidade de sua crença firmemente religiosa, commoveu-nos o coração ja ferido, que acaba de revelar os seus mais Ín- timos sentimentos, que acaba de misturar os seus votos com o do povo para implorar a mi- zericordia Divina. (') Joséph Drox.—Essai sur Pari (fctre heureux. 181 Voltemos agora a presenciar o quadro mais ou menos feio, que representava esta cidade, quando assim o povo fervoroso procurava abri- gar-se no sanctuario dos templos, para pedir á Deos o perdão do inexorável supplicio que o levava á morte. XIII. 0 cholera-morbus, manifestando-se nas grandes cidades, arrasta comsigo sobre ellas as maiores desgraças. È este nm facto demasia. damenle provado. À sua influencia mórbida tem sido a mais gera!, mais dominante, mais assustadora por onde quer que passe; a sua causa insólita e geral, sendo mais ou menos re- lativa ás indisposições individuaes, explica-nos de alguma maneira a maior mortalidade nas classes baixas emais desvalidas do povo, por onde de preferencia principiou a invasão da epidemia aqui n’esta cidade. Estas classes des- graçadas de indivíduos mal vestidos, mal alo- jados, e mal nutridos; indivíduos extenuados 182 de fadigas, perseguidos pela fome, atacados de moléstias chronieas, e devorados pelo ex- cesso de bebidas espirituosas; estas classes mais desgraçadas da sociedade, repelimos, fo- ram também as mais soíTredoras desde o appa- recimento do cholera-morbus. Com razão Mr. Boismonl chamou a estas victimas, quando o mesmo facto se manifestou em Paris:—matéria prima das epidemias. A marcha da moléstia menos rapida, no primeiro mez, n’esta capital, que em muitos de seus arredores, mui principalmente nos lito- raes, onde a sua marcha era violenta, deu lo- gar a vinda de emigrados, e essa enchente de alguma sorte concorrera para o seu maior de- senvolvimento. Ja não pranteamos somente a desgraça, que o mal arrastara sobre as pequenas cidades e povoados afastados, choramos agora com maior dôr ainda as misérias, que mesmo no centro d'esta capital apparecem, não obstante haver facilidade maior de soccorro. O cholera augmenta a sua fatal acção sobre 183 esta grande massa de povo; alimenta-se com as victimas, e recreia-se com o terror invencível, que espalha desde a mais immunda casa do po- bre até os mais aceiados camarins de grandes e poderosos. O aspecto da cidade não é menos deplorável que a sua dòr. Vê-se ao primeiro encontro de um amigo, de um indifferente mesmo, que o primeiro cumprimento, a primeira impressão, é de tristeza, porque ouve-se soar a palavra tre- menda—cholera—e de seguida—morte e mi- séria, como sendo estas duas irmãs o seu des- graçado séquito. O desgosto e o desanimo abalem os espíritos, que reagem sobre as forças physicas definhan- do-as, e d’esta fraqueza abusa o genio do mal para roubar-nos immensidade de vidas. O appareeimento da epidemia em todas as freguezias, e n’estas, em muitas ruas e casas; o crescimento da mortalidade; a rapidez com que os symplomas se succediam nos accommettidos até leval-os ao termo da vida; a inquietação e alvoroço no seio das familias em que appare- 184 ciam os primeiros ameaços docholera; uma immensidade de carros fuuebres a rodarem por quasi Iodas as ruas; paviolas cubertas que se viam de vez em quando entrar nos hospilaes; cadeiras, quasi que hermeticamente fechadas, arreadas á porta dos posAos sanitários; estes disseminados por ioda a,cidade; lodo este in- sólito movimento representava tão lugubre es-, pectaculo, que infundia no coração de toda a ]>opulação uma consternação e melancolia ad- mirável, cuja influencia deixava muito a re- ceia r. A medida tomada pelo governo, na institui- ção dos postos sanitários, de que acabamos de fallar, veio tarde, mas ainda assim foi de reco- nhecido proveito á pobreza desvalida e aban- donada no interior immundo e acanhado d’es- sas lojas onde mora. XIV. Desde agosto que muitos estudantes foram suspendidos nos trabalhos scholares pelo go- 185 verno da província, para seguirem nas diversas commissões de que para logo foram encarre- gados. Eu e um amigo (*) e collega, ambos do •>:* anno, fomos por ordem do governo encar- regados de soccorrer aos pobres sob a direcção de iím digno mestre, (**) que fez-nos a honra de escolher-nos para a'freguezia de S. Pedro. E nós fomos chamadosfóra d’esles limites, porque- assim era mister em uma crise em que todos os médicos são poucos, todos os soccorros são in- sufíieientes. Cremos, e cremos com fé nas bem intencio- nadas deliberações da presidência, cremos em seus cuidados, em muitas de suas medidas, •apenas intentadas; cremos que os seus desejos fossem, como o nosso, de ver e$ía cidade eonvenientemente posta nas melhores condi- ções hygienicas, para que os seus habitantes fossem mais ou menos refractarios à acção morbitiea da epidemia-, cremos que a pobreza, (') Antonio Duarte da Sitva. (*•) Dr, S. F. Souto. 186 não toda, mas pequena parle d’ella, fosse pro- vida bem ou mal de algumas necessidades pe- las commissões de soccorros creadas. Mas ain- da assim lemos presenciado factos, que só nos attestam deleixo, abandono e miséria, eque requereriam maior energia da parle de um go- verno illuslrado e humano. Nunca em nossa vida, ó meu Deos, tivemos occasião de presenciar tantas scenas tristes, e de soffrer tantas e tão profundas emoções; sem pratica, e sem experiência dos grandes con- trastes da existência em nossa vida de juven- tude, jamais pensaríamos de caminhar Ião ce- do por uma estrada, onde só encontramos es- tendendo-nos os descarnados braços indigência e miséria. Felizes são aquelles, que encontram sempre em suas casas um pedaço de pão que lhes mate a fome, uma gôtta d’agua que lhes mate a sede, e um enxergão onde possam dormir descuida- dos o somno, que vemsucceder a fadiga do tra- balho. Ainda mais felizes aquelles que vivem conlinuamenle cercados das commodidades da 187 vida, quer se achem no goso de robusta saude, quer no sofírimento de penosa moléstia. E quem gosa d’estas commodidades; quem vive na opulência cercado de luxo e de praze- res, quem vô cumpridos os vaidosos desejos, mal estes despontam no pensamento , quem nunca penetrou estas húmidas e subterrâneas casas para presenciar o que temos visto, por certo não poderá fazer umaidéa exactadoque por ahi vai. E quantas vezes passamos nós por estas ruas, pela frente d’estas casas, sem perceber- mos sequer um ai, um gemido, sem presen- ciarmos as dolorosas scenas que se passam no seu interior, onde figuram muitas vezes velhos cobertos de cans, abandonados e contrariados pelos seus descendentes, orfãos e viuvas , crianças e pobres virgens separadas do tronco e do mundo?!... E as vezes em casas que pelo seu aspecto exterior em nada eommovcm , e muito menos deixam suspeitar misérias á aquelles que por estas ruas transitam. Nós o confessamos com pezar no coração, e 188 ainda com parte das emoções que nos sorpren- derani por vezes, que fazíamos uma idóa rnais vantajosa acerca da miserável classe do povo d’esta gentil e hospitaleira cidade. Es- ta illusão, que adquirimos por alguns annos, perdeu-se em um só momento de meditaçõó! XV. Arremessados em nosso frágil >e pequeno batel de salvação, sollamos-llie as velas ao tu- fão, lancemo-nos ao tumultuoso mar epide- mico; eluctámos inexperientes eonlra o furor das vagas, e o sibilar dos ventos. Os náufra- gos, que ainda tinham forças, que ainda po- ■tfiaft resistir equilibrados sobre os destroces, ou sobre o medonho balouear das aguas, até que podessémos oflerecer-lheà os braços, e a borda do nosso pobre barquinho, eram salvos muitos d’elles... Não dizemos isto para fazer salientes e memoráveis nossos trabalhos e sa- crifícios, não, porque temos passado também ipelo dissabor e desgosto de vêl-os, coiladmhos, 189 .