r - Cs ,.r ffi THESE DO B líílTCfl PlfPíWiíin fMYfiPlfi 1J1M LUíabIAnII IMMlu m Typ. de J. D. de Oliveira — Rua do Ouvidor n. 141, 06421518 DISSERTAÇÃO CADEIRA DE CLIKICA MEDICA Do alcoolismo chronico e suas conseqüências PROPOSIÇÕES CADEIRA DE MEDICINA LEGAL E TÜX1COLOQIA Lethalidade dos ferimentos CADEIRA DE CLINICA CIRÚRGICA Diagnostico da commoção e contusão cerebral CADEIRA DE CLINICA MKDICA Qual o tratamento que mais aproveita nos casos de aneurisma da aorta? A' FACULDADE DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO em 29 de Setembro de i883 em 19 de Dezembro do mesmo anno {SEJVDO ATTftOYADA COM DIS2'IJVCÇÃO ) JTaturat de Minas-Geracs [Conceição do Casca) filho legitimo de João José Cupertino Teixeira e D. Anna Joaquina da Conceição EIS ©1 «k«B*»6 Typ. de JT. Jf. de Oliveira = Rua do Ouvidor, III. i883 FACULDADE DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO DIRECTOR Conselheiro ür. Vicente Cândido Figueira de Saboia. VICE-DIUECTOR Conselheiro Dr. Antônio Corrêa de Souza Costa. SECRETARIO Dr. Carlos Ferreira de Souza Fernandes. 0rs. . LENTES CATHEDRATICOS João Martins Teixeira................... Physica medica. _ _ Conselheiro Manoel Maria de Moraes eValle. Chimica medica e mineralogia. João Joaquim Pizarro..................... Botânica medica e zoologia. José Pereira Guimarães................... Anatomia descnptiva. Cons elheiro Barão de Maceió.............. Histologia theonca e pratica. Domingos José Freire Júnior.............. Chimica orgânica e biológica. João Baptísta Kossuth Vinelli.............. Physiologia theonca e experimental. João José da Silva........................ Pathologia geral. „,,„„=,.„ Cvpriano de Souza Freitas................ Anatomia e physiologia pathologicas, JoãoDamasceno Peçanha da Silva........ Pathologia medica. Pedro Afíbnso de Carvalho Franco........ Patholog!a cirúrgica. Conselheiro Albino Rodrigues de Alvarenga Matéria medica e therapeutica, especial- mente brasileira. Luiz da Cunha Feijó Júnior................ Obstetrícia nna Cláudio Velho da Motta Maia............. Anatomia topographica, medicina ope- ratona experimental, apparelnos e pe- quena cirurgia. Conselheiro A. C. de Souza Costa......... Hygiene e historia da medicina. Conselheiro Ezequiel Corrêa dos Santos.... Pnarmacologia e arte de íormular. Agostinho José de Souza Lima.............. Medicina legal e toxicologia. Conselheiro João Vicente Torres Homem... } clinica medica de adultos. Domingos de Almeida Martins Costa...... I Cons. Vicente Cândido Figueira de Saboia.. ) clinica cirúrgica de adultos. João da Costa Lima e Castro............... ' Hilário Soares de Gouvêa.................. Clinica ophthalmologica. _ Erico Marinho da Gama Coelho............ Clinica obstetrica e gynecologica. Cândido Barata Bibeiro.................... Clinica medica e cirúrgica da crianças, João Pizarro Gabizo........................ Clinica de moléstias cutâneas 3 sypnil- ticas. João Carlos Teixeira Brandão.............. Clinica psychiatrica. LENTES SURSTITUTOS SERVINDO DE ADJUNTOS Augusto Ferreira dos Santos............... Chimica medica e mineralogia. Antônio Caetano de Almeida............. Anatomia topographica, medicina opera- tona experimental, apparelnos e pe- quena cirurgia. Oscar Adolpho de Bulhões Ribeiro........ Anatomia descriptiva. Nuno Ferreira de Andrade................. Hygiene e historia da medicina. José Beunio de Abreu..................... Matéria medica e therapeutica especial- mente brasileira. ADJUNTOS José Maria Teixeira....................... Physica medica. Francisco Ribeiro de Mendonça............ Botânica medica e zoologia. .....................,................ Histologia theonca e pratica. ÀVthur Fernandes Campos da Paz......... Chimica orgânica e biológica. ........................................ Physiologia theorica e experimental. Luiz R brtVro de Souza Fontes............... Anatomia e physiologia pathologicas. ............................. Pharmacologia e arte de formular. Henri (-e íi) lisláu de Souza Lopes......... Medicina legal e toxicologia. Francis!>> > Castro....................... \ Eduardo Ajusto de Menezes.............. Clinica medica de adultos. Bernarlo Alves Pereira.................. í Carlos Rodrigues de Vasconcellos.......... ) Ernesto de Freitas Crissiuma............... \ Francisco Ia Pu a Valladares............. ou . cirurgica de adultos. Pedro Seven.no de Magalhães............. I ° Domingos de Góes e Vasconcellos........... / Pelm Paulo ne Carvalho................. Clinica obstetrica e gynecologica. José Joaquim Pereira de Souza............. Clinica medica e cirurgica de crianças. Luiz da Cost > Chaves de Faria............ Clinica de moléstias cutâneas e syphili- ticas. Carlos Amazonio Ferreira Penna........... Clinica ophthalmologica. ........................................... Clinica psychiatrica. N. B.— A Faculdade não approva nem reprova as opiniões euúttidas nas tuese que lhe são apresentadas. Lyp. e lith.de J. D. de Oliveira — Rua do Ouvidor n. 141. 2121 DISSERTAÇÃO N. 68 1 ÍNTRODÜCÇAO O estudo do alcoolismo, « d'esse flagello que na phrase de Tissot, não produz epidemias, mas mata por toda a parte e em qualquer tempo » tem sido objecto constante de preoccupaçoes de homens illustres, pathologistas e hygienistas notáveis, e de so- ciedades prestigiosas. Para mostrar a importância d^sse estudo bastaria citar essas grandes luctas da historia da Medicina, em que o álcool occupa um logar importante, esses torneios scientificos, em que nomes celebres e talentos brilhantes se têm empenhado na liça, empregando as armas do raciocínio, da observação e da expe- rimentação, e onde o resultado tem sido sempre indeciso. E entre nós a importância d^sse estudo sobe de ponto, porquanto, pelas condições do nosso clima, a quantidade de álcool, que é perfeita- mente tolerada na Europa, constitue abuso, dando em resultado a freqüência do alcoolismo ; e na clinica, onde o medico novel en- contrará um campo de estudos sempre novo, terá occasiao de en- contrar freqüentes vezes essa entidade mórbida. Escolhendo para nossa dissertação um ponto em que, com o fim de explicar o papel do álcool no organismo, theorias succe- dem-se a theorias, onde trabalhos novos apparecem todos os dias, e onde, embora já se tenha conseguido muito, a sciencia não está ainda de posse da ultima palavra, comprehende-se as dificuldades com que luctamos, dificuldades que muitas vezes nos levarão ao desanimo. Mas, dado o primeiro passo, não devíamos recuar : era necessário redobrar de esforços e procurar vencel-as. Tentamos fazel-o, e se não o conseguimos, como acreditamos, compete a outrem dizel-o, restando-nos a convicção de não termos poupado esforços para a realisação do nosso desideratum: Ubi desint vires tamen est laudanda voluntas. Na confecção do nosso trabalho procuramos expor o estado actual da sciencia em relação ás questões que se prendem ao nosso ponto, guardando o maior methodo e claresa, tão necessários ás dissertações em sciencia, evitando ao mesmo tempo a analyse mi- nuciosa dos factos experimentaes ainda não provados, e accei- tando somente aquillo que está demonstrado e acceito em clinica, —único ponto de vista sobre que devíamos nos alongar, de accôrdo com o enunciado do ponto qne escolhemos para dissertação. O abuso do álcool, depois de um certo tempo, determina no organismo uma serie de lesões, que podem assestar-se desde as primeiras vias de absorpção até ás da eliminação, com localisa- ções mórbidas de preferencia para este ou aquelle órgão ; não ttmos, portanto, a pretenção de ter feito uma descripção noso- graphica completa do alcoolismo : é tarefa que os nossos recursos e os limites d'um trabalho desta ordem não comportão. Sem outro motivo que justifique, pois, a escolha do nosso ponto, senão o de, escolhendo um ponto pratico, podermos tirar do estudo d'elle grande proveito, observando o grande numero de casos que affluem ao Hospital, vamos traçar resumidamente o programma que seguimos no desenvolvimento da nossa disser- tação. Dividimos o alcoolismo em adquirido e hereditário. Deixando de parte o alcoolismo agudo, descrevemos de um modo synthetico no primeiro capitulo todas as perturbações que se observão no alcoolismo chronico, e ahi discutimos as duas importantes questões — a hypertrophia do tecido conjunctivo e a steatose. Estudámos em segundo logar as diversas influencias que podem modificar a acção da causa primordial. Estudámos em terceiro logar os diversos estados mórbidos determinados pelo alcoolismo, sob o titulo de — Conseqüências do alcoolismo chronico. Estudámos resumidamente o alcoolismo hereditário. Terminámos estudando rapidamente a duração, marcha, ter- minação e prognostico ; e procurando ser o mais completo pos- sível em relação ao diagnostico e tratamento. ALCOOLISMO CHRONICO L'alcoolisme chronique n'est rien autre chose, en réalité, qu'une vieillesse prematu- rée. Le chemin de Ia vie a été rapidement parcouru, et les étapes y ont été les excès. (M. Psteb, Clinique medicale). O abuso das bebidas alcoólicas, comquanto seja conhecido desde tempos remotos, só começou a ser estudado de um modo completo com M. Huss, que lhe deu a denomição de alcoolismo. O alcoolismo se divide em adquirido e hereditário ; aquelle divide-se por sua .vez em agudo e chronico. Deixaremos de parte o alcoolismo agudo, de accordo com o enunciado do ponto que es- colhemos para nossa dissertação. Alcoolismo chronico é uma « moléstia de evolução ordinaria- mente lenta e progressiva, produzida pelo abuso prolongado das bebidas alcoólicas,caracterisada anatomicamente por inflammações especiaes não suppurativas, ou por degenerescencias graxas dos órgãos ; symptomaticamente por perturbações funccionaes diver- sas, assestadas principalmente sobre os apparelhos nervoso e di- gestivo » (Lanceraux). O envenenamento pelo álcool não se estabelece d'emblée; é necessária para que elle se desenvolva, uma predisposição por parte dos indivíduos. A resistência do organismo é, em certos casos, muito pronunciada, e tem variados gráos. E' admirável ver-se a que excessos alcoólicos se entregão certos indivíduos, du- rante longos annos, sem que experimentem o menor accidente. Por outro lado, a predisposição para a intoxicação alcoólica, bem que obscura, comtudo existe. As variações extremas de acção do álcool, a maior ou menor resistência, que cada indivíduo oppõe aos seus effeitos, provão bastante o papel importante que deve ser attribuido á predispo- sição na producção das moléstias dependentes do abuso das bebi- das alcoólicas. Além da resistência do organismo e da predispo- sição, ha uma infinidade de condições outras que influem sobre o desenvolvimento da intoxicação e que serão estudadas quando tratarmos da etiologia. D'entre essas condições citaremos aquel- las que dependem da composição das bebidas alcoólicas, do modo _ 6 — de administração, da edade, do temperamento, clima, gênero de vida, etc. A embriaguez e o alcoolismo são os dois termos do envene- namento pelo álcool; elles são, porém, independentes um do ou- tro, porquanto o indivíduo pôde chegar ao alcoolismo chronico sem passar pela embriaguez. Os indivíduos que se embriagão facilmente e ficão doentes depois de cada excesso, estão menos sujeitos ás variadas manifes- tações mórbidas do alcoolismo, do que aquelles que supportão sem accidentes immediatos grandes quantidades de álcool. Estes, que, além de fazerem garbo da sua immunidade, parecem offerecer uma resistência notável ao agente tóxico, terão mais tarde o seu organismo muito mais profundamente alterado do que os primei- ros, e poderáÕ succumbir de delírio, de cirrhose, paralysia geral, etc; estão sugeitos, portanto, a todas as manifestações mórbidas do alcoolismo. As differentes bebidas não modificão do mesmo modo o habito exteino do indivíduo. A aguardente, o rhum e o absintho o tor- não magro ; a cerveja, ao contrario, desenvolve uma gordura, que degenera em obesidade. Esta corpulencia de certos bebedores se conserva (Garpenter) raras vezes até a edade avançada ; ha um momento em que os membros e o thorax emmagrecem, e o abdômen só contrasta por um excesso de volume com as outras partes do corpo. O facies do alcoolista, embora varie segundo diversas condi- ções, taes como natureza da bebida, gênero de vida, etc, com- tudo apresenta alguma cousa de particular, e que muitas vezes attrahe logo a attenção do clinico. E' um facies tumido, aparva- lhado ; os traços do rosto perdem a expressão natural, os olhos tornão se vermelhos, injectados, oscillantes, agitados, os lábios trêmulos e macerados; a pelle da face, e principalmente a do nariz, é sede de congestões que dão-lhe um aspecto particular, que mereceu o epitheto de enluminée. Ahi ás vezes a pelle torna-se, não só espessa, como as veias subcutaneas tornão-se varicosas. Apathico, indifferente, o indivíduo responde com morosidade ás perguntas que lhe são dirigidas; podendo em outros casos ser lo- quaz. Mais tarde, essas differenças desapparecem; chega o período de cachexia, e o indivíduo apresenta os caracteres da degradação physica e da caducidade. Gomo já ficou dicto, a embriaguez nem sempre precede ao al- coolismo chronico: este desenvolve-se e determina a serie de lesões que o caracterisão independentemente d'aquella. O indivíduo chega ao alcoolismo chronico sem o baptismo do noviciado pela embria- guez ; e depois de decorrido certo tempo, a datar do começo dos excessos, o alcoolismo, que se tinha conservado até então latente caso em que o diagnostico é muito importante, se caracterisa. Assim, em geral, o começo é insidioso. Na maioria dos casos — 7 — são as pertubações digestivas que attrahem a atíenção do doente ; o appetite diminue e vai mesmo até á anorexia, as digestões tor- não-se difficeis ; a língua apresenta-se coberta de saburra, a bocca, amarga, ha constricção do pharynge, sede, dor no epigastro, py- rosis, vômitos ao levantar-se, e distensão gazoza do estômago. De todos esses symptomas, ha um, os vômitos de manhã (pituita) que tem grande valor semeiotico. De manhã, ao levantar-se, o doente vomita um liquido vis- coso, ora branco, ora esverdinhado ou côr de bile, e trata logo de procurar a sua bebida costumeira, porque entende que só assim pode livrar-se dos vômitos, e não é raro que o doente confesse com toda a franqueza o que acabamos de afirmar. Um indivíduo que esteve durante o corrente anno na 4a en- fermaria de medicina, e que nos fez minuciosamente a historia de sua vida de excessos, nos referio que, ha vinte annos, tinha vômitos de manhã sempre que ingeria um pouco d'agua, o que não acontecia sempre que elle substituía a água por um pouco de vinho. Se elles servem-se d'esse pretexto para descul- par a continuação do abuso, ou se é effeito da ignorância, é o que não se pode precisar. Em seguida, manifestão-se perturbações do systema nervoso, perturbações que muitas vezes se apresentão antes que tenha ap- parecido qualquer desordem para o lado do apparelho digestivo. As perturbações do systema nervoso são de duas espécies, differentes não só pela natureza, como pela gravidade; ora são simples perturbações funccionaes não