FAEULDADE DE MEDICIIttA DO RIO DE MIRO THESE DO lulio ila Typ. de J. D. de Oliveira - Rua do Ouvidor n. 141. f 888 DISSEHTAÇÂO CADl IRA DK MATÉRIA MEDICA E 1'IIERAPEUTICA ESPECIAI.MENTE BRASILEIRA ACÇÃO PHYSIOLOGICA E THERAPELTIGA 1)0 LEITE PROPOSIÇÕES CADEIRA DE MEDICINA LEGAL E TOX1COLOGIA Idade do feto cadeira de pathologia cirirgica Ferimentos por arma de fogo cadeira de pathologia med ca Dysenteria. THE SER APRESENTADA A' FACULDADE DE MEDICINA 1)0 RIO DE JANEIRO em 3i de Agosto de i883 em 12 de Dezembro do mesmo armo PELO |í)r. jiilw garbosa thi (findui NATURAL DO RTO DE JANEIRO FILHO LEGITIMO DO D''. Aiitonio Luiz Baiboza da Cunha E DK D. Jesuina Rosa Sampaio da Cunha. RIO BK JAKtíiHO Typ. de J. D. de Otireiru = Hhu do Ouvidor. III. 1883 FACULDADE,DE MEDICINA DO 1110 DE JANEIrlU DIRECTOR Conselheiro Dr. Vicente Cândido Figueira de Saboia. VICE-DIRECTOR Conselheiro Dr. Anlonio Corrêa de Souza Costa. SECRETARIO Dr. Carlos Forreira de Souza Fernandes. Drs. : João Martins Teixeira Physica medica. Conselheiro Manoel Maria deMoraes eValle. Chimica medica e mineralogia. João Joaquim Pizarro Botanica medica e zoologia. José Pereira Guimarães Anatomia descriptiva. Cons elheiro Barão de Maceió Histologia theonca e pratica. Domingos José Freire Júnior Chimica organica e biológica. João Baptista Kossuth Vinelli Physiologia theonca e experimental. João José da Silva Pathologia geral. Cypriano de Souza Freitas Anatomia e physiologia pathologicas. João Damasceno Peçanha da Silva Pathologia medica. Pedro Aflbnso de Carvalho Franco Pathologia cirúrgica. Conselheiro Albino Rodrigues de Alvarenga Matéria medica e therapeutica, especial- mente orasileira. Luiz da Cunha Feijó Júnior Obstetricia. Cláudio Velho da Motta Maia Anatomia topographica, medicina ope- ratória experimentai, apparelhos e pe- quena cirurgia. Conselheiro A. C. de Souza Costa.... Hygiene e historiada medicina. Conselheiro Ezequiel Corrêa dos Santos.... Pnannacologia e arte de formular. Agostinho José de Souza Lima, Medicina legal e toxicologia. )C1"- »««« S 1 Clioica d. adoUos. Hilário Soares de Gouvêa Clinica ophthalmologica. Érico Marinho da Gama Coelho Clinica obstétrica e gynecologica. Cândido Barata Bibeiro Clinica medica e cirúrgica de crianças, João Pizarro Gabizo Clinica de moléstias cutaneas 3 sypinl- ticas. João Carlos Teixeira Brandão Clinica psychiatrica. LEMES CATHEDRATICOS LENTES SUBSTITUTOS SEKVINDO DE ADJUNTOS Augusto Ferreira dos Santos Chimica medica o mineralogia. Antonio Caetano de Almeida Anatomia topographica, medicina opera- tória experimental, apparelhos e pe- quena cirurgia. Oscar Adolpho de Bulhões Ribeiro Anatomia descriptiva. Nuno Ferreira de Andrade Hygiene e historia da medicina. José Benicio de Abreu Matéria medica e therapeutica especial- mente brasileira. ADJUNTOS José Maria Teixeira Physica medica. Francisco Ribeiro de Mendonça Botanica medica e zoologia. Histologia theorica e pratica- Arthur Fernandes Campos da Paz Chimica organica e biologica. Pliysiologia theorica e experimental. Luiz Ribeiro de Souza Fontes Anatomia e physiologia pathulogicas. Pharmacologia e arte de formular. Henrique Ladisláu de Souza Lopes Medicina legal e toxicolugia. Francisco de Castro Eduardo Augusto de Menezes Bernardo Alves Pereira Carlos Rodrigues de Vasconcellos Ernesto de Freitas Crissiuma Clinica medica de adultos. Francisco de Pauia Valladares Pedro Severiano de Magalhaes Domingos de Góes e Vascuncellos Clinica cirúrgica de adultos. Pedro Paulo de Carvalho Clinica obstétrica e gynecologica. José Joaquim Pereira de Souza Clinica medica e cirúrgica de crianças. Luiz da Costa Chaves de Faria Clinica de moléstias cutaneas e syphili- ticas. Carlos Amazonio Ferreira Penna Clinica ophthalmologica. Clinica psychiatrica. N. B.- A Faculdade não approva nem reprova as opiniões euiittidas nas tnese que lhe são apresentadas. Typ. e lith.de J. D. de Oliveira - Ttua do Ouvidor n. 111, A memória de meos Avós Conselheiro Dr. Lourenço de Assis Pereira da Cunha Manoel Alves de Azeredo Sampaio I). Jesuina Rosa Pnnentel Sampaio \ memória de minhas Irmãs Julia. Paiilina, Izabel e Luiza. A memória de meo Tio e Padrinho Manoel Alves de Azeredo Sampaio Júnior A MEU PAE Rinmnmmiuncini A' MINHA MÃE 1 mu nu «ffl u ciffl A' MINHA AVO' D, Jolia Aflelaifle Barbosa da (Mia A meus irmãos Francisco Barbosa da Cunha E Francisca Carolina Barbosa da Cunha A' Exm'. Sr' D. Maria Augusta Vieira de Mattos A MEUS TIOS tiile Stshii fistíra ia ftih E M êbsw Bstlm twttti <i 1»®1b A MINHAS TIAS AS EXMS. SRAS. IL Aielaii» Eailia ItatelE® 4a flurta v xksS x* *g< SSTir.cssÃwm xrf mH E >, Maria imbroiiia fieira da Gasta A M:EBS PAB1BTES A MEUS AMIGOS A MEUS GOEEEGAS A MEUS MESTKES DISSERTAÇÃO CADEIRA DE MATÉRIA MEDICA E THERAPEUTICA A® FHYSIOLDGICA E MifflTICA DO LEITE PREFACIO Se nos limitássemos exclusivamente ao enunciado do ponto, que escolhemos para a dissertação, dividiriamos o nosso trabalho em duas partes : em uma primeira nos occupariamos da acção physiologica, e em uma segunda tratariamos dos usos therapeuticos do leite, sem que por isso podessemos ser taxados de incompletos, no emtanto julgamos conveniente fazer preceder esse estudo de al- gumas noções sobre as diversas phases porque tem passado o leite, empregado como medicamento, e sobre as pro- priedades physico-chimicas e composição d'essa subs- tancia ; e terminar indicando quaes os modos, como è empregado e as dóses em que é administrado. De cinco capitulos, pois, constará o nosso trabalho : historico, composição, acção physiologica, acção thera- peutica e modos de administração e dóses. Poderíamos, é verdade, nos occupar dos usos médicos do koumys e do soro do leite (petit-laifi ; porém julgamos que assim procedendo nos afastaríamos do plano traçado pelo enunciado do ponto, e seriamos taxados de exage- rados ; para evitar taes escolhos ficaremos fiel ao pro- gramma, que deduzimos da interpretação do ponto. 4 HISTORICO O emprego do leite no tratamento de diversos estados morbidos é certamente tão antigo como a própria me- dicina. Já, com effeito, os Asclepiades de Cnido o empregavão no tratamento das affecções chronicas, com exclusão de outro qualquer medicamento ; e o medico Pithoclés, ci- tado por Hyppocrates, prescrevia aos seos doentes leite e o hydrogala. Foi, porém, o Pai da medicina o primeiro que for- mulou regras positivas sobre o emprego do leite em diversas affecções ; o que se deduz do aphorismo 64 do quinto livro, assim concebido : « Donner du lait á ceux qui ont de la cephalalgie, c'est mauvais. II est également mauvais (d'en donner) aux febri- citants, á ceux dont les hypochondres méteorisés sont parcourus par les borborygmes, à ceux qui sont aíterés, á ceux qui, dans une fièvre aigue, ont des evacuations al- vines vicieuses et à ceux qui rendent beaucoup de sang par les selles. II convient au contraire aux phtisiques, quand ils n'ont pas une fièvre trop violente ; il est également bon d'en donner dans les fièvre lentes et de longue durée, pourvu qu'il n'yait aucun des signes qui viennent d'être mentionnés et quand la constipation est extraordinaire.» (1) (I) Hippocrates-Obras completas-Aphor-Vsec. aph.61-Trad. Littré. 5 Era, pois, nas febres hecticas e nas febres remittentes symptomaticas, que Hyppocrates e sua escola empregavão o leite. Dioscorides, Aretêo, Plinio, Aetius, Galeno, Avicenna, Guy-Patin, Hoffmann, Petit-Radel, Van Swieten, Syden- ham e a maior parte dos médicos da antiguidade e da idade média administravão o leite aos seos doentes, ajun- tando certas precauções, baseadas nos perigos que elles julgavão sobrevir do uso d'essa substancia; ignorando, com effeito. a coagulação normal do leite no estomago por acção do sueco gástrico, elles vião nesse facto perigos, que os conhecimentos physiologicos vierão depois destruir. Como faz observar Pecholier, (i) em seo importante trabalho sobre a medicação lactea, os médicos arabes, ardentes partidários da polypharmacia abandonárão as prescripções do regimen lácteo, tão bem estabelecidas pela escola hippocratica substituindo-as por suas numerosas drogas. Durante a idade média as propriedades therapeuticas do leite forão, ora sustentadas, ora depreciadas pelos mé- dicos. Foi com Vischer (2) e depois com Costoeus (3) que a dieta lactea começou de novo a ser devidamente apreciada. Porém só mais tarde foi que os trabalhos de Sydenham, Vogel, Hoffmann, Cheyne. Petit-Radel, etc., tornárão melhor conhecidas as indicações do regimen lácteo, fa- zendo-o entrar em uma nova via, que deveria dar origem a estudos conscienciosos da parte dos modernos thera- peutas. (Ij Pécholier-Indic. de 1'emploi de la diète lactée dans div. mal.-Montp. med. t. XVI-1866. (2) Vischer-De lactés ejusque partium natura et viribus- Tubingue-1586. (3) Costceus-De facili medicina perceri et lactis usum-Bolonha-1595. 6 No começo d'este século as vantagens da dieta lactea erão perfeitamente conhecidas da maior parte dos mé- dicos illustrados; a utilidade do leite no tratamento de certas moléstias, como a phtisicà pulmonar, as differentes hydropisias era geralmente reconhecida. Se de uma vez para sempre o leite adquirira os direitos de cidade na therapeutica moderna, era preciso porém es- tabelecer as suas indicações de um modo preciso. O em- pirismo tinha estabelecido a utilidade do leite n'estas e n aquellas affecções ; cumpria agora á sciencia determinar as indicações positivas. Tal foi o trabalho dos médicos modernos; Chrestien, Serre (d'Allais), Dupré, Guiniér, Karell, Pécholier, Jaccoud, Peter, etc., incumbirão-se da tarefa, e hoje as indicações da dieta lactea achão-se perfeitamente estabelecidas. 7 COMPOSIÇÃO O leite, producto da secreção das glandulas mamma- rias, representa por sua composição, o typo do alimento completo. E assim devera ser; destinado com effeito, a constituir a alimentação exclusiva dos mammiferos na primeira parte de sua existência, o leite devia conter princípios capazes de manter a nutrição e pr omover o crescimento do jovem ser. A sua composição chi mica podia, pois, ser estabelecida a priori; princípios azot ados, graxos, assucarados bem como saes, além da agoa, taes são os elementos necessá- rios para formar um alimento complet o ; o leite os contém todos. O leite é um liquido branco, opalescente, de consis- tência xaroposa, de cor amarellada, visto em grande massa, porém azulada em pequena quantidade. De sabor doce e agradavel, o leite tem um cheiro es- pecial, sui generis, cheiro que pouco accentuado a frio, torna-se intenso por acção do calor. A densidade do leite varia nas differentes especies ani- maes ; segundo Filhol e Jolly é no de mulher de 1.026 a 1 .o32, no de vacca de i.o32, de i.o3o para o de cabra, de 1.028 a i.o32 no de jumenta, 1.029 no de burra, 1.087 no de ovelha, 1.040 no de cadella e no de porca de 1.044. O leite não se altera por acção do calor ; porém, en- trando em ebullição, abandona uma certa quantidade de princípios solidos, que se depositão no fundo e nas paredes 8 do vaso, constituindo na superfície uma tenue pellicula, conhecida pelo nome de nata, pellicula que se renova uma vez tirada. Abandonado a si mesmo o leite, no fim de 24 horas, se divide em duas partes, uma superior, constituindo o cremor ou coalho, e outra inferior, o soro ou serum. Examinado ao microscopio, observa-se ser o leite consti- tuído por um liquido em que nadâo numerosos globulos esphericos, lisos, de contornos bem limitados, tendo de i/5o a 1/100 do millimetro de diâmetro, chamados cor- púsculos do leite ; e, segundo Quevenne, também de finas granulações, de aspecto especial, completamente indepen- dentes dos globulos. Alguns auctores julgárão ser os corpúsculos do leite seres organisados, gozando vida própria ; Turpin affiança ter visto esses corpúsculos se transformar em um cogu- mello, o Penicillium glaucum, e attribue o engorgitamento das mammas á germinação intempestiva dos globulos de leite nos conductos galactophoros. Taes affirmações não passão de supposições erróneas, a que ninguém hoje dá credito. Os corpúsculos do leite, que constituem a manteiga, são limitados por uma membrana própria, que impede a sua reunião, ou, ao contrario, não a possuindo, existem no serum como em emulsão ? As opiniões varião a esse respeito. Uns, como Mandl, Hendle, Simon, Dumas, Mitscherlich, Turpin, etc., admit- tem a existência da membrana envoltoria, baseando-se em que o ether, excellente dissolvente dos corpos graxos, não é bastante para, sem a intervenção de um alcali ou acido fórte, retirar do leite toda a manteiga por simples agitação, e em que esmagando-se no campo do microscopio, os corpúsculos do leite, vê-se sahir, d'entre os fragmentos das capsulas envoltorias uma substancia límpida, a manteiga. 9 Outros, ao contrario, corno Quevenne, Filhol, Jolly, Robin, etc., não admittem a existência da membrana en- volvente. Coulier considera os corpúsculos do leite como consti- tuídos por pequenas gottas de graxa solidificada, envol- vidos do muco, que enduz os conductos galactophoros, constituindo assim um envolucro muito delgado. Propriedades chimicas.-O leite apresenta uma reac- ção fracamente alcalina, quasi neutra ; raras vezes acida. De numerosos trabalhos tem sido objecto o estudo da composição chimica do leite ; não pretendendo apresen- tal-os todos, nos limitamos a extrahir do artigo de Du- quesnel no Nouveau Dictionnaire de Médicine et de Chi- rurgie practiques, a lista das substancias que entrão na composição do leite. Agoa Margarina Butyrina Caprina Caproina Myristicina Palmitina Stearina Butina Lecithina (Gabley) Matéria graxa Caseum Matérias albuminoides Matérias extractivas Assucar de leite ou lactina Phosphatos de cal » magnesia » potassa » ferro » manganez » soda Chlorureto de potassium » sodium 10 Soda livre ou combinada com matérias organicas Acido láctico ou lactatos de potassa e de ammonia. Silicatos Fluoruretos Enxofre Iodo Urea Creatina (Commaille). (i) A estes princípios devemos ainda accrescentar os gazes que existem dissolvidos no leite, taes são o acido carbó- nico, o oxygeno e o azoto. Em resumo : agoa, substancias albuminoides, substan- cias graxas, assucar e saes, taes são os princípios contitu- tivos do leite. A quantidade d'esses princípios não é a mesma nas diversas expecies animaes, e ainda no mesmo animal, se- gundo condições differentes, que mais adiante examina- remos. Da these de Debove (2) extrahimos o seguinte quadro, que mostra as dilferenças de composição dos leites de vacca, cabra, ovelha, burra, jumenta e da mulher. Para 100 partes. Vacca Cabra Ovelha Burra Jumenta Mulher Ag'a . 837.05 863,58 136,42 839,89 910,24 828,37 879,08 110,92 Matérias solidas . 112,95 110,11 89,96 171, .2 Caseína Albumina 48,28 5,76 36,eo 12,99 | 53,42 » » » Manteiga 43,05 43,57 58,90 12,56 68,72 26,66 Assucar de leite 40,37 40,0 L 40,98 57.02 86,50 43,61 Saes inorgânicos 5,48 6,22 6,31 1,38 O professor Fonssagrives, (3) baseando-se na riqueza relativa da manteiga, da caseina e da lactose nos diffe- rentes leites, os divide em tres categorias : i° leites gordos, (1) Duquesnel, Art. in Nouv. Dict. de Med. e Chir. pract. pag. 61. (2) Debove, du régime lacte dans lea maladies These de Paris 1678. (ty Fonssagrives, hygiene infantil pag. 135. 11 characterisados pela grande quantidade de manteiga e ri- queza média de caseum e de assucar, taes são os leites de cabra e de vacca ; 2o leites caseosos, characterisados pela abundancia do principio coagulavel. como os de cabra e de ovelha ; 3° leites magros e assucarados, taes são os de mulher, de jumenta e de burra. De todos os leites, o de vacca é o mais empregado em medicina, o de jumenta foi, e o é ainda entre o povo, considerado como gozando de propriedades extraordinárias no tratamento de certas moléstias, como a phtisica pulmo- nar. O que podemos dizer de certo é que todos os leites são bons,uma vez que sejão frescos, que provenhão de animaes em boas condicções de saude, em uma palavra que reunão todas as condicções requeridas pela bca hygiene. Ao inverso da pratica dos médicos antigos, os modernos pouca attenção dão á escolha da especie de leite ; parece- nos. porém, que a differença da composição chimica dos diversos leites, deve trazer também differenças quanto á acção physiologica, differenças que com ser pequenas não deixão comtudo de ter sua importância ; e com Gubler po- demos resumil-as assim : «o leite de vacca é o mais fresco, o de cabra ou de ovelha o mais nutritivo, o de jumenta o mais leve. » O leite de vacca, de todos o mais uzado, é muito rico em manteiga 5,40 na media segundo Doyère, contem uma proporção bastante considerável de caseina e de lactose ; a sua densidade média é de i,o3o. Empregado constantemente na alimentação ordinaria, o leite de vacca nas grandes cidades tornou-se objecto de falsificações, que constituem uma verdadeira industria, contra a qual se levantão, com razão, os hygienistas. Diversos instrumentos, como o galactometro, o lacto- densimetro e o lactoscopio forão propostos para as pes- 12 quizas de falsificação do leite ; todos elles satisfazem o fim para que forão imaginados e constituem meios preciosos, de que deve-se lançar mão para desmascarar a fraude. N'esses últimos tempos appareceu um certo numero de trabalhos sobre o leite das vaccas tuberculosas, procu- rando demonstrar que o uso de um leite de tal qualidade era origem de numerosos casos de tuberculose pulmonar. Citaremos entre outras as experiencias de Peuch refe- ridas no Bulletin General de Therape,ulique (i). O autor administrava a leitões de 2 mezes de idade bem como a coelhos leite extrahido de vaccas tuberculosas. Decorridos 35 dias de experiencia elle sacrificou um leitão que bebera 5 5 litros do leite de vaccas phtisicas,e encontrou nos pulmões granulações tuberculosas. Depois de 52 dias matou um coelho,que bebera 6 litros e encontrou duas gra- nulações no ileon. Um segundo leitão foi morto no fim de g3 dias, depois de beber 276 litros de leite, forão encontradas granulações no intestino delgado, nos ganghos mesentericos e nos pulmões. Em um coelho que succumbio i3o dias depois do começo da experiencia, a autopsia revelou a presença de granulações tuberculosas em toda a eco- nomia. Taes experiencias se não bastão para provar de um modo positivo a transmissibilidade da tuberculose pelo leite fazem ao menos suspeitar a sua possibilidade e devem tornar o medico bastante escrupuloso na escolha do leite, a administrar a seus doentes. Sem acceitar de um modo positivo o contagio da tuber- culose, todavia não podemos negal-o, como fez Pidoux, pois se ha factos em contrario, ha outros que parecem compro val-o. (1) Bullet. Gen. de Therap. 15 de Jullet 1880. pag. 33. 13 O qúe nos parece fóra de duvida é que a administração de um leite fornecido por uma vacca tuberculosa, alterado em sua composição chimica. pelo facto da moléstia, não deve convir á alimentação dos doentes. O leite de cabra por seu cheiro hircico, que é tanto mais pronunciado, segundo Reveil, (i) quanto o pello do animal mais se affasta da cor branca, é repugnado por muitas pessoas. Muito nutritivo, tonico e de facil digestão é especial- mente precomsado na alimentação das crianças. O leite de ovelha, muito rico em princípios quaterna- narios, parece por isso ser o mais nutritivo ; esta especie de leite é muito usado no oriente ; nos outros paizes, talvez pela difficuldade de obter quantidades sufficientes, não é usado. O leite de burra é de uma cor branca azulada, muito liquido, assucarado, pobre em matérias solidas, é o menos nutritivo ; por sua composição é o que mais se approxima do de mulher. Sendo de facil digestão é particularmente indicado para os estomagos fracos. O leite de jumenta se distingue pela grande porção de assucar e pouca manteiga. Em razão d'esse facto a >ua fer- mentação alcoolica se faz com facilidade ; propriedade esta utilisada pelos habitantes dos steppes da Rússia para a fabri- cação do Koumyss,bebida cujo valor therapeutico no trata- mento da phtisica pulmonar tem sido muito preconisado pelos médicos russos. O leite de mulher é rico em assucar e em manteiga ; se- gundo Simon elle contem mais lactose Jogo depois do (1) Reveil-Du lait- Th. Paris-1856. 