‘ubmergirem-se, e para sempre, nas profunde- zas do voraz abysmo; não obstante os nossos melhores planos; temos visto, ainda mais, se- rem outros arrebatados de nossos braços, da borda esperançosa de nosso batel por. nova e traiçoeira vaga de morte, e sumirem-se para sempre de nossas vistas no bôjo immenso do cavado abysmo. E assim, sem pejo o dizemos, continuamos luclar, sem que possamos descubrir na mcn- e um meio infallivel, um resultado certo. Quando menos esperamos, eis que se que- bram todas as nossas melhores tentativas de encontro a verdadeiros e descarnados faotos! Senhor, quão curta é a nossa intelligencia, e quão infinito é o vosso poder!... Só vós, meu Deos, poderíeis dizer ao leproso—levanta-te, —tendo a certeza de que elle se levantaria são, e livre do mal; só vós descestes lá de vos- so throno augusto para dar vista aos cegos, alia aos mudos, para levantar do pó á rnisc- aveis, e ressuscitar os mortos!... Eis porque dizia Chateaubriand; 190 « O liometn é suspendido no presente entre o passado e o futuro, como sobre um rochedo entre dons pegos, olha medroso para traz e para diante de si, e nada mais descobre que trevas; apenas se lhe figuram ao longe alguns phantasmas, que remontando do fundo dos dous abysmos sobrenadam um instante em sua superfície, mas prestes se remergulham e des- apparecem. » - E assim suecede-nos agora envolvidos n’es- ta almosphera infecta, pizando sobre um ter- reno movediço, que a cada momento se abre para nos submergir no insondável pego. A epidemia cresce, e cresce também a mor- talidade nas classes melhores, até agora pri- vilegiadas. Os seus elíeitossão mais rápidos e mortíferos; os indivíduos que pedem soccorros são muitos; os nossos trabalhos crescem, e com clles augmentam-se os movimentos de nossa alma, maiores são as nossas impres- sões. 191 (iraças aos cuidados e desvelos de nosso mestre, fomos instruídos dos atalhos que de- veríamos seguir para vencermos grandes obs- táculos, que muito nos embaraçariam, como inexperientes estudantes, na carreira difficii em que nos empenhamos. Mas a lide em breve fizera surgir diante de nós, fracos athlelas, novos obstáculos, como se fossem insuperáveis gigantes de pedra, que entulhassem o escabroso caminho por onde de- veríamos passar. Avante,—dizia-nos sempre o coração palpitante, e avante seguíamos, embora esses gigantes de mármore, insensí- veis e indifierentes aos nossos embaraços e mais vehementes desejos, zombassem muita vez de nossos grandes esforços. E com quantas difficuldades não luclará o proprio medico pratico na crise actual? Âquelle que sem pêjo disser o contrario deve necessa- riamente a cada instante apanhar a mascara 192 Ua impostura com que se tenta encobrir, por (jue ella lhe cahirà por muitas vezes para des- mentil-o. Temos entrado em casas, que mereceriam antes o nome de grultas ou de cavernas, ja pela posição subterrânea, .ja ,pelo seu aspecto interior. Acompanhai-nos a uma cfestas, atra- vessemos o seu limiar, e veremos o seguinte : o seu pavimento húmido e sujo, collocado uma braoa, emais, abaixo do nivel da rua, as suas paredes escuras, immundas, parecem acanhar em um circulo de ferro ainda mesmo os maio- res espaços, de maneira que os seus habitan- tes, ahi encerrados e constrangidos, mal po- dem respirar. Mas o que respiram elles se não uma atmoephera infectada e húmida, que se condensa perigosa nas células hediondas de laes cubículos? Causas da mais perniciosa in- salubridade ahi se tornam salientes aos olhos perscrutadores da caridosa humanidade. Mas ainda isto não é tudo. Alli n’aquelle quarto escuro anceia nas an. gustias da morte, um indivídua, acolá outro, 193 ambos atacados do mal epidemico, ambos tor- turados pela miséria. Um d’elles tem por leito lima esteira sobre o chão tão negro, como o seu proprio martyrio, outro jaz immovel sobre um estrado de páu e sem cobertura, vêde-os, eomo são expressivos aquelles olhos fundos e baços, que se movem sob as roxeadas e rugo- sas palpebras, aquelles lábios sequiosos e con- frangidos parece que blasphemam contra o mundo egoisla, que não os soccorre, que os não vè. E caso celebre, ao pé d’estes leitos chora uma mulher, e a dous passos mais dor- me uma criança nos braços de uma joven, que desponta a sua aurora de felicidade, por entre um vagalhão de morte; o pranto queima-lhe o colorido das faces, e filtra—lhe nos lábios a ci- cuta do desespero; este botão de flôr que desa- brocha vê cahir as suas folhas , sem que as viessem namorar os primeiros raios do sol, sem que beijassem-n’as os matutinos zephiros. Mas qual o papel que representam esles tres entes? Equaes os esforços que elles empregam para a salvação d’aquelles dous enfermos ? 194 Se podessemos apreciar sempre o que senle a alma pela manifestação exterior, teríamos comprehendido, ao primeiro lançar de olhos, sobre o mystericso quadro, todo o seu pensa- mento. Era alli toda a familia, é verdade, mas esta familia esgotara a ultima gôtta da laça, que lhe enchera a mão da miséria; porque ja no maior desanimo chorava sem esperanças de ser util.—Ella não dispunha de meios curati- vos,—não possuía um real para a sua ma- nutenção , nem uma creada havia por quem mandasse á rua, a casa estava sem agua, e sem lume!... Oh! tudo ahi respirava necessi- dade e miséria... E o que seria de um medico, que entrasse á chamado de quem quer que fosse no seio d'es- ta casa?... Qual seria o seu expediente? Pois em similhantes embaraços nos temos visto, e descrever não sabemos o que nos fez sentir tão fortes impressões, que nos conimu- nicaram por vezes estas secnas de dôr, e de consternação. 195 Ja hoje graças á Deos, o medico tomará o unico expediente que tem, dando parte ao sub- delegado da freguezia, e este, por meio de uma guia, enviará os enfermos d’esta ordem para os postos sanitários, onde deverão ser tractados á custa do estado. Mas ha bem poucos dias es- tes recursos ainda não existiam, então o medi- co, similhante ao militar inerme na occasião do contlicto, se considerava inútil no meio de uma tal desordem, diante de moribundos , e abandonados enfermos, cercado de uma famí- lia também afflicla, e soffrendo os mais rigo- rosos tractos, se não do proprio mal epidemico, ao menos da fome e da miséria. Oh!... que venha o medico mais pratico, e mais endurecido no gemer continuo dos des- graçados, presenciar comnosco taes scenas, que nós o veremos tão embaraçado n’esse inex- tricável labyrintho de miséria, como uma po- bre criança a engatinhar sobre tropeços. Firmemente assim o acreditamos, porque nem o medico de hoje é o predestinado Moysés, que, com a sua varinha de condão, fizera ver- 196 ter agua da rocha de Horeb, e cahir maná dos- céos para matar a fome c a sède á seus fer- vorosos filhos, e nem nós somos aquelle jk>vc de Israel inspirado pela Providencia. XVII. Com este aspecto repugDante e triste temos- encontrado, máu grado nosso, numerosas ca- sas, e muitíssimas scenas de causarem ao mes- mo tempo terror e compaixão. Para quem sabe e conhece a moléstia, para quem tem presenciado o seu rápido desenvol- vimento, a sua marcha, a sua terminação, os seus caprichos emfim, eque por consequência sabe lambem, quaes os cuidados e interesse que taes doentes reclamam, para estes, digo, a pobreza é bem digna de commiscração; por que a experiência nos diz que morrem antes pelas privações, pelas necessidades continuas, e pelo desamparo, do que pela intensidade da moléstia. É visitando as incógnitas moradas da indi- 197 jgencia, fitando os olhos compassivos sobre os denegridos relevos, que os afeiam, descorti- nando todas as suas carunchosas paredes, es- preitando os seus mais intimos latibulos, me- ditando maduramente nas causas, enos efiei- tos de tudo isto, que chega-se ao conhecimento verdadeiro do que seja—miséria; é meditan- do no continuo soíírimento d’aquelles, que in- felizmente vivem ou vegetam debaixo de sua terrível influencia, que se admira, e louva ao mesmo tempo a sublime idéa, que nasceu do chrislianismo—a caridade! Só a mão poderosa da caridade poderia mi- norar no seio de muitas dVslas casas desgra- çadas o horror., que ellas inspiram, e até mes- mo cortar as raizes venenosas de vicios e cri- mes , que n’ellas se germinam , orvalhadas muita vez com lagrimas de desespero, e ba- fejadas com o árido sopro de sentidos ais! Ouizeramos que o governo, quando não presenciasse comnosco o original de tão lúgu- bres quadros, ao menos lançasse suas vistas mais perscrutadoras sobre a copia, que por 198 muitas vezes tem tido occasião de presenciar. O povo d’esta cidade em geral, ainda mes- mo o da classe mais indigente, mais desprovi- da, tem uma repugnância manifesta para tudo quanto lhe parece hospital; repugnância esta, que o leva a preferir, e supporlar as mais pal- pitantes necessidades, os mais dolorosos sof- frimenlos, o abandono, e até a morle sobre o seu proprio e miserável leito de amarguras, quer seja este formado em uma esteira sobre o frio chão, quer sobre a dureza de um pedaço de ta boa! E singular! Parecerá incrível, mas não é, não : se qui- zerdes provas irrefragaveis, que comprovem ainda uma vez o que acabamos de dizei-, per- guntai a esses moços empregados nas diversas eommissões de visitas domiciliarias o que ob- servaram a este respeito, durante o cumpri- mento de tal missão, perguntai-lhes, que lodos vos responderão por um.