persistentes, curaveis e de curta duração; ora são perturbações profundas, persistentes, dependentes de lesões definitivas e irremediáveis. O tremor é uma das primeiras d'essas manifestações. A prin- cipio os dedos, depois as mãos, os pés, a língua, e mais tarde os membros, quer superiores, quer inferiores, são successivamente affectados de tremor. No começo é de manhã que se manifesta, apparecendo mais tarde a qualquer hora. O tremor não é doloroso : coincide com fraquesa muscular, e augmenta sempre que o doente procura dar precisão aos seus movimentos. N'esse período apparecem ainda variadas modificações do sys- tema nervoso, constituídas por formigamentos, hyperesthesia e anesthesia, vertigens, cephalalgia, diminuição da visão, sensação de constricção thoraxica, insomnia, pesadelos, sonhos, allucina- çÕes com caracteres especiaes, convulsões e ataques epileptifor- mes, delírio estrepitoso em fôrma de accésso com alguns dias de duração, que apparece ou no decurso de uma moléstia in- tercurrente, ou depois de um accidente qualquer, ou pela sup- pressão brusca do álcool, mas que pode apparecer sem causa que o provoque. E' neste período que pode apparecer uma bronchite persis- tente, ictericia, pneumonia com phenomenos ataxo-adynamicos, — 8 — e qualquer moléstia intercurrante apresentará gravidade ex- trema. O desejo pelos prazeres venereos pode ser augmentado, mas em geral é diminuído. Magnus Huss diz que na mulher, du- rante o primeiro período do alcoolismo, ha uma impulsão erótica mais viva, posto que a sensação do prazer seja mais confusa. A esses phenomenos de excitação succedem em geral phe- nomenos de depressão mais ou menos pronunciados, das diffe- rentes funccões orgânicas, e lesões graves das diversas visceras; começa então o segundo período. Os apparelnos, digestivo^e nervoso, são sempre os mais compromettidos; os alimentos são dificilmente tolerados; o doente perde completamente o appe- tite; apparecem cnterrhoragias, diarrhéas passageiras e hemate- meses; perturbações da menstruação na mulher, e perda prema- tura das funccões genesicas em ambos os sexos; segundo uns a tuberculose/ segundo outros esta só apparece no período de cachexia. A sensibilidade é diminuída ou abolida; e co- meçando pelas extremidades, a perturbação invade progressiva- mente as outras partes do corpo, chegando mesmo a invadir o tronco. Os movimentos são enfraquecidos, e uma paralysia in- completa (paresia) com tendência a generalisar-se, começa pelas extremidades, estende-se ás outras partes do corpo chegando a determinar embaraço da palavra. Apparecem muitas vezes acces- sos convulsivos ou epileptiformes e movimentos choreisformes. Algumas vezes falta a paralysia, sendo que esta ultima phase do alcoolismo é caracterisada por um estado de cachexia, marasmo, manifestação de tendências perversas, abolição dos sentimentos moraes; muitas vezes até pelo embrutecimento o mais completo ou pela estupidez. Este quadro, que acabamos de esboçar ligeiramente, não é representado de um modo completo por todos os alcoólicos : em uns as desordens nervosas são nullas ou passageiras, predomi- nando a alteração de uma ou de muitas visceras abdominaes ou thoraxicas, — a cirrhose, ou a polysteatose ; — em outros os órgãos abdominaes ou thoraxicos são pouco lesados, predomi- nando as perturbações do systema nervoso. D'ahi duas espécies de alcoólicos (Lanceraux) dos quaes são tratados, em Pariz prin- cipalmente, uns nos hospitaes, outros nos hospícios de alie- nados. As modalidades diversas, sob as quaes se apresenta a sympto- matologia do alcoolismo chronico, encontrão explicação plausível na lei que rege toda a pathologia, isto é: bem qué produzidas pela mesma causa, as localisações mórbidas differem não só em sede, como em intensidade, segundo as predisposições indivi- duaes e em virtude de certas condições hygienicas. A marcha lenta e progressiva do' alcoolismo chronico é ordi- nariamente perturbada por accidentes de caracter agudo e de certa gravidade, - 9 — D'esses accidentes, que na maioria dos casos são provo- cados por uma causa insignificante qualquer, como um embaraço gástrico, uma contusão, etc, são mais communs o delinum ire- mens, os accessos convulsivos e epileptiformes. As lesões anatômicas do alcoolismo chronico, cuja sede é ex- cessivamente variável, são comtudo idênticas em natureza e caracteres. Quaesquer que sejão os órgãos em que se assestem, ellas podem ser divididas em dois grupos : um, constituído pela hypertrophia do tecido conjunctivo; outro, pela degenerescencia gordurosa dos elementos activos dos principaes órgãos (Lance- raux). A marcha lenta, gradual e progressiva, a falta de suppura- ção constituem um dos principaes caracteres d'essas alterações. Estas phlegmasias adhesivas, chronicas não dispertão geralmente da parte do organismo, reacção alguma; de sorte que escapão quasi sempre aos meios de investigação, e passão desaperce* bidas justamente na occasião em que a sua marcha podia ser retardada pelos meios apropriados. A hypertrophia do tecido conjunctivo apresenta em sua evo- lução dois períodos distinctos : no primeiro período, ha aug- mento de volume dos órgãos compromettidos; no segundo, a re- tracção das fibras de nova formação dá em resultado a compres- são dos elementos cellulares, a atrophia d'esses mesmos ele- mentos, e, como conseqüência immediata d'essa atrophia, temos a diminuição de volume do órgão affectado. A hypertrophia do tecido conjunctivo assesta-se de preferencia no figado, pulmões, cérebro e rins. Qual o mecanismo da formação da hypertrophia do tecido conjunctivo ? O álcool é irritante. Quando concentrado e injectado no te- cido conjunctivo subcutaneo, produz uma inflammação intensa que se termina pela suppuração. Dujardin Beaumetz e Audigé observarão muitas vezes este facto em cães, em que injecções subcutaneas de álcool forão feitas com o fim de determinar o po- der tóxico dos diversos alcools. Quando os cães, submettidos a essas experiências, não morrião pela acção tóxica do álcool, erão quasi sempre victimas d'um phlegmão mais ou menos intenso. Quando, porém, o álcool é diluido, a inflammação consecutiva tende á resolução e não á suppuração. A observação clinica con- firma esta asserção; com effeito, o álcool, injectado na túnica vagi- nal com o fim de combater a vaginalite chronica, determina uma inflammação adhesiva. As experiências physíologicas nos ensinão que o álcool ingerido é absorvido, e, sem soffrer modificações (Lallemand, Perrin e Duroy), vae pôr-se em contacto com os ele- mentos constituintes da nossa economia. Ora, conhecendo nós a sua propriedade irritante, parece clara e evidente a pathogenia da hypertrophia do tecido conjunctivo. As bebidas espirituosas contêm todas álcool em maior ou menor gráo de concentração, o álcool é dotado de grande avidez pela agoa e encontra no or- N 63 2 — 10 — ganismo grande quantidade deste liquido para dissolver-se; actua, portanto, sobre os elementos anatômicos com pouca ener- gia, produzindo irritação. Esta fraca, mas reiterada irritação do tecido conjunctivo, n'elle determina uma modificação de nu- trição, modificação esta caracterisada pela exageração das dimen- sões dos elementos existentes e formação de novos. A steatose, que constttue o segundo grupo das alterações descriptas por Lanceraux, consiste na existência de grande accu- mulo de gordura no tecido cellular subcutaneo e no que occupa a cavidade abdominal, bem eomo na degenerescencia gordurosa do tecido do fígado, dos rins e do coração. E' a este conjuncto de alterações anatômicas que o Dr. Perroud deu o nome de Polys- teatose visceral. Os três órgãos acima mencionados não são igualmente predispostos á steatose. Estabelecendo entre elles uma hierarchia debaixo d'este ponto de vista, Perroud colloca em primeiro logar o fígado, em segundo os rins e em terceiro o coração. Qual a naturesa da polysteatose ? E1 por infiltração ou por degenerescencia dos elementos anatômicos que ella se produz ? Os autores respondem diferentemente, e nenhuma das expli- cações apresentadas satisfaz em todos os casos. ' Para o Dr. Perroud o exame microscópico do fígado, dos rins e do coração demonstra que a infiltração representa o papel prin- cipal na polysteatose visceral ; os productos oleosos, diz elle, parecem antes vir do exterior para os elementos histologicos, do que formar-se nos órgãos pela destruição dos seus elementos anatômicos por uma espécie de desdobramento chimico; e, quando ha destruição d'estes elementos no periodo ultimo, diz elle, esta destruição é toda mecânica e evidentemente consecutiva ao estado gorduroso, o que não está de accordo de modo algum com a idea de alteração por degenerescencia gordurosa. Perroud acredita, pois, que é por infiltração que se dá a stea- tose, e que se mais tarde a degenerescencia pôde unir-se á infil- tração, aquella é sempre secundaria e consecutiva a esta. Em resumo, diz Perroud, a infiltração de matérias gorduro- sas levadas do exterior pelo sangue, é a causa próxima principal da polysteatose visceral. O tecido cellulo-adiposo se produz pelo mesmo mecanismo, isto é, por accumulo em uma cellula preexis- tente de productos oleosos vindos do exterior ; por conse- guinte, o modo de producção por infiltração é commum á steatose por sobrecarga adiposa, e a steatose por estado granulo-gordu- roso. Do que acabamos de dizer deprehende-se que Perroud acredita que só podem provir do sangue os productos oleosos que infil- trão os elementos anatômicos ; portanto, toda a condicção que augmentar a quantidade de materiaes gordurosos do sangue, actuará como causa remota da polysteatose. Dentre as variadas condições que podem concorrer para esse fim, figura a ingestão - 11 — de certas substancias, no meio das quaes elle colloca o álcool, nos seguintes termos : « Parmi les substances qui favorisent 1'accumulation des graisses dans le sang, nous devons citer Talcool ; on sait qui ce corps dissout quelques príncipes gras, il doit donc en faciliter 1'absorption. » Lanceraux diz que o mecanismo d'esta alteração nos passa desapercebido ; mostra-se, porém, inclinado a explical-o pela combustão muito incompleta que se dá no organismo do indiví- duo submettido á acção do álcool. O que está provado é que o álcool produz, depois de longo tempo, um accumulo de gordura no intersticio e no interior mesmo dos elementos. Se, como acreditava Liebig, o álcool se reduzisse no organismo á água e ácido carbônico, desviando em seu proveito o oxygeno necessário á combustão das matérias orgânicas, seria fácil dar uma interpretação physiologica da steatose alcoólica ; mas as experiências de Lallemand, Perrin e Duroy, tendo demonstrado que o álcool, longe de dar logar á formação de um excesso de ácido carbônico, ao contrario a diminue, e segundo os estudos de Boech e Bauer não só diminue a excreção deste gaz, assim como a absorpção do oxygeno, torna-se difficil a sua explicação. O álcool, diminuindo a quantidade de oxygeno absorvido, retardando as combustões orgânicas (Kelsch), torna-se um agente de poupança para a gordura; e Bonwetsch mostrando que no sangue de boi diluído em agoa e ao qual addicionou-se álcool, a reducção da oxyhemoglobina se faz muito mais lentamente do que no sangue normal, nos approxima do modo de acção intima dessa substancia (Kelsch). Os auctores não estão, portanto, de accordo sobre o mecanis- mo pelo qual se produz a steatose alcoólica. E' da clinica e do methodo experimental que a sciencia espera a resolução d'essa questão de grande importância, e não de quem escreve em cumprimento d'um dever e sob a impressão de innu- meras circumstancias que não permittem um estudo para tal em- prehendimento. Si o Dr. Perroud tem a seu favor o facto de ter o microscópio demonstrado no sangue dos alcoolistas e nas três visceras habi- tualmente sede da steatose, numerosas granulaçÕes oleosas, como também no trajecto das veias mesaraicas e dos chyliferos, e grande quantidade de gordura collocada entre as duas folhas do mesen- terio, mesmo quando o indivíduo se acha em estado de notável emmagrecimento ( Perroud ), não é menos verdade que elle tem contra si muitos argumentos de valor ; e entre elles, salta logo aos olhos o fraco poder de solubilidade do álcool em relação ás gorduras. As outras explicações estão nas mesmas condições. - 1.2 - O que se pôde afirmar é que a steatose depende de uma perturbação impressa pelo álcool á nutrição dos elementos cellulares. A steatose, como já dissemos, tem focos de predilecção ; quando pouco pronunciada fica limitada ao fígado, rins e coração; e se torna-se geral, nesses órgãos é sempre muito mais pronun- ciada. Qual a razão da selecção especial d^ssa perturbação nutritiva ? A observação demonstra que a impressionabilidade dos diver- sos órgãos não é a mesma para as causas steatogenicas, sem que haja uma razão que a explique satisfactoriamente. Como diagnosticar a steatose ? A steatose, no alcoolismo chronico, pôde conservar-se latente por muito tempo, embora a necropsia mostre que ella existia em estado muito adiantado. Eis os symptomas principaes, por meio dos quaes chega-se ao diagnostico da steotose ( Perroud ). Augmento de volume do fígado, cujo bordo inferior torna-se arredondado e é percebido um pouco abaixo da ultima falsa cos- tella. Diminuição na energia dos batimentos do coração, traduzida pela pequenhez do pulso, choque precordial mais fraco, diminui- ção ou mesmo ausência do primeiro ruido do coração. A pre- sença de uma certa quantidade de gordura na urina, e em alguns casos a presença da albumiua. O arco senil, que tinha sido considerado como um signal de degenerescencia do coração, não tem a importância que se lhe tinha attribuido (Perroud), porquanto não tem sido encon- trado em muitos casos. A historia anamnestica do doente e o seu estado geral deve- ráÕ ser tomados em linha de conta. A coexistência das modalidades anatômicas—cirrhose e steo- tose—não é rara. Comtudo, em certos casos, essas lesões são isola- das, e circumstancias ha que parecem favorecer o desenvolvimento de cada uma em separado. Das observações de Lanceraux resulta que a profissão tem grande influencia sobre a producção de uma ou outra dessas alterações. Assim, os indivíduos que se dão aos trabalhos rudes, que fazem grandes exercícios ao ar livre, são em geral victimas da cirrhose; emquanto que os indivíduos de vida sedentária apresentão a polysteatose visceral. A edade avançada, prenhez, etc, predispõem á degenerescencia gordurosa. A natureza da bebida tem grande influencia. Assim a aguar- dente produz, em geral, inflammações adhesivas, emquanto que a cerveja produz steatose. Muitas outras condições podem ainda mfluir sobre a producção de uma ou outra d'essas alterações. -13 — INFLUENCIAS QUE MODIFICÃO A ACÇÃO DA CAUSA PRIMORDIAL DO ALCOOLISMO A ingestão repetida e quasi diária das bebidas alcoólicas, to- madas em quantidade exaggerada e contendo grande quantidade de álcool, é a causa primordial do alcoolismo chronico ; diversas condições, porém, podem modificar a acção d'essa causa, já attenuando, já augmentando os seus effeitos. D'entre as diversas condições que podem modificar a acção