14 parto ; um mez mais tarde essa quantidade diminue conser- vando-se a mesma nos mezes subsequentes. E' de todos os leites o que mais variantes offerece na quantidade dos elementos que o constituem, facto este de- vido ás modificações que experimenta por influencia das causas as mais diversas; nutricção variada, paixões, emo- ções, etc. O leite de mulher, que por sua composição se appro- xima dos de burra e de jumenta, foi muito preconisado na tuberculose pulmonar; ainda no nosso século Baumes, (i) cita as observações de dois doentes curados por esse meio ; o autor accrescenta que tal meio therapeutico nunca entrará na pratica, pois a phtisica pode transmittir-se do doente para a mulher que o aleita. Sem discutir a opinião de Baumes. accreditamos com elle que tal meio therapeutico nunca entrará na pratica, pelas razõs fáceis de comprehender, nos paizes civilisados ao menos, pois que na China, no dizer do Dr. Mackensie.(2) o leite de mulher é vendido nas ruas e praças publicas, e é muito apreciado como alimento reparador para os velhos e os phtisicos, Modificações do leite:-Como acabamos de ver a constituição chimica do leite varia nas diferentes especies animaes: vamos agora nos occupar das modificações que que pode apresentar em uma mesma especie animal. Differentes causas podem trazer esse resultado ; assim a idade do leite, a alimentação, as influencias climatéricas, as condicções pathologicas imprimem-lhe alterações que convém conhecer. (1) Baumes Traitédepht. pulm. -Paris-1805. (2) Jornal des sages-femmes-1877. 15 Logo depois do parto o leite não offerece em sua cons- tituição microscópica e em sua composição chimica os mesmos characteres que mais tarde apresenta. Demais, o aspecto physico é differente ; com effeito este primeiro leite, chamado colostrum, é um liquido pouco espesso, amarel- lado, mucilaginoso, alcalino, de densidade superior ao leite normal assim é de 1,040 a 1.060. Muito rico em lactose, cuja quantidade é para o de mulher de 7,0 por 100 partes no primeiro dia e 6,24 depois da febre de leite, segundo Simon, o colostrum offerece ao microscopio differenças notáveis com o leite, pois como observão Filhol e Jolly, em vez de globulos regulares, isolados do leite, encontrão-se numerosas gottas oleosas, globulos mais volumosos, tendo o aspecto de uma framboeza, a que Donné chamou de corpos granu- losos, membranas finas transparentes ; outras mais espes- sas, amarelladas e globulos de leite, porém não isolados, mas sim reunidos por uma matéria mucosa solúvel no acido acético. O colostrum apresenta de dia para dia modificações, que o vão tornando verdadeiro leite; do i° ao 15o dia essas modificações, segundo Vernois e Becquerel, são as seguintes : diminuição de densidade e da quantidade de agoa, augmento do peso das matérias solidas, diminuição fraca do assucar, augmento notável do caseum, enfim augmento da manteiga e dos saes. O colostrum apparece logo depois do parto e desap- parece cerca de i5 dias mais tarde ; mas, como em todo phenomeno physiologico, esse prazo não é constante, o periodo colostral podendo estender-se muito além, circum- stancia que deve ser tida em consideração quando se pro- cura uma ama. Em relação aos climas Commailles faz observar que o leite de Algeria é muito superior como alimento aos da 16 Alsacia e da Normandia e accrescenta . « Seja isto devido á differença das raças (em Marselha predomina a raça sa- boyana) ou á estabulação quasi constante, seja ainda á uma nutrição especial, observa-se no leite de Marselha grandes variações, porém geralmente uma pobreza consi- derável de matérias solidas.- » (i) E' de observação vulgar que o leite fornecido por vac- cas, vivendo no campo, é muito superior por suas quali- dades ao das vaccas da cidade. Sobre este assumpto ouçamos Coulier : «. Lorsque les vaches sont maintenues prisonnières dans les étables, on n'obtient de bon lait qu'à la condition de varier leur nour- riture et d'observer dans 1'étable les règles de 1'hygiène. Le repos forcé auquel ces animaux sont soumis parait aug- menter les proportions du beurre, néanmoins ce lait ne saurait valoir celui des vaches qui errent dans les prairies ; aussi dans les pays oú les industries dont le lait est la ma- tière première sont developpés, on laisse ces animaux en liberté, même en hiver, sauf à leur apporter leur ration de fourrages. Ils ne sont condamnés à la réclusion stabu- laire que pendant les gelées. » (2) A alimentação imprime ao leite modificações interes- santes de conhecer. Os médicos antigos ligavão grande importância aos alimentos do animal, cujo leite acconse- Ihavão ; citavão elles uma longa lista de plantas que acre- ditavão convir para communicar-lhe propriedades alimen- tares e curativas. E ainda no começo do século XVIII Hoffmam accon- selhava precauções indenticas. O que é certo é que o leite sob a influencia de tal ou tal alimentação offerece modificações bastante sensiveis; (1) Commailles-Journal de pharm. et de chiai.-1869. (2) Coulier.-Art. lait du Dict. cuclyp. des sei. med.-2' serie.-T VI. 17 assim é que pelo uso do regimen alliaceo, da herva doce, de cenas cruciferas, o leite de mulher, o de vacca como o de outros animaes, adquire o cheiro e o sabor proprios dessas plantas. Certas plantas aromaticas, como os aspargos, augmen- tão os principios caseosos do leite, communicando-lhe o seu perfume. A coloração do leite também póde depender da alimen- tação, assim é que torna-se azulado sob a influencia do samfeno e outras plantas ; roseo por acção da ruiva ; amarello pelo caltha palustris ; algumas vezes a cor aver- melhada é devida na mulher á suppressão dos mentruos e nos animaes á grandes fadigas. Fuchs attribue a cor azulada á presença, no leite, do infusorio vibrio cyanogenus, e a amarella ao vibrio xantho- genicus. Parmentier e Doyère observarão que uma mudança qualquer da alimentação começa por produzir uma dimi- nuição na quantidade do leite. Peligot, Doyère e muitos outros notarão a necessidade da variedade no regimen dos animaes, sob pena de manifestarem-se modificações na secreção do leite. As hervas aquosas e insipidas tornão o leite também aquoso e insipido. As batatas, couves, nabos, etc., fornecem um leite de mediocre qualidade ; e sob a influencia da beterava a quantidade de leite é superior á fornecida pelas batatas, que augmentão, por sua vez a quantidade de manteiga. Certas plantas communicão ao leite suas qualidades más ou perniciosasjo absintho,as folhas de alcachofra,entre outras, tornão o leite amargo ; a arethusa cynapium, a eu- phorbia helioscopia produzem um leite toxico, segundo al- 18 gumas observações, a que se refere Husson (i); e na Ame- rica do Norte attribue-se a affecção conhecida sob o nome de milcksickness ou tremores ao leite tornado pernicioso sob a influencia de certas hervas. Das experiencias de Dumas, Simon, Doyer, Vernois e Becquerel resulta que o leite de cadella, sob a influencia de um regimen composto de carnes, fórtemente animali- lisado, offerece menores proporções d'agoa e maior quan- tidade de manteiga e de matérias azotadas ; o inverso dá- se quando esses mesmos animaes são submettidos ao úso de pão molhado em caldo de carne. No primeiro caso a composição do leite se approxima da observada nos animaes carnivoros e no segundo á dos herbivoros. Modificações analogas ás produzidas pela alimentação insufificiente são, segundo Doyère, determinadas pela in- temperança. São, pois, os pastos ricos de hervas variadas, onde as vaccas, cabras, etc., gozão de liberdade os que, offere- cendo ãs melhores condições, também mais convém para a obtenção de um leite aromatico, saboroso e dotado de boas qualidades alimentares. Em relação á mulher Vernois e Becquerel notarão que a composição do leite varia com a idade, assim as amas, entre 20 e 3o annos são as que fornecem melhor qualidade de leite. A quantidade de caseína augmenta até o 20 mez do parto e diminue do 6° até o 11o; o assucar diminue do i° mez em diante, augmentando porém do 8o ao 10o; os saes augmentão nos cinco primeiros mezes,diminuindo progres- sivamente a partir d'esta data. (1) Husson-Le lait, la crême et la beurre. 19 As influencias moraes, as fadigas excessivas tornão o leite mais aquoso. Sob a influencia da prenhez e do parto a manteiga, a ca- seína e ossaes augmentão de proporção, tornando-o, assim de mais difficil digestão. Quanto ao leite de vacca, segundo Quevenne, no co- meço da extracção a proporção do cremor seria de 5 por 100, no meio de ó por 100 e no fim de 21 por 100 ; para explicar este facto o auctor acreditava que as mammas achando-se pendentes, o cremor subia ás partes mais ele- vadas da glandula, d'onde a sua sahida tardia ; o leite de mulher apresentando as mesmas variantes, tal theoria tor- na-se inaceitável ; mais razoavel é a explicação de Heyn- sius, que acredita que as matérias graxas se formão nas mais finas ramificações da glandula e ahi ficãc adheren- tes,emquanto que nos conductos mais volumosos se accu- mula um liquido menos rico em manteiga ; ora, sendo esta parte a primeira a ser extrahida e as matérias graxas só vindo depois por acção de uma sucção prolongada, é claro que a proporção da manteiga deve augmentar a medida que a extracção continua. Dos trabalhos de A. Chevalier e O. Henry resulta que as fadigas excessivas produzem nos animaes modificações taes que, ora o leite torna-se mais aquoso e menos rico em partes solidas, ora, diminuindo de quantidade, torna-se mais rico em manteiga e em matérias solidas. Sob a acção de certos estados morbidos a composição do leite soffre alterações mais profundas, podendo mesmo conter pús e sangue, facilmente reconhecíveis por seos characteres microscopicos. Sob a influencia do typhus o leite offerece alterações profundas, que o tornão prejudicial á saude. Husson, no- meado para examinar os estábulos durante uma epidemia de typhus, fez experiencias interessantes; o auctor come- 20 çou por isolar 24 vaccas typhicas das outras na apparen- cia sãs ; de uma vacca, que falleceu no dia seguinte, elle obteve 5o grammas de leite, que administrado a um gato de dois mezes de idade, não produzio mal algum ; esse leite, de sabor desagradavel, era espesso e deo pela ana- lyse o seguinte resultado: manteiga 14,93, assucar 31,40, caseina 5o,25. albumina 20,60 e saes 18,5o para 1 litro. Em uma outra vacca, que morreo 24 horas depois, a analyse forneceo : manteiga 16,96, assucar 33,90 para 1 litro. Em uma terceira vacca. na apparencia sã, o leite con- tinha : manteiga 18,00, assucar 35,00, caseina 45.00, albu- mina 4,00 parai litro. D'essas experiencias o auctor concluiu : i°. No ultimo periodo da moléstia o leite não pôde ser- vir de alimento, pois contem sangue e pús. 2'. No primeiro periodo da moléstia, o leite póde ser tomado impunemente pelos adultos ; mas póde ser preju- dicial ás crianças em consequência das proporções consi- deráveis de albumina e caseina e pela proporção notavel- mente fraca de alimentos comburentes, assucar e graxa. 3'. Que quando o typhus se declara em um estábulo todos os animaes cornutos estão sujeitos a contrahil-o, como prova a analyse do leite. Em relação á tuberculose as experiencias de Villemin obrigão-nos a estar de sobre-aviso, pois, segundo elle, a menor ulceração no tubo digestivo basta para determinar a inoculação. E' questão ainda não resolvida ; e ainda que a solução tenha de ser negativa, no emtanto a prudência exige abs- termos-nos completamente do uso de tal leite. A analyse chimica demonstra que o leite, provindo de uma vacca em taes condições pathologicas, é muito mais rico em phosphatos. 21 Em vaccas affectadas de moléstias especiaes dos cas- cos, Heberger encontrou o leite apresentando um cheiro desagradavel e pútrido ; pela analyse chimica notou uma certa quantidade de carbonato de ammonea, que o tor- nava alcalino. Procurámos apresentar resumidamente as principaes modificações que o leite póde soffrer por acção de causas múltiplas; modificações, que pelas propriedades novas que lhe communicão, se nos afigurâo de grande importân- cia, quer sob o ponto de vista hygienico, quer sob o ponto de vista therapeutico. Porém ahi não párão taes alterações ; muitas outras substancias podem imprimir ao leite qualidades novas. E' fundando se na propriedade que tem certos princí- pios medicamentosos de passar para o leite, que os médi- cos tem procurado, por meio da administração regular e methodica dessas substancias aos animaes, obter os cha- mados leite medicamentosos, que tanto devem convir no tratamento das moléstias das crianças, que ainda se aleitão. E' a galactotherapia uma questão importante, sobre a qual procuraremos dizer algumas palavras na ultima parte do nosso trabalho. 22 ACÇÃO PHYSIOLOGICA O leite representa o typo do alimento completo. Destinado, com effeito, a servir de alimento unico dos mammiferos na primeira phase de sua existência, era de prever que contivesse o leite todos os elementos, de que o jovem ser necessita para, reparando as suas perdas orgâ- nicas e promovendo o desenvolvimento de seus tecidos, nutrir-se e crescer. Mas, se o leite basta para a nutrição do animal no co- meço da vida, o mesmo não se dá em relação ao animal adulto ; ahi a alimentação lactea exclusiva é insufficiente ; por mais absurdo que isso pareça ser, os factos são bas- tantes para demonstral-o ; sob a influencia do regimen lácteo exclusivo, o homem emmagrece, não immediata- mente, mas sim no fim de um certo tempo ; facto este fonte de preciosas indicações no tratamento da obesidade. O leite foi em todos os tempos considerado como ali- mento não só entre os povos civilisados, como mesmo en- tre gentes selvagens. Lacte mero veteres usi memorantur et herbis, dizia Ovidio. Como já tivemos occasião de dizer os Chinezesusão do leite de mulher, que vendem nas praças publicas e em cujas virtudes alimentares muito accreditão. Os Touaregs fazem grande uso do leite de camela, que cozinhão com tamaras; segundo Specke e Burton, os po- vos da Abyssinia, que habitão as margens do lago Nyanza, fazem do leite quasi que sua alimentação exclusiva. 23 Os Cafres consomem grande quantidade de leite coa- lhado, que elles misturáo com o milho ; os Laponios só bebem o leite de renna. Os habitantes das margens do Nilo Branco ingerem o leite, quasi sempr e coalhado e ás vezes addicionado de urina de vacca, como accontece na localidade denomi- nada Lobbo ; os Tartaros e os Kalmouks, desde o século XIII, nos mezes de verão, só bebem o leite de jumenta fermentado, constituindo o koumyss. Os pastores das montanhas da Suissa e de outros pai- zes da Europa alimentão-se de leite e pão, gozando excel- lente saude. Nos paizes civilisados da Europa e da America o leite é muito usado como alimento; assim, para citar alguns exemplos, na Inglaterra recolhe-se por anno uma quanti- dade de leite superior a 10 milhões de litros ; em Pariz a quantidade de leite consumido annualmente varia, segundo Husson, de 183 a 185 milhões de litros. Os effeitos physiologicos do leite ainda são pouco co- nhecidos ; e diante dos resultados therapeuticos muitas ve- zes nos contentamos com explicações, aliás incompletas sobre o modo de acção do regimen lácteo. Considerado sob o ponto de vista da alimentação o leite, qualquer que seja a especie animal d'onde prove- nha, constitue alimento sufliciente para todos os jovens mammiferos. E', com effeito, facil demonstrar pela analyse physio- logica, que elle possue todos os elementos necessários ao entretenimento da vida. Ora, resulta das pesquizas de Pettenkofer e Voit, cita- dos por Debove (i), que um homem adulto deve ingerir quotidianamente: i3y gr. de substancias albuminoides, (1) Debove-Loco citato. 24 iiy gr. de matérias graxas, e 352 gr. de hydratos de car- bono ; mas como em 4 litros de leite nós encontramos : 216 gr. de substancias azotadas, 172 gr. de matérias graxas e 161 de assucar de leite, d'ahi resulta que esses 4 litros de leite contem os principios necessários á nutricção de um adulto. E' verdade que a quantidade dos hydratos de carbono, contidos nos 4 litros de leite, é muito inferior a necessá- ria á alimentação de um adulto ; mas, como bem faz ob- servar Debove, essa insufficiencia dos hydratos de carbono é perfeitamente compensada pela proporção mais consi- derável das matérias graxas e azotadas. Quanto á agua os 4 litros de leite contem uma quanti- dade sufficiente áquella necessária ao homem em sua ali- mentação diaria; quantidade que Schmidt e Bidder ava- liarão em 2,635 grammas. Em relação aos saes necessários á manutenção da exis- tência, o leite os contem em quantidade sufficiente •, Bun- ge, que estudou a proporção de potassa, soda e chloro, contidos no leite, comparando-a á existente em outros alimentos e nos tecidos animaes, encontrou que essas subs- tancias se achão no leite em quantidades proporcionaes convenientes ; o que não se dá nos principaes alimentos de origem vegetal, que necessitão da addição do chlorureto de sodium. Em relação á criança o leite representa, pois, o papel de alimento exclusivo e completo ; é, porém, insufficiente para o adulto, já o dissemos; é agora occasião de procu- rar conhecer a razão deste facto ; por isso nada melhor temos a fazer do que expor a opinião de Debove, com a qual plenamente concordamos. Liebig estabeleceu uma divisão dos alimentos baseada na necessidade da manutenção e crescimento dos tecidos, J?em como da producção de calor animal; assim, o illus- 25 tre physiologista capitulou os alimentos em plásticos ou azotados e em respiratórios ou não azotados; os primei- ros servindo ao crescimento e manutenção dos elementos orgânicos, e os segundos á combustão do oxygeno, forne- cido pelo ar, e por conseguinte á producção de calorico. Actualmente, porém, a divisão estabelecida por Liebig não póde ser mais rigorosamente acceita ; com effeito, os trabalhos modernos sobre o equivalente mechanico do calor, vierão completamente modificar as ideias até então correntes em sciencia. De um lado, com effeito. Meyer(de Bonn) demonstrava que se o trabalho util fosse o resultado das combustões das substancias azotadas, em oitenta dias um trabalhador teria gasto a totalidade de seus musculos; de outro, se fazia notar que se o calor e o trabalho se transformão um no outro, era logico acreditar-se que maior quantidade de trabalho devia ser produzida pelos alimen- tos, que por sua combustão produzem maior proporção de calor, isto é pelos alimentos graxos e os hydratos de carbono, e não pelas substancias azotadas. E este raciocí- nio é tão verdadeiro que as proporções de urea e acido urico, productos últimos da combustão dos princípios albuminoides, excretados pelas urinas, não augmentão quando o trabalho augmenta; assim, Fick e Wislicenus, alimentando-se exclusivamente de substancias não azota- das, e tendo medido exactamente a quantidade de urea, excretada sob a influencia de um tal regimen, notarão que quando fazião um grande gasto de trabalho, pela ascenção a pé do monte Faulhorn, a proporção de urea não augmen- tava ; estas experiencias demonstrão claramente que o tra- balho é também produzido pela combustão dos alimentos, chamados respiratórios. Agora, porque o leite, pobre em hydratos de carbono, sendo alimento sufficiente á criança, não o é para o adulto ? A resposta é facil; a criança, que se aleita, precisa de 26 um lado, de materiaes para a manutenção e