—« Oue de vezes não temos sido mallractados com palavras pou- co decentes e injuriosas por esses indivíduos, 199 que procuramos para indagar de suas preci- sões, de sua saúde, e de seus padecimentos?!... E muitos d’elles, menos grosseiros, que nos fal- tam, ou nos respondem, mostram-se incom- modados com a visita. Estão ja tão prevenidos que oceultam-se, e negam os padecimentos, com o temor de serem conduzidos para o hos- pital, ou para os postos sanitários!... » — Eis o que vos responderão as próprias tes- temunhas, que invocastes. Mas qual a causa de tamanha repugnância da parte dos proprios indivíduos, que preci- zando da mão caridosa da Providencia, des- prczam-n’a, quando elia tenta arrancal-os do pó da miséria, e livral-os do martyrio?!... Será o sentimento tino do coração, (pie, des- pertando n’essas almas grosseiras, prohibe-as de se separarem dos objeckos mais caros e mais doces da vida, muito embora essa perseveran- ça os arroje ao sepulchro, cercados de todas as necessidades e misérias?!... Será, para o povo, a idéa de hospital tão intima mente associada á de morte, que assim 200 evitam os seus sanctos e caridosos soecorros., quando deveriam procural-os com avidez?!... Será a negligencia e deleixo, que por vezes se tem observado no seio de similhanles asylos n’csta provinda, a causa unica, que produz sobre este povo o tedio inqualificável, a repug- nância invencível aos bospitaes?!... íYestc ponto, teríamos algumas reflexões a fazer sobre a analvse de alguns factos, refle- xões que seriam proveitosas mais ou menos áquelles, que dirigem estas respeitáveis casas, e ao povo, se por ventura não tivéssemos pressa e necessidade de acompanhar o movimento epidemico, que temos diante dos olhos. Agora mesmo vamos encontrando em nosso estradar por esses caminhos de sarças e abro- lhos agrestes mas hellas florinhas, umas des- botadas e pendentes sobre o delgado ramo, ou- tras desfolhadas sobre o crestado tronco. WBBft. Haverá decorrido, U lvez uma semana, que, 201 sahindo eu de unia d’estas casas de infelizes „ onde deixava em tratamento um enfermo gra- vemente atacado do mal epidemico, caminha- va distraindo pela rua do Sudré, dirigindo os- passos para o posto sanitario, da mesma rua, do qual era eu então o ajudante. (*) O dever e a honra ahi me chamavam n’essahora. Caminhava assim distraindo, porque um enlevo de piedosa meditação, concentrando to- do o meu pensamento em um unico ponto, fa- zia-me provar amargas saudades de bem tris- tes recordações. Era na manhã de um dia sombrio e triste, similhanle a muitos que temos visto n’esta crise difticil e dolorosa. Escuros nevoeiros, desenro- lando-sc pela atmosphera, não só nos inlercep- (*) A J2 de outubro fui ainda nomeado, e approvado pelo governo da Província, para occupar o logar de aju- dante d’este hospital, do qual era mui digno direclor o Sr. Dr. Luiz José da Costa. Ainda assim continuei a vi- sitar os pobres, sem que por isto deixasse de cumprir com as minhas obrigações, como prova o attestado, que levei ao conhecimento do presidente da Província, unido a estatística e outros documentos, que diziam respeito aos trabalhos.do dito. posto sanitário. 202 lavamos raios do sol, que reflectiam pallidos e mortiços na orla pardacenta do longínquo ho- risonte, mas ainda espandindo-se por todos os pontos da abobada immensa, abafavam esta soíTrcdora cidade cm uma calmaria incómmo- da e desastrosa para os seus habitantes. Uma luz baça c vacillanle, parecendo antes £i do crepúsculo, que a de uma manhã de outubro, derramava sobre as casas uma côr sombria e triste, como se fôra um dia de rigoroso inverno; e no entanto só de espaço a espaço é que uma chuva pouco abundante humedecia a terra. iVesse caminho por onde me guiava, como que machinalmente, o inslinclo, sérios e terrí- veis pensamentos, succedendo-se rápidos em minha ardente imaginação, entretinham-me o espirito; o coração magoado e triste resentia- se de uma verdadeira dôr. Este pezar que me sobrecarregava a fronte, c que pezava-me so- bre o intimo d’alma, leitores, eu vos eonfesso não era mais que o effeito magico de um qua- dro que encarei. Este quadro pathetico figu- ra ra—se-me desenhado em traços vivos e ne- grOs no interior de uma casa, em que eu acabava de deixar um enfermo, e talvez para sempre!... Era elle um pobre, mas honrado homem, sobrecarregado de numerosa familia, e pela qual, era também adorado com as veras dos itiais doces sentimentos d’alma! E nem poderia deixar de ser assim, se toda essa gente que o rodeava, que o orvalhava de lagrimas, que o embalava com as notas mais sentidas do coração, tinha estampada na fron- te abatida, nos lábios contrahidos, c nas faces descoradas, amargas tristezas e o mais intimo sentimento de dòr e saudades E em minha consciência eu lhe havia dado um prognostico fatal. Em breve quebrar-se-hia o nó forte que prendia tantas vidas, que livra- va do precipício á tantos innocentes!... Quando assim vagava o meu espirito pelos espaços de piedosa meditação, eis que subita- mente sou despertado d’esse enlevo, como de um sonho, por um homem, que me falia, atrar vessando-se diante de mim. 203 204 —Senhor!... Dizia elle um pouco embara- çado, e com uns gestos de inquietação. Era este indivíduo de côr bastante morena, feições grosseiras e irregulares; mostrava pelo traje, que era mui pobre, e pelas maneiras que tinha um bom coração, embora fosse elle d’es- sa ultima classe do povo, em que o vicio com rapidez contamina o homem, sob os auspícios da indigência e da miséria. — Que pretende, camarada? exclamei eu, sahindo do meu entorpecimento para aju- dal-o em sua missão, que ja de antemão advinhara. —Ha muito que procuro um medico, tornou elle, e se não ouvisse, d’aquella casa de onde vossa senhoria saliiu á pouco, uma senho- ra toda em pranto dizendo — o doutor ainda alli vai, por certo que teriam muita queixa de mim, porque voltaria sem encontrai o; mas agora sou mais feliz, porque encontrei-o. E depois de uma pequena pausa, que lhe deu logar a respirar, elle com um ar de supplica -continua:—«Senhor.... queira por piedade 205 ir ver a nossa visinha, pobre mulher, para que não morra ao desamparo. Acompanhando toda esta narrativa voara de novo meu pensamento á casa do enfermo, de quem tinha tanto dó, vira-o espirar, dei- xando toda a família em horroroso pranto de desgraça; mas tudo isto se passou tão rápido no meu espirito como o proprio pensamento ; estas suas ultimas palavras foram tão allenla- tamente ouvidas c pezadas por mim, quão prompta a minha resposta na seguinte pbrase: —Ja, não ó possível, camarada; de volta do hospital lá irei. — Senhor.... me interrompeu elle excla- mando com profundo sentimento, e levando um lenço sujo a lesta para limpar o suor, que lhe cahia em bagas. — Mas o que tem a sua visinha ? Lhe per- guntei eu ja tomado de um interesse pela sua causa. —Oh! senhor! está muito doente, e quem sabe, talvez que morra... —De cholera? Lhe interrompi eu precifú- 206 lado, e quasi sem me aperceber; só o habito em que estava de ouvir a todo o instante esta phrase,íizera-m'a escapar espontaneamente dos lábios. Se bem que o povo, de qualquer clas- se que fosse, ja então sabia de cór iodos os symptomas do mal reinante, c por consequên- cia poderia mais ou menos orientar ao medico em lacs circumstancias, comludo eu jamais houvera-lhe perguntado assim, se não fora o cholera a idéa terrível, que de continuo me atormentava a mente. — Affirmativamente me respondeu o indi- víduo, e accrescentando ainda mais as seguin- tes palavras, que echoarain-me no coração. —E desde hontem a noite que cila soííre sem ninguém o saber!... —Como assim!... Abandonaram-n’a ? —Não, senhor, ainda peior; elta não tem uma só pessoa por quem chame em seu soc- corio, e.... —Não tem irmão, parente, ou amigo que a proteja?... Lhe tornei eu ainda mais interes- sado. 207 — Ah ! quem lhe o dera... respondeu elle consternado deixando escapar um suspiro , que lhe comprimia o peito. Ila poucos dias per- deu a unica esperança que tinha na vida. Ti- nha um marido bom e honrado, era elle tanto seu protcetor como seu escravo, mas esse ma- rido, que era o exemplo dos casados, mor- reu do tlagello da peste, deixando-lhe como unica herança duas filhinhas orfãs e desva- lidas!.... —Oh! é bem infeliz!... Aonde mora? lhe tornei eu commovido por similhante desgraça. —Aqui ao descer d’esta ladeira. —Qual a casa? não tem numero? —Ah!... não sei, me respondeu elle tornan- do-se triste por não me poder satisfazer a per- gunta: tamanho era o seu interesse! mas, co- mo que por uma inspiração doscéos, elle se lembrou do numero da sua casa, e m’o eom- munica. —É quanto basta, meu amigo, em breve lá estarei. E dizendo isto fui-mo apartando do ]>obre homem, que franqueou-me então a pas- sagem, mas não deixando de balbuciar, ainda que com receio, a phrase tão usada d’aquelles que assim pedem. —Senhor Doutor, não falte... —Serei pontual, disse, e retirei-me apres- sado para o posto sanitario. 