da causa primordial lembraremos a qualidade do álcool, o logar, o clima, o sexo, o estado de vacuidade ou de repleção do estômago e finalmente qualquer estado mórbido. Alguns auctores dividem-nas em influencias hygienicas, phy- síologicas e pathologicas (Lanceraux). Estudemos cada uma d'ellas. Influencias hygienicas. — As bebidas alcoólicas têm duas pro- cedências : ou são obtidas por fermentação, ou por fermentação e distillação, contendo em ambos os casos álcool em maior ou menor quantidade. Todas as bebidas alcoólicas não pro- duzem do mesmo modo o alcoolismo chronico ; em geral, o gráo de nocuidade da bebida espirituosa é avaliado pela quanti- dade e qualidade de álcool que ella contém. Comtudo, em certos líquidos alcoólicos, como o absintho, a essência que ahi acha-se incorporada, produz uma intoxicação especial que, sem diminuir a intoxicação alcoólica, todavia manifesta-se primeiro e é caracterisada por phenomenos epilépticos, grande impressio- nabilidade, allucinaçÕes da vista e da audição, phenomenos do- lorosos, perturbações sensitivas e motoras; phenomenos estes que forão muito bem estudados por Magnan, sob a denominação de epilepsia absinthica. Já outros auctores havião reconhecido que a acção das bebidas alcoólicas, depende também da natureza e proporção de matérias outras n'ellas contidas; unindo sua acção, embora menor e passageira, aos effeitos do álcool. Segundo Bouchardat, a embriaguez produzida pela aguardente exerce modificações mais rápidas e mais prejudiciaes sobre os - 14 - apparelnos da innervação e da digestão, do que a embriaguez pelo vinho. A morte é mais rápida, quando os liquidos são forte- mente alcoolísados ; e assim devia ser. As experiências de muitos auctores e em particular as de Dujardin-Beaumetz e Audigé, e Rabuteau demonstrão que o poder tóxico dos diversos alcools varia; assim, emquanto que a dose tóxica media por kilog. do pezo do corpo do animal é de 8 gr. para o álcool ethylico; de 4 para o propylico, de 2 para o butylico, é de 1,70 para o álcool amylico. São essas as doses tóxicas para o álcool puro. O álcool diluído, sendo mais facilmente absorvido, sua dose tóxica é menor de o8r-, 25 a 0,75. E1 a lei geral formulada por esses experimentado- res: os alcools monoatomicos são tanto mais tóxicos, quanto o seu ■pe\o molecular é ma\s elevado. Estes alcools se eliminão mais dificilmente do que o álcool ethylico, e por sua presença no orga- nismo determinão muito mais rapidamente as lesões do alcoolis- mo chronico. O álcool ethylico, tal como existe no vinho ou na aguardente de vinho puro, só produz as lesões do alcoolismo chronico, quando é consumido em excesso e por longo tempo. Os alcools d'um pezo molecular superior, que acompanhão o álcool ethylico nas aguar- dentes do commercio, obtidas principalmente pela fermentação e distillação dos cereaes, beterrabas e batatas, produzem as lesões características do alcoolismo chronico, mesmo em doses moderadas. Estas deducçÕes são baseadas na observação directa e na com- paração feita entre os paizes que consomem álcool vinico e aquelles que Consomem alcools industriaes. As estatísticas que o Dr. Lunier estabeleceu, comparando os diversos departamentos de França, demonstrão que os effeitos individuaes e sociaes do alcoolismo são muito mais pronunciados nos departamentos que consomem alcools industriaes. Não é cousa fácil determinar no leito do doente a acção exclu- $Íxa de cada bebida, visto que, não só é raro que um indivíduo abuse exclusivamente de uma só bebida, como também esses indivíduos raras vezes nos fornecem dados seguros e positivos sobre a natureza da bebida. A aguardente, por ser de baixo preço e, por conseguinte, mais ao alcance dos indivíduos que habitão o Hospital, deve ser a bebida de que elles mais abusão ; entretanto esses indivíduos, parece que para desculpar o vicio, preferem dizer que abusarão de uma bebida mais nobre, não podendo ao certo sabermos qual a bebida preferida. Para Bouchardat a cerveja é causa predisponente da glycosuria, e para Tardieu ella pôde pro- duzir diarrhea e corrimentos urethraes. Segundo alguns, o tafia produz nos velhos bebedores um esta- do de estupidez característico, uma embriaguez profunda e bes- tial (Lanceraux). A cidra actúa do mesmo modo que os vinhos espumosos e çxerce sua acção de preferencia sobre o systema nervoso, produ- — 15 - zindo também alterações para o tubo digestivo. A cerveja forte- mente alcoolisada, pôde produzir os mesmos effeitos que o vinho, além d'isso determina quasi sempre a obesidade e perda de for- ças. Hagarth diz que, em geral, o bebedor de cerveja é obeso, gordo ; ao passo que o bebedor de aguardente é magro, insolente e irritadiço. Essas differenças de efíeito, como já dissemos, en- contrão razão de ser na variabilidade da composição e da riqueza em álcool, principio activo das bebidas alcoólicas ; porquanto não é igualmente intensa, nem se manifesta de modo idêntico a acção physioíogica dos vários alcouls, aldehydas e etheres,-nor- malmente existentes nas bebidas alcoólicas ; deducçÕes estas ba- seadas nas experiências de Dujardin-Beaumetz e Rabuteau, a que já alludimos. Um problema importante é determinar qual o orgao em que, de preferencia, cada bebida localisaria sua acção. A clinica não pôde ainda realisar esse desideratum, embora já se tenha conse- guido alguma cousa a esse respeito. Assim, além do que já disse- mos em relação a certas bebidas, alguns factos parecem provar que o absintho e a aguardente actúão especialmente sobre o sys- tema nervoso ; emquanto que a cerveja e o vinho exercem de preferencia acção sobre o apparelho digestivo e urinario. O estado de repleção ou de vacuidade do estômago tem grande influencia. Está demonstrado que a acção do álcool em jejum é muito mais prompta sobre o organismo e de effeitos mais directos sobre o estômago. Determinar a quantidade de bebida necessária a cada indiví- duo para produzir as manifestações do alcoolismo chronico, mar- car um limite ao espaço de tempo que decorre entre os primeiros excessos e o apparecimento dos primeiros accidentes, eis ahi pro- blemas clínicos difficeis de serem resolvidos, embora experimen- talmente possão sêl-o, e já o tenhão sido em parte por Dujardin- Beaumetz e Audigé. Para a resolução d'esses problemas concorrem numerosos factores difficeis de serem apreciados, taes como : na- tureza da bebida, profissão, clima, raça, predisposição individual e uma infinidade de circumstancias que seria ocioso enumerar. A predisposição individual tem uma influencia positiva, bem demonstrada pelo facto de que a consumo egual, todos os be- berrões não se tornão alcoólicos, ou só muito tardiamente são victimas do alcoolismo (Jaccoud). E' bem conhecida a immunidade relativa de que gozão os africanos no Brazil para o álcool, immunidade que em parte pôde ser explicada pela mudança de clima, que lhe dá maior ca- pacidade orgânica para essa bebida. Para o africano o Brazil é o mesmo que a Suécia para o americano (Torres-Homem). Essa immunidade, de que elles fazem garbo e argumento con- tra os effeitos deletérios do alcoool, depois de certo tempo exgo- ta-se, e mais tarde o alcoolismo chronico pôde apparecer com o cortejo de symptomas aterradores. M'esses indivíduos, assim — 16 — intoxicados, certas circumstancias occasionaes, como alimentação insuficiente, emoções moraes, etc, podem fazer explosão dos accidentes. . „ E'geralmente sabido que os indivíduos cuja profissão exige um grande desenvolvimento de forças e exercícios, resistem melhor á acção nociva das bebidas alcoólicas, o que concorre para explicar a maior capacidade orgânica da raça africana para o o álcool. Uma circumstancia que convém notar e que tem grande valor para o clinico, é a explosão dos accidentes do alcoolismo chronico pela suppressão brusca do álcool. Tivemos muitas vezes occasião de observar a veracidade d'esta asserção em doentes submettidos a nossa observação na enfermaria de clinica medica a cargo do nosso illustrado'mestre conselheiro Torres Homem. Topographia. — Sob essa denominação estudaremos a in- fluencia do paiz e seu clima. As bebidas alcoólicas, segundo já dissemos, devidem-se em duas espécies : Bebidas fermentadas e bebidas distilladas. Entre as bebidas fermentadas são habitualmente usadas : o vinho, a cerveja, a cidra e a perada. Entre as distilladas as mais uzadas são : as diversas aguar- dentes, a genebra, o whisky, o arrak, o cognac, o rhum, o kirsch e o maraschino. Cada paiz e cada povo tem a sua bebida alcoólica especial, segundo os productos que a natureza lhe offerecc. A Europa me- ridional tem o vinho ; o norte da Europa, a cidra, a perada e a cerveja ; os chins fazem fermentar o arroz, os tartaros o leite de jumenta ; os indígenas da America e das índias, a seiva de muitas plantas assucaradas; a Oceania, o caxá, que não é mais do que o sueco fermentado de uma raiz—Piper methysticum (Freire). O Brazil tem a sua aguardente de canna, e com os seus variados fruetos fabrica grande numero de bebidas alcoólicas. Assim, a bebida alcoólica varia com o paiz e com o povo; não sendo, porém,o nosso fim estudar detalhadamente o abuzo de cada uma dessas bebidas, faremos um estudo rápido dos paizes em que o abuzo é em maior escala, procurando destacar nas cinco partes do globo os paizes em que o abuso do álcool entra com maior contingente como causa de moléstia e, portanto, de morta- lidade. Nem todos povos abuzão do mesmo modo ; em geral o abuso cresce dos paizes quentes para os paizes frios ; é nos climas tem- perados que o alcoolismo faz menor numero de victimas. A. necessidade de excitante nos paizes frios e a carestia dos vinhos em taes paizes parecem explicar esse abuso ; comtudo, os grandes e violentos exercícios, á que se entregão esses indivíduos e a maior energia _ do acto respiratório, tornão menos prejudicial a accão álcool. Assim, a quantidade álcool tolerada por um allemão — 17 - como bebida ordinária torna-se nociva para um brazileiro, por exemplo, determinando o quadro symptomatíco aterrador do alcoolismo chronico. Europa.—Comecemos pelo norte, onde o.abuso é em gaande escala. O alcoolismo faz grande numero de victimas na Suécia e Noruega. As estatísticas demonstrão que a marcha do alcoolismo ahi é rápida e progressiva. O consumo de aguardente é fabuloso. Magnus Huss diz que o alcoolismo é uma das moléstias mais communs da Suécia, e que a proporção das vendas é de i para 5o habitantes. Na Rússia o alcoolismo faz também grande numero de victi- mas. Ahi os rudes trabalhos e os rigores do clima frigidissimo pa- recem explicar a freqüência do abuzo. Em S. Pétersburgo o consumo do álcool de 1863 para cá augmentou de cento por cento, e o alcoolismo mata todos os dias 7 indivíduos (Picqué), o que dá uma mortalidade de 2,748 por anno. A carestia do vinho obriga os russos a uzarem de bebidas distilladas muito fortes. Segundo Finte, que percorreu uma grande parte d'esse paiz, é muito commum encontrar-se, tanto nos campos como na cidade, indivíduos no estado de embriaguez completa. No norte da Allemanha o alcoolismo é muito commum. Eis como se exprime Maltebrun em relação aos habitantes de Bran- deburgo, Pomerania e Prússia «L'ivrognerie, Ia paresse, Texterieur crasseux, le regard abattu et louche distinguent bien les des- cendants des Vandales. » Berlim, segundo Roesch, contava em 1822 i520 vendas de aguardente ; as ultimas estatísticas dão-lhe um numero de 6520 vendas, isto é, a quarta parte das habitações. No sul da Alle- manha reina em geral a sobriedade, também ahi a producção do vinho é muito maior, e nota-se o mesmo que nos outros paizes, isto é, que onde ha mais vinho o povo é mais sóbrio. A Áustria parece ser sóbria. Na Suissa a maior parte dos habitantes morrem antes dos 5o annos victimas do alcoolismo. Os auctores dão o alcoolismo como uma das principaes causas da mortalidade na Suissa. O Dr. Challan, por occasião de proferir um discurso no Con- gresso de Hygiene de Gênova, no anno passado, apresentou esta- tísticas dos diversos asylos de alienados que dão uma porcentagem de 16 °/o por conta do alcoolismo,casos estes bem verificados e de- vidos somente ao alcoolismo chronico. A Itália, a Grécia e a Hespanha são em geral sóbrias. O alcoolismo na Inglaterra, segundo o movimento medico de 1873, mata todos os annos uma media de de 5o,000 pessoas, das quaes 12,000 mulheres, e fornece nove décimos dos accusados e criminosos. De todos os paizes da Europa a Inglaterra é o que for- nece maior numero de victimas a essa entitade mórbida ; assim a N. 63 3 — 18 — mortalidade pelo alcoolismo na AUemanha é de 40,000 ; na Rússia de 25,ooo, em quanto que na Inglaterra é, como já dissemos, de 5o,000. Comquanto o alcoolismo esteja espalhado por toda a França, ainda assim é ella um dos paizes menos victimados por esse fla- gello. Ahi da-se o mesmo que nos outros paizes : o abuso é em maior escala no Norte. Também ahi, em alguns logares, o al- coolismo inutilisa os operários fazendo-os perder todos os senti- mentos de familia. Assim, no dia marcado o operário recebe o salário e atira-se n^sse mesmo dia ás tavernas onde gasta todo o salário. A' tarde estaciona-se diante d'essas tavernas uma mul- tidão de mulheres á procura dos maridos, esperando que o taver- neiro os expulse ou que o somno os obrigue a procurar a casa (J. Simon). As estatísticas mostrão que o consumo do álcool tende a augmentar em Paris. E1 difficil, porém, (Lanceraux) saber qual a freqüência relativamente crescente das moléstias e das mortes que devem resultar d'esse consumo, mesmo nos hospi- taes, porque ahi o alcoolismo é designado pelo nome genérico da lesão que é a sua principal expressão. Comtudo Lanceraux af- firma que o alcoolismo chronico deve ser considerado como causa freqüente de morte, tendo elle podido collecionar, em i858, nos hospitaes de Paris, mais de cem observações com autópsia, em que a morte fora produzida por essa entidade mórbida. Ásia.