desenvolvi- mento de seus tecidos, as substancias azotadas os forne- cem ; de outro, produzindo pouco trabalho util, necessita de poucos alimentos não azotados para o entretenimento do seu calor orgânico, e o leite os fornece em quantidade sufíiciente ; no adulto, o mesmo não se dá ; este, o operário principalmente, produz grande quantidade de trabalho, precisa também de grande quantidade de alimentos não azotados, que produzindo calor produzem também traba- lho ; ora o leite fornece poucos materiaes não azotados, por conseguinte é insufíiciente para o adulto. Um adulto exclu- sivamente sujeito ao regimen lácteo, não encontrando nos alimentos hydro-carbonados quantidade de calor sufíiciente para transformal-o em trabalho util, tira de seus proprios tecidos, da gordura sobre tudó, o que precisa para esse excedente de trabalho. Resultado final, a graxa desappa- rece, o individuo emmagrece por autophagia. O leite, alimento de facil digestão, offerece aos indiví- duos debilitados, aos velhos, ás pessoas emfim cujo esto- mago acha-se na impossibilidade de digirir alimentos solidos recurso valioso para impedir a decadência orgâ- nica. Com efFeito, não irritando os orgãos digestivos, ao contrario, sendo de acção tópica emolliente, o leite repre- senta duplo papel: como alimento e facilitando a reparação das lesões; o que o torna de incontestável vantagem no tratamento de grande numero de moléstias do apparelho gastro-intestinal; é, na expressão feliz de Baumes, um ali- mento medicamentoso. O leite é supportado com facilidade pela maior parte dos indivíduos ; alguns porém ha em que provoca altera- ções varias, das quaes a diarrhea é a mais frequente ; entretanto, a esses mesmos consegue-se fazer tolerar ; facto que não admira, pois, como bem diz Fonssagrives o esto- mago é o mais individual dos nossos orgãos ; cada um tem 27 suas susceptibilidades especiaes, suas idiosyncracias pró- prias, que convém conhecer e respeitar. Um dos primeiros e mais constantes effeitos da dieta lactea é a constipação ; a diarrhea é rara, e quando appa- rece deve ser attribuida não a effeito normal do leite, mas sim a que elle foi mal supportado ou quando provoca indigestão ; pois, como diz Gubler, a diarrhea no regimen lácteo é sempre o resultado da indigestão, (i) A digestão viciosa do leite, com effeito, se traduz por duas ordens de phenomenos: ora ha peso epigastrico, eructações, nauseas e algumas vezes vomitos ; o que se explica admittindo que a coagulação, preliminar indispen- sável do trabalho digestivo, não se fez rapidamente, suppo- sição tanto mais acceitavel, quanto a regurgitação traz ás vezes porções ainda não sensivelmente alteradas ; outras vezes, sobrevem diarrhea, acompanhada ou não de cólicas, apparecendo ás vezes pouco depois da ingestão do liquido, o que se explica admittindo, ao contrario, que a coagula- ção se fez rapidamente e em massa. Seja como fôr, previ- ne-se o primeiro inconveniente administrando laranjadas, como praticava Haller ou addicionando assucar, sal mari- nho, agoa de Seltz artificial, cerveja, diversas agoas mine- raes gazozas, rhum, kirsch, etc.; para evitar a diarrhea ajunta-se agoa de cal ou um sal alcalino ; n'esses casos convém administrar o leite em temperatura elevada. A constipação, ao contrario é um dos mais constantes effeitos da dieta lactea; a razão é facil de conceber ; ó leite, alimento liquido, de facil digestão, contendo princí- pios todos capazes de soffrer a acção dos líquidos digesti- vos e de serem ulteriormente absorvidos, pouco ou nenhum residuo deixa ; a constipação é, pois, necessária, eás vezes sendo rebelde, convém combattel-a por meio de purgati- (1) Gubler-Gom. du Godex-Art. lait. 28 vos brandos, visto que póde ser causa de accidentes ulte- riores graves ; Debove diz possuir a observação de um doente em que a constipação produzida pelo leite chegou a determinar uma fenda anal. O leite é melhor supportado pelos velhos e pelas crian- ças do que pelos adultos, melhor pelos temperamentos sanguíneos ou nervosos do que pelos lymphaticos, melhor no campo e nos lugares elevados do que nas cidades ou nos lugares baixos e húmidos. Em uma memória do Dr. Ardoin, intitulada: Effet énervant du lait (Gaz. hebd. 1854), o auctor mostra, por numerosas observações, a acção debilitante que exerce o uso copioso e prolongado do leite sobre indivíduos de constituições differentes. O estado de crueza ou de cozimento, a temperatura do leite influem notavelmente sobre a sua digestibilidade. O leite recentemente extrahido é o que reune melhores con- dições de digestibilidade ; elle é melhor supportado a frio do que a quente ; e, segundo Darcet, o leite quente e as- sucarado traz rapidamente a acidificação da urina. Antes de passar adiante cumpre-nos dizer alguma cousa em relação á digestão do leite. Liquido não necessita de mastigação previa ; as crian- ças e os velhos encontrão nelle alimento commodo. Chegando ao estomago, o leite se coagula, pela preci- pitação da caseina por acção do sueco gástrico ; mas qual o elemento que actúa, será a pepsina, serão os ácidos? São discussões em que não nos embrenharemos, parecendo- nos ser sobretudo aos ácidos devida á coagulação do leite. Uma vez precipitada a caseina, como as outras subs- tancias albuminoides, começa a ser transformada em ca- seo-peptona, substancia facilmente solúvel, própria a ser absorvida. 29 Todas as caseínas procedem do mesmo modo, ou ha differenças na digestibilidade do caseum ? Numerosos tra- balhos tem apparecido em relação a esta questão ; cite- mos os mais importantes. Simon accreditava que a caseina do leite de mulher não é precipitada em totalidade pelos ácidos. Rees affirma ser a caseina do leite de vacca mais facil- mente precipitada do que a do leite de mulher; segundo este chimico, o sueco gástrico produz no leite de mulher coagula muito delicados, e que este leite não é coagulado por acção dos ácidos chlorhydrico e sulfurico; e segundo Nencki, o acido acético, precipitando completamente a caseina do leite de vacca, o faz incompletamente para o de mulher. Biedert, em uma primeira serie de experiencias, cons- tatou que a caseina do leite de mulher era digerido em 10 horas, em quanto que depois de 14 horas, o leite de vacca só estava incompletamente digerido ; em outras experien- cias o leite de mulher tinha sido completamente digerido no fim de 10 horas, emquanto que no de vacca a digestão apenas começava. Segundo Elsâsser, a caseina do leite de vacca dissolve- se mais lentamente do que a do de mulher ; Lubavin ac- creditava que o sueco gástrico não digere completamente toda a caseina, ficando um certo residuo, provavelmente digerido pelo sueco pancreatico. Dessa serie de experiencias um facto podemos deduzir: é que nem todos os leites são igualmente digeríveis; o de vacca o sendo mais facilmente e a sua caseina precipitan- do-se em massas mais volumosas do que o leite de mulher. A caseina também não é com a mesma facilidade dige- rida pelos diíferentes suecos gástricos ; o dos animaes jo- vens a digere melhor e mais completamente do que o dos 30 adultos: facto este provado pelas experiencias feitas com o sueco gástrico do vitello e do boi. O aspecto leite digerido pelo sueco gástrico do homem, do vitello, do cão, dos peixes, etc., não é o mesmo: a caseína é mais ou menos viscosa, granulosa, friável, sendo provável que os phenomenos chimicos Ínti- mos não são sensivelmente modificados. Em resumo : por acção do sueco gástrico a caseina se transforma em peptona, e depois em dyspeptona, que é dissolvida ulteriormente pelo sueco pancreatico. A lactose por acção do sueco gástrico soffre facilmente a fermentação lactica; é de notar que essa fermentação é tanto mais pronunciada quanto maior é a quantidade de leite em relação ao sueco gástrico, facto que no dizer de Richet, seria destinado a poupar ao estomago dos jo- vens animaes uma secreção abundante, sendo, a julgar pelas experiencias de digestão artificial, o acido láctico tão activo como o chlorhydrico. Este facto de que uma grande quantidade de leite é facilmente fermentada por uma pequena porção de sueco gástrico, e inversamente que uma pequena porção de leite acidifica também facilmente uma grande quantidade de sueco gástrico, o torna especialmente util no tratamento de certas dyspepsias, characterisadas por falta de secreção do sueco gástrico e por sua fraca acidez. O acido láctico, resultado da fermentação da lactose, favorece no intestino a dissolução da caseina e dos outros albuminatos. As matérias graxas são facilmente digeridas no duode- num sob a acção combinada da bile e do sueco pancrea- tico. Os saes são rapidamente absorvidos no estado de solu- ção, favorecida pelos ácidos do sueco gástrico. A duração do leite no estomago é relativamente curta. 31 Gosse avaliava em uma hora a hora e meia; Baumont, em suas experiencias sobre o Canadiano, a reputava em duas horas ; Richet, observando em um indivíduo que sof- fria de um estreitamento considerável do oesophago, e no qual o professor Verneuil praticara a gastrotomia, notou ser o leite um dos alimentos que menos tempo permanecem no estomago, pois no fim de uma hora, apenas encontrão- se traços. A digestão começada no estomago, completa-se no duodenum por acção do sueco pancreatico ; pois, como resulta das experiencias feitas por Busch e Kiihne, em uma mulher que trazia uma fistula duodenal, entre as matérias que passavão pela fistula achavão-se grumos ainda não digeridos de caseina. Como se vê todos os princípios do leite são facilmente digeridos e facilmente absorvidos ; não deixão pois resí- duos ; é esta a causa da constipação produzida pelo regí- men lácteo, e também causa importante da acção bené- fica do leite nas moléstias inflammatorias do apparelho intestinal. Segundo Ruge, por influencia do regimen lácteo, o hy- drogeno predomina na composição dos gazes intestinaes e do estomago. Muitas vezes também desenvolve-se acido butyrico que irrita a mucosa estomacal. Todos os clínicos estão de accordo em que o leite tem por effeito augmentar a diurese ; nesse facto baseão-se in- dicações importantes no tratamento das hydropisias. O leite tem, pois, uma acção diurética incontestável; mas como actúa elle, qual o elemento que lhe dá a pro- priedade de provocar a secreção renal? A agua, não, porque então o mesmo effeito seria obtido com a agua 32 pura, pois, como faz observar Germain Seé (i), um litro de agua produz um litro de urina, ao passo que um litro de leite faz segregar dois litros de urina ; attribuiu-se então aos saes, assim é que Kletzinski e Falk accreditavão ser a acção diurética devida ao acido láctico e aos phosphatos ; para Germain Seé, esta acção é devida a duas causas: aos saes de soda e de potassa e ao assucar de leite ; mas, como bem faz observar Debove, os saes do leite são em quantidade muito pouco considerável para que se possa admittir tal explicação ; parecendo essa acção diurética devida não a este ou áquelle elemento, mas sim á sua to- talidade. Em resumo : o leite, alimento completo, de facil diges- tão, fornecendo um chylo facilmente assimilável, não ele- vando senão fracamente a temperatura organica e não exigindo grande trabalho de hematose é, na expressão de Pécholier, reconstituinte em certos casos e em outros ma- nifestamente alterante ; gozando além disto de grande poder diurético. Sem pretendermos entrar na grande questão do aleita- mento, seja-nos entretanto permittido consagrar algumas linhas aos effeitos da privação do leite nas primeiras ida- des. A natureza, estabelecendo a secreção lactea logo de- pois do parto, forneceu ao animal recem-nascido os meios de subsistência n'essa tão melindrosa phase da existência ; o homem, porém, tentou modificar a natureza, substi- tuindo o leite por alimentos, que por sua composição a elle se assemelhão. Foi Van Helmont g primeiro que, no começo do século XVII, proscreveu o uso do leite, substituindo-o por uma mistura de pão, assucar, mel e cerveja ; o resultado não (1) Germain Seé-Des dyspepsies gastro-intestinalea. 33 tardou a manifestar-se ; o rachitismo, até então desconhe- cido, fez suas primeiras victimas, sendo esta moléstia pela primeira vez descripta por Glisson em Londres. O exem- plo de Van Helmont foi seguido por grande numero de mé- dicos, entre os quaes Stahl, que considerava o leite como um nutrimentum non satis firmum. Accreditando-se ser o leite improprio á nutrição das crianças, elle foi completa- mente banido pela quasi totalidade das mães; embalde alguns médicos, entre os quaes Zimmermann, procurarão desenraizar esta pratica funesta ; o erro estava por demais arraigado no espirito popular. O professor Rabuteau (i), firmemente convicto da ori- gem do rachitismo na privação do leite ás crianças, cita as experiencias de Jules Guerin, que demonstrão a estreita relação do rachitismo com a privação do leite e accres- centa que a ausência do rachitismo na antiguidade, o seu apparecimento quando se substituiu, por uma alimentação irracional, o leite que a natureza destinou á criança, de um lado ; as experiencias feitas sobre os animaes, de ou- tro, vem demonstrar de um modo evidente a necessidade de nutrir a criança com o leite até o momento em que o seu tubo digestivo tornar-se apto para utilisar os alimentos ordinários. Abundando nas razões do professor Rabuteau, acre- ditamos com elle que a suppressão do leite, na primeira phase da vida, possa, pela introducção necessária no esto- mago de alimentos, para cuja digestão elle não se acha preparado, compromettendo a nutrição, depauperar o organismo a ponto de provocar o apparecimento do ra- chitismo. Com o citado professor, pois, concluimos dizendo que é nossa obrigação exigir que a criança seja nutrida exclu- sivamente de leite, segundo o salutar preceito de Galeno. (1) Rabuteau-Élements de therapeutique-pag. 388. N- 32 34 ACÇÃO THERAPEUTICA Deduzir dos effeitos physiologicos de uma substancia as suas indicações curativas é, sem duvida, o fim supremo da therapeutica racional; mas, se para certos medicamen- tos esse desideratum já se acha resolvido, para todos infe- lizmente ainda não foi conseguido; e o leite é d'esse nu- mero. Abandonar completamente o empirismo, nos limitando exclusivamente aos dados fornecidos pela physiologia, é pretenção que não podemos ter. Ouçamos o provecto Pécholier (i) : « II est certaine- ment fâcheux de ne pouvoir toujours pratiquer une thera- peutique rationnelle, maisnous devons, somme toute, pren- dre les choses telles qu'elles sont et non telles qu'elles de- vraient être ». Quando nas noções exactas da physiologia pudermos haurir as fontes precisas de indicações da dieta lactea, então, conhecendo melhor o mechanismo da acção do leite, poderemos explicar satisfactoriamente os effeitos curativos dessa substancia, e agrupar racionalmente as moléstias em que o leite é indicado. Karell dizia que se lhe perguntassem a que elementos do leite deveriamos attribuir a sua acção curativa e que nome daria a esta acção : diaphoretica, diurética, resol- vente ou tónica ? elle diria : « J'avoue que je serais assez embarrassé pour repondre» (2). (1) Pécholier-Loco citato. (2) Karell-De la cure de lail-Arch. de méd. 35 O professor Fonssagrives (i), estudando as indicações therapeuticas do leite, agrupa as moléstias em que elle é empregado em 5 classes : r. Moléstias em que o leite actúa provocando uma diurese ou um fluxo diarrheico, de modo a curar os der- ramamentos serosos, intersticiaes ou cavitarios. 2'. Moléstias em que modifica profundamente a na- tureza do plasma, em que se originão os tecidos anormaes homeo ou heteromorphos ; taes são as diatheses. 3*. Moléstias gastro-intestinaes. 4a. A gotta. 5a. Moléstias em que actúa como alimento insufíiciente. Debove (2), em sua excellente these sobre a dieta lactea, distribue as affecções em que o leite é indicado em tres grupos: i°. Moléstias em que o leite parece ser principalmente indicado por sua facil digestibilidade. 2°. Moléstias em que elle parece actuar principalmente modificando anutricção. 3". Moléstias em que parece ser especialmente indi- cado por sua acção diurética. Strauss, no artigo-leite -do Diccionario de medicina e cirurgia de Jaccoud, estuda as indicações do regimen lácteo successivamente : r nas affecções do tubo diges- tivo ; 2° durante e na convalecença das febres prolonga- das ; 3o na phtisica pulmonar; 4' como medicação alte- rante; 5o por sua acção diurética; 6o, enfim, nos enve- nenamentos. Todas essas classificações são passiveis de objecções serias, nenhuma satisfaz plenamente o espirito ; por isso julgamos acertado, não acceitando nenhuma in toto, no (1) Fonssagrives-Hygiene alimentaire. (2) Debove-Loco citato. 36 emtanto assimilal-as, modifical-as nos conformando o mais possível com a acção physiologica. De accordo com esse modo de ver procuraremos in" dicar os effeitos da medicação lactea : i*. Nas moléstias do apparelho gastro-intestinal. 2o. Nas affecções diáthesicas. 3o. Nos estados morbidos em que parece actuar como alimento insufficiente. 4°. Nas affecções nervosas. 5o. Nas moléstias em que actúa por sua acção diuré- tica. 6o. Nas intoxicações. 7°. Nas febres e convalecenças. Não é uma classificação que apresentamos ; é apenas um agrupamento methodico dos estados morbidos em que o leite tem sido empregado. E', pois, a melhor solução que encontramos para pro- ceder com methodo ao estudo d'essa parte do nosso ponto. Do emprego do leite nas moléstias do apparelho gastro-intestinal. E' nas moléstias do apparelho gastro-intestinal que o leite encontra uma das suas melhores indicações. Alimen- tar o doente, sem irritar a mucosa era o fim a que tendia a therapeutica, quando o leite veio fornecer-lhe os meios de'conseguil-o. Alimento liquido, de facil digestão, não irritando a mucosa gastrica, ao contrario possuindo acção sedativa, que lhe dá propriedades de topico emolliente, o leite repre- senta nos estados inflammatorios do estomago o duplo papel de alimento e medicamento. 37 Composto de princípios facilmente digeridos e absorvi- dos, não deixando portanto residuo solido, o leite fornece nas moléstias inflammatorias do intestino os meios de, nutrindo o doente, não irritar a mucosa já inflammada pela passagem das matérias excrementicias, e diminuir por con- seguinte o fluxo diarrheico. D'estas considerações resultão dois grandes grupos de estados morbidos em que o leite é perfeitamente indicado, são : de um lado, os estados inflam matorios e ulcerosos do estomago, e de outro, as phlegmasias intestinaes. A estas classes de moléstias podemos ajuntar o estreitamento do oesophago, em que o leite é indicado como alimento liquido, e os estados inflammatorios e sub-inflammatorios do apparelho hepático, em cujo tratamento o leite repre- senta importante papel. Comecemos, pois, pelo : Estreitamento do cesophago :- Qualquer que tenha sido a causa d'esta stenose chega um momento em que torna-se impossível a passagem de qualquer alimento solido ; então ao espirito do medico apresenta-se uma unica solução : praticar uma fistula estomacal ; antes po- rém de resolver a execução de tão grave operação, o pratico encontra no leite o meio, não de curar, mas de adiar a intervenção cirúrgica. N'essas condições o leite actua na qualidade de alimento liquido, transpondo barrei- ras insuperáveis aos solidos ; é, pois, um meio puramente palliativo. Gastrites :-E' diante dos casos de phlogose gastrica, quando a menor irritação provoca da parte da viscera tyrannica, na expressão de Fonssagrives, uma revolta absoluta, que o medico encontra no regimen lácteo o recurso unico de que póde, com vantagem, lançar mão. 38 A necessidade de nutrir o enfermo sem augmentar a irrita- ção da mucosa, sob pena de prolongar indefinidamente o mal, é felizmente satisfeita pelo leite, que n'essas circum- stancias actua como alimento, garantindo as forças do doente e ao mesmo tempo como sedativo, topico emol- liente, accalmando a irritação phlegmasica e promovendo o desapparecimento do mal. O leite é principalmente indicado nos estados inflamma- torios sub-agudos e chronicos da mucosa gastrica ; é com effeito, n'esses indivíduos, que abusarão do seu estomago e apresentão ao lado de vermelhidão, aspecto liso e forma lanceolada da lingua, sêde, sensibilidade epigastrica, a pelle secca e um emmagrecimento notável, em uma pala- vra, apresentando os symptomas de gastrite chronica, que o uso do leite, e nos casos graves o uso exclusivo, dá os melhores resultados. D'entre as desordens múltiplas produzidas pelo álcool, a gastrite é certamente uma das mais constantes ; a irrita- ção frequente e repetida do álcool sobre a mucosa gastrica provoca d'ella uma reacção que se traduz por um estado inflammatorio sub-agudo ou chronico, o qual sendo origem de accidentes vários e temíveis convém ser combattido; é sobretudo o leite gelado o meio que em taes casos melhor convém. Ha uma certa classe de gastrites, onde, como diz o pro- fessor Jaccoud (i), o medico estaria totalmente desarmado se não dispuzesse do grande recurso da medicação lactea ; referimo-nos ás gastrites toxicas. Em consequência da ingestão de um veneno cáustico, sobrevem vomitos repetidos e rebeldes, que durão de 24 a 48 horas; os vomitos cessão de ordinário no fim d'esse tempo porém persiste uma intolerância gastrica tal que (1) Jaccoud-Clinique de Leriboisière-pag. 795. 