208 Um quarto de hora depois d’este encontro, que aqui fica descriplo, entrava eu em uma ca- sa, eesta se bem que pobre e desprovida de tudo quanto lhe era mais necessário, não dei- xava no entanto de apresentar a primeira vista um aspecto melhor e mais aceiado do que o de outras muitas em que lenho entrado duran- te este máu tempo! E creio que os leitores não terão esquecido os subterrâneos que vimos. Era a morada da infeliz! Duas pequenas mezas nuas, uma mar- queza de gosto antigo, e ja bem usadas combi- navam-se perfeitamente com quatro cadeiras do mestuo lheor que se perdiam 11a sala : eis 209 toda a sua mobília, ou rica ou pobre ora ludo ahi. Entrei quasi que dGspoticamen'e n’esta ca- sa, depois de ter balido mujlo á porta, sem que uma \i\a alma, uma voz ao menos me per-? millissc a entrada; outro qualquer teria-se re- tirado julgando-a inhabitada; mas não me suc- cedeu o mesmo, por que eu estava bem infor- mado. Ahi tudo era silencio, ja parecia annun- cjar-me a morada da morte. Ou fos-c por lembrar-me com uma viva emoção da historia do visinho, de suas sup- plicas, que se combinavam perfeilamepic com esse silencio, ou fosse por uma inspiração pie- dosa c de humanidade, que bafejando-me o eoração fizera-me resoluto c firme n’esla in- vestigação, eu senti que uma força me jmpellja a obrar assim. Entremos, me dizia uma voz intima, e eu para logo transpuz a porta, e ainda tive animo de chegar até defronte de uma alcova, cuja porta aberta deixava ver o seu interior. Os >#ei)s olhos devassaram-no coo) rapidez, e 210 pousaram sobre um quadro tão singular, cuja lembrança ainda agora mo faz contraiu* o co- ração; tal foi o doloroso pezar que lhe impri- mira a scena que vou referir! Oh! foi ella bem triste, e talvez não saiba agora descrevôl-a, porque não me é possível, porque não tenho imagens com que compare o que sentiu minha alma então. A vossa imagi- nação, leitores, suprirá a da mi- nha desconhecida penna. Ahi vai: Bem no centro d’esse quarto pouco claro, por isso que só recebia a luz pela unica porta que deitava para a sala da frente, existia um enxergão estendido sobre o pavimento assoa- lhado, é verdade, mas um pouco cnnegrecido; sobre elle achava-se deitada uma pobre mulher ainda joven, cujas feições pallidas e decompos- tas deixaram-me logo perceber a gravidade de seu penoso estado. Não obstante o grande sof- frimento e a mudança, que n’ella linha operado a moléstia, descobria-se um rosto regular e feições bellas: n’essa posição abatida e triste 211 representava ella uma d'essas passagens tão bem buriladas pelos gregos, exprimindo não as dòres physicas, mas sim as dòrcs moraesque fazem o martyrio do sentimento materno!.... K assim era, porque os seus olhos fumlos e morliços, cobertos de uma nuvem pallida, pa- recia quererem sahir das cavadas orbitas pa- ra absorverem com singular avidez duas crian- cinhas nuas, que volteiavam á borda do leito com olhares indecisos e proprios de sua iono- cencia. Eu me servirei agora das bellas imagens do que o poeta usou nos seguintes versos: Eia a infância dormindo na desgraça, Esquecendo risonha a voz da foino, Era a vida a raiar entre os andrajos, A indigência assentada ao pé do berro! (') E estas pobres crianças, logo que me viram, admiradas da estranha visita pularam sobre o eolxão; e uma «relias era tão tenra que não (*) A. Lima—Mnrmutios Puclicos, 212 o fi/ora som difficuldade, pareceu-me que ainda engatinhava; não sei se tiveram modo, con- chegaram-se á mãi, e a mais crescida chorou : o som (Tente vagido fizera estremecer a mãi, que assim Ião angustiada, quanto enfraquecida, contentava-se de seguir com os o)hos baços o fundos o repentino movimento de suas duas innocenles íilhinhas. E tudo isto se passou em um momento tão curto, que muito maior é o espaço do tempo em que levo a descrevêl-o. Pareceu-me que essa pobre senhora, não obstante a sua dôr moral, c os seus los physicos, ja me havia presenlido, ponjVie achei-a decenlementc coberta sobre o seu leb |o de agonia. E nem um signal de repreliepT são deixara perceber á minha alfoita jmpriw deneia!... Longe de reprovar o meu procedimento, ella o garantiu com uma expressão de docilidade, que a sua delicadeza fizera reapparecer-lhe no rosto pallido e frio. Animado por uma lai ex- pressão. eu aproximei-me do leito, puehoj de 213 uma cadeira ahi abandonada, e sentei-me ao seu lado levando immediatamente a mão ao seu pulso, que era quasi filiforme. A minha primeira pergunta, acompanhada logo de um ligeiro exame da moléstia, de seu periodo assás adiantado, foi ainda ouvida por ella que debalde tentou responder-m’a. A sua prostração, a sua voz debil e inteiramente eu- phoniea, não se prestaram aos seus bem co- nhecidos esforços. E n’este momento duas la- grimas erystalisadas rolaram por sobre a sua resfriada face, talvez fossem ellas duas gôltas de um causlico energico, que transudavam da coração para evaporarem-se com a sua utiiea esperança. Eelizmenten’este embaraço, em que me achei só e insufficiente, tive ao menos uma lembran- ça amiga, que me sugeriu talvez a piedade, puehei de uma pequena ambulancia que levava dons frasquinhos , combinei cuidadosamenle os remedios que elles continham, cujas pro- priedades bem me certificavam de sua acção prompta e segura; dei-lhe a beber algumas 214 gAltas dentro de uma colher cheia d’agua, pa- ra combater senão lodos os symplomas em si, ao menos aquelles roais perigosos que ja prin- cipiavam a se manifestar. Fazendo de minha parte tudo quanto me a- conselhára a razão, aíim de ver se obteria al- gum resultado feliz sobre esta desvalida mu- lher, eu tinha a consciência tranquilla, mas ainda assim desconfiava dos meus esforços em- pregados contra o mal epidemico, que se des- envolvera com tão violenta marcha em sua economia. Jaella se achava gravemente enferma: os signaes caracteristicos que se manifestavam nos alhos alquebrados c indecisos, na face de- composta e livida, uma especie de marasmo que succedera-lhe a inquietação e a fadiga, Indo emfim falia ria ao practico mais ou menos habil dos breves instantes de vida que lhe res- tavam. 215 E eu, cada vez ma is embaraçado me via n'es- sa lucla, cm que ma empenhara com Iodas as forças, vendo assim que as fibras flaccidas dos seus orgães alterados ja não reagiam sob a influencia da aoção medicamentosa, que as suas forças vilães, ja quebradas de encontro ao entorpecimento do organismo, nem mais se re- senliam das impressões estranhas, porque se achavam dominadas por uma influencia mór- bida assás poderosa, que progredia ccm rapidez. Difficil era a minha posição, penosa era mi- nha tarefa; procurava então em roda de mim alguém que me ajudasse, c via-me ião só, tão constrangido, e tão sem esperanças, como se estivesse no meio de um arido deserto, procu- rando debalde vencer o seu areal infindo; pres- tando a maior alteneão n’este isolamento pro- curava descobrir, ou sentir alguma voz que me animasse, que me fallasse, algum ouvido que me ouvisse, algum coração que se abra- çasse com o meu, que palpitasse por ella, al- gum olhar de compaixão que pousasse senão so- bre aenferma, ao menos sobre as innocentes me- 216 trinas, e nada via... Um silencio profundo rei- nava enlre as paredes que nos cercavam, como o silencio dos tumulos que alvejam sob o negro véo da noite—lá no retiro de um cemiterio!... Sonho vão!... O que mais procuraria eu, •se tinha ahi debaixo dos olhos (oda a familia da casa?!... Amos e servos, parentes e amigos eram consliluidos unicamente por essas Ires victimas, bem dignas de compaixão, c dos soc- corros dos homens. As únicas vidas, que me faziam companhia n’esse recinto de ferro, eram as duas pobres crianças; foram cilas testemunhas de minha dedicação, embora tqdo ignorassem. Mas essa própria innocencia basta para justificar-me nos olhos de Deos. Goiladinhas... n’essa idade pura da vida eram estranhas á tudo quanto ahi •se passava; sorriam e choravam á borda do leito, e sobre o corpo extenuado da carinhosa mãi que as olhava com anciae ternura, que tentava em vão beijal-as, e abraçal-as ainda uma vez, quando as forças abandouavam-n’a.». Desditosa mãi! 217 A dôr, que lhe traspassava a alma, era da mais acerba agonia; porque ella bem longe de poder acariciar as suas desvalidas íilhi- nhas, apertando-as de encontro ao seio, só lhe era dado agora vêl-as, e soflrer um supplicio terrível! N’este momento o seu semblante tomando uma suavidade angélica, o seu olhar lixo e terno pousando de novo sobre ellas, os seus lábios se entreabrindo parecia sorrirem com doçura, similhantes á flôr pallida, que de- sabrocha açoutada pelo rijo sopro da tempes- tade que lhe rouba os perfumes... Debalde ella procuraria sorrir, porque o