—Na Turquia as leis de Mahomet são respeitadas, e os turcos abstêm-se de todas as bebidas espirituosas, em particular do vinho ; os que seguem rigorosamente as leis do propheta uzão do raki, que lhes é permettido. Dentre os que observão as leis do propheta são notáveis por sua sobriedade os armenianos ; dentre os que não as respeitão destaca-se os assyrios que fazem uzo do haschich. Maltebrun, na descripção que elle dá dos desertos da Syria, diz que o absintho ahi é muito commum, parecendolhe,entretanto, que os syrios não conhecem a bebida que os europeos preparão com a infusão d'essa planta. Em diversos paizes da Ásia é usado o leite de jumenta fer- mentado. O alcoolismo é completamente desconhecido na Pérsia. Os árabes são em geral sóbrios ; mas bem que prohibidas, as be- bidas alcoólicas não lhes são completamente desconhecidas. Os chins fazem uzo de bebidas extrahidas de diversos fructos e do koumis. Assim entre elles os excessos alcoólicos são raros. No Japão e na Indo-China fazem uzo da aguardente de arroz, c Bassignot em sua these sobre ulcera do estômago falia do abuzo d'esse liquido. No Indostão, entre os indígenas reina a sobriedade; porém o exercito inglez n'esse paiz é victima do alcoolismo. Em diversos paizes da Ásia são uzadas varias bebidas fermen- tadas, como vinho de ameixas, pecegos, cerveja de milho, aguardente de cevada e de milho. - 19 — África. — O alcoolismo é a paixão dominante do africano. E essa paixão acompanha-o até o Brazil, onde a capacidade orgânica para o álcool parece augmentar. E' admirável a toleraneia que elles apresentão para as bebidas alcoólicas. E' conhecido o invete- rado habito de em jejum dar-se-lhes aguardente, em dose conside- rável, nas fazendas, sendo raro ahi o alcoolismo. Os trabalhos excessivos e a mudança de clima parecem explicar essa tolerância. O tafia na África ( Lanceraux) é a causa dos três quartos da mortalidade dos negros. N'este paiz uza-se também os vinhos de palmeira, bananeira e a cerveja de milho. No Congo, África Cen- tral, e na Hottentocia o alcoolismo faz grande numero de victimas. No norte da África o alcoolismo é em muito menor escala. Oceania. —Na Malásia e Micronesia os excessos alcoólicos são muito communs, sobretudo entre os europêos e os militares de classe inferior. Na Milanesia, na terra de Van-Diemen, os habitantes têm gosto desenvolvido pelos líquidos fortes, e são o alcoolismo e a syphilis as causas mais freqüentes da morte. O mesmo se dá na Austrália. Diversos habitantes da Oceania não conheciam senão uma bebida embriagadora, que elles preparavam, mascando a raiz fresca da ara (Piper methysticum ) o kava — até 1796, época em que os europeus ensinaram-lhes a fermentarem os fructos de seu paiz. D^hi o maior desenvolvim ento do alcoo- lismo. O kava, que, .como o café, fortifica e em dose moderada dá ao corpo um sentimento de bem estar e frescura, — em dose exa- gerada — determina somnolencia, estupidez, e uma série de effeitos prejudiciaes. America.— O alcoolismo nos Estados-Unidos data do estabe- lecimento das primeiras colônias inglezas, sendo que a quantidade de bebidas alcoólicas consumida n'esse paiz foi sempre progredindo até 1828, época em que começou a reforma da intemperança com a fundação de grande numero de sociedades. O alcoolismo é uma paixão commum nos indígenas da America do Norte ; Lanceraux, porém, • diz que os maiores bebedores d'esse paiz são os allemães, inglezes e hollandezes. Para mostrar a freqüência do alcoolismo nos Estados-Unidos, Albert Day diz que, além das sociedades de temperança e qsylos para os pobres, fundou se um estabelecimento especial para os ricos, sendo ahi levados, durante cinco annos, 39 ministros protestantes, 8 ma- gistrados, 40 negociantes, 226 médicos e 1,378 indivíduos de diversas famílias ricas. No México, na America Central e nas Antilhas o alcoolismo faz grande numero de victimas. Assim todos os povos da America do Norte abuzão mais ou menos das bebidas alcoólicas, emquanto que na America do Sul o abuzo está menos generalisado. - 20 - Se na falta de dados estatísticos, não podemos afirmar de um modo positivo os effeitos deletérios que produz o abuzo das bebidas alcoólicas no nosso paiz, a observação diária nos hospitaes ou o ingresso nas altas reuniões nos mostra um des- envolvimento bastante considerável que esse abuzo vae adque- rindo entre nós. O illustrado conselheiro Torres Homem, sempre que falia, já em suas licções oraes,já á cabeceira do doente, do abuso das bebi- das alcoólicas, como causa de moléstias, considerando de certos annos a esta parte, a marcha progressiva e rápida desse abuzo, chama a attenção de seus alumnos para um factor muito impor- tante, que faz com que doses de álcool, perfeitamente toleradas na Europa, constituam entre nós abuzo, determinando o alcoo- lismo. Queremos fallar das condições climatericas do nosso paiz. E1 dirficil dizer qual a nação que entre nós paga maior tributo ao alcoolismo. O que se dá no hospital não deve ser considerado regra geral, porque ao passo que para ahi afflue um grande nu- mero das raças, negra e portugueza ; o numero de inglezes, alle- mães, etc, é muito limitado. Durante o corrente anno tivemos um grande numero de negros e portuguezes, poucos brazileiros, um só francez. De nacionalidades, ingleza ou allemã, não nos foi dado observar um só caso. Do estudo rápido que acabamos de fazer deprehende-se que o alcoolismo está geralmente espalhado por toda a superfície do globo, e que tanto as nações selvagens, como as civilisadas forne- cem um grande numero de victimas a esse flagello da humanidade. D'esse estudo deprehende-se também que nem todas as raças abusão do mesmo modo. São as raças allemã, ingleza e negra que fornecem maior numero de victimas ao alcoolismo (Lanceraux); e qualquer que seja a posição topographica que ellas occupcm, con- servão os seus hábitos de intemperança. Em Montevidéo de 1548 a 1847 e de 1847 a i853 (Lanceraux) a mortalidade do exercito inglez foi 3 vezes maior do que a do exercito francez, differença altribuida, segundo o auctor que cita- mos, ao abuzo do álcool. Segundo Rup e Suppé os três quartos da mortalidade dos negros serião produzidos pelo abuzo do tafiia, e todos os viajantes que têm percorrido a África estão de accordo n'esse ponto ( Lan- ceraux, Picqué). Influencias physíologicas. — Sob essa denominação com- prehenderemos as condições dependentes da edade, do sexo e herança. E' na edade adulta que as bebidas alcoólicas são mais bem toleradas. E' também n'essa edade que se encontra maior numero de casos de alcoolismo chronico, podendo apparecer, porém em todas as phases da vida. Ha factos de alcoolismo em in - 21 - dividuos de 4 a 5 annos; mas são raros n'essa edade, assim como o são em edade avançada;— talvez porque aquelles que se dão ao abuzo, não chegão á velhice. O maior numero de casos observados é dos 2 5 aos 6o annos ( Lanceraux). Os homens são mais sujeitos ao alcoolismo do que as mu- lheres, mas a proporção diminue á medida que se desce na es- cala social. Assim, na Inglaterra, na Polônia, os casos de deli- rium tremem são quasi igualmente freqüentes nos dous sexos (Fournier). Esta differença é também devida, segundo alguns auctores, á deficiência de commemorativos. E1 sobretudo nas jovens que se dão aos prazeres excessivos, e na época da meno- pausa que apparece o gosto pelas bebidas alcoólicos. Bouchar- dat verificou que muitas vezes n'essa época, um gosto pronun- ciado pelas bebidas alcoólicas, latente até então, se revelava de súbito. A hereditariedade do alcoolismo chronico está demonstrada por numerosos factos; a transmissão tem sido observada em duas condições differentes: nos descendentes de indivíduos em estado de embriaguez, ou nos descendentes de indivíduos victimas de alcoolismo chronico. Ha, porém, em relação á primeira hypothese um ponto im- portante, que é saber se, além da embriaguez, havia ou não um estado de intoxicação chronica. Os beberrÕes de profissão não transmittem sempre o alcoo- lismo chronico. Em muitos casos os descendentes não herdão o mal, porém sim, tendências para contrahil-o. Tendo de tratar do alcoolismo hereditário em capitulo sepa- rado, limitamo-nos ao que temos dito, e mais tarde deter-nos- emos sobre esse ponto. Ha ainda certas condições particulares que podem influir no desenvolvimento do alcoolismo chronico, e entre outras, ci- taremos as causas moraes e certas circumstancias externas. Assim a ociosidade é, para Roesch, um dos principaes motivos que leva os militares a abuzarem do álcool. O gosto pelo deboche, o pezar, os dissabores domésticos, e muitas outras causas podem fazer com que o indivíduo procure no álcool allivio para os seus males. Os trabalhos rudes, o gênero de profissão, o exemplo, as más companhias, a condição social, e, desgraçadamente a po- breza, obrigão muitas vezes o indivíduo a abuzar das bebidas alcoólicas. Muitas vezes são as necessidades de um commercio, em que os negócios são feitos com a garrafa na mão, ou ainda a necessi- dade de attrahir freguezia pregando o exemplo, como vendei- ros, etc, que levão o individuo ao abuzo do álcool. Durante o corrente anno observamos na enfermaria de clinica medica um caso desta ordem. Era um moço de 25 annos de edade, que ti- nha uma dilatação da aorta tríoraxica e que apresentava o cor- tejo symptomatico do alcoolismo chronico. Elle nos referiu que, -22- apezar de sóbrio no começo, chegou mais tarde a absorver grande quantidade de diversas bebidas durante o dia, por ser caixeiro de venda. Ha em Pariz mulheres que exercem a singular e desgraçada profissão de inviteuses, e que, com o fim de agradar aos freguezes, absorvem quantidades fabulosas de álcool e são victimas mais tarde do alcoolismo chronico. Entre os operários o pretexto, o mais futil convida-os a bebe- rem, já para espalhar o frio de manhã, já para diminuir o calor e finalmente para espantar o sereno á noite. O habito, uma vez adquirido, torna se uma necessidade imperiosa, uma paixão irre- sistível, contra a qual são baldados todos os conselhos do medico, todas as considerações de qualquer ordem que sejão : Qui a bu, boira, diz o adagio. Os excessos alcoólicos, bem que não sejão raros na classe abastada, são attenuados por certas cir- cumstancias, e o alcoolismo reveste uma marcha algum tanto differente. Influencias pathologicas.—O alcoolismo é muitas vezes o re- sultado de uma verdadeira affecção mental (Fournier). O gosto pelas bebidas alcoólicas pode apparecer no decurso ou na convalescença de certas moléstias e, principalmente, das af- fecçÕes nevropathicas. De um modo geral, podemos dizer que o álcool em face das affecções dos centros nervosos actua de duas maneiras : ou a titulo de excitante, e n'este caso, desenvolvem-se com uma actividade insólita os phenomenos próprios da affecção nervosa; ou excedendo os limites de uma causa commum de excitação, o álcool actua então como verdadeiro veneno e im- põe o seu delirio; n'este caso a influencia tóxica é por vezes de tal energia, que suas manifestações podem mascarar completa- mente os symptomas da moléstia preexistente. Este facto se observa muitas vezes na paralysia geral. Os hypochondriacos, começando por tonificar-se, chegão mais tarde, e progressivamente, a beber quantidades enormes de aguar- dente, vinho, etc. i Convém distinguir a dipsomania do alcoolismo. Trelat resume essa distineção nos seguintes termos : « Os alcoólicos são indivíduos que embriagão-se quando en- contrão occasião de beber. « Os dipsomanos são doentes que se embriagão todas as vezes que estão em accésso.» O accésso de dipsomania, diz Marcé, começa por tristesa, cephalalgia, anxiedade precordial; depois a necessidade de beber se faz sentir de um modo irresistivel. Os dipsomanos percebem quando tem de vir o accésso; e deplorando não poderem re- sistir essa necessidade mórbida, só deixão de beber depois de terminado o accésso, ou quando a intervenção das pessoas que o cercao, põe termo ao accésso por um'isolamento forçado. -23- t Magnan cita diversas observações,. nas quaes elle mostra não so a influencia da dipsomania sobre o alcoolismo, como também as diflerenças que distinguem este estado mórbido d'aquelle. Entre outras, elle cita a observação de uma mulher que, du- rante o accésso de dipsomania, bebia grande quantidade de álcool, e, terminado o accésso, tinha horror ao álcool e readquiria durante os intervallos os hábitos de sobriedade. A princi- pio os accessos erão separados por grandes intervallos, e a embriaguez só acompanhava-os ; mais tarde elles forão-se modi- ficando, os intervallos tornarão-se menores, o delírio alcoólico e allucinações appareceraõ ao mesmo tempo e continuadamente. N'estes casos o indivíduo não fica alienado, porque bebe, mas bebe porque é um alienado. E' a monomania da embriaguez de Esquirol—a dipsomania. Muitas vezes a paralysia geral é a causa que obriga o indiví- duo a beber, podendo, portanto, observar-se nos paralyticos ge- raes todos os gráos da intoxicação alcoólica, e muitas vezes o diagnostico differencial apresenta'serias dificuldades. ^Grande numero de moléstias, embora não constitua predispo- sição para o alcoolismo, influe sobre seus caracteres e sobre sua marcha, já fazendo manifestar-se uma intoxicação que se conser- vava até então latente, já fazendo apparecer manifestações muito graves. Observámos na enfermaria de clinica medica a cargo do Conselheiro Torres Homem um facto d*esta ordem. Trata-se d'um indivíduo de 52 annos de edade, que abusava das bebidas alcoólicas, que não tinha antecedentes hereditários forte, de constituição athletica, que entrou para o Hospital para se tratar de uma congestão medullar na região dorso-lombor. Três dias depois de sua entrada para o Hospital, dissiparão-se todos os phenomenos d'essa congestão e já o doente andava quando á noite apparece delírio com allucinações, e um delírio que resistiu a mais variada medicação, dando em resultadado a morte. A maior parte das moléstias agudas, e muitas vezes a mais leve indisposição, são capazes de provocar o accidente de que tratamos. Grisolle considera o alcoolismo uma das causas que provocão as mais das vezes o delido no decurso das phlegmasias pulmo- nares. E' muito raro que o delírio se manifeste no primeiro dia de moléstia; apparece quasi sempre do quinto ao oitavo dia, ou no período de convalescença. E' um ponto de importância pratica. E' preciso que o clinico esteja prevenido para bem distinguir aquillo que pertence a moléstia d'aquillo que corre por conta do al- coolismo. A influencia do alcoolismo sobre o traumatismo, e vice-versa, já em parte conhecida dos antigos, tem attrahido a [attenção dos cirurgiões e principalmente a do professor Verneuil no seu livro « Traumatismo e estados constitucionaes. » - 24 - Si por um lado, no vasto campo da clinica, pode apresen- tar-se grande variedade de lesões cirúrgicas, e por outro, a intoxi- cação pode variar em relação ao gráo, ás localisações mórbidas, e segundo os indivíduos; todavia, de um modo geral, as relações do alcoolismo chronico com o traumatismo podem ser consideradas sob dous pontos de vista : effeitos do alcoolismo sobre o trau- matismo e d'este sobre aquelle. O alcoolismo modifica profundamente o trabalho reparador, retarda a cura das feridas accidentaes ou cirúrgicas, e aggrava muito o prognostico. Com eff.ito, todo traumatismo, mesmo o mais leve, pode ser seguido no alcoólico de graves accidentes locaes, e ao mesmo tempo de todo o cortejo de symptomas ady- namicos e ataxicos. Por outro lado, o traumatismo pôde despertar manifestações, mais ou menos violentas, de um alcoolismo latente ou que se jul- gava já dissipado, sendo que em primeira linha o delirium tre- mem. Além d'isso elle pode fazer apparecer no alcoólico convul- sões epileptiformes, espasmos tetanicos e outros accidentes, não só para o lado do systema nervoso, como mesmo das outras vis- ceras, embora em muito menor escala. -25- CONSEQUENCIAS DO ALCOOLISMO CHRONICO Estudar em clinica as conseqüências do alcoolismo chronico é estudar os diversos estados mórbidos produzidos pelo abuzo pro- longado das bebidas alcoólicas. A intoxicação alcoólica determina na economia phenomenos mórbidos muito variados, segundo certas condições que compete ao clinico apreciar. Assim sua acção pode se exercer de um modo continuo sobre todo o organismo, ou dirigir-se de preferencia a um só