39 qualquer alimento solido e mesmo liquido é immediata- mente regeitado. O unico meio de remediar taes acciden- tes é a dieta lactea; o leite puro e gelado, administrado em pequenas doses, co njura o perigo ; não é, porém, logo tolerado; a irritação foi grande, o estomago nadasupporta, as primeiras porções são vomitadas ; porém, persistindo-se, consegue-se fazel-o tole rar ; no fim de um tempo variavel vae-se obtendo progressivamente a volta ao regimen ordi- nário. Jaccoud cita a observação de uma mulher, que na intenção de suicidar-se, ingerira uma grande quantidade de massa phosphorica misturada a agoa de Javel; graças á dieta lactea exclusiva mantida durante seis semanas, o illustrado professor conseguio curar a doente. Ulcera simples do estomago : - A Cruveilhier cabe a gloria de ter sido o primeiro a descrever não só a anatomia pathologica e o diagnostico d'esta terrivel moléstia, como ainda de instituir o tratamento: a dieta lactea. E' diante de um caso d'essa natureza que se patenteia toda a vanta- gem da medicação lactea ; na verdade é essa a sua maior gloria. Sem o leite a ulcera redonda do estomago seria uma moléstia de prognostico excessivamente grave, determina- ção sempre fatal , o leite determinou uma mudança radical, transformando em benigno o prognostico, que se não fosse elle, seria mortal. Cruveilhier aconselha n'esses casos a medicação lactea exclusiva durante semanas e mezes ; a volta ao regimen ordinário devendo ser feita gradualmente; assim do regi- men exclusivo deve-se passar ao mitigado e d'este ao mixto , emfim ás carnes brancas e de facil digestão. As idéas de Cruveilhier forão acceitas por todos os mé- dicos ; entre elles Schútzenberger, administrando o leite, 40 julgava util ajuntar agoa de Vichy e dar concorrentemente pilulas de nitrato de prata, a que elle attribue em grande parte os effeitos curativos ; entretanto é licito perguntar se com tal medicação obtem-se a cura por effeito do nitrato de prata ou por acção da dieta lactea ? Ora, a observação de casos perfeitamente diagnosticados de ulcera simples, curados exclusivamente pelo leite, nos levão a crêr que só a esta substancia devemos attribuir os resultados beneficos. Como actua o leite em taes casos ? Na sua qualidade de liquido não contem principios sol idos que possão, por assim dizer, contundir, irritar as partes ulceradas, passa com facilidade para o duodenum, e, ainda mais, garante a nutricção. Acreditou-se que o leite sendo levemente alcalino neu- tralizaria a acidez do sueco gástrico, impedindo assim a autopepsia das paredes do orgão ; mas, como faz observar Debove, o leite é alcalino no momento em que é orden- hado ; logo depois torna-se acido, e é n'essas condições que d'elle se faz uso ; assim, pois, se convém neutralizar o sueco gástrico, como acreditamos util, só o podemos con- seguir juntando ao leite o bicarbonato de soda ou, como aconselha Gubler (i), a agoa de Vichy ou a de cal. Ainda na ulcera do estomago, o leite apresenta a van- tagem de servir de pedra de toque para o diagnostico do cancro. Com effeito grande é a analogia entre os sympto- mas d'essas duas moléstias, difficil torna-se estabelecer um diagnostico positivo ; entretanto elle o é da maxima impor- tância, pois só d'elle depende o prognostico. A dieta lactea mostra no fim de algum tempo, pelos effeitos produzidos, com qual das duas moléstias o medico tem de se haver, quaes as esperanças que póde conceber. (1) Gubler-Loc. citato. 41 Câncer do estomago :-Uma das múltiplas manifesta- ções da diathese cancerosa, o cancro do estomago é até hoje moléstia incurável. Mas, se ao medico não é dado livrar o doente do terrivel mal, no emtanto é seu dever procurar manter-lhe e prolongar-lhe a existência, nos limi- tes do possivel. O cancro acompanha-se de lesões da mucosa que tor- não impossivel a digestão dos alimentos solidos, que são immediatamente regeitados pelos vomitos ; é ainda o leite, e sobre tudo o leite gelado, que vem manter a vida do doente ; é, pois, um meio palliativo. Dyspepsias :- As dyspepsias constituem uma classe de moléstias, de origem as mais diversas, caracterisadas por alterações mais ou menos profundas da funcção digestiva, apresentando numerosas fôrmas. O leite convém em al- guns casos ; assim é, que em certas dyspepsias devidas a falta de mastigação completa, comprehende-se facilmente a utilidade do leite. Leube admitte a existência de dyspepsias devidas á aci- dificação incompleta do sueco gástrico, d'ahi a indicação do acido chlorhydrico ; as experiencias de Ch. Richet sobre a digestão do leite nos mostrão o partido que pode- mos tirar do leite em taes casos. Germain Sée (i) basea a utilidade do leite nas dyspepsias na facil digestão d'essa substancia, cuja caseina exige muito fraca quantidade de sueco gástrico para peptonisar-se. O auctor aconselha o leite nas dyspepsias simples e nas que elle denomina de vaso-motoras. Diarrheas chronicas : -Um dos effeitos quasi constan- tes da suppressão prematura do aleitamento em uma (1) Gcrmain Sée-Loc. cit. 42 criança, submettida logo a uma alimentação grosseira para o seu delicado estomago, é uma diarrhea intensa e rebelde, seguida de emmagrecimento notável; a este estado Parrot deu o nome de apepsia. N'essas circumstancias só uma indicação existe : é a volta ao regimen lácteo ; obedecendo a esse preceito vê-se a diarrhea rapidamente cessar e com ella o depaupera- mento do pequeno ser. Symptoma de enterite chronica da criança e do adulto a diarrhea encontra no leite os meios de cura. Entretanto convém distinguir, como insiste o professor Jaccoud (i), na enterite chronica do adulto e do velho duas fôrmas: em uns a enterite é acompanhada de constipação habitual, em outros de diarrhea ; no primeiro caso o leite é contra-indicado, pois, augmentando a cons- tipação e o meteorismo, só faz aggravar os symptomas ; é esta uma contra-indicação formal ; no segundo caso, porém, o leite, determinando constipação, é naturalmente indicado. Dysenteria :- Os bons effeitos da dieta lactea na cura das diarrheas, ligadas a um estado inflammatorio chronico da mucosa intestinal, consequência da dysenteria aguda, estão hoje bem estabelecidos. Entretanto o leite foi, durante muito tempo, accusado de aggravar a diarrhea e portanto os symptomas graves de depauperamento, produ- zidos pela dysenteria; é assim que Zimmermann, em seu tratado de dysenteria, baseando-se nas experiencias próprias e nas de Keller e Dummelin, pronuncia-se cate- goricamente contra o leite no tratamento da dysenteria. Depois de uma tal auctoridade os médicos tornarão-se cautelosos no uso do leite na diarrhea dysenterica. Foi (1) Jaccoud. - Loc. cit. 43 Renaud, em uma epidemia de Loches, um dos primeiros que vencendo o temor, procurou restabelecer as indicações do leite ; mas este auctor prescrevia o leite misturado, em partes iguaes, com agoa de cal, á qual elle attribuia mais do que ao leite a acção curativa sobre as ulcerações intestinaes. Hoje graças, sobre tudo aos trabalhos dos médicos da marinha franceza, a dieta lactea firmou de uma vez os seus direitos de cidade no tratamento da dysenteria chro- nica. Junctamente com as observações demonstrativas de Pecholier e de Karell, muitas outras forão publicadas, que mostrão os benefícios incontestáveis do leite n'esta affecção. A acção do leite é perfeitamente facil de comprehender. Convém alimentar o doente e impedir a irritação das ulce- rações intestinaes pela passagem de massas excrementi- cias; como preencher essa dupla indicação? Não alimen- tando o doente a inanição se mostraria promptamente ; dando alimentos de facil digestão, manter-se-hia a nutri- ção, porém os resíduos irião irritar as superfícies ulceradas, eternisando o mal; o leite, facilmente digerido, não dei- xando resíduos solidos, satisfaz plenamente o duplo fim que se tem em vista attingir. A diarrhéa chronica da Conchinchina, irmã gemea da dysenteria, encontra também no regimen lácteo meios de cura; e tanto uma como outra, se não tem no leite medi- cação infallivel, ao menos quasi sempre se obtem a cura do doente. Attribuida a um parasita a anguillula stercorale, a diar- rhéa da Conchinchina foi considerada como moléstia para- sitaria ; segundo Normand, não se consegue conservar o parasita nas dejeções dos doentes, que forão submettidos ao regimen lácteo, e demais, que misturando-se o leite ás preparações, contendo anguillula, o animal perde os 44 caracteres de vida mais promptamente, do que n'aquellas- em que a agoa é o agente de dissolução. A acção da dieta lactea nas affecções chronicas do intestino foi diversamente interpretada; Auphan, que attri- buia ao oedema sub-mucoso um papel considerável na ente- rite chronica, acredita ter o leite, em taes casos, acção idêntica áquella que elle possue em relação ás hydropisias em geral; Pécholier attribue a utilidade do leite á sua acção analeptica geral, á facil digestibilidade, bem como á acção temperante e antiphlogistica local ; Fonssagrives julga explicar a acção do leite em certas diarrheas chroni- cas, comparando-a á dos purgativos salinos, como um meio de modificar a natureza das secreções intestinaes, e por conseguinte de dar aos fluxos diarrheicos antigos um impulso para a cura espontânea. Parece-nos antes que é a acção constipante do leite a causa dos beneficos resultados nos casos d'essa ordem. Moléstias do fígado A utilidade do leite nas affec- ções hepaticas era já conhecida de Hippocrates, que o empregava no tratamento da ictericia e das febres biliosas- Com effeito, como fazem notar Trousseau e Pidoux (i), se examinarmos as fezes das crianças, submettidas ao alei- tamento natural ou artificial, veremos que são apenas co- rádas por uma bile amarella e pouco abundante; porém, quando o leite é substituído pela carne, caldos, etc., as fezes contem maior proporção de bile e a coloração tor- na-se mais escura. Diante d'esse facto era natural acreditar-se nas vanta- gens do leite nos casos de obstrucção das vias biliares, na ictericia, nos estados inflammatorios da glandula hepatica. A experiencia veio confirmar esta vista theorica, pois, (1) Trousseau et Pidoux-Traitè de Thérapeutique. 45 como accrescentão os referidos auctores, não ha trata- mento que descongestione o figado com tanta rapidez, mesmo quando ha obstrucção das vias biliares, como o leite addicionado de agoa de Carlsbad. Do emprego do leite nas differentes affecçoes diathesicas As moléstias diathesicas se caracterisão por producções neoplasicas especiaes, constituídas por elementos novos, formando tecidos, ora analogos aos normaes (homologos), porém alterados em sua natureza e em sua fôrma, ora te- cidos completamente novos (heterologos) que, estranhos ao plano geral da organisação humana, ahi vivem de uma vida inteiramente parasitaria. São verdadeiras moléstias da nutrição, contra as quaes os meios tendentes a modificar as condições nutri- tivas são os mais razoaveis; são os regimens exclusivos, entre os quaes o lácteo occupa importante lugar, aquelles que melhor devem convir. Passaremos em revista successivamente: as dermato- ses seccas, a carcinose, a escrophulose, a tuberculose, sobretudo a pulmonar em que o leite é melhor indicado, e emfim, a gotta. Dermatoses seccas.-As moléstias cutaneas, ordinaria- mente de origem diathesica, pois que podem ser primiti- vas, são constituídas por uma modificação tal nas condi- ções do plasma nutritivo que as producções epidérmicas, não obedecendo mais ás leis da nutrição normal, as cel- lulas novas, ora se agglomerão aqui formando massas ir- regulares, ora constituem ali escamas furfuraceas, etc. 46 Modificar de prompto e radicalmente as condições nu- tritivas, eis o fim que convém attingir; como conseguil-o senão por meio das dietas exclusivas, e a lactea, basta muitas vezes n'esses casos, pois successos inesperados tem sido obtidos, quando tudo até então tinha sido infructuoso. Entretanto não queremos dizer que o leite produza sempre a cura, longe de nós tal pensamento ; as moléstias cutaneas, sobretudo as escamosas, são de uma rebeldia enorme aos meios curativos ; e tudo quanto se fizer em relação ao tratamento dessas affecções é, sem duvida, digno de louvores. Carcinose. - Moléstia essencialuiente diathesica, o câncer tem sido considerado em todos os tempos como incurável ; caracterisado por neoplasias especiaes, elle reincidirá fatalmente seja qual fôr o meio empregado. A cicuta, o arsénico, o iodureto de potassium, o proprio bistouri de nada valem contra tão terrivel flagello. Será impossível encontrar-se um dia o meio de com- batel-o, não existirá uma substancia capaz de destruir a diathese cancerosa ? Melhor resposta não podemos dar do que repetir as eloquentes expressões do professor Fonssagrives (i): « A force de tenter 1'impossible, on le realise quelquefois. On s'est trop habitue à ne diriger les moyens diathesiques que contre les tumeurs cancereuses elles mêmes, pour limiter leur progrés et suppléer 1'action instrumentale. C'est sour- tout aprés 1'operation qu'il faut s'efforcer de modifier pro- fondément 1'économie, pour tâcher d'éviter ou d'éloigner du moins ces récidives cruelles qui se jouent des tentatives de la chirurgie et la feront aboutir necessairement au septi- cismc et à 1'inaction. La scrofule a attendu l'iode long- (1) Funssagrives-Hygiène alimentaire-pag. 627. 47 temps. Qui pourrait douter que 1'especifique du câncer ne doive un jour être degagé par le hasard, par 1'induction de cette longue et fastueuse liste d'agents chimiques ou de plantes qui n'ont en apparence aucune utilité medicamen- teuse? Ce moment viendra, nous 1'espérons; mais, en attendant que cet arcane thérapeutique soit découvert, il faut demander à 1'hygiène un alterant assez puissant pour modifiér 1'économie et amener, à la faveur de cette pertur- bation empirique, 1'éradication de ce vice cancereux, con- tre lequel nul moyen médicamenteux n'a prévalu jusqu'ici. La diète lactée, à titre de régime exclusif, a quelquefois été essayée dans ce but, et avec succés. II y a peu d'an- nées, les journeaux de médicine citaient le fait trés encou- rageant d'un de nos confrères qui, porteur d'un bouton cancereux au visage, lequel récidivait invariablement aprés chaque extirpation et prenait un fort mauvais caractére, se décida à se soummetre rigoureusement au régime lactée. II y mit la ténacité du desespoir d'abord, de la conviction ensuite, et guérit d'une manière radicale. On comprend a priori la puissance d'un moyen semblable, qui rompt brusquement toutes les habitudes de la nutrition et subs- titue aux aliments si variés dans lesquel le sang puise ses materiaux, un aliment unique, monotone, exclusif. Ces essais se recommendent tout d'abord pour ce double ca- ractére : qu'ils sont rationnels et inoffensifs » . Escrofulose.-Vicio de nutrição, a escrofulose encon- tra no regimen lácteo exclusivo meios de modificar as condições nutritivas ; de outro lado, a neoplasia escrofu- losa assemelhando-se á tuberculosa, a ponto de que alguns anatomo-pathologistas modernos as considerão idênticas, é claro que, se o leite convém na tuberculose, parece que também deve convir na escrofulose. O facto parece confirmado pelas duas observações de 48 Winternitz, a que Debove se refere em sua these, nas quaes o auctor obteve pelo regímen lácteo exclusivo durante seis semanas e o mixto durante dois mezes, melhoras sensíveis da nutrição e a cura das ulceras escrofulosas, que cica- trisarão completamente em duas crianças de 7 a 12 annos de idade. Tuberculose pulmonar.