coração de mãi chorava, e vertia o pranto de saudades nas pérolas, que deslisavam pela sua face húmida e fria. Eu testemunhava com respeitoso silencio to- da essa dolorosa scena, leitores; comprehen- di-a perfeitamente, e sabe-o Deos o que me hia pelo coração. Yi n’esta mulher o exaltamento apaixona- do de um amor puro, que só é dado sentil-o o coração de mãi, sobrepujar a dôr da agonia, e 218 escarnecer da morte !... Esta exaltação do amor materno era a symthese agonisante de sua vida inteira Vi n’estas crianças duas flores de innocen- cia, que sendo ameaçadas pela furiosa rajada do furacão que se preparava ao longe, sor- riam, sem suspeitarem-n’a, reclinadas sobre as macias folhas do vaidoso galho, e mandando ao Senhor sobre as azas da mensageira briza os seus perfumes tão puros como os cânticos dos anjos Pobres crianças! tinham diante de si o qua- dro pathetieo da desgraça, o mais tocante que ha na vida dos filhos, por mais longa que ella seja... Eno entantoencaravam-n’o quasi com indiííerença!... Sorriam e choravam , como que por uma necessidade, sem que as suas fa- culdades ainda pouco desenvolvidas podes- sem lhes fazer descriminar os mysterios da vi- da nas paixões e nos sentimentos d'alma. E assim ellas, ja orfas de pai, sêl-o-iam— 219 talvez em breve da carinhosa mãi, esquecêl-a- iamcomo crianças, talvez... Mas não, esta lembrança eterna que a mão regelada da morte grava no coração dos filhos jamais se apagará, nunca. Se na vida tenra da infancia a innocencia não sabe avaliar a dôr pelo sentimento, sa- bêl-o-ha mais tarde na idade da consciência e da razão; e então tanto mais profundo será este golpe no intimo d’alma enluctada peta indifle- rença horrível, que lhe vota o mundo estra- nho... Então é que esta alma expandindo-se pelo martyrio das saudades chega a attingir a verdadeira realidade; mas ah!... esta realidade ó um sonho que passou, deixando-lhe somente na memória—o desengano—Sim o desengano, porque das venturas e delicias d’esse tempo fe- liz nada mais gosará a orfandade, senão de sua eterna e saudosa lembrança... VM. 0 remedio efíieaz que eu administrara por 220 rezes em estado similhante á’outros enfermos, vendo-o produzir como por encanto os mais felizes resultados, infelizroente n’esta creatura ■cnhnm eíTeito produziu ! Não me cansei mais em esperar. Uma resolução firme convinha que eu to- masse, e esta resolução confundia-me o pen- samento no labyrintho das idéas, que giravam- me no cerebro. Uma força de vontade fazia-me proseguir por entre esse turbilhão de idéas, regeitando umas, abraçando outras; por isso que eu via traçados sobre o seu rosto cadavé- rico os accidentes, que se manifestam capri- chosamente no terceiro periodo do cholera. (*) E ella tinha tocado esse periodo onde se quebram todas as esperanças dos práticos, os mais babeis, periodo esse em que o medico vê levantar-se diante de si e sobre o vasto promontorio de sua sciencia uma negra morta- lha—fluctuando! E ella linha locado esse (*) É á cslc periodo que chamamos lambem o ultimo da lerrivcl moléstia.» 221 periodo no qual só poderia salval-a, não a sa- bedoria dos homens, mas sim a intervenção da mizericordia de Deos!... —E é da intervenção e da mizericordia de Deos que ella precisa—me disseram ao mes- mo tempo o coração e o raciocinio. PCeste momento deparei com a verdadeira idéa, que procurava para jôrem practica, a minha firme resolução estava tomada. Deivei por um instante o quarto lugubre, a moribunda, e as pobres crianças que ja cho- ravam provavelmente obrigadas pela fome. Corro com presteza ao encontro do caridoso visinho, que para ahi me havia chamado, que- ro vôl-o, quero fallar-lhe, e pedir-lhe a sua protecção derradeira sobre os últimos momen- tos da infeliz e desgraçada creatura. E sabeis o que eu ia dizer-lhe? O que eu ia pedir para ella á este homem, que para mim não era mais que um desconhecido?... Eu ia pedir-lhe, visto que se mostrara tão interessado por ella ainda cá pouco, que fosse agora em busca de um padre, um confessor 222 para que lhe viesse administrar o Sacramento, e lodos os sanclos soccorros de que ha mister uma alma christã. Com esta idéa a ferver-me na mente chego rápido á casa do visinho; halo a porta, trans- ponho o seu limiar, dirijo-me logo á primeira pessoa que encontro, vejo-a chorando, e mais adiante... oh! fico aterrado, porque vejo o proprio homem que busco agonisanle sobre um estrado á entrada do primeiro quarto d’esta nova casa. Era elle! Qual não foi a minha sorpreza ao Ver ful- minado pelo mesmo mal esse homem, que ain- da á pouco caridosamente alli me conduzira para curar da sua desvalida visinha; esse mes- mo homem á quem eu procurava agora para que fosse prestar-lhe o seu ultimo auxilio?! Vós bem podeis avaliar da emoção que teria sentido o coração de um pobre môco sem pra- tica, sem experiencia, arremessado pela vez primeira no campo das misérias, e vendo sur- gir á cada passo diante de si um grupo de iu- 223 felizes sobre o dorso immenso do pavoroso gé- nio das ruinas. Pareceu-me n’esse momento que ja estava vendo pelo caminho escabroso de minha missão a realidade da harmoniosa descripção do poeta nos seguintes versos : Ei-lo na cama o triste moribundo, Que anceado embalde ao céo os olhos volve; Surda aos ais da afOicção, sedenta a morte Em suas azas furiosa o envolve. E o padre que o Infeliz agonisante Co’a palavra de Deos então soccorre, Sua augusta missão sublime c sancta Inda não terminou... vacilla e morre! E o orfãozinho que chorou medro.o Vendo o pai juncto á mâi cahir gelado, —Fria estatua de dòr entre cadaveres— Também por tim—ai Deos!—cabe derrubado. E o coveiro que a terra húmida c fria Sobre os restos mortaes robusto atira, Súbito pára, paliido... convulso... Juncto d’elles baqueia... rola... expira ! Sancto Deos, não ouso levantara minha voz fraca e esteril contra a vossa immensa justi— 224 ca!... não; admiro antes a sublimidade de vos- sos mysterios, que não é dado a mesquinha ereatura comprehendôl-os, e supplico-vos com o mesmo pensamento que harmonisou na lyra -esse joven poeta: Oh tu que reges os mundanos fados, Sè compassivo, meu senhor, meu Deos! Volve o teu rosto ao pcccador conlricto; Mizericordia para os filhos teus. (*) wia. Agora que sabemos da fatalidade, que ar- rastara sobre a casa do pobre visinho o capri- choso inimigo, suspendamos, leitores, ojuizo mais ou menos frivolo e temerário, que por ventura tivéssemos feito á seu respeito. Pouco depois do encontro inesperado que comigo tivera na rua do Sudré, fôra elle ac- eommetlido da moléstia, e com tal força, que o conduzia a devoção, agora se recolhe no in- ferior de suas casas; e essa multidão desappa- rece como por encanto. Nada ha mais sublime do que a meditação, que vai fazer adormecer agora essas cabeças mais ou menos illuminadas pelo fervoroso amor da religião. A noite húmida e feia apaga com o seu si- lencio os últimos echos dos cânticos do crepús- culo, afugenta >com a sua mortífera geada os últimos indivíduos que transitam, e mui pou- cos agora se encontram, a não serem algu- mas pobres mulheres que se deixaram ficar á porta do templo, e que só agora é que acor- dando do extase religioso procuram fugitivas o abrigo de suas moradas. 242 Uma immensidade de fogueiras espalhadas por todos os pontos da cidade se vê; o seu cla* rão derrama pelo longo das ruas desertas e tristes um brilho ephemero, que longe de em- belecer a cidade e excitar alegria aos seus ha- bitantes, entristecem-n’os ainda mais, porque trazem recordações amargas. (*) As casas quasi todas sem luz e sem vida con- servam desde o anoitecer as suas vidraças des- (*) Muitas (Testas fogueiras de que falíamos, eram feitas pelos moradores defronte de suas casas, porém o maior numero d’ellas era por conta do governo. Essa medida aconselhada pela juncla de hygiene publica, foi conveniente, ao menos nos parece, porque, quando ellas não satisfizessem o fim para que haviam sido destinadas, ao menos aqueciam o ar húmido, que pezava sobre nós de umamaneira insólita. Lembramo-nos agora doqueouvi- mos por muitas vezes dizerem as velhas c beatas a este respeito, c aqui copiamos a sua opinião. Tinham ellas, e parece-nos que terão scntpré fé viva e convicção funda dc que estas fogueiras eram a prova completa do castigo de Deos; porque, diziam ellas, o governo, que havia prohibido o costume antigo e religioso dc se accende- i'cm fogueiras pelas ruas na noite de S. João, era o proprio que as mandava acccnder agora em tempo in. opportuno não só pelas ruas mas até pelos becos e la- deiras. como que por urna retribuição ao gloripso sanc- to, visto o abuso que commcltera de infringir as leis sa- gradas dos antigos costumes religiosos. cidas, as janellas cerradas, e os seus morado- res ainda assim julgam-se pouco resguarda- dos do vehiculo pestilencial!... Venha aquelle, que curioso passeou pelas ruas da cidade n’essas horas silenciosas da noi- te, quando o pensamento oscilla entre a duvida e a realidade do que vê, e diga-nos, se não im- pressionou-lhe o espirito o espectaculo insolito que viu? diga-nos se não sentiu uma emoção viva e profunda repassar-lhe de tristeza o cora- ção? senão soltou um suspiro? se não implorou á Deos a sua saneia mizericordia, sentindo-se esmagado diante dos mysterios da immensi- dade ?!... E no entanto elle nada terá visto; nada mais terá observado, que a solidão e melancholia que entristece a cidade. É no interior d’essas casas, que nada revelam pelo seu exterior, que os acontecimentos se multiplicam, que muitas desgraças se manifestam, e que maiores misé- rias confrangiriam, se possível fosse, corações de mármore. 