apparelho orgânico. Ora, as desordens nervosas são nullas ou insignificantes, e a moléstia consiste principalmente na altera- ção de uma ou de muitas visceras, abdominaes ou thoraxicas ; ora, ao contrario, esses órgãos são poucos lesados, e as manifes- tações predominantes occupão o apparelho da innervação. « De lá, á Paris, surtout, deux classes d'alcoolisés qui sont, les uns traités dans les hôpitaux de Ia capitale, les autres dans les hospi- ces spéciaux tel que Bicêtre ou Charenton. » (Lanceraux). De todos os apparelhos orgânicos é sem duvida o nervoso, o que soffre mais freqüentemente as conseqüências da intoxicação alcoólica. E'elle geralmente também o primeiro compromettido. Na descripção nosographica, porém, para procedermos com me- thodo, começaremos pelo apparelho digestivo ; assim tomaremos a molécula—álcool desde a sua introducção no organismo até a sua eliminação, e, seguindo a na sua viagem devastadora através do organismo, descreveremos os symptomas próprios á lesão de cada órgão e em seguida as lesões anatômicas correspondentes a cada um. Cotejando os symptomas observados em vida com as lesões anatomo-pathologicas, comparando-os entre si, estudando as ana- logias que os unem, bem como as differenças que os separão, pro- curaremos destacar aquelles que são observados na maioria dos casos. E' preciso, porém, que fique desde já consignado que os symptomas do alcoolismo chronico revelão a lesão orgânica em si, sem indicar a sua origem; os phenomenos mórbidos expri- mem a lesão do órgão e não a causa; quer se trate de uma stea- tose ou de uma cirrhose hepatica, por exemplo, os symptomas são os mesmos, embora ella seja ou não de origem alcoólica; mas ha um conjuncto de circumstancias que precedendo, acompanhando ou succedendo a esses symptomas, nos levão, na maioria dos casos, ao diagnostico etiologico. Ha, comtudo, certos sympto- mas especiaes aos alcoólicos, que, parecendo fazer excepção, confirmão o principio acima enunciado (Jaccoud), porque d'esses phenomenos, uns são simples perturbações funccionaes, como o delirium tremem, no grupo das psychopathias; — outros não são especiaes senão porque a própria lesão que os produz deve N. 63 4 a sua causa um caracter especifico, como o catarrho alcoólico no grupo das gastropathias. Do mesmo modo, as lesões anatomo- patholoeicas do alcoolismo chronico só têm de especial a causa que as produz; entre a cirrhose alcoólica e a cirrhose syphihtica, por exemplo, não ha differença notável. Para Chacot ha, porem, entre as cirrhoses de origem alcoólica, syphihtica e palustre, cer- tas differencas que assignalaremos em logar conveniente, e que servem para distinguir ou caracterisar cada uma d ellas. O que crea o alcoolismo chronico, o que justifica até certo ponto (Jaccoud) a concepção que fez d'este estado uma entidade mór- bida, não é o caracter das lesões observadas: é o seu desenvol- vimento simultâneo debaixo da influencia geradora duma mesma causa. O alcoolismo, como entidade mórbida (Jaccoud), tem alguma cousa de artificial. Estudar, portanto, os^symptomas e as lesões do alcoolismo chronico, é estudar as lesões de outros estados mórbidos,determinados por causas muito diversas, porém que actuão produzindo lesões idênticas. Pelo que vai seguir, ver-se-á que o quadro, quer symptomatíco, quer anatômico do alcoolismo chronico, não é senão a enumeração das desordens produzidas no organismo pelas devastadoras e reiteradas viagens do álcool. As diversas vias de absorpção pelas quaes o álcool pode pe- netrar na economia, são, como sabemos, o tegumento externo, as serosas, o tecido conjunctivo subcutaneo e as mucosas, gastro- intestinal e pulmonar. De todas ellas a mais importante, sob o ponto de vista que nos occupa, é sem duvida a absorpção pela mucosa digestiva. A absorpção pelas serosas e pelo tecido conjunctivo sub- cutaneo constituem methodos experimentaes. Pela mucosa pulmonar o álcool é absorvido com rapidez e determina phenomenos de embriaguez, quer seja injectado no estado liquido pela trachéa, quer seja inspirado no estado de vapor. Tem-se observado casos de embriaguez confirmada pelo simples facto da permanência demorada em uma adéga. E' co- nhecido o facto, observado por Mesnét, dum negociante de be- bidas, o qual pelo habito de dormir em um aposento situado por cima do armazém, apresentava phenomenos de embriaguez durante a noite, manifestando-se nelle, desoito mezes depois, o mais grave cortejo de symptomas do alcoolismo (Marvaud). A principal via de absorpção para o homem, é pois, a mucosa digestiva. Pelo estômago é o álcool absorvido em quantidade minima (Schiff). No estômago uma pequena porção de álcool (Lallemand, Per- rin e Duroy) em contacto com o muco e sob a acção da tempe- ratura animal, transforma-se em ácido acetico. E' nesta trans- formação que encontramos a explicação da acidez dos vômitos que succedem-se á immoderada ingestão de bebidas alcoólicas. — 27 — E' incontestavelmente no intestino delgado que se faz a absorpção total do álcool, sendo, comtudo, admissível que a parte que atravessar e chegar ao grosso intestino, ahi também será absorvida. Achando-se em contacto com as myriades de cellulas epitheliaes que revestem as villosidades intestinaes, por um phenomeno de nutrição d'estas cellulas, o álcool passa a fazer parte integrante do seu conteúdo. O álcool tem então diante de si dois caminhos a seguir : as venulas tributarias da veia porta e os chy- liferos^ tributários do canal thoraxico. Longet admjtte a ab- sorpção do álcool pelos chyliferos, comquanto as analyses não tenhão revelado sua presença n'estes vasos. A absorpção pelas venulas é geralmente admittida. Atravessando o figadoj o cora- ção direito e os pulmões, o álcool é lançado pelo ventriculo es- querdo, de mistura com o sangue distribuído por toda a eco- nomia e posto em contacto com os elementos anatômicos de todos os órgãos, produzindo as variadas moléstias que passamos a descrever. Antes, porém, citaremos as eloqüentes palavras do professor Peter que indicão de um modo synthetico as lesões encontradas nos indivíduos victimas do alcoolismo chronico : « Tout chez cet homme est malade; Testomac, le foie, Ia rate, les reins, les vaisseaux et le coeur même, interesse jusque dans son myocarde; chacune de ces lésions, vue á part, pourrait être Ia confusion del'analyse, et toutes ces lésions, vues d'ensemble, vont devenir Ia glorification de Ia synthése.» Apparelho digestivo e seus annexos. — O abuzo prolon- gado das bebidas alcoólicas produz nas funccões digestivas uma serie de desordens que varião desde a falta de appetite e dyspesia até as lesões as mais graves. O beberrão de profissão perde o appetite, come pouco, queixa- se de empastamento da bocca, tem a lingua coberta de saburra branca, sede, digestões difficeis, máo-estar, dôr epigastrica, vô- mitos etc. E' atormentado por uma dyspepsia rebelde, sensações diversas na região epigastrica, pezo, picada, ardor e muitas vezes dôr. De todos esses phenomenos, que são observados nas dyspepsias devidas a qualquer causa, ha um, muito freqüente no alcoolismo chronico, — a pituita. Este symptoma, cons- tituído por vômitos viscosos de manhã, em jejum, é por assim dizer inseparável do primeiro período do alcoolismo chro- nico e mereceu de Hufeland a denominação de vômitos matu- tinus potatorum. E'mais freqüente e mais abundante no dia im- mediato ao das orgias (Fournier). Em alguns doentes da enfermaria de clinica medica observá- mos este symptoma. E' de manhã que a principio apparece o symptoma que estudamos; depois de se ter levantado, muitas vezes ao descer do leito, o doente sente máo-estar geral e uma angustia epigas- trica,—é o prenuncio do vomito; e de repente, sem esforço lhe - 28 - vem á bocca um pouco de liquido viscoso, transparente e es- branquiçado (pituita branca). As vezes o vomito é demorado, pre- cedido e seguido de tosse. Em certos casos, depois de muitos vômitos com esforço, é regeitado um liquido branco com uma certa quantidade de bile, que lhe dâ a cor amarella (pituita ama- rella); e em outros, a bile é rejeitada quasi pura (pituita verde). Esta gastrorrheia pode ser por muito tempo independente de qualquer lesão estomacal (Jaccoud, Fournier); é então devida a uma simples hypersecreção mucosa. Mais tarde apparecem todos os symptomas de uma gastrite chronica; os vômitos tornão-se constantes, simulando na mulher os vômitos incoerciveis da prenhez, como o facto da mulher que,tratada por Velpeau desta moléstia, reconheceu-se mais tarde ser alcoólica. Depois do vomito o doente tem a bocca amarga, a lingua pastosa, algumas vezes sêcca e vermelha; e, para satisfazer a sede viva, recorre ao seu liquido favo- rito. O habito tornou-se uma necessidade imperiosa, uma paixão irresistível, contra a qual são debalde todos os conselhos do medico, todas as considerações, todos os protestos, todas as resoluções as mais bem intencionadas : o abysmo é inevitável : —Qui a bu boira. O intestino não se conserva alheio a essas desor- dens; mas as suas lesões são muito menos pronunciadas do que as do estômago. A diarrhéa é um phenomeno freqüente, ora alternando com a constipação, ora tornando-se continua. Apparecem muitas vezes phenomenos de uma enterite chro- nica ulcerosa: tensão do abdômen, eólicas, hemorrhagias, etc. As diversas perturbações que acabamos de enumerar, persis" tem em geral durante muito tempo, desde que continuem os excessos alcoólicos. As pituitas, porém, ou por uma espécie de habito do estômago, ou por causa da alteração dos órgãos secre- tores, modificão-se; o appetite não reapparece ha aborrecimento pelos alimentos, e as bebidas alcoólicas constituem quasi que a única alimentação. São esses os principaes symptomas observados nos casos de gastrite chronica simples ; porém outros phenomenos, sem que sejão constantes, podem unir-se a elles, nos casos de ulcera- çÕes da mucosa digestiva; assim, a dôr torna-se viva, oecupando de preferencia as regiões, xiphoidea e dorsal; os vômitos podem tornar-se biliosos, ennegrecidos, cor de borra de café, sangui- nolentos, e ha mesmo casos de hematemeses (Leudet, Frank). Para Leudet a gastrorrhagia é um symptoma freqüente nos casos de ulcerações do estômago, e é quasi sempre, depois de um excesso ou de uma perturbação qualquer, que apparece a gas- trorrhagia. E: quasi sempre pouco abundante, dura alguns dias, comtudo em alguns casos (Lanceraux) pode determinar uma morte rápida. — 29 — Tivemos occasião de observar em nossas ultimas ferias um facto de ulcera do estômago, em que sobreveio o symptoma de que tratamos. Era um individuo de 36 annos de edade, que abuzava das bebidas alcoólicas. Depois de ter-se embriagado n'uma orgia, teve uma hematemese pouco abundante, que durou dois dias. Com os meios appropriados elle restabeleceu-se. Symptomas de igual natureza e caracteres podem ser obser- vados para o lado dos intestinos assim, dôr violenta, melena, diarrhea colliquativa de mistura com evacuações hemorrhagicas dysenteriformes que, auxiliando em seus effeitos as perturba- ções do estômago, concorrem para levar o doente ao emmagre- cimento e cachexia. Aos diversos symptomas mencionados correspondem lesões diversas do apparelho digestivo. Alguns auctores mencionão a vermelhidão anormal da mu- cosa lingual e pharyngéa, hypertrophia de suas papillas, queda do epithelio e um estado particular da lingua que se apresenta fendilhada. Estes caracteres, tendo sido observados nos indivíduos que abuzão do fumo e fazem uzo do cachimbo (Lanceraux, Jaccoud) não têm valor algum; e Lanceraux acredita mesmo que esse estado da lingua corre por conta do fumo. O estômago, porém, •apresenta uma serie de lesões, conhecidas sob a denominação de alcoolismus ventriculi chronicus. A integridade da mucosa do estômago nos indivíduos que abuzão das bebidas alcoólicas é rarissima. O gráo de concentração dos líquidos, o estado de plenitude ou de vacuidade do estômago por occasião da ingestão, guardão certa relação com o gráo de alteração da sua mucosa. E' muito raro que o estômago conserve suas dimensões normaes; ora, a cavidade está diminuída de capacidade, estreitada a ponto de apresentar uma capacidade igual a do colon transverso; ora, está dilatada, mesmo no começo da intoxicação. A diminuição da capacidade do estômago é encontrada de preferencia nos in- divíduos que abuzão da aguardente, ao passo que a dilatação é mais commum nos bebedores de cerveja. As paredes do estômago tornão-se espessas, a mucosa tem uma côr acinzentada ou ar- dosiada, em certos pontos está endurecida, em outros amol- lecida. A mucosa apresenta placas de injecção, que occupão a região do cardia e a pequena curvatura; na sua superfície en- contra-se um muco espesso, producto de secreção das glândulas estomacaes hypertrophiadas. Essas placas, resultado de uma vas- cularisação extremamente rica, não apparecem de um modo saliente, apresentão algumas vezes pontos escuros e ecchymo- ticos. O apparecimento d'essas placas caracterisa o primeiro gráo de alteração da mucosa do estômago. - 30 — À exageraçao das saliências glandulares, e algumas vezes (Jaccoud), hypertrophia mamelonada da mucosa, cujas protube- rancias, pediculadas ou sesseis, são separadas por sulcos recti- linios mais ou menos profundos; estreitamento pylorico, quer pri- mitivo por espessamento e sclerose das túnicas, quer conse- cutivo á cicatrisação e retracção das ulceras, e uma alteração muito curiosa das glândulas tubulosas do estômago, que con- siste na dilatação de sua parte flexuosa e profunda (Fournier) suppurando e derramando pús no estômago, e provocando (Jac- eoud) algumas vezes suppuração do tecido cellular submucoso; todas essas alterações têm sido observadas. Alguns observadores (Charcot, Vulpian) verificarão em alguns casos hypertrophia do tecido conjunctivo e da própria tú- nica musculosa, sendo então fácil a confusão com uma lesão cancerosa (Lanceraux) ; mas, como faz notar Leudet, ao lado d'essas hypertrophias parciaes, ora sesseis, ora pediculadas, exis- tem alterações de outra ordem e principalmente ulcerações da mucosa do estômago, o que depõe em favor de uma phlegmasia de origem alcoólica. Quando a inflammação ganha o tecido cellular submucoso ou quando é muito intensa ou aguda, observa-se a gastrite phlegmonosa com abcessos submucosos; accidente raro, porém in- contestável do alcoolismo (Trousseau); alteração observada por Leudet em indivíduos dados ao uzo de líquidos fortes. Lanceraux diz que nao teve ainda occasião de observar essa alteração; concorda, porém, com Leudet fazendo notar que si a inflammação phlegmonosa é muito commum no alcoolismo agudo é ao contrario muito rara no alcoolismo chronieo. A in- flammação chronica da mucosa do estômago (Trousseau) ter- mina-se algumas vezes por ulcerações, constituindo a gastrite ulce- rosa, bem estudada por Leudet, mas muito rara. O estômago apresenta então, ou uma só ulceração, ou muitas, que as- sestão-se de preferencia nos logares antigos das placas de injecção—cardia e pequena curvatura. Essas ulcerações limitão-se em geral á membrana mucosa superficial, e porisso é raro que dêm em resultado a perfuração do estômago. Muitas