-Expressão da alteração pro- funda da nutrição, da decadência organica, a tuberculose é uma d'essas moléstias, que, accarretando maior numero de victimas do que qualquer epidemia, mesmo as mais ter- ríveis, tem também mais attrahido a attenção dos médicos. As mais variadas medicações têm sido experimentadas, dando todas, ao lado de successos relativos, as mais cruéis desillusões. Considerada como incurável de todos os tempos, a phtisica não o deve ser mais actualmente ; sim, a phtisica é curável em todos os períodos ; entendamos-nos : não queremos dizer que a tuberculose no terceiro periodo, depois de ter excavado o pulmão, depois de ter produzido a destruição de uma porção mais ou menos considerável do parenchyma pulmonar, seja susceptivel de voltar atraz ; que nos seja possível restaurar os tecidos destruídos ; o que cremos possível é fazer parar a marcha progressiva e invasora do processo phymatoso ; é no primeiro e mesmo no segundo periodo fazer a lesão não progredir, obrigal-a a mudar de caracter, a transformal-a em regressiva, em obter mesmo a cura radical; no terceiro, porém, o que nos é possível fazer é limitar o mal, é obrigar a economia a ha- bituar-se a viver sem esta parte do orgão que lhe falta, é, em uma palavra, prolongar a existência do doente, o que já é muito. Não ha medicação especifica contra a tuberculose ; resultado de um vicio geral da nutrição, é nos meios de 49 melhorar esta, na hygiene, que encontramos os melhores remedios contra o horrível flagello. Facilitar a digestão, activar a hematose, melhorar as condições nutritivas, tal é o fim que principalmente deve ter em vista o pratico diante de um doente tuberculoso. O leite, alimento completo, rico em matérias graxas, de facil digestão, de facil assimilação reune em si os elementos necessários para tornal-o proprio á alimentação do phti- sico ; meio termo entre a hygiene e a therapeutica, o leite tem sido aconselhado na tratamento da tuberculose desde as éras mais remotas da medicina. Hyppocrates, Coelius Aurelianus, Aretêo da Cappado- cia, Alexandre de Tralles, todos administravão o leite aos doentes que soffrião do peito ; no tempo de Plínio os phti- sicos ião procurar na Arcadia allivio a seus males, ahi sub- mettendo-se ao uso do leite ; e Cassiodoro aconselhava aos tuberculosos as curas de leite em Stabias. Guy-Patin, Hoffmann, Cullen, etc., são também arden- tes defensores da dietalactea na phtisica pulmonar; davão preferencia ao leite de jumenta, a que attribuião proprie- dades curativas ; em suas obras encontrão-se precauções meticulosas, que punhão na escolha do leite, na alimenta- ção do animal, nas mínimas particularidades, que fazem honra á maneira cuidadosa que os antigos tinhão com seus doentes. Baumes, em seu tratado da phtisica pulmonar, dá lar- gos desenvolvimentos á questão da dieta lactea, em cujos benefícios acredita com confiança, sem entretanto, como elle diz, consideral-a como a ancora sagrada dos phtisicos, como um especifico que dispense outro qualquer meio. Apezar de taes auctoridades, é permittido pensar que, n'um tempo em que os meios de exploração physica, em que a auscultação não era conhecida, a exactidão do di ag nostico não tivesse sido em muitos casos isento de contes- 50 tação, sobre tudo na phase incipiente, na qual hoje mesmo, apezar dos meios de que dispomos, é tantas vezes difficil estabelecel-o com precisão. Acreditando na efficacia do leite, não podemos entre- tanto attribuir-lhe effeitos curativos ; mas sim consideral-o como meio adjuvante, restaurando as forças, facilitando a nutrição. Parece actuar, como diz Fonssagrives (i), como ali- mento susceptivel por sua facil assimilação e riqueza em princípios graxos, de reparar as perdas incessantes da eco- nomia, de retardar os progressos do marasmo. Util em todos os periodos, o leite tem sido empregado pelos médi- cos, que encontrão n'elle alimento de tolerância facil, o que na phtisica é de grande vantagem, pois é sabido quanto o estomago do tuberculoso é intolerante. Os auctores antigos davão preferencia ao leite de jumenta. O leite de mulher foi também preconisado, e Baumes, como já dissemos, cita dois casos em que esta especie de leite produzio brilhantes resultados, sobre tudo em um, no Inglez vindo de Montpellier, que tomou successivamente duas amas. Actualmente ninguém se lembraria de prescrever o leite de jumenta, de difficil obtenção, nem muito menos o de mulher ; o de cabra e principalmente o de vacca, ambos ricos em princípios graxos, agradaveis ao paladar, de facil procura, são os únicos a que hoje se dá preferencia. Administra-se na dóse de um, dois copos e mesmo um litro nas 24 horas ; a dieta exclusiva é repellida por todos os práticos. Lebert aconselhava tomar o leite fresco, logo depois de extrahido, no proprio estábulo, onde o doente devia per- (1) Fonssagrives -Thârapôutique de la pht puím. 51 manecer uma a duas horas, pois elle acreditava na influencia benefica do ar ahi respirado. A. Latour, acreditando na influencia do chlorureto de sodio, como modificador energico da economia, aconselha o leite chioruretado, que se obtem administrando a cabras até 3o gr. de sal de cosinha diariamente. Juntamente com esta medicação o auctor aconselha ainda outros cuidados de hygiene e theraupeutica, como alimentação leve e subs- tancial, boas condições de clima e habitação, certos medi- camentos, exercícios, agoas mineraes, etc. Esse tratamento é sem duvida efificaz, porém n'elle a dieta lactea não occupa certamente o principal lugar. Em resumo : no tratamento da phtisica pulmonar a dieta lactea convém em todos os períodos, senão como meio curativo, ao menos como alimento graxo, tonico analeptico, de facil digestão e de tolerância facil. Gotta :- O leite tem sido muitas vezes empregado no tratamento da gotta ; segundo nos reffere Hoffmann, a dieta lactea era empregada contra as moléstias articulares por Plinio, Celsius e muitos outros ; e o proprio Hoffmann referindo-se á gotta diz : « Lac asininum speci/icum in podagra ». Sydenham aconselhava a dieta lactea exclusiva aos gottosos, com o fim de prevenir ou affastar os ataques; o celebre medico tinha grande confiança n'esse meio, porém acrescenta que Jeve-se ter grande receio da volta ao regi- men ordinário, pois que então quasi sempre a gotta reappa- rece mais terrível do que nunca ; segundo elle, a dieta lactea só faz evitar os ataques da moléstia, emquanto é mantida exclusivamente. Cullen é absolutamente da opinião de Sydenham ; Bosquillon, que commentou as obras de Cullen, mostra-se pouco enthusiasta d'essa dieta, fazendo observar os incon- 52 venientes senos que podem resultar da mudança brusca da alimentação extremamente azotada dos gottosos para o uso exclusivo do leite. Barthez tanto insistio nas contra-indicações do leite na gotta, que parece não ser muito partidário d'esse meio. Garrod por seu lado acredita na efficacia do leite nos indivíduos moços e robustos, porém julga-o prejudicial nos velhos; este auctor explica a acção do leite na gotta, baseando-se nas suas propriedades nutritivas e não exci- tantes, sem fallar na acção diurética, apezar de aconselhar a agoa em abunda ncia para diminuir a formação do acido urico e facilitar a sua eliminação pelos rins. Zimmermann fez notar que um estado de gastralgia e de flatulência é uma contra-indicação formal ao emprego do leite. Do que fica dito resulta que os auctores não estão de accordo quanto aos benefícios, que um gottoso póde tirar da dieta lactea ; as suas indicações são limitadas, ora con- v ém, ora é prejudicial; mas, um facto persiste adquirido para a pratica e é que tanto na instituição, como na sup- pressão do regimen lácteo, o medico deve proceder com summo cuidado e com as maiores precauções. Debove, em sua these, refere uma observação de Si- redey, em que o doente, depois de quinze mezes da medi- cação lactea, apresentava melhoras consideráveis, não tendo tomado outro medicamento, além de alguns purga- tivos salinos. E' uma observação bastante concludente, que, como diz Debove, é muito própria para animar os médicos a lançarem mão de um meio, tão em uso no sé- culo passado, e que hoje está tão em descrédito. O que parece fóra de duvida é que o leite não convém em todos os casos de gotta ; em alguns tem dado resulta- dos vantajosos; uma indicação porém é positiva e é que o leite convém particularmente nos casos de gotta compli- 53 cada de alterações renaes. A acção do leite na gotta não está bem explicada ; parece provável que actúa como al- terante, não deixando de influenciar também por suas propriedades diuréticas. Das moléstias em que 0 leite parece actuar como alimento insufficiente Quando tratámos da acção physiologica dissemos que sob a acção do regimem lácteo o homem, no fim de um certo tempo, perde de peso, emmagrece por autophagia. E', pois, o leite para o adulto alimento insufficiente, visto que offerece uma quantidade relativamente pequena de princípios hydro-carbonados; pois bem, esta propriedade do leite é approveitada em certos estados morbidos, em que elle parece actuar como modificador poderoso da nu- trição a titulo de alterante. Polysarcia.-Karell refere duas observações, citadas na these de Debove, em que por meio da dieta lactea o auctor determinou, em duas mulheres obesas, a diminui- ção completa do volume extraordinário do corpo ; sendo em uma a duração do tratamento de quarenta dias. Weir-Mitchell e Mackricki publicarão factos não menos concludentes ; em uma das observações deste ultimo auc- tor o peso do corpo desceu, no fim de quatorze dias de dieta, de 389 litros a 362, e em uma outra a diminuição do peso foi, depois de sete dias, de 16 litros, pois que de 341 descera 325. Todos elles servirão-se do leite, privado do cremor, isto é, da matéria graxa; entretanto, o mesmo resultado é 54 obtido, se bem que mais demoradamente, com o leite completo. O facto é facil de comprehender ; quatro litros de leite, quantidade bastante para a alimentação de um adulto nas 24 horas, contem 172,20 gr. de manteiga, quantidade con- siderável, pois que, segundo Pettenkofer e Voit, 117 gr. de matéria graxa são bastantes para alimentar diariamente um adulto. Parece á primeira vista absurdo que com um tal alimento se possa emmagrecer ; mas, como demonstrarão Persoz e Boussingault, toda a graxa dos nossos tecidos não provem exclusivamente da gordura dos alimentos. Com effeito, nutrindo animaes com uma alimentação, cuja pro- porção em gordura era previamente conhecida, e dosando assim as graxas ingeridas, como as expellidas pelas secre- ções, Boussingault notou que o peso das matérias graxas do animal excedia muitas vezes de 40 kilogrammas o peso da graxa preexistente no organismo ou introduzida pela alimentação. Persoz por seu lado observou resultados analogos, comparando a quantidade de matérias graxas, existentes no milho com que nutria gansos, com a propor- ção dessas matérias contidas no corpo do animal depois da operação. Das experiencias de Hoppe resulta que, reunindo o assucar á carne, obtem-se em cães um augmento mais rápido do peso do corpo do que com a alimentação azo- tada exclusiva, d'onde elle concluio serem os hydratos de carbono substancias que muito concorrem para a pro- ducção da gordura organica. De todas essas experiencias se póde concluir que as matérias graxas de economia provem tanto dos princípios gordurosos como dos hydratos de carbono. Ora, no leite a quantidade de hydratos de carbono é relativamente pequena, pois que, segundo Pettenkofer e Voit, um adulto deve ingerir quotidianamente 352 gr. 55 d'esses princípios e em quatro litros de leite apenas existem 161,48 gr. de lactose. D'esses dados se conclue que a proporção das matérias graxas fornecidas pelo leite é relativamente considerável, porém a dos hydratos de carbono é, ao contrario, dimi- nuta ; parecendo sob o ponto de vista da fixação de prin- cípios graxos, que o excesso de um não compensa a falta do outro. Tal é a explicação apresentada por Debove, a qual acceitamos por nos parecer razoavel. Amenorrhéa:-Muitas vezes a amenorrhéa acha-se ligada á obesidade ; n'esses casos o tratamento que melhor convém deve ser justamente aquelle, que fazendo cessar a causa, faz também desapparecer o effeito; n'essas circum- stancias a dieta lactea dá bons resultados. Já Hyppocrates dizia que muitas vezes a esterilidade, não só na mulher como nos animaes, era devida a obe- sidade. N'esses últimos tempos o professor Tarnier, tendo de tratar de uma mulher obesa, amenorrheica e ao mesmo tempo albuminurica, empregou por causa d'esse ultimo symptoma a medicação lactea ; ora, sob a acção d'esse tratamento, elle observou não só o desapparecímento da albuminúria, como ainda o da polysarcia e o restabeleci- mento das regras. Diante de um facto tão animador, o distincto gynecologista não hesitou em empregar o mesmo tratamento em uma outra mulher também obesa e ame- norrheica, mas não albuminurica; ainda d'esta vez os resultados forão brilhantes: a polysarcia desappareceu e os menstruos restabelecerão-se. Depois d'esses factos é licito acreditar-se na acção 56 curativa da dieta lactea nos casos de amenorrhea, depen- dente de obesidade. Hypertrophia do coração :- A segunda importante indicação do regimen lácteo, como alimento insufficiente, é a hypertrophia essencial do coração, sem concomitância de lesões oro-valvulares. FoiPécholier o primeiro que teve a idea de substituir o tratamento tão rigoroso e barbaro de Valsalva e Albertini pelo uso do leite, que como alimentação leve e de acção sedativa, mantém o coração, por assim dizer, em repouso, o que o faz tender a diminuir de volume. Em sua sabia memória o auctor cita tres observações de hypertrophia activa do coração, curadas pela dieta lactea, e tira a seguinte conclusão : « Na hypertrophia activa, a dieta lactea ajudada pela digitalis, e algumas vezes sem esta ultima, póde, se é sufficientemente conti- nuada, trazer a principio uma melhora nos symptomas e mais tarde mesmo uma reabsorpção do tecido muscular superabundante e por consequência a cura » . Potain observou indivíduos, soffrendo de hypertrophia Cardíaca, ligada á nephrite intersticial, que forão conside- ravelmente alliviados pelo regimen lácteo. Nas hypertrophias cardíacas devemos distinguir os casos, em que o augmento do volume do orgão está ligado á alterações oro-valvulares d'aquelles em que não existem essas alterações. No primeiro grupo de factos, a hypertrophia é conse- quência da lesão orica, benefica até certo ponto, pois per* mitte augmento da impulsão ventricular, evitando os effei- tos funestos da asystolia ; n'essas condições, diz o professor Parrot, oppor-se ao desenvolvimento da hypertrophia ou combater os seus effeitos seria uma pratica má ; deve-se, ao contrario, procurar manter os bons effeitos do facto 57 morbido, nutrindo o musculo, ajudando-o a bem cumprir a sua missão. No segundo grupo, porém, a principal indicação é oppor-se ao desenvolvimento do musculo, impedir a mar- cha da moléstia; n'esses casos a dieta lactea, actuando como alimento insufficiente e sedativo, deve dar e dá bons resultados. O professor Fonssagrives aconselha o leite também no tratamento dos aneurysmas inoperáveis ; diz elle : « J'ajou- terais que 1'institution du regime lacte, dans les cas d'anevrysmes inoperables, ou bien pour seconder certaines méthodes chirurgicales, la compression par exemple, parait trés rationnelle. Cette médication, aidée du repos, de la digitale, des applications froides, conduirait peut-être à de bons resul- tats, et son innocuitè engage tout au moins à 1'essayer » (i). Do emprego do leite nas afíecções nervosas No tratamento das moléstias nervosas ao leite forão attribuidas propriedades sedativas e hypnoticas. Rhazés já dissera que : « lacrecens somnum provocai », e Karell refere a observação de um doente hypochondriaco, que soffrendo de cruéis insomnias, curou-se desse symp- toma por meio da dieta lactea. Sydenham dizia que o leite actúa nas moléstias nervo- sas por ser alimento simples, de facil digestão, produzindo necessariamente um bom sangue ; e em relação á hysteria, elle assignala os bons effeitos da dieta lactea em certos (1) Fonssagrives-Loc. cit. pag. 638. 58 doentes tratados inefficazmente pelo ferro e pela quina, e mais especialmente nos atacados de cólicas hystericas. Aconselhado no tratamento das moléstias nervosas por Cheyne, Chrestien, Finot, Sydenham, etc., o foi tam- bém na alienação mental por Marcé e por Baillarger. Na ordem das nevroses são a hysteria e a epilepsia, aquellas em que o leite foi especialmente preconisado. Contra a epilepsia forão Tissot, Cheyne, Chrestien e Desa- liauve os que mais o aconselharão; Cheyne o considera como meio curativo e Creyden diz ter diminuído, durante quatorze annos, pelo uso exclusivo do leite, os accidentes epilépticos a que era sujeito. Em relação ás moléstias mentaes nada melhor podemos fazer do que citar as palavras do professor Magnan, refe- ridas na these de Debove. « Le lait nous est d'un grand secours pour les malades deprimes, affaiblis, pour ceux, particulièrement, qui offrent une certaine resistance à l'ali- mentation et refusent de manger ; ils avalent plus volon- tiers un aliment liquide, tel que le lait, et peuvent ainsi se soutenir pendant longtemps, sans que l'on ait besoin de recourir à 1'alimentation force, mais au dehors de ces indi- cations génerales, je ne connaisrien qui mérite une mention particulière ». Do emprego do leite nas moléstias em que elle parece actuar principalmente por sua acção diurética. Um dos effeitos melhor conhecidos do leite é, sem du- vida, a sua acção diurética ,• desde Hyppocrates esta acção era conhecida, e hoje não ha medico que a ignore, não ha doente, que tendo se submettido a esta dieta, não a tenha experimentado. 59 A utilidade dessa propriedade importante do leite se manifesta sobretudo no tratamento das hydropisias, quer devidas a alterações renaes, quer ligadas a lesões cardía- cas ou hepaticas, quer a outras causas; são essas as mo- léstias em que o leite dá melhores resultados. As alterações catarrhaes do apparelho urinário, a li- thiases renal também offerecem indicações ao emprego do leite. A icterícia grave, a septicemia, a uremia constituem estados morbidos graves, em que os benefícios do leite devem ser attribuidos á sua acção diurética. Hydropisias.-Indicada por Hyppocrates como util no tratamento dos oedemas, a dieta lactea era usada por Guy- Patin, que dizia de Mazarino: « Nous le tenons enfin; il est hydropique, il boit du lait et ne guerit pas ». Hortius, Bontius e Mauriceau forão os primeiros que procurarão fazer passar o leite dos domínios da pratica vulgar para os da medicina scientifica; entretanto esse meio ficou em esquecimento até que Chrestien de novo reergueu-o ; este medico, que não usava da dieta lactea exclusiva, pois permittia a seus doentes outros alimentos porem só de origem vegetal, cita oito observações em que o leite foi de grande utilidade no tratamento de hydro- pisias, sem procurar estabelecer as relações pathogenicas entre o symptoma e a moléstia primitiva; as observações de Chrestien pois, apenas servem para mostrar a vantagem do leite na hydropisia, sem nada indicar quanto ás variedades. Depois d'elle Segond publicou a observação de um doente de ascite, symptomatica de hepatite chronica, curado pelo leite em dois mezes e meio. Mais tarde Serres (d'Alais) publicou novas observa- ções confirmativas das precedentes; o auctor prescrevia a seos doentes tres sopas de leite por dia, e sobre cada uma 60 o doente devia comer uma cebola crua, com um pouco de sal e pão; elle pretendia preencher assim tres indica- ções : i.a collocar os rins em dieta pela abstinência de qualquer bebida; 2.* excital-o levemente com a cebola; 3.4 nutrir o organismo. Tal medicação excitando a sede e não satisfazendo a fome não parece, porém, que possa dar melhor resultado que o leite puro. Seis annos depois Pécholier publicou a sua memória sobre a dieta lactea; ahi vem consignados numerosos casos de hydropisias, ligadas a affecções cardiacas, hepaticas e renaes rapida e poderosamente modificadas pelo regimen lácteo. O auctor explica esta acção vantajosa do leite pela modificação que elle determina na grande funcção da absorpção, por uma acção alterante, por meio da qual altera-se a maneira viciosa, de como se faz a exhala- ção. Se bem que, admirador do distincto professor de Montpellier, não podemos no emtanto acceitar a sua explicação, pois nos parece fóra de duvida que o leite actua nas hydropisias como meio expoliador, augmen- tando sobretudo a diurese. Não parão ahi os factos publicados; outros muitos auctores citão observações, em que o leite tem dado bri- lhantes resultados na cura das hydropisias. Guinier, Cor- dier, Sireday, Karell. Ferrand, Peter, Jaccoud, etc, têm relatado factos, em que os beneficos effeitos do regimen lácteo são incontestáveis. Em resumo: no tratamento das hydropisias o leite offe- rece ao medico um poderoso recurso. Depois de termos traçado, de um modo geral, o histó- rico da dieta lactea no tratamento das hydropisias, vamos agora passar rapidamente em revista os casos particulares em que ella è melhor indicada. 61 Anasarca essencial. - Hoje que as hydropisias são quasi todas referidas a lesões cardíacas, renaes, hepaticas ou outras, parece descabido fallar em anasarca essencial; no emtanto é certo que em alguns casos a hydropisia apparece bruscamente, acompanhada de febre, cala- frios, sem que o exame mais minucioso encontre lesão capaz de explicar esse estado; são a esses casos que ainda podemos designar de anasarcas essenciaes ou me- lhor a frigort. Seja como fôr, o que nos interessa saber é que nos factos d'essa natureza, quando se institue a dieta lactea no segundo ou terceiro dia da moléstia, estabelece-se uma diurese abundante e as hydropisias desapparecem rapi- damente. O professor Jacoud (i) refere o caso de uma mulher atacada de anasarca e ascite, sem albuminúria, produzi- das pela impressão repetida do frio, que, depois de quatro mezes em que nenhuma medicação foi activa, sendo submettida á dieta lactea exclusiva durante onze dias e depois ao regimen mixto, vio a sua anasarca e a ascite diminuírem e mesmo desapparecerem completamente. Claudot e Pautier publicarão também casos de ana- sarca curada pelo uso do leite e da cebola crua. Factos taes trazem, pois, a convicção da utilidade do leite nas, denominadas hoje, anasarcas a frigore. A interpretação é facil; o leite actua n'esses casos, como em todas as hydropisias, por seus effeitos expoliado- res, diminuindo a proporção da parte serosa do sangue, e por conseguinte facilitando a reabsorpção consecutiva da serosidade extravasada. Anasarca escarlatinosa.