243 244 WVI. Esles acontecimentos se multiplicam de uma> maneira que não nos é possível descrevêl-os com todas as particularidades,, que vamos ob- servando com o titulo emprestado de medico; e nem elles caberiam nas poucas paginas de nosso pequeno volume de impressões. Scenas singulares se passam, e a todo o mento se reproduzem ahi em cada rua, em cada canto, mas é que a desgraça é a própria que occulía a destruição que faz, quando ponsa sobre a classe pobre, abafa os seus gemidos e suspiros para que ninguém os ouça, evapora as suas lagrimas para que ninguém as veja , para que ninguém as sinta causlicar—lhe o co- ração. Não é menos deplorável e tocante o que en- caramos agora no recinto d'esle posto sanilario em que somos empregados; aqui e alli enfer- mos de ambos os sexos, e o maior numero d’el- les velhos e cansados, alguns sem esperanças 245 de vida, porque bateram-nos a poria ja no ulti- mo lampejar da existência, e sem os podermos salvar, persistimos debalde, como succedc á aquelle que espivita o pavio em que bruxoleia a luz vaeillante, prestes a derramar no ultimo darão o resto do gaz que a nutre. Empregados e enfermeiros circulam este a- canliado espaço em diversos sentidos; o Via tico entra e sabe para cumprir com a sua sancta mis- são; uns doentes expiram, outros-se restabele- cem, e sabem agora como que admirados com a sua trouxinha debaixo do braço, o carro fúnebre ouve-se rodar na calçada, o cada ver é levado; novos doentes entram, e todo este movimento quasi continuo!... Iguaes scenas se reproduzem nos diversos postos sanitários disseminados pelas ruas d>s- ta capital. Equcm não sentirá uma impressão profun- da ao visitar as enfermarias dos hospitaes em que se tratam—cholericos?... Citaremos um trecho do sabio Chomel, que descreve com a mais perfeita exaclidão este 246 ■especlaculo na sua cloquonlc lição inaugural, recitada á 31 de dezembro de 1832 na cschola de medicina em Paris. (*) « A longa fileira de leitos (dizia elle , nos quaes a agonia e a morte se mostravam debai- xo de um apparato por toda a parte novo para nós, e por toda a parte o mesmo; a còr azulada dos doentes; a immobilidade das feições, a voz exlincla, e como scpulcbral, o frio húmido tegumentos; a ausência do pulso n’aqueUes que conservavam c executavam ainda alguns movimentos; as correntes de liquido esbran- quiçado e turvo que por intervallos lhe saldam da boca; as caimbras e as angustias que pre- cediam, em alguns a prostração comatosa; o augmento extraordinário dos empregados; o movimento continuo dos que traziam novos doentes, e transportavam os mortos, esta aí* fluencia desacostumada de estudantes e facul- tativos atlrahidos pelo justo dever de observar (*) Vcja-sc a Historia da Cbolera-morbus rm Paris pelo Sr. Dr. Francisco de Assis Souza Yaz. 247 e conhecer a doença, que se annuneiava por um modo Ião terrível; a expressão de tristeza e desalento que se notava na pliysionomia do maior numero, a alteneãocom que escutavam as retlexões dos facultativos que tinham ja ob- servado a doença e os resultados obtidos pelos primeiros ensaios therapeulicos; o interesse que se mostrava pelos doentes que luctavam mais tempo que os outros com o terrível mal, e que havia esperanças de arrancar á morte; tudo isto formava um quadro tão extraordiná- rio e Ião lugubre, que o facultativo que o tiver presenciado, por muito acostumado que esti- vesse ao ospectaculo das misérias humanas, o conservará sempre na lembrança. » Eis o que observamos nas enfermarias dos hospitaes em que se recebem—cholericos. Não poderíamos pintar-vol-o de uma manei- ra mais natural, e com mais precisão, do que o fez o Sr. Chomel n’estas poucas linhas coi>r tidas em sua sabia lição. 248 Wlll. lia em lodos os paizes entre as diversas ' classes da sociedade uma parle do genero hu- mano, que, parecendo gosar mais ou menos dos prazeres c vaidades da vida, parecendo mesmo ostentar pompa e grandeza de mistura com risos de alegria e felicidade no meio do materialismo grosseiro em que vive, soíVreeon- linuamente o desprezo e abandono do mundo, e passa pelas mais horríveis decepções em vez de gosar da supposla felicidade, que deixa ver esse brilhantismo ephemero, com que tenta eWa encobrir as torturas de uma vida desregrada, e cheia de torpezas. É d’esla parle, ou anles d'essa classe, com- posta de mulheres degradadas do seu primitivo esplendAr, de mulheres mercadejadas a troco de sua própria infamia, que temos occasião de ' fallar agora. Kssas miseráveis creaturas, sendo arremes- • sadas por uma tremenda fatalidade no procel- 249 iòso niardàs paixões ignóbeis, vivem adorme-- eidas sobre os destroços de seu naufragio, ba- tidas pelos vagalhões da miséria, sem que ou- sem levantar as decahidas frontes. E debalde le- vantadas- iam, porque no escuro horison te de sua- desgraçada exislencia não surgirá mais um as- tro de esperanças, nem um santeimo que as guie, porque trazem marcadas essas mesmas frontes com o estigma da deshonra! E são ellas entre nós ainda mais miseráveis pela indigência om que vivem. N’eslas crises de moléstias principalmente em vez de excitarem odio e desprezo, inspiram dó e compaixão; porque passam por tão gran- des privações, por tão horríveis desgraças, por tão lastimosas misérias, que seriam estas bastantes para expiação de sua criminosa vida. Mas a sociedade egoista, que no tresvario da abrazadora febre crestou-as com o seu en- venenado hálito , reduzindo-as a abjecção e aviltamento, é a própria que escarnece de sua irreparável degradação, e que as fulmina com a reprovação eterna. 250 Sim, esses proselytos da corrupção social, qlie ainda mais desgraçados perderam-ivas, arrastando-as ao crime torpe c a maldição eter- na:; esses, particularmente, que com afagos e nojentos mimos roubam-lhes a pureza, o bri- lho, os donaires, e até as carnes de suas ele- gantes fôrmas, são os pfuprios que na crise actual fogem de suas habitações, evitam en- contral-as no leito da agonia, e deixam-n’as morrerem á mingua!... Em vez de as soccorre- rem elles, senão como cúmplices ao menos co- mo seus similhantes, mandando-lhes a esmola de caridade, gloriam-se como feras estúpidas de ouvir ao longe obaque da incauta preza, que cahiu nos seus astuciosos laços! Foi para estes que o grande poeta francez exalou do coração o bello pensamento nas ho- ras mortas do crepúsculo em harmoniosos ver- sos; estudai-o, homens de marmo e, el e vos pertence: Oh! n’insultcz jamais une feinmc qui lombe ! Qui sait sòus quel fardeau la pauvreàme sucçombe! Qui saiti combien de jour sa faim a combatu! 251 Comrae au bout d’une brnnche on voit étincelcr Une goutte dc pluie oú le ciei vient briller, Qu’onsecoue avec i’arbrectqui tremble, e qui iutta, Perle avant de lomber, et fange après sa chule! (*) E não foram muitas d’estas mulheres que trazem hoje desbotadas as vivas côres das fa- ees, que trazem os olhos incendidos na volúpia de criminosos desejos, que trazem os lábios crestados epallidos pelo hálito de vendidos bei- jos, que trazem o coração manchado e dene- grido pela influencia deleteria do vicio e da in- famia, não foram muitas d’estas frágeis crea- turas, repetimos, desthronadas de sua mages- tosa posição, illudidas em suas mais innocen- tes aspirações pela corrupção da sociedade ? E não é por demais egoista e ingrata esta sociedade, que não perdôa a victima de seus frívolos caprichos, de suas paixões insensatas, quando esta geme ao pezo de sua miséria?... Oh! amaldiçoada a serpe que se aninha a som- bra do viçoso arbusto para envenenar a seiva ,(*) V. Hugo—Les chants du crépuscale. 