vezes essas ulcerações são encontradas em via de cicatrisação; e depois de cicatrisadas, formão-se adherencias com o tecido subjacente es- pessado, que distingue-se pela sua cor esbranquiçada da côr escura da mucosa que o rodeia. Lanceraux chama, a attenção para a côr d'essas ulcerações como caracter de grande valor dis- tinctivo. Ellas apresentão no centro um coagulo sangüíneo, avermelhado ou amarellado, e nos bordos, a par de uma in- jecção pronunciada, encontrão-se manchas escuras ou, mesmo, pequenos focos sangüíneos. As vezes, á simples vista o fundo da ulcera é acinzentado, mas o exame microscópico nos revela a presença da matéria co'- rante do sangue sob a forma de granulos mais ou menos volumo. - 31 - sos, a existência de glóbulos gordurosos e destruição mais ou menos completa da mucosa gástrica. Essas ulcerações parecem ter como ponto de partida, ao menos em certos casos, a altera- ção e a oblíteração consecutiva de um ou de muitos pequenos vasos do estômago. Ha uma uecrose por oblíteração vascular; e aquelles que explicão a formação das ulcerações'por esse me- canismo, baseão-se na presença quasi constante da hematosina, como também na disposição de certas ulcerações alongadas na direcção dos vasos. Essas ulcerações não apresentão a mesma gravidade (Leudet, Fournier) que as ulceras do estômago, de- pendentes de outras causas, e são freqüentemente seguidas de cura, ainda mesmo que o indivíduo continue a abuzar do álcool. Finalmente, a inflammação chronica do estômago pôde terminar-se por amollecimento da mucosa. A simples lavagem do estômago, nesses casos, ou a impressão dos dedos, põe a descoberto as túnicas subjacentes. No esophago e duodeno tem-se encoutrado ulcerações análogas ás do estômago, e também vermelhidão, espessamento da mucosa e catarrho. As glândulas e as villozidades do duodeno são em geral hy- pertrophiadas e algumas vezes alteradas. As alterações do resto do intestino delgado são raras. No coeco tem-se encontrado es- pessamento com endurecimento e côr ardosiada da mucosa, ulce- rações e hypertrophia das glândulas. As lesões do estômago, cuja descripção acabamos de fazer, podem-se confundir com lesões determinadas por outras causas, e principalmente com as lesões do estômago determinadas por um embaraço de circulação da veia porta, ligado a uma lesão cardíaca, a uma cirrhose, a lesões uremicas e a certas manifesta- ções cancerosas. Nos casos de cirrhose, de affecção cardíaca ou renal o facto de estarem ao mesmo tempo compromettidos esses órgãos, é um meio de distincção. Nos casos de manifestações cancerosas, os symptomas pró- prios e a coincidência de lesões análogas em outros órgãos ser- virão de muito para o diagnostico differencial. Quando, porém, o indivíduo fôr alcoolista e tiver uma d'essas affecções, o que não é raro, o diagnostico torna-se então difficil. Os auctores dão os seguintes caracteres differenciaes : a pigmentação da mucosa, dependente d'um embaraço mecânico da circulação, assesta-se de preferencia na região do pyloro em forma de pontilhado uniforme, e não de manchas disseminadas e ennegrecidas, como nas affecções de origem alcoólica. A multiplicidade e pouca profundidade das perdas de substan- cia servem de caracter distinctivo entre a gastrite ulcerosa de origem alcoólica e a ulcera simples e mesmo entre as ulceras can- cerosas que são profundas, de bordos endurecidas e únicas. As lesões intestinaes podem-se confundir ou com as ulcera- ções tuberculosas, ou com certas modificações que se dão na into- xicação uremica. A sede d'essas lesões serve para distinguil-as; — 32 — assim as ulceras tuberculosas occupão de preferencia a ultima porção do intestino; as alterações na intoxicação uremica asses- tão-se de preferencia na ultima porção do grosso intestino, ao passo que as lesões do alcoolismo chronico assestão-se na pri- meira porção do intestino delgado. Em geral, a marcha das affecções gastro-intestinaes, depen- dentes dos alcoólicos, é lenta, progressiva, ou sujeita a reincidên- cias ; as únicas affecções, dependentes dos alcoólicos, que apre- sentão uma invasão aguda e uma evolução rápida, são a gastrite phlegmonosa, e as ulcerações determinadas por um excesso de ál- cool concentrado ; essas manifestações, porém, são raras. A cura das ulcerações tem sido verificada (Leudet, Lance- raux, Jaccoud) em individuos que abuzavão do álcool e que mor- rerão de uma moléstia intercurrente. Essas lesões não apresentão symptoma algum de grande valor diagnostico, em relação a etiologia, excepto a pituita ; de modo que, em falta d'esse symptoma, o diagnostico torna-se difficil. A anamnese e os diversos symptomas, fornecidos pelos outros apparelnos e principalmente os fornecidos pelo apparelho nervoso, servirão de muito para esclarecer o diagnostico. Fígado. As lesões do fígado são muito communs no alcoolismo chronico. A principio são phenomenos de simples hepatalgia; mas hão sobretudo os phenomenos de congestão que inicião as variadas lesões que appareceráõ mais tarde. As bebidas alcoó- licas excitão as funccões hepaticas. Cada excesso alcoólico deter- mina uma fluxão passageira, uma hyperemia momentânea da glândula, e a repetição constante do mesmo phenomeno traz como conseqüência um estado de congestão, habitual do órgão. Em quasi todos os alcoólicos que observámos tivemos occasião de verificar a exactidão d'este asserto. Por outro lado, a cirrhose atrophica é muito commum nos alcoólicos ; e tão commum, que os termos — cirrhose atrophica e cirrhose alcoólica, são na maioria dos casos considerados synonimos, embora a cirrhose atrophica dependa de outras causas. Entre esses dois extremos, congestão e hypertrophia de um lado, cirrhose e atrophia de outro, ha numerosos gráos intermediários ; porém é muito raro que se possa observar no mesmo doente esta progressão. Bright conseguiu verificar em um mesmo doente a passagem da hyper- trophia á atrophia. O Dr. Mathieu em seu bem elaborado artigo {Dufoie dans rasystolie des alcooliques,Arch. gen. de Med. 1883) enumera todas as lesões que podem ser encontradas no fígado dos alcoólicos: 1.° Simples congestão com dôr e augmento de volume ; 2. ° A hepatite intersticial diffusa que pôde affectar a fôrma aguda ou sub-aguda; 3 ° A cirrhose hypertrophica com ictericia chronica sem sacite (Hanot), ou com ictericia e ascite (Dieulafoy, Guiter); -33- 4-° A pylephlebite adhesiva ; 5.° A cirrhose atrophica de Laennec ; 6.» A cirrhose gordurosa hypertrophica ; 7.0 A steatose simples. Algumas d'essas lesões são muito raras, principalmente entre nós ; porisso não nos deteremos senão sobre aquellas que são communs, estudando as lesões do fígado de accôrdo com Lanceraux, e com a divisão já estabelecida no começo do nosso trabalho. Essas lesões são de duas espécies, segundo ellas inte- ressão, ou a substancia conjunctiva, ou as cellulas pró- prias do órgão ; constituindo no primeiro caso a hepatite inters- ticial atrophica, no segundo a steatose. O alcoolismo chronico occupa sem duvida o primeiro logar entre as causas determinantes da cirrhose hepatica. Os auctores estão de accôrdo sobre o papel etiologico do alcoolismo na pro- ducção da cirrhose hepatica. Dos 36 casos citados por Frerichs, 26 entregavão-se com excesso ás bebidas alcoólicas, e alguns dos outros erão suspeitos. As relações de causa e effeito entre o abuzo das bebidas alcoólicas e a cirrhose, estão demonstradas de um modo tão certo, diz Bamberger, que não se pôde suscitar du- vidas a esse respeito, e accrescenta que, em 34 casos observados por elle, 10 reconheciam como causa o abuzo das bebidas alcoó- licas. As estatísticas de Dickinson, citadas por Charcot, mostrão também que a causa principal da cirrhose é o alcoolismo. Em 149 indivíduos observados por Dickinson, cuja profissão os obri- gava ao uzo das bebidas alcoólicas, 22 tivérão cirrhose ;—em nu- mero igual, cuja profissão era differente, só 8 tiverão cirrhose. De 18 casos que observámos durante o corrente anno na en- fermaria de clinica medica a cargo do Conselheiro Torres-Homem, 10 não apresentavão outra causa senão o abuzo das bebidas al- coólicas, sendo que só em um o alcoolismo não podia ser accusado, e havendo em todos os outros concumitancia de alcoolismo, sy- philis e impoludismo. No norte da AUemanha e nas costas da Inglaterra, onde o fígado cirrhotico é conhecido sob a denominação de gin-drinker's liver, e onde a classe pobre se entrega aos excessos alcoólicos, a hepatite intersticial atrophica é muito mais freqüente, do que no sul e na parte central d'esses paizes, onde o abuzo do álcool é muito menor. A natureza do nosso trabalho não permittindo-nos uma des- cripção minuciosa das lesões anatômicas, nem tão pouco do quadro symptomatíco da cirrhose, contentar-nos-emos em enu- meral-os resumidamente. O álcool, rapidamente absorvido, chega ás ramificações da veia porta e, circulando ahi de mistura com o sangue, actúa por suas propriedades irritantes sobre a glândula hepatica, exciían« tf 63 & - 34 — do-a e provocando congestões que, repetidas, concorrem freqüen- temente para a producção d'uma inflammação intersticial. A cirrhose hepatica apresenta em sua evolução dous períodos ; comtudo, entre esses dous períodos extremos, existem phases in- termediárias do mesmo processo mórbido, ás quaes é difficil traçar limites precisos. No primeiro período, a glândula é ordi- nariamente augmentada de volume,podendo em certos casos offe- recer seu volume normal, e me outros, posto que raros, achar-se reduzida. Se o figado está augmentado de volume, a sua fôrma não apresenta modificação sensível, sua consistência é ligeiramente augmentada, e sua superfície é quasi sempre lisa, como no estado normal. A's vezes apresenta saliências chatas de tamanho variável. Sua côr é normal vermelho-escuro, algumas. vezes tinta de verde em virtude da pigmentação biliar, e outras, pallida por causa da gordura, que a infiltra. Seccionando-se o figado, vê-se em seu interior pequenas gra- nulaçÕes, separadas por septos delgados de tecido conjunctivo trais ou menos vascular, que lhe dão uma duresa variável. Na superfície de secção observão-se infiltrações de uma subs- tancia liquida de côr cinzento-amarellada,que é constituída de ele- mentos conjunctivos delicados e de cellulas fusiformes ; n'esta matéria, fazendo o papel de stroma, apparece o tecido normal em fôrma de ilhotas mais ou menos salientes. O segundo período, que indica já um estado adiantado da moléstia, é caracterisado por um endurecimento, atrophia e deformação do órgão. N'este período o figado peza mais ou menos 800 grammas. FJ muito raro que elle seja mais volumoso n^ste período. Sua fôrma modifica-se e as lesões do lobo esquerdo parecem dominar quasi sempre as do direito, tanto que se encontra aquelle muitas vezes reduzido a um appendice encarquilhado e membranoso. " A cápsula que cobre o figado está espessada e se afunda entre cada uma das pequenas saliências ou granulaçÕes igualmente disseminadas em sua superfície. As granulações,' circumscriptas por uma substancia acinsentada ou esbranquiçada, que não é outra cousa senão o trama da substancia conjuíjctiva espessada, apresentão o volume de uma lentilha ou de um núcleo de cereja e uma côr escura ou amarellada, conforme predomina a gordura ou o pigmento nas cellulas ; estas granulações são formadas por um ou muitos lobulos envolvidos pelo neoplasma retractil. Em alguns pontos os lobulos desapparecem completamente e são substituídos por um trama de tecido fíbroso. Pela secção encon- trão-se em todo o figado as mesmas granulações amarelladas, sa- lientes e cercadas de tecido conjunctivo ; a consistência é dura, o endurecimento pronunciado, o que valeu-lhe a denominação de endurecimento granuloso do figado. A principio a substancia conjunctiva hypertrophiada que rcdeia cada um dos lobulos hepaticos, está collocada em torno dos capillares da veia porta, das ramificações das artérias hepa- ticas e das radiculas dos conductos biliares. Mais tarde, ha formação cellular nos interstícios lobulares, d'onde espessamento do trama, compressão dos vasos, e das cel- lulas que constituem os lobulos ; emfim transformação fibrosa dos elementos conjunctivos, retracção do órgão em virtude da propriedade de elasticidade que pertence a todo o tecido fibroso de nova formação, degenerescencia atrophica e gordurosa das cellulas, diminuição da glândula hepatica. Eis, em resumo, as le- sões anatômicas da hepatite intersticial atrophica. Do mesmo modo que para as lesões anatômicas, admittiremos na enumeração dos symptomas dois períodos. E' difficil indicar de um modo resumido a ordem de successão dos phenomenos mórbidos, visto que elles apresentão variantes diversas em sua época de apparecimento e desenvolvimento. Estudaremos no primeiro periodo todos os symptomas que se observa antes do embaraço circulatório intra-hepatico, e no segundo os que suc- cedem a esse embaraço. Primeiro periodo. No primeiro periodo a hepatite intersti- cial passa muitas vezes desapercebida por causa do modo insi- dioso por que ella se apresenta. Muitas vezes os phenomenos mórbidos são tão vagos e tão pouco assignalados, que só a ascite vem despertar a attenção do doente. Em alguns casos são as perturbações gastro-intestinaes que attrahem a attenção do doente, denunciadas por vômitos de manhã, náuseas, falta de appetite, lingua saburrosa, digestões difficeis e acompanhadas de um sentimento de tensão na região epigastrica e de flatulencia ; ora ha diarrhéa, ora constipação de ventre ; as urinas são raras, carregadas de uratos e em alguns casos de albumina. Estes symptomas algumas vezes accentuão-se trazendo para o doente um abatimento e uma prostração consideráveis, e outras vezes diminuem apresentando intervallos de melhoras. Ha casos em que a moléstia se denuncia por symptomas de uma congestão chronica da glândula hepatica ; é assim que o doente accusa uma sensação de pezo na região hepatica, acompa- nhada de dor, surda á pressão, sub-ictericia, e um ligeiro embara- ço gastro-intestinal. Em outros casos, embora raros, é uma gastrorrhagia ou uma enterorrhagia, dependente do rompimento das veias gástricas ou intestinaes, que se acham engurgitadas por embaraço da circula- ção porta, que marca o seu começo. Estes symptomas são acompanhados de um augmento de volume do figado, seguido de endurecimento^ Qualquer que seja o modo por que se inicie a moléstia, seguin- do a sua marcha chronica e progressiva, ella apresenta no fim de certo tempo, graças ás perturbações da nutrição, uma série de symptomas, sempre os mesmos, como : emmagrecimento mais u menos considerável, pelle sêcca e rugosa, acompanhada de — 36 - Uma côr amarello-suja ; as maçãs do rosto e as azas do nariz apresentão-se muitas vezes cobertas de placas violaceas, devidas ao desenvolvimento anormal dos capillares sangüíneos ; e chega o segundo periodo. N'este periodo, a moléstia se caracterisa por certa ordem de symptomas principaes, ao mesmo tempo que apresenta phenome- nos secundários. A cirrhose hepatica, uma vez constituida, caracterisa-se por cinco ordens de phenomenos capitães ou principaes, apresentando além d^sso, phenomenos secundários (Torres Homem). Os phenomenos principaes são os seguintes : i.