-Não é raro observar-se du- rante ou depois de uma escarlatina o apparecimento de (1) Jacoud-Clinique de Lariboisière-pg< 800. 62 hydropisias, que tem grande tendencia a generalisação; n'esses casos ainda a dieta lactea ofterece recurso po- deroso. Se existe ao mesmo tempo albuminúria, esta póde achar-se ligada á simples catarrho renal ou a processos mais graves; no primeiro caso a dieta lactea basta para ao mesmo tempo conjurar os perigos da anasarca e curar a nephrite; no segundo; porém, o processo renal não é influenciado pelo leite, a albuminúria persistirá, mas a anasarca, symptoma que convém remover de prompto, é completamente curada; em todos os casos, pois, a insti- tuição do regimen lácteo dá resultados beneficos. O professor Jaccoud cita a observação de uma moça, que atacada de anasarca na convalescença de uma es- carlatina, curou-se em quinze dias pelo regimen lácteo; n'ella as urinas que a principio erão muito albuminosas, não continhão mais traços no fim do tratamento. Nephrites agudas. -Em relação ás nephrites agudas, diz o professor Jaccoud (i), ter sempre obtido o desap- parecimento das hydropisias e que obteve, quanto á albu- minúria, successos completos e definitivos em uns casos, completos e temporários em outros e ínsuccessos, depen- dendo esses differentes resultados da natureza e da idade das alterações renaes. Em apoio o citado auctor refere duas observações, que reunidas ás de Jonhson, Artigues, Lemoyne, etc, nos demonstrão a feliz influencia do leite no tratamento das nephrites agudas. Nas nephrites agudas devemos distinguir dois casos : a nephrite a frigore, de começo francamente agudo e a nephrite de invasão insidiosa, passando quasi sempre ao (1) Jaccoud-Loc. citado. 63 estado chronico; sob a influencia do regimen lácteo, a albuminúria desapparece de uma vez nas primeiras, a cura é definitiva; nas segundas, porém, a albuminúria di- minue consideravelmente sem cessar de todo; entretanto este ultimo resultado póde ser obtido, mas quando se suspende a dieta lactea, as urinas tornão-se de novo albu- minosas, facto que indica a passagem do mal ao estado chronico. Em resumo : nas nephrites agudas a frigore, ou não, o regimen lateo tem por effeito fazer desapparecer as hydro- pisias e a albuminúria; produzindo a cura definitiva em uns casos, e em outros, combatendo as infiltrações, me- lhora consideravelmente a perda de albumina pelas urinas O leite actua nas nephrites agudas por sua acção diuré- tica quanto ás hydropisias; e em relação á albuminúria a simples acção diurética não satisfaz plenamente, pare- cendo também intervir de algum modo a influencia do re- gimen sobre a nutrição geral. O resultado da medicação lactea nas nephrites agudas é tanto mais certo quanto mais cedo foi instituida; e para que possamos affirmar a cura radical, é preciso que não só a albuminúria tenha desapparecido, como também que não reappareça pela cessação do regimen lácteo. N'esses casos é util começar pela dieta exclusiva, pas- sando, depois que as melhoras se acusão claramente, ao regimen ordinário, sem entretanto suspender o uso do leite, administrando pois a dieta mitigada e depois a mixta. A duração do tratamento póde ser longa, o que se explica pela duração também longa da marcha da ne- phrite. Mal de Bright.-Complexo pathoiogico, a expresssão mal de Bright designa alterações varias dos rins, de que as nephrites parenchymatosa e intersticial são as princi- 64 paes. Confundidas a principio sob a mesma denominação, essas duas moléstias achão-se hoje perfeitamente discrimi- nadas tanto quanto ás lesões anatómicas, como quanto á symptomatologia. Combater as hydropisias, diminuir a albuminúria, me- lhorando o estado geral do doente e prevenindo os acci- dentes uremicos, taes são as principaes indicações, a que deve attender o pratico, no tratamento do mal de Bright; ora a dieta lactea as satisfaz perfeitamente, melhorando consideravelmente o doente. Quanto á cura radical no começo da moléstia ella é possível, mas quando as alterações chegão a ponto de tornar-se impossível a reparação, então não nos é mais permittido contar com um resultado definitivo e com- pleto. Nephrite parenchymatosa.-Esta fórma do mal de Bright começa, ora de um modo insidioso : insomnias, oedemas das palpebras pela manhã, etc; ora de uma ma- neira ruidosa : ha calafrios, febre, dores lombares, etc; no fim de algum tempo esses symptomas agudos se acalmão e o mal passa insensivelmente ao estado chronico; essa passagem, porém, se denuncia por alterações micros- cópicas, que não são as mesmas do estado agudo, nem analogas ás do estado chronico; é a essa transição que Jaccoud denominou de periodo sub-agudo (i). A influencia do regimen lácteo na nephrite parenchy- matosa depende sobretudo do periodo em que se acha a moléstia* Na phase aguda, quando as alterações renaes ainda são de facil reparação, o leite dá resultados consideráveis; pois, como diz o professor Jaccoud, (2) se não podemos (1) Jaccoud-Pathologie interne* $ Jaccoud-Clinique de Lariboisiére* 65 affiançar, com certeza mathematica, a cura completa, ao menos podemos ter grande confiança no emprego d'esse meio, que curando muitas vezes, melhora sempre; o mesmo auctor cita cinco casos, dois observados na Lari- boisière e tres em sua clinica civil, nos quaes o uso exclu- sivo da dieta lactea trouxe a cura definitiva, pois depois de suspensa, a albuminúria não reappareceo. No segundo periodo, na phase sub-aguda, quer por elle comece a moléstia, quer succeda ao periodo agudo, ainda a dieta lactea offerece os melhores resultados; a probabilidade do successo depende do estado das lesóes renaes; é assim que em certos casos, quando as urinas só contém epithelium e cylindros epitheliaes ou colloides não granulosos, a cura póde ser obtida, em outros, porém, quando o microscopio nos revela alterações taes, que tra- zem comsigo o cunho da chronicidade, o insuccesso é certo; ainda n'esses últimos casos o leite não deixa de ser de grande utilidade, pois que faz desapparecer as hy- dropisias, melhoraa nutrição, restaurando as funcções da assimilação, diminue a albuminúria, e, pela abundante diurese que entretem, previne as terriveis consequências da anuria. No ultimo periodo, na phase essencialmente chronica a cura é impossível; n'esse estado as alterações dos rins são de tal ordem, que a sua reparação é um facto que não podemos esperar nem do leite, nem de nenhuma outra medicação; n'essas circumstancias só nos resta procurar, sustentando as forças do doente, prolongar-lhe a existên- cia na medida de nossas forças. Do que dissemos resulta que, nos casos de nephrite parenchymatosa, o leite tem por effeitos : supprimir as hydropisias, diminuir a albuminúria e melhorar o estado geral do doente. 66 Quanto ás hydropisias a medicação lactea tem im- mensossuccessos, ao menos na grande maioria dos casos; pois que, nos últimos periodos do mal, a acção diurética pode não se produzir, ao menos no gráo desejado, e por conseguinte a hydropisia não ceder; prova d'isso é a se- gunda observação da memória de Schmidtlein. Em relação ao estado geral, quasi sempre observa-se uma melhora notável, que devemos attribuir não só á in- fluencia benefica do leite como alimento de facil assimi- lação, como ainda á sua acção diurética que, desembara- çando o organismo da serosidade que o embebe e que deve forçosamente embaraçar-lhe o funccionalismo re- gular, facilita assim a acção particular a cada orgão. No que diz respeito á albuminúria, symptomatica de lesões pathologicas, o leite parece não ter influencia alguma curadora. As observações de Serres (d'Alais), Pecholier, Siredey, Guinier, Cordier, Lemoyne, Jaccoud, etc, ahi estão para nos provar a feliz influencia da medicação lactea na ne- phrite parenchymatosa. Nephrite intersticial.-Se o regimen lácteo encontra, na nephrite parenchymatosa, a sua principal indicação no tratamento das hydropisias, não deixa também de ser util na forma intersticial, pois, pode previnir ou retardar a ma- nifestação dos accidentes uremicos, combater as infiltra- ções, se existem, e acalmar as palpitações cardiacas ligadas á hypertrophia ventricular tão notável na nephrite inters- ticial. As indicações do leite na nephrite intersticial são, pois, as mesmas que na outra forma do mal de Bright. Em duas observações referidas por Schmidtlein, os doentes melhorarão temporariamente, vindo a fallecer depois. 67 Albuminúria das mulheres gravidas.-O Dr. Tarnier, levado pelos bons effeitos do leite no tratamento da albu- minúria ligada a lesões renaes, teve a ideia de empregar o mesmo meio no tratamento da albuminúria das mulheres gravidas; elle obteve brilhantes successos, conseguindo melhoras rapidas e curas completas antes do parto, salvo em um caso, no qual a mulher soffria de nephrite paren- chymatosa chronica. O mesmo parteiro, conhecendo a frequência dos acci- dentes eclampticos nas mulheres albuminuricas, foi levado naturalmente a procurar evitar a eclampsia, fazendo desapparecer a albuminúria; e, com effeito, ainda não vio eclampsia sobrevir nas mulheres albuminuricas, submettidas ao regimen lácteo; a observação dos Drs. Pinard e Bu- din, transcripta na these de Debove, vem em apoio d'essa asserção. Entretanto o sabio gynecologista francez ainda não se mostrou plenamente convicto da efficacia do leite, como preservador da eclampsia puerperal, o que se deduz de suas próprias palavras : « Les faits queje signale aujord'hui ne sont pas assez probants pour qu'il ne reste aucun doute dans mon esprit. » (i) Realmente, uma observação de Charles parece estar em contradicção com as de Tarnier. Moléstias cardíacas.-As lesões oro-valvulares têm por effeito diminuir a tensão arterial e augmentar a venosa; dahi toda a symptomatologia d'essas moléstias, d'ahi também duas indicações primordiaes : augmentar a tensão arterial, augmentando a força impulsiva do coração; e di- minuir a tensão venosa, fonte dos oedemas e dos derrames serosos. (1) Tarnier-Progrés medicale-1875. 68 Essa segunda indicação é preenchida pelos hydrogogos drásticos e diuréticos; ora, o leite, poderoso diurético, encontra, pois, nas hydropisias de origem cardiaca, feliz applicação. A dieta lactea, com effeito, convém no tratamento das hydropisias cardíacas; entretanto devemos distinguir os casos, em que havendo oedemas, congestões visceraes, etc, a impulsão cardiaca ainda é bastante energica para di- minuir os resultados funestos do desiquilibrio circulatório, d'aquellesem que com os symptomas de estase coincide uma impulsão fraca, desfallecente do ventrículo, em que ha asystolia. Nos primeiros a principal indicação é diminuir a tensão venosa, e o leite, poderoso diurético, produz resultados brilhantes; com effeito, é então que a dieta lactea, em tempo instituída, diminue e faz desapparecer os oedemas, livrando assim o doente dos perigos das infiltrações visce- raes e facilitando a acção cardiaca pela suppressão do embaraço á circulação peripherica, occasionada pelos derrames serosos no tecido cellular. Quando, porém, o coração acha-se em asystolia, a dieta lactea em vez de beneficiar ao contrario, agrava o estado das cousas, pois depois de absorvido o leite só faz augmentar a replecção vascular, sem provocar a diurese, porque o coração em asystolia não tem força bastante para vencer a estase renal; é n'essas condições que, apezar de ingerir um, dois litros de leite, a quantidade de urina longe de augmentar diminue. Nos casos d essa natureza, é, só depois de ter adminis- trado a digitalis que augmenta a força contractil do co- ração ou drásticos, que determinando abundantes espo- liações intestinaes, diminuem a tensão venosa, que devemos instituir a dieta lactea, sob cuja acção desapparecem rapi- damente as hydropsias restantes, 69 Os effeitos do leite nas moléstias cardíacas, pois se ma- nifestão sobre as hydropsias que desapparecem, guardadas as indicações que deixamos estabelecidas; sobre a albu- minúria que também cessa, o que, não accontecendo, agrava o prognostico; e, emfim, sobre o estado geral, como alimento de facil digestão, convindo a todos os indi- víduos, cuja circulação visceral é defeituosa. A maior parte dos effeitos beneficos do leite nas af- fecções cardíacas deve ser attribuida á sua acção diuré- tica, havendo, entretanto, outra acção que não podemos precisar, e como prova, diz Debove, basta-nos a acção sedativa sobre os accidentes cardíacos na nephrite inters- ticial, sem a existência de oedemas. Ascite. - Hydropisia da serosa peritoneal, a ascite pode depender de causas múltiplas; o regimen lácteo tem sido empregado no seu tratamento por diversos auctores; assim é, que Chrestien refere oito casos de cura em oito doentes. Mauer e Cornelius, citados por Trousseau, curarão a ascite em doentes, nos quaes a punção não dera resultado, sómente pelo leite; Fonssagrives cita dois casos de Leroy de Méricourt e Segond curados por esse meio, e Trous- seau diz ter também obtido successos. As observações de Karell e Pécholier não deixão du- vida, quanto a acção palliativa do leite na ascite, sympto- matica da sclerose hepatica. O professor Jaccoud, porém, foi menos feliz, pois em um caso de ascite, ligada a tuberculose peritoneal, o uso do leite não trouxe vantagem alguma; em relação á as- cite das hepatites chronicas, eis como se exprime o refe- rido auctor : « Quant á 1'ascite de la sclerose du foie, je ne compte plus les revers, je n'ai pas eu un seul succés.» (i) (1) Jaccuud Loco citado - pg. 806, 70 Assim, pois, o regimen lácteo dando brilhantes resul- tados a uns observadores, foi ao contrario inútil a outro; como conciliar os factos ? admittimos u explicação de Jaccoud, que nos parece rasoavel. A ascite, dependendo de embaraço na circulação porta, são os meios que actuão directamente sobre esse sys- tema vascular os melhores para combatel-a; ora o leite faz desapparecer as hydropsias por sua acção diurética; esta acção se faz sentir principalmente sobre as hydropisias, dependentes da circulação geral; nas do systema porta, esta acção se bem que real é tardia, demorada e pouco intensa; d'ahi resulta que a causa da ascite permanecendo sempre a mesma, a quantidade de liquido derramado sendo sempre a mesma, de um lado, e de outro, a por- ção de liquido reabsorvido e excretado pelos rins, sendo menor relativamente á parte extravasada; é claro que, por influencia do regimen lácteo, a ascite longe de dimi- nuir, ao contrario, augmenta. Quando porém as duas faces do problema invertem-se o resultado do leite deve ser benefico. Em resumo : se o leite pode em alguns casos diminuir e mesmo curar a ascite, não é, sem duvida, esse meio de que devemos lançar mão nos casos urgentes, quando pela abundancia do liquido derramado ha compressão do diaphragma e ameaça de asphyxia eminente. Como nas hydropisias de origem cardiaca, o leite é na ascite ligada a sclerose hepatica, um meio puramente pal- liativo Pleuresias.-Nos casos de anasarca, quando a infiltra- ção é geral, o derrame pleuritico concorre também com o seu contingente morbido; o desapparecimento da ana- sarca e o da pleurisia consecutiva, sob a influencia do 71 leite, faz suspeitar dos bons resultados d'esse meio na pleu- risia simples. Na pleuresia chronica, accomp anhada de derrame se- roso, o successo da medicação lactea é completo, como resulta das observações citadas por Fonssagrives e por Siredey. Na pleuresia aguda Lemoyne cita quatro observações, tiradas da clinica do professor Jaccoud, em que a dieta lactea deu resultados magníficos, obtendo-se a cura radi- cal, depois de um tratamento cuja duração oscillou entre ioei5 dias. Jaccoud encontra momento opportuno para a institui- ção do regimen na occasião em que os algarismos ther- micos começão a marcar a declinação da febre; e a for- tiori quando esta termina. Nem em todas as circumstan- cias a dieta lactea deve ser instituída ; nos casos em que ha dyspnea considerável, ameaço de suffocação eminente, devemos nos abster de recorrer ao leite; em taes condi- ções a indicação da thoracentese é formal. A dieta lactea, produzindo os seus effeitos depois de um tempo mais ou menos longo, é só nos casos em que o derrame não é muito considerável, em que o embaraço mechanico da respiração não é grande, que a sua indica- ção encontra-se melhor estabelecida. Lithiasis renal.-O facto de tratarmos aqui d'essa moléstia prova mais uma vez quanto de artificial tem a classificação que tomamos por base; com effeito a lithia- sis encontraria logar cabido na classe das diatheses, ma- nifestação coma é da diathese urica. Foi o professor Jaccoud o primeiro que teve a idéa de tratar a lithiasis renal pela medicação lactea. Nos casos de obstrucção renal por cálculos uricos ou de outra natureza, a indicação primeira consiste em livraj 72 o filtro renal das substancias, que o obstruindo, impedem a secreção urinaria de fazer-se com liberdade; ora é nos diuréticos que essa indicação se acha plenamente satis- feita; mas qualquer diurético não serve, porque o paren- chyma renal já irritado pela presença dos cálculos, os diuréticos irritantss só farião augmentar essa irritação e provocar dores atrozes, o leite, ao contrario, provocando abundante diurese, lava por assim dizer os rins, acarre- tando os cálculos, sem augmentar a irritação. Jaccoud acredita perigoso o emprego do leite quando os rinsse achão obstruídos por cálculos volumosos, pois então a diurese, provocada pelo leite, pode, arrastando os cálculos assim volumosos, determinar accessos de có- lica nephretica; é, pois, esta uma contra-indicação formal. Fóra d'essas circumstancias o leite dá resultados magní- ficos. A dieta lactea não tem. é verdade, acção directa sobre a diathese urica; mas, se não cura, tem a vantagem de manter as urinas normaes durante toda a sua du- ração. E' verdade, também que, uma vez suspensa, os crys- taes uricos reapparecem nas urinas; o que nos leva a crer que o regimen não modificou realmente a disposição or- gânica, porém, simplesmente, suspendeu a sua manifesta- ção, o que já é muito. Para obter esse resultado não é preciso submetter o doente á dieta lactea exclusiva; basta juntar á alimentação ordinaria um a dois litros de leite por dia; por esse modo vê-se prolongar indefinidamente o beneficio resultante do emprego do leite. Eis como se exprime o professor Jaccoud : (i) « II est bien possible que dans ces conditions le processus nutri- (1) Jaccoud.-Loco citado-pg. 653. 73 tif reste vicieux et que 1'organisme continue à produire de Facide urique en excés; mais la surabondonce d'eau maintenue dans 1'urine par le lait assure la solution de cet element et la gravelle ne reparait pas c'est, du moins, ce que j'ai deux fois observé. La medication lactée n'a donc pas seulement pour effet de prévenir les accidents secondaires de la lithiase urique, accidents qui en font tout le danger, mais, en outre, par une action indirecte, elle supprime la gravelle elle-même...» Os bons effeitos do leite na lithiasis renal devem ser at- tribuidos, pois, á sua acção diurética, razão porque julga- mos andar acertado, tratando-a n'esse capitulo. Cystite.