252 de suas raizes, para murchar-lhe as folhas que lhe deram abrigo e agasalho. XXVIII. Longe de querermos encobrir a iníluencia ;perigosa e corruptível do vicio em que jaz mer- gulhada esta porção do genero humano, en- caramol-a com repugnância, e manifestamos com horror os seus resultados sempre cruéis, mas olhando para esse quadro da vida huma- na, encarando o algoz de tantas victimas, não podemos deixar de exclamar com o poeta : Ingrato Que maleGco atiras Pedras ao rio que te mata a sede Co’a lymplia doce e pura. (') O que dizemos é que o philosopho, ou qual- quer oulro indivíduo, que, deixando de parte o odio e o amor, observar com calma os soffri- unentosque acompanham effectivamente estami- .(*) Francisco Moniz Barreto. 253 seravel classe de mulheres, não deixará por eer- todelastimal-as, eperdoal-as; porquea suacou- demnavel fraqueza, o seu aviltamento depende as vezes de um simples acaso, de uma acção m- ■nocente e insignificante, de um sonho, de um capricho, de um movimento, cmfim, que pare- ce antes ser esse destino filho de uma fatalida- de, do que de uma vontade do espirito. Ao menos assim nos parece. « Loucos são aquelles, diz Lopes de Men- donça, que acreditam que ha almas nascidas para o vicio, assim como organisações íadadas ao culto da virtude... Entre os instinclos e a vida, entre as aspirações do coração e os phe- nomenos da existência social ha uma potência tremenda, uma fatalidade medonha que decide da sorte das creaturas, que arranca as illusões da fronte das mulheres que nasceram puras, que estanca na sua alma os sentimentos gene- rosos, que as degrada, que as infama, que as arremessa para o inferno de um vicio sem grandeza e sem poesia: umas vezes é a misé- ria, outras a decepção de um amor trahklo, c 254 quantas o orgulho de aflrontar a opinião, e de esmagar com desdem o proprio desprezo ! « Explicar, continua elle, de um modo uni- forme o myslerio d’essas existências femininas que se venderam aos caprichos e vaidades da opulência, seria ultrajar a natureza humana, e elevar uma paixão abjecla á altura de una dogma social... O mal é que para essas mulhe- reso arrependimento é impossível, e que as mais orgulhosas hão de coroar-se com a infamia, e vingarem-se pelo escandalo do sentimento de sua irremessivcl degradação. « E porque é que o arrependimento as não pode salvar? One direito ha n’uma sociedade corrupta e infame para não abrir o seu seio ao v icio commeltido nas regiões inferiores ? . . . Porque é que esses homens políticos que mer- cadejam com o talento, que toda essa crapula moral que se agita insolente, c que domina ar- rogante, foge espavorida diante do estigma que mancha aquellas frontes ? » 255 As retlexões que acabamos de fazer, segui- das d’estas idéas livres do joven escriptor por- tuguez, não pareçam absolutas e sem appliea- ção, não! São ellaspor demais aqui cabidas; porque um sentimento intimo de compaixão e de piedade desafiou-nos a meditação sobre es- te ponto. Inspiraram-nos as grandes e conti- nuadas misérias, que vemos pezar sobre esta classe de mulheres infamadas sem futuro mo- ral possível ao vér d’esses severos juizes. E além de tudo, vemol-as entregues ao cataclys- ma do tremendo supplicio, abandonadas á nu- dez e a fome (muitas d’ellas) sem garantias, sem forças, sem recursos, e finalmente pros- tradas sob a influencia da mortífera epidemia, que vai levantando sobre as suas frontes ja en- rugadas traços vivos e indeleveis de acerbas dores, de pungente agonia. \\l\. No meio de todo este movimento insolito, que nos trouxe á epidemia, apparecem scenas des- 256 ordenadas e feias, como as sonhara o cerebro de um condemnado á hora da execução, ou como as devessem vèr em febricitanle delirio os olhos de um louco, pregados na grade que o traz emparedado!... Ecsta classe, anathema- tisada, de que falíamos, ou antes, essas mu- lheres perdidas na orgia, embriagadas na de- vassidão, macilentas e fanadas, como flòres ca- bidas ao rijo sopro da ventania de inverno so- bre tremedal impuro; sim, estas pobres mu- lheres sigilladas com infamia ao primeiro sorrir da volúpia representam agora n’estas scenas de agonia o seu papel bem triste... Esqueci- das, talvez, das dobras vaporosas e ondeantes de suas manchadas vestes, do tremular elec- trico dos seus impuros seios, dos requebros fas- cinantes de suas bem contornadas formas, do quebranto estudado em dias de necessidades, ellas estorcem-se e convulsam tiritando nos lares da miséria; porque sentem locar-lhes as carnes a fria lamina da espada da condemna- ção, como um queimar de brazas no paren- byma de suas palpitantes vísceras; porque 257 vêem diante de si alravéz a pallida nuvem que lhes venda os olhos cansados—o anjo da jus- tiça Ião implacável, como o seria diante de um íhálamo coberto de sedas e matizado de flôres, mas cujas sedas e flôres estivessem húmidas de lagrimas, borrifadas de sangue... e a honra ahi—prostituída !..... Bem dignas são de similhante castigo, dirá algum ente inflexível e demasiado severo, em cujo coração o sentimento se tenha apagado, as libras se tenham irregelado á custa de evapo- radas lavas. Mas não o diremos nós que lemos no Genesis, no primeiro livro do nuindo, no li- vro da ereação, que o lypo mais perfeito d’es- se sexo frágil, por isso que partira directamen- ie das mãos de Deos, cedera o paraizo de de- licias ao scintillante olhar de uma vil serpente ! Illudida pelo seu magico sibillar, escarnecida, e arrastada por esse nada da creação, ella foi perjura a face do seu—Immenso Creador!... Quem não passa por decepções na vida ? Quem não sente fundir-se-lhe no coracão em 258 lavas ao ferro do punhal homicida, que disfar- çado vem enlre flòros e rizos? Quem não sabe que deixa para sempre um vácuo no inlimo d’alma a perdida flòrda esperança? E quanlas vozíes não derramamos lagrimas sem (pie a te- nhamos perdida, mas só porque vemel-a quasi, quasi a mergulhar-se enlre as trevas da fatali- dade, como o sol deixando o brilho embebido nos vapores lá nas linhas reílectidas do horison- te para mergulhar-se nas aguas do oceano ? Quanlas vezes não senliinos saudades profun- das sulcar-nos as faces, eontrahir-nos os lá- bios, humedecer-nos as palpebras ao soluçar de uma briza, que nos deixa ouvir em melan- cólica nota o nome da mãi que adormeceu no tumulo, e que adoramos no ceo?... E aludo isto chamamos martyrio... Que- remos logo que nos venha refrigerar a mente escandecida o benefico orvalho do céo. Oh! como somos egoístas! Embriagados a olharmos o.manso lago de nossa vida, aonde recreamo-nos em ver boiar algumas saudades e suspiros apenas, mas sempre flores, não nos 259 importamos com os nossos similhantes, cuja sorte adversa fal-os soffrer, amarrados á única taboa de seu batel, os açoutes de raivosas e bramidoras ondas, que lhes quebram nas foces espumas de escarrieo. \\\. A \ida, na phrase elegante do Eugênio Pel- letan, é a arca Divina lançada sobre o abysmo. Será assim ? Talvez para quem sente ainda os perfumes de candidas flòres adejarem-lhe na fronte, mas para essas desgraçadas ereaturasque calcaram aos pés acapella de flôres virginaes, e respiro* ram uma vez os narcolicos vapores de seus apo. drecidos cálices, oh! para estas, a vida é antes um abysmo, onde não alveja uma vela na ex- trema do horisonte, onde não resurge uma es- perança real, nem sobre a serra ondulante que se alevanta ás nuvens, nem no insondável seio em que se afoga, e se perde em convulsões a vaga. 260 Já se perderam sob o desabar dos séculos estas imagens de Venus impudica, ede volup- tuosas baechantes, que se erguiam sem pejo nos templos idolatras sobre a cabeça de um po- vo inteiro, sobre o cimo de soberbas memórias no meio das praças publicas, e até lá bem no centro dos paços dos reis para regerem os des- tinos do mundo. Jamais se alevantarão ellas sobre os pedeslaes de mármore de onde tom- baram para sumirem-se nas pavorosas trovas do paganismo, jamais apparecerão de fronte erguida com riso soberano e insolente sem co- rarem-lhes as faces, a não serem buriladas ou esculpidas unicamente para recordarem a era fatal, e servirem de ludíbrio aos olhos de um povo civilisado. Quando a antiguidade , revolvendo-se na arena vertiginosa da Grécia, eno vasto amphi- theatro de Roma pagã e polluta, desfolhava as llôres puras do sentimento sobre o lodoso char- co de um sensualismo furioso e delirante, sem temor, nem esperanças de uma regeneração ííutura;—quando aquelle povo ebrio e desvai- 261 rado pelo ardor da insania maculava a imagem dos sonhos dourados da existência, revelada nos paramos dos céos, e no reverberar de lú- cidas cstrellas , — quando aquella existência infantil voava sobre azas de lúbricos e condem- naveis desejos ao commercio infame do que havia mais nobre e sagrado, para saciar-se na soffreguidão de illicitos prazeres, similhante a um bando de eôrvos sobre as carnes podres de