° Ascite mais ou menos abundante, com todos os caracteres da ascite hydropica. 2.0 As condições physicas e materiaes da glândula hepatica. 3.° As condições physicas e materiaes do baço. 4.0 Os caracteres physicos e chimicos da urina. 5.° Os caracteres da nutrição. Além dos phenomenos principaes temos outros secundários que muito concorrem para esclarecer o diagnostico, e, entre outros, mencionaremos a circulação collateral, epistaxis, gastro- rrhogia, enterorrhogias, etc A hepatite intersticial, de origem alcoólica, não tem symptoma pathognomonico, que nos leve a estabelecer o diagnostico etiolo- gico; assim ella pode confundir-se com a cirrhose syphilitica ou com a cirrhose cardíaca ; mas se é verdade que não ha symptoma pathognomonico, não é menos verdade que ha uma série d^lles que bem apreciados nos dão a chave do diagnostico. Assim, a tríade symptomatica que caracterisa o alcoolismo chronico—tremor,insomnia e pituita—podem nos servir de muito além da historia anamnestica do doente e o seu estado geral. Lanceraux apresenta ainda os seguintes dados : A cirrhose syphilitica não só coexiste com gommas e cicatrizes, mas ainda ella interessa a substancia conjunctiva inter-acinosa e sobretudo os septos fibrosos que emanão da cápsula de Glisson, para ganhar a profundeza do parenchyma, e d'ahi uma irregulari- dade muito pronunciada da superfície do órgão ; grandes ilhotas, sulcos, bossas volumosas, deformação notável da glândula, e uma atrophia que não é igual em todo o órgão. O figado na cirrhose syphilitica (Charcot), é dividido em poucas granulações por grandes bridas ; o figado na cirrhose alcoólica apresenta muitas granulações. O figado cardíaco é endurecido', augmentado de volume, con- gestionado, e não offerece o estado granuloso dos alcoólicos. Liso e pallido, elle apresenta pela secção um aspecto particular de- vido á sua coloração, e que lhe valeu a denominação de figado nox-moscada ; o calibre das veias intra-lobulares édilatado, não ha nuncaf o espessamento fibroso, que circumscreve o lobulo hepatico no alcoolismo. - 37 - OBSERVAÇÃO I Entrou no dia 25 de Abril de 1883 para o Hospital a enfermaria de clinica do Conselheiro Torres Homem, onde foi occupar o leito n. 10, Luiz Pinto Peixoto Guimarães, preto, brasileiro, liber- to, natural da Bahia, 60 annos de edade, solteiro, latoeiro, de cons- tituição regular. Anamnese.— O doente declara que soffre ha seis annos do figado, que soffre de perturbações da digestão, traduzidas por uma difÉculdade de digerir os alimentos e pela falta de appe- tite, e ao mesmo tempo sentia uma indisposição geral para o trabalho. Mais tarde notou que seu ventre tomava certo desen- volvimento que nao estava em relação com o seu enfraquecimento, e que os seus membros inferiores infiltravão-se. Ac mesmo tempo apparecerao-lhe vômitos pela manha, come- çou a sentir sensação de pezo no hypochondro esquerdo ; appare- ceu-lhe insomnia e tremor. Confessa que uza e abuza das bebidas alcoólicas, que teve can- cros e blenorrhagia. Declarou mais que soffreu a paracenthese fora do Hospital e*que, dias depois, a ascite reapparecera, o que o levou a procurar o Hospital. Ettado actual. — O aspecto geral do doente revela depaupera- mento orgânico considerável. O ventre acha-se proeminente, em virtude do liquido ascitico que encerra ,• os membros inferiores ligeiramente infiltrados. Face hyppocratica, olhos fundos, boche- chas deprimidas, mucosas labiaes descoradas. Nao ha. desenvolvi- mento das veias abdominaes. Apparelho digestivo e seus annexos. — A lingua apresenta-se descarnada, o doente nao tem appetite; accusa constipaçao de ventre rebelde e vômitos pela manha, —sensação de pezo no epigrastro. Pela percussão o fígado apresenta-se atrophiado, e cccultando-se sob as costellas, sendo difficil o exame, porque a ascite recalca-o para cirna. O baço hypertrophiado desce dous ou três dedos abaixo do rebordo costal. A quantidade de urina é menor do que a normal ( 600 gr. em 24 horas) ; a quantidade de uréa é diminuída ( 8 gr. em litro ); urinas muito vermelhas, densas, contendo grande quantidade de uratos ; mas nao ha albumina. Apparelho circulatório. — Nao ha ruído de sopro anormal no coração ; as bulhas sao enfraquecidas ; existe bulha de percussão era toda a aorta thoraxica. - 38 — Apparelho respiratório. — Obscuridade na base dos pulmões, estertores irubcrepitantes e mucosos. Para o systema muscular nota-se phenomenos de depaupera- mento, traduzidos pela reducçao de volume dos músculos, e para o systema nervoso difficuldade na ideaçao, enfraquecimento da me- mória, torpor, prostração. Diagnostico. — Hepatite intersticial atrophica, de origem alcoó- lica, em segundo periodo. Marcha e tratamento. — Depois da administração de um purga- gativo drástico ( elaterio ), o doente esteve em uzo de iodureto de potássio, sem apresentar modificação alguma, até o dia 6 de Maio, em que apresentou-se ligeiramente comatoso. Este estado é inter- rompido por phenomenos de subdelirio, ha crocidismo ; o pulso é pequeno e freqüente, bate 96 vezes por minuto. Foi-lhe prescripta tinctura de jalapa composta em infusão de folliculos de senne, e externamente um visicatorio no occiput, e dois na parte interna das coxas. O doente falleceu no dia 7, ás 2 horas da madrugada. Autópsia. — 9 horas depois da morte. Aspecto exterior; Membros inferiores ligeiramente edemacia dos ; signaes dos dous visicatorios nas coxas ; signal de cicatri- zes nas pernas. Pela abertura do ventre escapa uma grande quan- tidade de liquido citrino. A massa intestinal se acha tensa pelo accumulo de gazes e os epiploons ligeiramente gordurosos. Apparelho digestivo. —A mucosa do estômago apresenta em alguns pontos placas de injecção, e nas visinhanças do cardia uma pequena ulcera, algum catarrho. Catarrho no duodeno. Figado. — Atrophiado, granuloso, retrahido e encarquilhado. O lobo esquerdo mais atrophiado do que o direito. Lobo de Spigei, granuloso e endurecido. Cápsula de Glisson muito adherente ao parenchyma hepatico. Adherencia da tolha peritonial na face supe- rior e externa do lobo direito ; adherencia com o diaphragma ; peia secção elle apresenta-se resistente, e range pelo corte. Baço. — Augmentado de volume. Apparelho circulatório. — Coração gorduroso, apresenta na sua face anterior placas leitosas (Stockesj. Pequena quantidade de liquido no pericardij. Apparelho respiratório. — Adherencia do pulmão esquerdo com o diaphragma. Ambos os pulmões congestos na base. Rins. — Nao apresentao alteração apreciável ; ligeiro accu- mulo de gordura na cápsula supra-rênal. Craneo. — Ha alguma infiltração sub-arachnoidiana. A subs- tancia branca acha-se pallida e amollecida, As cavidades ventricu- lares apresentao um ligeiro derrame. -39 — Estudemos a steatose. Tendo já descripto, na primeira parte do noSso trabalho, e discutido a natureza da steatose, para terminar o que temos a dizer a esse respeito, transcreveremos aqui o artigo do conse- lheiro Torres Homem, publicado na Gazeta Medica Brazi- leira do anno passado; e depois apresentaremos uma observação tomada na enfermaria de clinicn no corrente anno. « Ha três annos que a minha attenção tem sido attrahida para alguns casos observados na enfermaria de clinica, em que os doentes, todos elles habituados ao abuzo das bebidas alcoólicas, apresentao um grupo variável de symptomas para os diversos »pparelhos orgânicos, sempre acompanhado de profunda adyna- mia, que não autorisa outro diagnostico, mesmo depois da au- tópsia, senão o de alcoolismo chronico. « O exame anatomo-pathologico n'esses casos, tanto o ma- croscópico, como o que é feito com o auxilio do microscópio, tem sempre revelado a existência de grande accumulo de gor- dura no tecido cellular subcutaneo e no que occupa a cavidade abdominal, bem como degenerescencia gordurosa do tecido do figado, dos rins e do coração. E' a este conjuncto de alterações anatômicas que o Dr. Perroud, medico do Hotel Dieu de Lyon, chama muito apropriadamente—Polysteatose visceral. « No corrente anno os aluirmos de clinica tiverão occasião de observar dous exemplos d'este typo pathologico complexo. O primeiro refere-se a um portuguez de 48 annos de edade, mora- dor em uma localidade muito pantanosa e devoto fervoroso de Baccho. « Entrou para o hospital extremamente anêmico e depaupe- rado, com anasarca e ascite. Não tinha albumina nas urinas, não tossia nem tinha dyspnéa. O seu coração, muito augmentado de volume, estava tão enfraquecido, que mal era percebido em seus batimentos pela auscultação; a apalpação da região precor- dial não apreciava o choque da ponta do órgão. A auscultação não revelava ruido algum anormal no centro cardíaco; de vez em quando o coração parava e tornava-se depois muito accelerado nos seus movimentos ; havia bulha de sopro nas artérias do pes- coço. O pulso era pequeno, miserável, irregular e muito depres- sivel. Os pulmões estavão edematosos em grande extensão; o doente tossia um pouco, porém não expectorava. « O figado estava extraordinariamente augmentado de vo- lume; chegava inferiormente ao nivel da cicatriz umbelical e attingia nos limites superiores o quinto espaço intercostal. A superciHe da glândula hepatica, na parte que excedia o bordo da costella. era lisa, uniforme, depressivel e indolente e cedia á compressão exercida pelos dedos exploradores. u Não havia ictericia. « O baço estava muito crescido. Ausência de dôr no epigastro, anorexia absoluta, sede, constipação de ventre. Duzentas a tre- — 40 — zentas grammas de urina nas 24 horas; esse liquido apreserl- tava-se descorado, com a densidade diminuída; não continha albumina, como já ficou dito. Preguiça intellectual, tendência ao sopor, constante somnolencia, indifferença para o mundo exte- rior e adynamia pronunciada completavão o quadro symptoma- tíco do doente de que se trata. «Pelo que fica exposto, claramente se vê que n'este caso havia, além da cachexia paludosa, uma paresia do coração ligada a uma steatose, sem que phenomeno algum nos auctorisasse a crer na existência de uma lesão cardíaca oro-valvular. Havia também uma alteração profunda do figado, sem ictericia, que não podia ser referida senão a uma degenerescencia gordurosa do paren- chyma do órgão, attendendo se sobretudo aos resultados da apalpação, á depressibilidade do tecido hepatico. Havia também indubitavelmente insufficiencia renal; os rins funccionavão de um modo muito incompleto, o que era demonstrado, não só pela quantidade de urina secretada em 24 horas, cinco vezes menor do que a normal, mas também pela qualidade d^ssa urina, pobre de princípios extractivos, privada em grande parte dos seus attri- butos de secreção depuradora. Havia finalmente uma depressão muito accentuada na excitabilidade dos centros nervosos, que não se explicava satisfactoriamente pela influencia exclusiva da alteração da crase do sangue que caracterisa a cachexia palustre, havendo mesmo concomitância de hypoalbuminose. «Não permittindo o bom senso clinico que eu admittisse n'esse caso tantas moléstias distinctas, quantos erão os órgãos compro- mettidos em sua integridade anatomo-physiologica, e tendo-se submettido o doente por longo tempo á influencia de duas causas poderosas, que actuão lentamente sobre o organismo, alterando de um modo radical a sua nutrição — o abuso do álcool e a in- fecçao paludosa fiz o diagnostico de cachexia alcoólica e impa- ludismo ; reconhecendo todavia que as lesões visceraes represen- tão um papel preponderante na maior parte dos symptomas observados. « Depois de ter estado 8 dias no hospital o doente falleceu. « Vejamos o que revelou a autópsia. « Degenerescencia gordurosa no coração ; nota-se não só uma espessa camada de gordura sobre este órgão, como também uma alteração de suas fibras musculares, que se apresentao pallidas, amarelladas e pouco resistentes. «Ha placas de atheroma na membrana interna da aorta em toda a sua extensão. As válvulas e os orifícios cardíacos estão intactos. Algum derramamento liquido hydropico no interior do peri- cardio, na proporção de 100 gr., bem como nas pleuras na proporção de 5oo na direita e de 200 na esquerda. Edema na base de ambos os pulmões. Derramamento ascitico moderado. Degenerescencia gordurosa muito adiantada em todo o figado : este órgão muito augmentado de volume, apresenta-se — 41 - com uma côr amarella em toda a sua superfície externa, mais accentuada no lobo esquerdo, onde essa côr assemelha-se á do rhuibarbo. « Cortando o parenchyma hepatico, nota-se que as superfícies de secção, amarelladas e sêccas, cobrem-se, depois de alguns mo- mentos, de uma camada de um liquido unctuoso, com todos os caracteres physicos dos óleos. Os epiplons estão revestidos de um cochim de gordura de dous centímetros de espessu- ra ; entre as duas folhas do mesenterio existe uma camada uni- forme de tecido adiposo, muito espessa. A não ser algum amolle- cimento da mucosa do estômago, nada de notável se observa no tubo gastro-intestinal. Baço augmentado de volume e amol- lecido. Rins volumosos, muito pallidos e anêmicos. A substancia cortical apresenta-se com uma côr amarellada e aspecto oleoso ; o tecido cellular, que envolve estas duas glândulas, encerra uma espessa camada de gordura. Cérebro muito descorado, com a substancia branca levemente amollecida e edematosa ; algum derramamento nos ventriculos lateraes. « N^ste caso, os diversos symptomas revelados durante a vida pelos apparelnos orgânicos estavão em perfeita harmonia com as lesões visceraes encontradas no cadáver. Não havia um órgão em perfeito estado physiologico, senão o tubo intestinal, o qual appa- rentemente parecia intacto. A medulla, que não foi examinada, provavelmente devia estar como o cérebro, anêmica e fora das condições de poder funecionar normalmente, quando o indivíduo estava vivo. Durante todo o tempo que esteve na enfermaria não sahiu do leito ; difficilmente procurava a caixa de retrete que estava a seu lado, para urinar ou evacuar ; nos quatro dias que precederão á morte nem isso mesmo fazia. « Pondo de parte a anemia profunda que se encontrou em todas as visceras e o atheroma da aorta, as outras alterações reveladas pela necropsia pertencem á steatose. » No outro caso, tratava-se evidentemente de uma polysteatose, porém a moléstia que levou o indivíduo ao hospital era differente: tratava-se de uma gastro-enterite. Porisso não transcrevemos a segunda parte d'esse artigo. OBSERVAÇÃO II André Antônio dos Santos, branco, livre, portuguez, 50 annos de edade, solteiro, entrou a 3 de Maio de 1883 para a enfermaira de clinica e foi oecupar o leito n. 5. N. 63 6 Anamnese.—O doente refere que, ha 3 dias, resfriou-se conservando as roupas molhadas no corpo, sentiu febre e teve vômitos ; que abusa das bebidas alcoólicas, que já teve cancro e que nunca soffreu rheumatismo. Estado actual.