-Nas affecções catarrhaes do apparelho ex- cretor da urina, desde os bassinetes até a urethra, o leite éde incontestável utilidade. Nos casos de cystite aguda, no periodo inicial, o leite por sua acção sedativa, acalmando as dores, mino- rando os soffrimentos atrozes da micção; e depois de pas- sada a phase aguda, pelas modificações que imprime ao estado da mucosa, concorre poderosamente para deter- minar a cura. As observações de Johnson, de Jaccoud e de Terrier mostrão a acção benefica do regimen lácteo no tratamento da cystite. Nas cystites produzidas por corpos estranhos, por cal- óculos ou por estreitamentos da urethra, o leite, acal- mando as dores e melhorando o estado da mucosa, actua por acção palliativa, é verdade, mas que é mais ra- pida e mais salutar que a produzida por outro qualquer meio; convindo, como diz Jonhson, para preparar o doente, nos casos de cálculos, para experimentar a litho- tricia. 74 Como actua o leite n'esses casos? Será por sua acção diurética, produzindo uma forte polyuria, que lava cons- tantemente as partes affectadas; ou será destruindo as pro- priedades irritantes de certos principios da urina; ou modi- ficando a composição d'esse liquido, como regimen exclu- sivo; ou, será por suas propriedades sedativas ? Avançar qualquer d'essas proposições seria aventar hypotheses, que nenhuma vantagem trarião. Blennorrhagia.-Como na cystite, a acção do leite na blennorrhagia não é bem conhecida. Winternitz cita seis casos de blennorrhagia aguda curados pelo leite, e, segundo assevera o professor Jac- coud, todas as vezes que o doente se submette, durante alguns dias, ao regimen lácteo puro, obtem melhora ra- pida e notável na agudeza dos accidentes iniciaes, conse- guindo assim abreviar a duração total da moléstia. Uremia.-A presença no sangue dos principios cons- titutivos da urina produz accidentes taes que a morte é quasi que consequência infallivel; a que principio deve- mos attribuir esse effeito; é um ponto em discussão, na qual não nos é permittido entrar. A ligadura dos ureteres nos animaes, as obstrucções dos rins no homem, são causas da retenção no sangue dos principios da urina e dos accidentes toxicos consecu- tivos; resultado idêntico se observa quando a secreção renal é, não completamente supprimida, porém dimi- nuída, insufficiente, como acontece nas nephrites. N'esses últimos casos o regimen lácteo, por sua acção diurética poderosa, dá os melhores resultados; é, pois, quando a uremia se accentua gradualmente, quando ainda só existem phenomenos premonitores da toxicoemia uremica, que o leite produz os maiores benefícios. 75 Nos casos, porém, em que a anuria é completa, quando os accidcntes toxicos se manifestão em toda a sua intensidade, o leite não pode evidentemente nada fazer; n'cssas circumstancias são os drásticos, meios energicos, os primeiros que devem ser empregados; e é só, quando os perigos eminentes forão conjurados, que o regimen lácteo, entretendo a diurese, acha indicação. O professor Jaccoud, depois de citara observação de um doente affectado de uremia, em que a dieta lactea foi de beneficio incontestável, accrescenta que : « II est bon de remarquer que la densité n'a pas diminué d'une ma- nière proportiennelle á l'augmentation quantitative de 1'urine, cej qub preuve que nous n'avions pas seulement une simple diurèse aqueuse, et que le liquide éliminé conservait les caracteres et la signification de 1'urine vé- ritable.» (i) Septicemia.-Resultado da reabsorpção de pús séptico, a septicemia entra na grande classe das moléstias toxi- coemicas. Objecto das medicações as mais diversas, dando quasi todas resultados negativos, tudo quanto se fizer contra tão terrivel mal é, sem duvida, digno de louvores; o leite foi também ensaiado, como resultão de duas obser- vações de Terrier, citado por Debove (2), nas quaes pare- ceu dar bom resultado. Icterícia grave.-A ictericia pode dar lugar a sympto- mas os mais terriveis, occasionando a morte por verda- deira intoxicação, semelhante áquella produzida pela uréa; com esta differença que a uremia dá lugar a acci- (1) Jaccoud-Loco cilato. (2) Debove-Loc. cit.-pg. 98. 76 dentes rapidamente mortaes. ao passo que a icterícia grave, dando lugar também rapidamente á morte, ás vezes comtudo a terminação fatal é retardada. Para explicar essas differenças imaginou-se que os prin- cípios da bile sendo eliminados pelas urinas, em propor- ção variavel, a sua accumulação no sangue também se faz diversamente, dando lugar a essas modalidades na duração ena gravidade. Essa theoria sustentada por Vulpian leva naturalmente o medico a lançar mão dos meios capazes de activar a secreção renal, isto é, dos diuréticos. Ch. Bouchard refere, na Gazette hebdomadaire de 1877, uma observação importantíssima de atrophia ama- rella aguda do fígado curada pela dieta lactea,- e Debove, em sua these, cita uma observação do Dr. Terrier de um cão atacado de icterícia grave completamente curado pelo leite. Esses factos nos mostrão, pois, a influencia feliz da me- dicação lactea nos casos de icterícia grave, resultado que devemos attribuir á sua acção diurética. Do emprego do leite nas intoxicações O leite tem sido considerado como antídoto dos enve- nenamentos ; ha n'esse modo de pensar exageração ma- nifesta ; o leite convém em certos envenenamentos, como os produzidos pelos saes de chumbo, de zinco e de estanho, em que parece actuar como diurético, combattcndo os accidentes da intoxicação ; em outros, como nos envene- namentos pelos saes de cobre, mercúrio, antimonio, não deixa de ter utilidade como meio transitório, demorando, por sua coagulação, a absorpção do agente toxico ; nas 77 intoxicações pelos cogumellos e pela noz vomica dá bons resultados, depois da eliminação do veneno pelos meios evacuantes; entretanto é contra-indicado nos casos de intoxicação pelo phosphoro, pois, como mostrou Mialhe, o phosphoro é absorvido depois de emulsionado pela gor- dura dos alimentos; n'essas circumstancias o leite em vez de convir, agrava ao contrario o estado do paciente. E' na intoxicação saturnina que o leite dá melhores resultados; Tanquerel, em seo Tmúé des maladies de plomò, diz que os trabalhadores preservão-se dos accidentes, a que expõe a sua profissão, fazendo uso habitual na alimen- tação do leite ; Didierjean, citado por Debove, refere o facto curioso de dous operários de uma fabrica de mi- nium que ainda não tinhão apresentado os accidentes saturninos, porque ingerião quotidianamente uma quanti- dade considerável de leite ; em razão d'esse facto, foi prescripto o leite aos outros operários, e durante dezoito mezes, em que o auctor observou, não se manifestárão os accidentes toxicos em nenhum dos industriaes. Esses factos mostrão a benefica influencia do leite na intoxicação saturnina, influencia que deve ser attribuida á sua propriedade diurética, pois como demonstrárão Mayen- çon e Bergeret, encontra-se chumbo nas urinas dos doen- tes ; se, pois, a diurese é augmentada o veneno não tem tempo bastante para se accumular no organismo e deter- minar os effeitos funestos da intoxicação. Iodismo constitucional : - Não devemos confundir esse estado com o iodismo agudo, produzido pela intro- ducção do iodo no organismo e characterisado por coryza, lacrymejamento, ardor e secura da garganta, accidentes passageiros, que rapidamente desapparecem. Eis como o professor Rabuteau (i) characterisa o iodis- mo constitucional : Rabuteau-Loco citato-pg. 392. 78 « Au début, il survient de 1'agitation, de 1'inquiètude ; le sommeil est interrompu. Biéntôt le pouls s'accélère ; on l'a vu s'éléver qusqu' à 120 por minute. Les sujeis éprou- vent des palpitations, de 1'essouflement, bien que 1'auscul- tation ne révèle 1'existence d'aucune lésion Mas, ce qui frappe le plus, c'est un amaigrissement progressif qui peut devenir effroyabie- » Mais adiante o auctor accrescenta que esse estado parecendo muito grave, cura-se no entanto em tres ou quatro mezes pelo repouso e pela dieta lactea. Do emprego do leite durante as febres e convalescenças Submetter os febricitantes a uma dieta rigorosa, ás ve- zes absoluta, era ainda não ha muito tempo, pratica banal ; forão Graves na Inglaterra e Trousseau em França, os primeiros que se levantando contra os usos barbaros até então seguidos, mostrárão a necessidade de alimentar os febricitantes. Mas se a indicação está perfeitamente estabelecida, os meios de preenchel-a não estão ; com eífeito, de um lado a febre accompanhando se de um estado saburral bem characteristico das primeiras vias, traz como consequência necessária a perda do appetite, de outro é certo que a febre determina uma diminuição notável na secreção gastrica; o facto é verdadeiro, pois as experiencias nol-o demonstram; e demais, quem nos diz que o sueco gástrico dos febrici- tantes acha-se em estado de bem digerir ? Beaumont, em suas experiencias sobre o Canadiano, observou que sob a influencia da febre a excitação gastrica 79 pouco ou nenhum sueco gástrico produzia: Hoppe-Seyler, tendo tido occasião de observar por diversas vezes as ma- térias contidas no estomago de um indivíduo, que soffria da dilatação do ventrículo, encontrou sempre uma notável porção depeptonas; attacado de febre typhoide esse mes- mo indivíduo, as matérias contidas no estomago, sendo examinadas, não continhão traços de pepto na. Por seu lado Manassein, provocando a febre em cães, pela injecção de substancias pútridas, observou que o sueco gástrico d'esses animaes, em taes condições de moléstia, possuia um poder digestivo muito fraco ; e nas ex periencias de digestão artificial a putrefação era muito rapida ; d'essas experiencias resulta que, sob a influencia da febre a secreção gastrica diminue de quantidade e ainda que o liquido segregado não possue em perfeita integridade o seo poder digestivo. D'ahi a necessidade de fornecer ao estomago alimentos que por sua facil digestão não exijam d'elle trabalho que não pode fazer. Ora, o leite alimento liquido, não exigindo para o dige- rir de grande quantidade de sueco gástrico, e demais não activando as combustões intimas, já tão intensas pelo facto da febre, satisfaz cabalmente o fim que se tem em vista obter. E' assim que o leite convém durante toda a duração de uma febre typhoide, da variola, da escarlatina e de outros estados graves. O leite, n'essas condições, actua como alimento de facil digestão e não como medicamento, como entre outros accreditava Yule, que attribuia-lhe a proprie- dade de abreviara febre typhoide, podendo mesmo asse- gurar uma terminação feliz. Em relação á convalescença das mo lestias longas ainda o leite vem fornecer precioso recurso ; nessas circumstan- cias tudo tende a entrar em ordem; as secreções até então 80 alteradas tornam-se pouco a pouco normaes, os líquidos digestivos vão progressivamente adquirindo as suas pro- priedades activas, o estado saburral das primeiras vias desapparece, o appetite desenvolve-se. E' n'essas condi- ções que o medico deve dobrar de precauções, pois um alimento pesado pode tornar-se causa de accidentes, tanto mais graves quanto o enfraquecimento do doente menos os supporta. Fornecer uma alimentação leve, de facil digestão, capaz de restaurar as forças do doente, reparando as perdas occasionadas pela moléstia, eis o que o medico deve procurar. O leite vem ainda uma vez offerecer ao pratico meios de conseguir os seus fins ; a indicação do leite na conva- lescença das moléstias prolongadas é, pois, perfeitamente razoavel. Quanto á convalescença da febre typhoide, Debove aconselha o leite desprovido do cremor, isto é, da parte graxa, baseando-se em que a gordura, absorvida pelos lymphaticos intestinaes, tem de atravessar os ganglios me- sentericos alterados pela moléstia ; a dieta lactea, aceres- centa o autor, determinando a constipação, poderá por este facto provocar a ruptura das ulcerações intestinaes, ainda imperfeitamente cicatrisadas; se, pois, houver ten- dência a esse phenomeno, convém combattel-o por meio de purgativos brandos. Modos de administração e doses O leite pode ser administrado de tres modos diffe- rentes : como regimen exclusivo ou puro, como regimen mitigado ou como regimen mixto. No regimen puro o doente ingere sómente leite, que é administrado na dose de 3 a 4 litros por dia; o doente 81 toma de hora em hora ou de duas em duas horas um copo deleite e nenhum outro alimento, se a sede o ator- menta pode-se, como fazia Karell, permittir a ingestão de agoa simples ou da de Seltz. Ha indivíduos aos quaes o leite causa invencível re- pugnância; é então que, começando gradualmente por doses pequenas e augmentando-as progressivamente, con- segue-se quasi sempre obter a tolerância. O leite puro, bebido logo depois de sua extracção é sem duvida o melhor; mas nem sempre isso é possível, então se o prescreve na temperatura de 35' a 40'; o leite puro e fresco é o melhor digerido, o contrario observa-se em certas pessoas. Pode ser administrado puro ou condimentado com as- sucar, sal, substancias aromaticas ; Gubler aconselha ajuntar um pouco de kirsch, ou de anisette com o fim de estimular o estomago. A digestão do leite é favorecida, segundo Pécholier pela addição do bicarbonato de soda, da magnesia e dos alcali- nos em geral; a certas pessoas, convém ao contrario os ácidos; e em outras deve-se ajuntar os amargos ou algumas gottas de rhum. São modalidades idiosyncrasicas, que só a pratica pode tornar conhecidas. Ordinariamente a dieta lactea traz como consequência uma constipação mais ou menos rebelde, accidente que convém ser debellado, quer com laxantes salinos, quer. com simples clysteres; algumas vezes, o contrario se dá? ha diarrhéa e então a suspensão do regimen exclusivo e a obtenção gradual da tolerância é o que ha de melhor a fazer. Todas as vezes em que é necessário actuar com promptidão, como na anasarca, nas nephrites, nas hydro- pisias das affecções cardíacas, nas moléstias gastro-intes- tinaes, a indicação do regimen puro é perfeitamente esta- 82 belecida; é só depois que as melhoras se accentuão que devemos passar ao mitigado, d'esse ao mixto e por fim á alimentação ordinaria. No regimen mitigado o leite é administrado juntamente com substancias de facil digestão, sob a fórma de sopas de leite, feitas com sagú, tapioca aveia, aletria, etc, ou misturado ao café, ao chá, ao chocolate, etc. Este regimen, transição entre o exclusivo e o mixto, con- vém quando não ha urgência ou quando o regimen puro não sendo tolerado, por elle, se começa, afim de obter-se a tolerância e então passar ao exclusivo. Quando prescreve esse regimen, o professor Jaccoud administra 3 litros de leite por dia, dos quaes dois e meio de leite puro e meio sob a fórma de sopas, permittindo aos seus doentes comer pão, biscoutos, ovos, etc. O regimen mixto, emfim, consiste na addição do leite á alimentação ordinaria; Jaccoud aconselha então dois litros de leite, tomados um de manhã antes do almoço e o outro no intervallo entre o almoço e o jantar, permittindo o uso de vinhos nas refeições. Quando a indicação não é urgente, como nos casos de cálculos renaes, sem accidentes graves, nos catarrhos re- naes apyreticos, sem obstrucção dos rins, deve-se instituir o regimen mixto; podendo-se mais tarde, se melhoras não se apresentão, se a cura parece fazer-se demorada, tor- nai-o mais rigoroso, substituindo-o pelo exclusivo. As misturas de agoa e leite (hydrogala), de cerveja e leite (zythogala), de vinho e leite (cenogala), muito usadas na antiguidade, não o são mais hoje. O xarope de leite, o leite artificial de Liebig, a farinha lactea de Nestlé são as fôrmas pharmaceuticas mais usadas. As analogias entre a constituição do leite e dos outros liquidos orgânicos, como o sangue e sobretudo o chylo, 83 levantárão no espirito de alguns práticos a idéa de intro- duzir o leite directamente nas veias. Hodder e Thomas propuzerão e praticarão essas in- jecções no homem. Os resultados experimentaes, porém, não parecem con- firmar as vistas theoricas; assim é que Béchamp e Bal- tus, em uma memoria lida na Academia de Sciencias sobre o valor therapeutico das injecções intravenosas de leite e citada nos Archives Generales de Medicine, (i) mos- trárão por suas experiencias os inconvenientes de tal pro- cesso. Esses auctores dividirão as suas experiencias em quatro series; na primeira serie, elles procurárão conhecer se a introducção de uma quantidade de leite, capaz de levar fóra dos limites normaes a tensão intra-vascular, é acom- panhada de accidentes funccionaes e da eliminação da substancia injectada ; os autores verificarão que se pode injectar quantidades de leite até 2 cc. 77,5 e mesmo 8 centímetros cúbicos por kilogrammo do animal, sem pro- duzir pertubações funccionaes capazes de determinar a morte ; em nenhum caso houve a buminuria ; na segunda serie, elles injectarão caseina em combinação sodica e observarão que se pode injectar 5o centigrammas por kilogramma do peso do animal sem trazer perturbação funccional grave ; a albuminúria então é fraca; em uma terceira serie de experiencias os citados autores procura- rão conhecer qual a quantidade de sangue que se deve ti- rar a um cão para collocal-o nas condições pathologicas, em que a transfusão é claramente indicada; e verificarão que se pode tirar a cães quantidades de sangue arterial desde 29 até 40 grammas por kilogramma sem provocar perturbações graves; emfim, em uma quarta serie de expe- (1) Aichives Gcnerale de Medicine. 84 riencias, elles injectarão, na dose media de 90 centíme- tros cubicos de leite a 36", em cães nos quaes a subtração prévia de sangue tinha os collocado em condições di- versas; assim em tres cães, nos quaes a extração de san- gue não trouxera perturbações apreciáveis, a injecção de leite foi seguida rapidamente da volta ao estado normal; em outros, aos quaes a pcrda de sangue collocara em con" dições de transfusão, observarão que, sob a influencia da injecção, uns voltarão rapidamente ao estado normal, outros morrerão rapidamente; emfim, em dois cães cahidos em syncope, depois da extracção sanguinea, elles observarão o restabelecimento rápido depois da injecção de leite; é de notar, porém, que n'esses dois casos a quan- tidade de sangue perdido não era incompatível com a vida, d'onde se pode concluir que a transfusão de leite poude reanimar os animaes extemporaneamente porém, se a hemoirhagia é tal, que torna-se incompatível com a exis- tência, a injecção de leite é impotente para salvar o animal. Em resumo : a transfusão de leite mantida em certos limites quantitativos e relativamente extensos é inoffensiva no cão, porém de muito pouco valor therapeutico para que o seu emprego seja generalisado e substituído á trans- fusão de sangue. Tal é a conclusão a que chegarão Béchamp e Baltus, que como se vê não é favoravel a esse methodo thera- peutico. Por outro lado Demetri-Culcer, procedendo a expe- riências sobre a acção das injecções intravenosas de leiie, mostrou que são perigosas, pois podem determinar ás vezes embolias. Em sua these (1), onde vem consignadas essas expe- (1) Detnetri-Culcer-These-Pariz-1879. 85 riencias. chegou ás seguintes conclusões : i.1 A intro- ducção do leite no systema venoso não tem a inocuidade que as presumpções, fundadas sobre certas analogias, sobretudo com o chylo. poderião fazer attribuir-lhe; 2 a a quantidade de leite injectada parece exercer uma in- fluencia real sobre os phenomenos funccionaes, mais ou menos graves, determinados por essa introducção; 3.