um abandonado cadaver; então a classe d’essas mulheres perdidas occupava insolentemente e sem rebuço um logar menos indecoroso en- tre as outras classes da sociedade , porque eram ellas inoculadas do vicio e da infamia pe- la immoralidade de seus proprios costumes. A falta de castidade e de pudor, a ignorân- cia dos predicados religiosos no sentimento do amor, e o instinclo animal e grosseiro arrasta- vam aquellas vidas á degradação, como nos provam os melhores cânticos de Catulo, de Ti- bulo, de Parnv, as tragédias de llerodoto, de Sophócles c Eschilo, os poemas de Virgílio e lloracio; e até o proprio Cícero assim se expri- 262 me : —« Este sentimento vulgarmente chama- do amor é indigno do homem . » E nem podia deixar de ser assim, se os an- tigos levados tão somente pelas impressões dos objectos exteriores esqueciam a belleza dos sentimentos, e malerialisavam as inspirações mais sublimes do espirito. A lucla interior, que nas gerações modernas decide-se sempre em fa- vor da luz brilhante queillumina o espirito, pa- ra elles era ao contrario uma futilidade, uma chi mera, e terminava sempre pela adhesão es- túpida e grosseira a realidade visivel e palpavel que lhes ofterecia aos olhos o mundo physico. E assim confundiam os objectos e as côres, o vi- cio e a virtude, a alma e o corpo, o sentimento e as sensações, collocando tudo no mesmo pla- no, na mesma situação, sem se lembrarem de destacar as côres e as sombras no fundo do quadro, que lhes devesse representar a vida em todas equaesquer circumstancias. Eis, pelo que não se encontra em suas obras que fielmente nos representam os seus costu- mes, essa belleza peculiar tão somente a mo- 263 ralidade da acção, e que é a base dos poemas modernos, por isso que étambem a dos nos- sos costumes. E como poderiam elles comprehender a phi- losopbia sentimental das acções, se ignoravam o jogo das idéas, a natureza dos objectos, o Contraste dos eíTeitos, e os caracteres da situa- ção? Jamais chegariam a sentir, e manifestar como Shakspeare essa melancolia dilacerante e tão expressiva nos sentimentos profundos , nas decepções d’alma, e nas contrariedades do espirito; jamais comprehenderiam os im- pulsos palpitantes de um amor innocente, e muito menos descreveriam como Lamartine a sublimidade de um amor puro manifestado no caracter angélico de Grasiela. Mas deixamos esse assumpto, porque, além de não ter cabimento aqui, nos levaria muito longe; trataremos somente do que diz respeito ás mulheres para podermos provar o maior soffrimento, e a miséria d’aquellas que hoje vemos pertencer a classe infamada. 264 XXXI. Pelo que ja hemos dito, devereis avaliar lam- bem o que eram as mulheres de então; em quanto virgens eram coagidas, mas sem pres- tigio algum; estranhas ao movimento social, eindiflerentes aos aíTectos de ternura e de amor; por isso que eram encerradas e humilhadas no estreito circulo da escravidão, não podiam comprehender uma idéa virtuosa e nobre, um pensamento grande e sublime que lhes devesse arroubar o espirito ás regiões ethereas do sen- timento. Eis porque em nenhum apreço tinham essa corôa de virgem que ennobrece e divinisa a identidade da mulher, eis porque não havia entre os sexos um contracto verdadeiro e synallagmatico, eis porque ellas arrancavam da fronte altiva as candidas flôres com que as fa- dàra Deos, e afogavam-n’as no charco immun- do da devassidão e da crapula; eis porque manchavam os proprios templos de seus idolos, consagrando-os á libertinagem em honra de 265 Mylitta, c de toda essa multidão de divindades eróticas. E julgavam ellas terem tocado o pomo de ouro, quando se entregavam assim escanda- losamenle nos lupanares á lascivia da mais es- túpida sensualidade. No entanto que as mu- lheres de hoje conhecem a sua desgraçada ab- jecção, se por ventura sentem-se cahir do thro- no em que as colloca o sentimento, o pudor, a virtude e a honra. (*) De nada valem hoje (*) Ha dous dias, deu-se um exemplo n’esta cidade bem frisante, e que comprova exuberantemente o que deixamos dito. Foi no dia 21 de maio , que Mme. Laporte suicidou-se para não trocar a sua honra pelo ouro, semeado na estrada do vicio e da vergonha, e que só Ih’o ofTerecíam á custa de seu aviltamento, de sua prostituição ! A acção infame de quem quer que a con- duziu corajosamente ao suicidio, é imperdoável Eis a sina d’aquellas, que, como Mme. Laporte, tèem valor bastante para salvar a honra ameaçada in- solentemeute pelo vicio ao despenhadeiro da corrup- ção. Eis ainda um crime perante Deos à que são arras- tadas aquellas, que á custa de suas vidas dão um exem- plo de moralidade a sociedade corrompida. Que virtude! que resignação não foi a sua, quando escreveu sem tremer — «Uma mulher como eu quebra mais não dobra, como o aço que se parte, c não verga.» Não podemos resistir a tentação de mimosear aos leito- 266 as bellczas materiaes que seduziam os antigos pelas suas fôrmas bem delineadas, pelas linhas convexas e bem acabadas de um perfil capaz de inspirar o artista a manejar o sinzel ou o escôpro; a civilisação chrislã, pelo contrario, engrandece a esphera do sentimento, enno- brece as creaturas, ecolloca-nos acima do ma- terialismo grosseiro, para podermos avaliar no espirito os combales interiores das paixões, as rcs com duas estrophes, ao menos, da linda producção do Sr. A. J. Rodrigues da Costa, intitulada a Mulher de Aço, feita em allusão á este mesmo facto. E não a dobrastes!—Scraphico busto O collo robusto Em beijos vendidos não foi polluir! E não a dobrastes!—estatua de aço De angélico traço — Do ouro o contacto não pôde fundir ! Vestida de crepes—nos olhos o pranto Fitaste-lhe o encanto A mão lhe oiTerecestes em vil protecção ! Julgastes á força de torpes favores Comprar-lhe os amores ! Mas não a dobrastes !—traidor! maldição ! A carta que Mme. Laporte deixou escripta peio pro- prio punho para justificar o seu suicídio, é digna da ler- se. (Veja-se o Jornal da Bahia de 23 de maio.) 267 impressões diversas da dôr, do prazer , da tristeza, da alegria, da esperança, do goso, do amor e das saudades, afim de que nos interes- semos pela situação diversa de cada uma d’ellas. Este aperfeiçoamento do espirito, que tem caminhado sempre á par do progresso da ei- vilisação moderna, é o proprio que nos tem feito distinguir na mulher o sêr por excellencia que nos prende a vida. Só ella é que nos faz mi- tigar as dôres e os sofTrimentos, que nos esti- mula, e nos eleva a praticar as acções mais no- bres; só ella é que nos afasta o tedio, e que nos apparece como um anjo de salvação , quando solitários e tristes vagamos pelos de- sertos da descrença, similhante á aquelle que appareeeu a Agar para sublrahir-lhc o filho á uma morte lenta e desesperada. E, sendo assim, as mulheres de hoje alcan- çando o verdadeiro logar que lhes compete entre as sociedades modernas pela nobreza dos sentimentos, tanto maior é o seu avilta- mento, quando chegam, imprudentes, a que- 268 brar essas cadeias que as mantém puras no equilíbrio de seus deveres moraes e virtuosos-. Eis por consequência um modo de existir d’es- sa classe miserável de mulheres perdidas mui diíTereníee peculiar á cada uma das eras de que aqui tratamos. As dc então gosavam es- candalosamente dos prazeres que lhes trazia a condição libertina, e julgavam-se felizes. As de hoje, além de escarnecidas e degradadas, lêem consciência do papel infame e vil que re- presentam, sem mais uma esperança de sal- vação perante a justiça dos homens. Eis, leitores, as pobres reflexões que nos suggeriram as desgraças d’essas desvalidas creaturas na crise actual, cilas excederam os limites do assumpto, que nos propozemos a tradar, bem o sabemos, mas desculpai, que não nos apartaremos mais da esphera em que devoramos estar colloeados. Jamais tivemos occasião de vei* tão bem 269 provada a maxima popular:—o castigo do vi- cio é o proprio vicio,—porque além da lepra que cobre essa classe de mulheres, e que as separa do mundo moral, veio a epidemia reduzil-as ao ponto em que a própria miséria horrorisa-se de si. Entremos em suas habitações, cheguemos ao pé de seus leitos de agonia; lancemos agora itm rápido olhar sobre ellas. Oh ! não as podeis encarar, recuai, e fugi, não é assim?!... Bem o diz La Rochefaucauld, que a morte é como o sol, que vemol-o, mas não o podemos encarar fixameníe. E quem poderia ver muitas d’ellas por mais de mármore que fosse, sem sentir o pezar es- capar-se-lhe do coração para anuviar-lhe a fronte ? Ahi jazem abandonadas de todo o carinho, privadas de soccorros, esmagadas ao pezo do solTrimento, votadas á desesperança, e redu- zidas, emfim, a mudez completa do isolamen- to c das trevas. E n’esle estado arrancariam 270