* em relação á quantidade, os effeitos da injecção intravenosa de leite se assemelhão absolutamente aos produzidos pela injecção de agoa; 4.' os accidentes determinados pelas in- jecções de leite e que podem ser rapidamente mortaes, parecem devidos essencialmente á formação de embolias pelos elementos figurados do sangue (globulos leitosos nos capillares da maior parte das visceras, notavelmente dos orgãos respiratórios e do myelencephalo.) Em resumo : Demetri-Culcer, como Bèchamp e Bal- tus chegarão a conclusões analogas e são unanimes em condemnar as injecções intra-venosas de leite, como me- thodo therapeutico. Mas o leite não tem sido só empregado como alimento medicamentoso; também tem-se procurado fazel-o servir de vehiculo para a administração de differentes substan- cias medicamentosas; é esta a importante questão dos leites medicamentosos ou galactotherapia, á qual não po- demos deixar de consagrar algumas linhas. Leites medicamentosos : -A galactotherapia não é sem duvida, um methodo moderno; a idéa de administrar princípios medicamentosos, contidos no leite de animaes em cuja alimentação entravão essas substancias, existia já na mais remota antiguidade; assim é, que Melampio, medico que floresceo na Argolida i5o annos depois de Es- culápio, curou uma filha de Protus, atacada de melan- cholia, fazendo-a ingerir leite de cabras, em cuja alimenta- 86 ção entrava o helleboro; demais é sabido, desde todos os tempos, a influencia que sobre o leite exercem as substancias alimentares. Hernier e Lewald demonstrarão a presença no leite do antimonio e seos compostos solúveis, do arsénico, do bis- mutho, do borato de soda, do ferro, do chumbo, do zinco e provavelmente do cobre. Antes de tudo digamos, com Parmentier e Doyère, que quando se quer administrar a animaes substancias acti- vas, convém não prejudicar a saude, pois então, o leite seria de má qualidade, é de necessidade ad ninistrar ao mesmo tempo um excellente regimen. De outro lado, re- sulta das experiencias de Chevalier e Henry, que a quanti- dade de leite fornecido por animaes, a que se administra medicamentos, é muito inferior á que esses mesmos ani- maes fornecem sem a absorpção de substancia activa; que o leite depois da administração do medicamento, toma quasi sempre, quando aquecido, uma cor amarellada de café com leite, e que esse leite contém menos partes so- lidas, porém uma maior proporção de manteiga; d'onde a necessidade de tomar-se numerosas precauções, quando se procura obter leites medicamentosos, com o fim de im- pedir a alteração do liquido, que pode tornar-se de algum modo pathologico, sendo então antes prejudicial do que util. Procuraremos agora, tomando por base as esperiencias de Hernier e Lewald. passar em revista as diiferentes substancias que forão experimentadas. Lewald observou que a passagem do antimonio para o leite é tanto mais rapida quanto a fórma, sob a qual se administra, é mais solúvel, assim o emetico se encontra mais cedo do que o enxofre dourado, poiém desappare- ce também mais depressa. Segundo esse mesmo observa- 87 dor o bismutho passa difficilmente para o leite; o contrario resulta das pesquizasde Chevalier e Henry. O ferro também é, segundo Lewald, facilmente elimi- nado pela secreção mammaria; parecendo o ser melhor quando administrado sob a fórma de limalha do que sob a de lactato: o iodo passa para o leite só no fim de alguns dias, quer seja administrado sob a fórma de tinctura. quer sob a de iodureto; e, o que é notável, uma vez obtida a passagem do iodo para o leite, basta fazer o animal ingerir um dos seus preparados para quatro horas depois encon- trar-se o metalloide noproductoda secreção das glandulas mammarias. Quanto ao chumbo, resulta das experiencias de Lewald, que não se encontra no leite em grande quantidade ; porém a sua presença ahi é demonstrada durante muito tempo, o que faz pensar que os saes de chumbo são accumulados, armazenados nos ditferentes orgãos, antes de serem elimi- nados. Em relação ao álcool o mesmo auctor o considera refractario. O arsénico, administrado sob a forma de licor deFow- ler, mostra-se no leite no fim de cinco horas, ás vezes, porém, só depois de dezesete. Labourdette prepara, o leite arsenicado em gran- de quantidade. Harnier, administrando a cabras borato de soda, obser- vou a presença do acido borico no leite, vinte e quatro horas depois. O oxydo e os saes de zinco, como os de ferro, rapida- mente são eliminados pelo leite ; o carbonato de sodio, o chlorureto de sodio. os sulphatos de magnesia e de soda passão com facilidade para o leite. Chevalier, Henry e Marchand constatarão que o nitra- to e o sulphureto de potassium, bem como o sulphureto 88 de sodio são refractarios ; o mesmo se dá, segundo Har- nier, com os saes de ácidos orgânicos. Quanto ao sulphato de quinina a questão ainda não está resolvida. O opium e a morphina parecem refractarios. Em relação ao cobre nenhuma experiencia parece ter sido emprehendida ; entretanto, no Journ. General de Med. de 1827, vem consignado o facto da intoxicação em quinze pessoas, que tinham consumido leite de uma cabra morta envenenada por ter bebido caldo já azedado e con- servado em um vaso de cobre não estanhado ; haveria n'essas quinze pessoas intoxicação cúprica ou somente accidentes causados pelo leite de um animal doente? Seria preciso analysar o leite, o que não se fez. Em relação ao mercúrio a questão adquire grande importância, em razão das calorosas discussões que levan- tou no seio da Academia de Paris e da possibilidade de combatter os accidentes da syphilis hereditária nas crianças. Essa questão não é nova ; assim é que, no século ulti- mo, Daumond fazia fricções mercuriaes em vaccas, jumen- tas e cabras, cujos leites administrava a indivíduos, em que julgava esse medicamento util ; Assalini preferia o leite de cabras, ás quaes administrava mercúrio internamente ; e, emfim, no hospital dos Expostos em Paris, era uso administrar preparações mercuriaes ás amas das crianças syphiliticas, ás quaes se julgava prudente prescrever o mercúrio. O Dr. Lewald fazendo, durante diversos dias, adminis- trar a uma cabra doses de 2 grammas de calomelanos, verificou de um modo positivo a presença do metal no leite. Hoje, em Paris, Labourdette e Bouiller preparão quo- 89 tidianamente e á vontade quantidades consideráveis de leite mercurialisado. Em 1847 Collineau leo diante da Academia de medi- cina de Paris um relatorio sobre uma memória de Lal- méde, intitulada de VEmploi du lait rendu medicamenteux por lalimentation, relatorio favoravel á galactotherapia ; a sabia Associação accolheu-a, porém, com indifferença; e só mais tarde, em i85g, foi que H. Bouley levantou de novo a questão pela leitura de seu relatorio sobre as experiencias de Labourdette, que deo logar no seio da Academia a uma discussão, que marca perfeitamente o estado actual a que chegou essa importante questão. « Le probléme le plus important, diz Bouley, était de faire supporter sans dommage cette alimentation aux animaux. Labourdette l'a résolu. Les femelles laitières étant placés dans des bonnes conditions de regime et de liberte, voici à 1'aide de quels artífices on parvient à leur faire accepter les médicaments. On forme un boi composé de racines fraiches, de son, de quelques blancs d'oeufs, d'un peu de cassonade et de 100 de chlorure de sodium dans lequel ou incorpore de 5o centigrammes a 4 ou 5 grammes du médicament à experimenter ; 5o centigrammes sont le maximum quand il s'agit d'un sei mercuriel actif. Si 1'animal ne prend pas ce boi volontiers, on diminue de la moitié la dose du mé- dicament, et on 1'augmente graduellement, d'abord tous les huitjours, puis tous les trois ou quatre jours, enfin tous les jours, jusqu'à ce qu'on soit arrivè à une vingtaine de gram- mes, s'il s'agit d'iodure de potassium; de 3 gr. s'il s'agitde proto-chlorure de mercure; de 1 gr. s'il s'agit de bichlo- rure de mercure ; enfin de 5 a 15 grammes s'il s'agit de la liqueur arsenicale de Fowler. » (1) (L) H. Bouley - Bulletin de l'Acad. de med. 90 Graças a essas precauções Labourdette e Dumesnil con- seguirão fazer passar ao leite medicamentos os mais enér- gicos e os mais variados e, não é tudo, conseguiram tam- bém que as proporções assim eliminadas pelo leite fossem sufficientes para utilisar-se as suas propriedades medica- mentosas. E' assim que Labourdette obtem diariamente quantidades consideráveis de leites medicamentosos, de que os mais usados são o iodado e o mercurialisado. As experiencias de Labourdette e as conclusões favo- ráveis de Bouley não conseguirão, apesar de animadoras, restituir á mercurialisação indirecta os créditos de que ella gozava outr'ora. Cullerier, baseando-se de um lado nos trabalhos de Astruc, Fabre, Barton, Rosen, Levret e Bertin, e de outro nos resultados negativos obtidos por Peligot, Reveil e Per- sonne nas suas tentativas para encontrar chimicamente a presença do mercúrio no leite dosanimaes, submettidos ao tratamento hydragirico, condemna absolutamente esse modo de tratamento. Por seu lado Gibert e Moreau affiançarão, no seio da Academia, nunca terem observado a cura de uma criança syphilitica tratada por esse modo. Foi Trousseau o maior defensor da utilidade do metho- do no tratamento da syphilis infantil ; utilidade que lhe foi demonstrada por sua vasta pratica. Como resolver diante de tão abalisadas opiniões? Só a experiencia póde decidir a questão ; porém, como diz Fonssagrives a experiencia clinica e não a chimica ; pois, como fez notar Trousseau, é muito possível que o mercúrio exista no leite em umaj especie de combinação chimica, que mascara as suas reacções porém não o impede de exercer a sua acção curativa, incontestavel- mente util. 91 Em resumo: a interessante questão da galactotherapia não foi resolvida ; ella foi apenas agitada e novos factos são necessários para resolver do verdadeiro valor thera- peutico dos leites medicamentosos. PROPOSIÇÕES CADEIRA DE MEDICINA LEGAL E TOXICOLOGIA IDADE DO FÉTO I A importância da determinação da idade do feto se mostra em relação ás questões de infanticidio, de aborto, de substituição, de exposição do feto e de identidade. n Em relação ao infanticidio, o reconhecimento da idade deve ser feito desde a epocha da concepção até o quadra- gésimo quinto dia depois do nascimento. ui E' extremamente difficil nos pronunciar, de modo exa- cto, sobre a idade do feto antes do termo de um mez. IV A maior parte dos characteres, em que se baseia a de- terminação da idade do feto, são variaveis e só nos podem fornecer dados approximativos, sobretudo durante os primeiros mezes. v Os principaes d'esses characteres são deduzidos do desenvolvimento geral do feto, ahi comprehendendo as dimensões e o peso; do estado do tegumento externo e dos pontos de ossificação. vi Em relação ás dimensões, devemos considerar não só a extensão total do feto, desde o sinciput até a extremidade plantar, como ainda as dimensões das diversas partes do corpo, cabeça, tronco, membros superiores e inferiores. 96 VII Casper mostrou que, a partir do quinto mez da vida intra-uterina, a idade do feto pode ser deduzida das suas dimensões, para isso basta dividir por 5 o algarismo que representa a extensão total do corpo ; assim para um feto de 3o centimetros de comprimento a idade será de 6 mezes VIII O peso não offerece essa proporção crescente que se nota em relação ás dimensões, mas fornece dados que muito contribuem para a solução do problema. IX Os dados tirados do estado geral do tegumento externo e que dizem respeito ás condições da pelle. das unhas, dos pellos, muito contribuem para o reconhecimento da idade do feto. x Os signaes fornecidos pela ossificação muita luz derra- mão sobre a questão, merecendo da parte do perito par- ticular consideração. XI D'entre elles o principal é o que existe no centro da cartilagem da extremidade inferior do femur. entre os dois condylos ; é o ponto epiphysario ou ponto de ossificação de Béclard, cuja existência é quasi constante no nono mez. XII E' não só importante a verificação da existência d'essa mancha, como também o de suas dimensões exactas ; pois que o facto d'ella exceder de alguns millimetros á extensão normal, basta para nos auctorisar a afiançar que a criança viveo depois de nascida. 97 XIII Um outro signal não menos importante é o fornecido pela existência de um septo completo, circumscrevendo quatro alvéolos sobre uma metade da mandíbula ; pois permitte affirmar que o feto nasceo a termo. XIV Os dados tirados do cordão umbilical são também importantes, pois que a inserção d'esse cordão, que nos dous primeiros mezes se faz na extremidade coccygiana, vae pouco a pouco se approximando da parte média do corpo. xv Os outros signaes fornecidos pelo desenvolvimento das differentes regiões da face, do estado dos diversos orgãos visceraes, da existência do meconium, etc , também devem ser postos em contribuição para a determinação da idade do feto. XVI A determinação exacta dos differentes diâmetros da cabeça é também ponto importante, que deve ser tomado em consideração da parte do perito. XVII Os signaes tirados da evolução dentaria são, como mos- trou Magitot, de importância considerável. CADEIRA DE PaTHOLOGIA CIRÚRGICA FERIMENTOS POR ARMA DE FOGO I A deflagração da polvora, por si ou pelos projectis que ella lança, é a causa dos ferimentos por arma de fogo. ii Os accidentes mais frequentes produzidos pela defla- gração da polvora são constituídos por queimaduras e por despedaçamento dos tecidos. ui Um projectil, alcançando o organismo, na occasião em que a sua velocidade começa a enfraquecer, determina contusões, cujo gráo e extensão variam desde a simples ecchymose até o attrito completo dos tecidos, segundo o volume e a natureza do projectil, IV O volume, a forma do projectil, a sua velocidade, bem como o modo como o organismo foi attingido, são condi- ções que imprimem differenças notáveis nas lesões com solução de continuidade, produzidas pelo corpo vulne- rante. ▼ As balas ou parão a certa profundidade, constituindo trajectos em fundo de sacco ou sahem, depois de ter atra- vessado os tecidos, dando então lugar á formação de um •canal completo. 100 VI O trajecto percorrido pela bala na espessura dos teci- dos pode ser directo ou irregular e curvilineo ; ás vezes é perfeitamente semi-circular, por ter o projectil sahido por um ponto diametralmente opposto ao de entrada, tendo seguido uma superfície ossea convexa. VII Os orifícios de entrada e de sahida da bala offerecem algumas vezes characteres que permittem distinguil-os ; de um modo geral, pode-se dizer que, o de entrada apresenta os characteres de uma ferida contusa e o de sahida, sendo mais irregular, menos contuso, offerece muitas vezes sa- liências, devidas ás partes molles repellidas. vm Nos ferimentos por arma de fogo, a cicatrisação raras vezes se faz por primeira intenção ; ella caminha da pro- fundidade para a superfície ; a razão desse facto é a sup- puração das paredes contusas do trajecto, suppuração que pode ser muito tempo entretida pela presença na ferida de corpos estranhos. IX A sondagem do ferimento só deve ser permittida nas regiões pouco importantes ; no caso contrario, deve ser absolutamente proscripta, pois pode tornar penetrante uma ferida que não o era. A primeira indicação a preencher é fazer parar o cor- rimento sanguíneo, que sendo considerável exige a li- gadura. 101 XI O desbridamento preventivo, aconselhado por alguns auctores, é realmente util nos trajectos profundos e com- plicados, pois facilita a extracção dos corpos estranhos e previne o estrangulamento. XII Os curativos com o álcool ou outros líquidos anti-se- pticos nos casos simples, a irrigação continua nas feridas que interessão as articulações, são meios de incontestável utilidade. XIII Em todos os casos convém immobilisar o membro feri- do e conservar o doente nas melhores condições hy- gienicas. CADEIRA DE PATHOLOGIA MEDICA DYSENTERIA I A dysenteria é anatomicamente characterisada por uma colite ulcero-membranosa e symptomaticamente por dejecçóes muco-sanguinolentas acompanhadas de tenes- mos e de um estado geral mais ou menos grave. ii A moléstia é ora esporádica, ora endemica, apresen- tando então recrudescências no numero e na gravidade dos casos, o que lhe imprime o character epidemico. ui A coincidência da endemia dysenterica com a paludosa em certas localidades poderia fazer crer na analogia dos dois venenos, rehabilitando assim o miasma ò/ysentericum de Kreysig. IV Porém, a não coincidência constante das duas ende- mias, de um lado, e de outro, factos positivos demons- trando o rápido desenvolvimento da dysenteria em indi- viduos, submettidos ás emanações de matérias animaes em decomposição, tornão mais verosimil a hypothese da origem animal do veneno do que a da origem tellurica ou miasmatica. v A confinação, o accumulo de matérias alvinas, a falta de asseio, a alimentação de má qualidade e insufficiente, as fadigas physicas excessivas, ajudadas das influencias climatéricas são as principaes condições do desenvolvi- mento da dysenteria. vi A dysenteria é contagiosa; o agente de transmissão pa- rece estar contido nas dejecções dysentericas. 104 VII As lesões anatómicas da dysenteria são constituídas por ulcerações, que nos casos benignos occupão o recto e o S illiaco e nos casos graves se generalisão a todo o grosso intestino, não respeitando ás vezes o intestino delgado. vni Na dysenteria chronica as lesões são analogas ás da fórma aguda; as differenças entre esses dois estados mór- bidos existindo sobretudo sob o ponto de vista sympto- matico. IX O que characterisa symptomaticamente a dysenteria são as dejecções, que a principio sendo mucosas, não col- loridas pela bile e sem o cheiro especial das matérias fecaes, tornão-se depois muco-sanguinolentas e por fim muco-purulentas. x Nas fôrmas benignas a dysenteria é pouco febril, as dejecções são pouco numerosas, porém o emmagreci- mento é rápido; nas fôrmas graves, ao contrario, a reacção febril, o numero das evacuações e o emmagreci- mento são consideráveis ; a prostração, a somnolencia e o resfriamento completão o quatro symptomatico da mo- léstia. XI A intensidade da febre, a predominância d'este ou d'aquelle symptoma fizerão admittir differentes fôrmas de dysenteria; assim, as fôrmas : inflammatoria, biliosa, rheumatica, algida, cholerica, etc. XII A perfuração intestinal, as hemorrhagias, as parotidL tes são complicações mais frequentes da dysenteria; as pa- ralysias parciaes e passageiras dos sphincteres e dos mem- bros, as cicatrizes intestinaes são consequências possíveis. 105 XIII Os differentes tratamentos, que tem sido aconselhados na dysenteria, dependem das doutrinas de cada um sobre a natureza d'essa colite ulcerosa. XIV Uns a considerando no grupo das phlegmasias acon- selhavão o tratamento anti-phlogistico, representado pelas emissões sanguineas; outros, com o fim de combater o elemento dor, prescrevião os calmantes, representados pelos opiáceos; outros administravão uma medicação anti- diarrheica, constituída pelos adstringentes e os pós inertes; outros, emfim, empregavão o methodo substitutivo ou evacuante, baseado no emprego dos purgativos. xv Porém, o meio heroico, o verdadeiro medicamento da dysenteria é a ipecacuanha. XVI Os clysteres adstringentes, bem como os de nitrato de prata e os de ipeca são uteis. XVII O regímen lácteo, rigorosamente estabelecido, offerec-e vantagens consideráveis no tratamento da dysenteria chronica. XVIII O regimen lácteo, com effeito, reune as condições ne- cessárias para se obter a cicatrisação das ulcerações in- testinaes e por conseguinte a cura completa da moléstia. Xnnoxparóv ' a E'$ SÉ rà vovchfaaTa aí fopaTtEtai écr xpáriÇTai. (Sect. I, Aph. VI.) V 'PÕ.OV TthripÕVQOaL TtOTÕV, 3? GlVÍoV. (Sect. Tl, Aph. XI.) / AvQEVTEpíri tfv ánò (Sect. IV, Aph. XXIV.) y ráZa SiSóvaL xe^aZaZ/Éoval xaxóv. xaxóv SÉ xal TtvperacvovcH, xal oIxjlv v7to%óSvpca [lETÉGtâa xal tõlVc SixJmàSeGl. xaxóv Sè. xac oÍ(JL XpTatâEEÇ ai VTtO^Qp^CrLEÇ Èv TtVpETÓltflV ÉÕV<JL, xal OLCiLV 7toZZõt> yÉyovEv. òé %ty]V TtvpÉcíffovcfLV. SÉ xai èv TtvpETÕiGL [/.viSEvòg rã>v napÉovtoç, Ttapà %óyov Sè EXTEtriXOTlòV. (Sect. V, Aph. LXIV.) / e Tà 7tEOL(j.áSapa s%XEa, (Sect. VI, Aph. IV.) r 0'xótyoiQLV afypúSsa th èv 'VovrÉoiGiv (X7tò XEtpahviç, TÔtvTa ànoxarap pÉEL. (Sect. VII, Aph. XXX.) Esta these está conforme os Estatutos. Rio de Janeiro, 10 de Setembro de '883. c/e £2/2. f/e £2/2. £2/2<t//&cá.