—Habito interno : Trata-se de um indivíduo ap- parentemente robusto, musculoso, que apresenta o facies enlaminé, próprio ao alcoolista. Eesponde com morosidade ás perguntas que lhe sao dirigidas ; aparvalhado, elle apresenta tremor nos membros superiores, tremor que se denuncia quando o doente estende as mãos. Apparelho digestivo. —Lingua coberta de saburra esbranquiça- da; ventre tympanico, não ha diarrhea nem constipaçao de ventre; falta de appetite, vômitos de manha, que o doente diz ter de ha muito tempo. — Figado. Augmentado de volume, excede muito o rebordo costal, depressivel e é ligeiramente doloroso á pressão. O doente nao apresenta ictericia.—Baço. Augmentado de volume. Apparelho circulatório. — A área precordial nao está augmen- tada ; batimentos enfraquecidos, difiicilmente percebidos ; bulha de percussão clara na aorta thoraxica. Atheromasia generalisada. O doente tem 80 pulsações por minuto. Apparelho respiratório.— Obscuridade na base de ambos os pul- mões e estertores de congestão. Temperatura da manha: 38,5, tarde 39°. O doente declara que do meio dia até á noite tem febre; accésso franco, calafrios, calor e suor. As urinas não contêm albumina. Diagnostico. —Febre intermittente palustre. Alcoolismo chro- nico. Steatose. Marcha e tratamento.—1 gr. de bromhydrato de quinina em in- jecções hypodermicas e 2 gr. de sulfato de quinina em água acidu- lada com ácido sulphurico. Para o doente tomar em 24 horas. Dias 4 e 5 : mesmo tratamento, mais uma poção excitante e 4 injecções hypodermicas de ether. O doente apresenta-se adynamico, aparvalhado, nao compre- hende as perguntas que lhe sao dirigidas ; temperatura 39, extre- midades frias, coração muito enfraquecido, pulso filiforme. Apezar d'essa medicação enérgica, o doente falleceu ás 2 horas da tarde do dia 5. Autópsia. — Praticada ás 11 horas do dia 6. Aspecto exterior. —Nada ha de notável, excepto signaes de ventosa nas partes lateral e anterior da metade direita do thorax. - 43 — Apparelho digestivo e seus annexos. —Catarrho no estômago, ecchymoses e hyperemia nao só no estômago, como no duodeno.— Figado. Muito augmentado de volume. No lobo direito focos de congestão e grande quantidade de gordura. Pela secção e pres- são transsuda um liquido com os caracteres physicos dos óleos.— Baço. Augmentado de volume, diffluente e despedaeando-se á menor pressão. Apparelho circulatório. — Deposito considerável de gordura, nao só nas paredes do coração, como também entre as fibras que se despedaçao por simples pressão. Placas atheromatosas na aorta e dilataçao. Pulmões. — Congestos. Rins. — Volumosos, muito pallidos e anêmicos. A substancia cortical apresenta-se com uma côr amarellada e aspecto oleoso. O tecido cellular que envolve esta glândula encerra uma espessa camada de gordura. A parede anterior do abdômen apresenta grande quantidade de tecido cellulo-adiposo. Os epiploons estão revestidos de um co- chim de gordura de grande espessura ; entre as duas folhas do mesenterio existe uma camada uniforme e muito espessa de tecido adiposo. Este caso serve para mostrar não só as lesões anatômicas da steatose, como também a gravidade que tem as moléstias que se desenvolvem nos indivíduos que soffrem de alcoolismo chronico. Acreditamos que, se não fossem as lesões do alcoolismo chronico, a febre intermittente, moléstia benigna na maioria dos casos, teria terminado pela cura. O que se deu no nosso doente, dá-se com qualquer outro estado pathologico, agudo ou chronico, por mais benigno que pareça ser, como faz notar o conselheiro Torres Homem, desde que sobrevenha em um individuo que tenha polysteatose visceral. São as alterações múltiplas da polysteatose que dao á molés- tia intercurrente um apparato symptomatíco especial, dando- lhe desde o começo um cunho de gravidade e concorrendo para que ella termine de modo fatal. No artigo já citado, o Dr. Mathieu procura tornar saliente o papel do figado na asystolia dos alcoólicos. Não é um estudo novo; para elle chamarão a attenção Po- tain, Debove, Letulle, Laurent e Peter, quando diz : «A en- darterite e a sclerose que acompanhão a nephrite intersti- cial e a hypertrophia do coração resultão muitas vezes de uma sorte de velhice; ellas são muitas vezes a conseqüência do alcoolismo chronico. » - 44 Não admira, pois, qne esta modificação e a degenerescencia do coração se revelem por symptomas de asystolía : o coração não pode fazer circular nos vasos um sangue sem duvida mo- dificado. Elle cança-se, e apparecem então, dyspnéa, cyanose pequenhez e irregularidade do pulso. N'estes casos, desde o co- meço dos accidentes (Mathieu) o figado apresenta-se augmentado de volume e doloroso á pressão. Mais tarde a lesão caracterisa-se. Em muitos casos observados por Mathieu, elle teve occasião de ver a asystolía começar por uma congestão de figado, sem que houvesse lesão oro-valvular. O que nos parece (Mathieu) é que as lesões hepaticas impri- mem uma certa irregularidade ao funccionalismo do coração, concorrendo para a ruptura do equilíbrio em suas cavidades, e, por conseguinte, para a asystolía. E isto deve-se dar nos alcoólicos, tanto mais quanto a maior parte d'entre elles apresenta lesões mais ou menos adiantadas do myocardio. Depois de ter passado em resenha os trabalhos escriptos até agora em relação a esse assumpto, e depois de ter apresentado diversas observações de alcoólicos, nos quaes, sem que houvesse lesão oro-valvular, elle vio a asystolía começar por uma congestão do figado, Mathieu chega ás seguintes conclusões : i.° Os alcoólicos em virtude da decadência nutritiva de seus órgãos e, em particular, do systema cardio vascular, estão sujeitos á asystolía ; 2.0 As lesões do figado, as primeiras em data, influem muito no aparecimento e na marcha da asystolía. Esta é muitas vezes precedida d'um poussée congestivo do figado. 3.° As manifestações cerebraes são freqüentes n'essas condi- ções; ás vezes dependem do alcoolismo, outras vezes podem ser attribuidas á ictericia grave ou á uremia. As outras glândulas annexas não offerecem alterações tão bem determinadas. O baço é ora augmentado de volume, molle e friavel; ora diminuído, endurecido com espessamento da cápsula. O pancreas tem sido encontrado augmentado de volume e in- filtrado de gordura. As glândulas parotidas forão encontradas molles e amarelladas. Peritonio, mesenterio e epiploons.— São de duas ordens as alterações determinadas n 'essa serosa plegmasias adhesivas e depósitos gordurosos. Os auctores assignalão, entre as primei- ras, desde o simples espessamento da serosa até as adherencias cellulosas as mais extensas. Entre as lesões chronicas, ha uma, a peritonite granulosa, que parece se localisar de preferencia ao nível do mesenterio, muito distincta da tuberculose peritoneal. A peritonite chronica neo-membranosa explica a presença das hemorrhagias em alguns casos de alcoolismo. A peritonite aguda, lesão rara, pode ser expontânea ou pro- — 45 - vocada por um traumatismo leve, como a paracentese. Esta peritonite aguda é preparada por uma irritação chronica do peri- toneo que se desenvolve surdamente. A segunda ordem de alterações freqüentes nas serosas do abdômen é a sobrecarga de gordura. A sobrecarga gordurosa dos epiploons e do mesenterio coin- cidindo com as diversas lesões visceraes, basta para caracterisar o alcoolismo. O mesenterio adquire muitas vezes a espessura de muitos centímetros, e por vezes a gordura é tão abundante, que elle oc- cupa uma grande parte da cavidade abdominal. Ha também uma grande quantidade de gordura debaixo do peritoneo, principalmente na região posterior, adiante dos ór- gãos de secreção urinaria, e na região anterior por trás da parede abdominal. A pouca freqüência cTesses depósitos em qualquer outra condição que não o alcoolismo, e a coexistência das altera- ções visceraes são de grande valor para o reconhecimento do alcoolismo post mortem. Apparelho respiratório. —E' pelo apparelho respiratório que elimina-se grande parte do álcool, e essa eliminação não é tolerada impunemente. E' conhecida de todos a alteração particular da vóz no dia immediato ao das orgias, ou dos excessos ; vóz rouca, mais ou menos rude ou carvernosa, aphonia e mesmo gagueira podem ser observadas. Esta modificação da vóz depende da hyperemia do larynge que torna-se chronica com a continuação dos excessos. Tosse, muitas vezes quintosa, com expectoração de escarros brancos, vis- cosos, atormenta o doente ao levantar-se. O exame, n'esses casos, pelo laryngoscopío revela hyperemia chronica da mucosa do larynge e espessamento ; a epiglote apresenta maior vasculari- sação; as saliências das cartilagens de Santorini são mais volu- mosas e formão um burrelete único; as cordas vocaes superiores e a mucosa arytenoidea são tumefactas e injectadas, cobertas de um muco espesso, pouco abundante, e, só mais tarde, a hypere- mia propaga-se ás cordas vocaes inferiores e á trachéa. Essa hyperemia chronica propagando-se aos bronchios, ha hyperse- creção catarrhal, a mucosa torna-se acinzentada e a persistência d'esse estado traz em conseqüência dilatação dos bronchios e emphysema pulmonar. Este estado constitue a laryngo-bron- chite chronica commum nos bebedores. Marcet assignala como freqüente nos individuos que abusão das bebidas alcoólicas uma « dyspnéa, particular, momentânea, acompanhada de suffocação. » O papel que representa o alcoolismo no desenvolvimento das affecções pulmonares nao está ainda bem determinado. — 46 — O que parece provado é que os adoradores de Baccho são mais sujeitos do que os sóbrios ás diversas affecções pulmonares. A congestão pulmonar é freqüente, é o primeiro gráo de todos os estados. Do mesmo modo' que, nos estados adynamicos, a sua sede de predilecção é a base e o bordo posterior dos pulmões. N'esses casos o pulmão apresenta uma côr escura ; é molle, flacido, pouco arejado, mas ainda insufflavel. A côr escura des- apparece pela lavagem demorada. Os vasos alterados rompem-se muitas vezes e ha infiltração hemorrhagica. N'esses casos a pleura apresenta manchas ecchymoticas. A congestão é commummente observada nos individuos que succumbem de accidentes agudos—como— delirium tre- mens.— Symptomaticamente ella é caracterisada por dyspnéa com sensação de constricção thoraxica, estertores crepitantes e subcrepitantes disseminados, obscuridade na base dos pulmões, tosse com expectoração mucosa e estrias de sangue. A pneumonia que se desenvolve no decurso do alcoolismo tem alguma cousa de particular. Ora é a pneumonia de ápice, de miséria ; ora é a pneumonia franca com phenomenos adynamicos ou ataxo-adynamicos, ou que termina-se pela suppuração, resis- tindo á therapeutica a mais racional. A pneumonia pôde também passar ao estado chronico; a resolução não se faz, ha endureci- mento e sclerose do pulmão. Nem todas as pneumonias desenvolvidas nos alcoólicos são effeito directo do álcool; mas não se pôde contestar a influen- cia dos excessos alcoólicos sobre o desenvolvimento marcha e terminação da pneumonia. Todos os auctores concordão que o alcoolismo aggrava sempre o prognostico da pneumonia, exigindo desde o começo uma the- rapeutica especial. O professor Lanceraux, depois de citar as observações de Royer-Collard de pneumonias com suppuração abundante, desen- volvidas no decurso do alcoolismo chronico ; observações de Chomel de pneumonias consecutivas á excessos alcoólicos ; obser- vações de Grisolle de pneumonias em individuos depois dos ex- cessos alcoólicos, em condições de não se poder accusar o frio de representar papel etiologico na producção das mesmas, e de outros auctores, conclue que a pneumonia é freqüente não só na intoxicação alcoólica aguda, mas também no decurso do alcoo- lismo chronico, onde offerece caracteres especiaes, como : quasi sempre suppura, é acompanhada de agitação e dilirio, pheno- menos typhoides, ataxo-adynamicos e do quadro symptoma- tico do delirium tremens.—Ainda mais continua elle, a pneumo- nia é algumas vezes uma manifestação directa do alcoolismo ; porém a pequena extensão que ella occupa em geral, tornando difficilmente appreciaveis os seus symptomas physicos, os sympto- mas particulares que a acompanhao dão-lhe uma marcha espe- 47 — ciai de maneira a constituir uma variedade distincta, ordinaria- mente latente, em relação a alguns de seus effeitos, e, o que, diz elle, parece legitimar a existência d^ssa fôrma pathologica, é o seu apparecimento na estação quente, época em que a pneu- monia é rara. Em outros casos a pneumonia não é directamente produzida pelas bebidas alcoólicas, porém estas imprimem-lhe uma physionomia particular que deve guiar não só a therapeutica como também o prognostico. A resolução lenta e incompleta da pneumonia pôde dar em resultado a pneumonia chronica — endurecimento do pulmão — facto observado por Magnus Huss. E' um facto que exige novas observações, embora verificado por um auctor de nota, e que parece theoricamente admissível (Lanceraux) visto a analogia que esta alteração apresenta com a sclerose hepatica. OBSERVAÇÃO III Justinianno, escravo, preto, africano, morador á rua Fresca, 60 annos de edade, solteiro, trabalhador, entrou para a enfermaria de clinica medica em 31 de Julho de 1883 e foi occupar o leito n. 7. Anamnese. — Refere que está doente ha 8 dias; que resfriou-se, teve calafrio único e prolongado, pontada e febre; que abusa das bebidas alcoólicas; que já teve cancros; que nunca teve rheuma- tismo. Estado actual. — Habito externo. — Trata-se de um individuo extremamente depauperado. Na sua face nota-se o aspecto unctuo- so, ao qual o illustrado professor Silva dava grande valor e para o qual o Conselheiro Torres Homem chama sempre a attenção de seus alumnos, pelo valor que tem no apparecimento da pneumonia. Nao tem edema nem ascite. Apparelho digestivo e seus annexos. — A lingua apresenta-se coberta de uma soburra amarellada; o doente nao tem appetite; nao tem vômitos; nao tem diarrhéa nem constipaçao de ventre. O figado bastante augmentado de volume, excede o rebordo da ultima falsa costella, e é doloroso á apalpação. O baço pouco augmentado de volume. Apparelho circulatório. — Acceleraçao dos batimentos cardíacos Pulso pequeno e fraco, dando 98 pulsações por minuto. Temperatura. — Manhã — 38,4. — Tarde 39°. — 4H — Apparelho respiratório. — A applicaçao da mão revela au- gmento das vibrações thoraxícas em quasi todo pulmão direito. A percussão, uma obscuridade muito pronunciada. Pela escuta, so- pro tubario em toda a parte posterior e na parte anterior attrito e alguns estertores subcrepitantes. No pulmão esquerdo, respiração supplementar e estertores subcrepitantes. Tosse freqüente e sêcca. Dyspnéa. Nao ha albumina nas urinas. Grande diminuição dos chloru- retos e augmento dos phosphatos. Diagnostico. — Pneumonia. Marcha e tratamento. — Poção diaphoretica. Io de Agosto : Infusão de ipeca........... 180,0 Tartaro emetico............. 0,05 1 calix pequeno de 1/4 em 1/4 de hora até o effeito Temperatura. — Manha 38,2 ; tarde 39,2. Dia 2: Mesmo estado. A adynamia e a prostração tornão-se nunciadas, e apparece delírio. Colomehnos................ 1 gr. Ipeca em pó................. 3 gr. D. em 9 papeis. 1 de hora em hora. Vesicatorio na parte posterior direita do thorax. Temperatura — Manha 38,4 ; tarde 39,2. Dia 3 : O estado do doente nao apresenta melhoras. Continua a adynamia, a prostração e dilirio á noite. Poção de Todd. Uma colher de sopa de hora em hora. Dia 4 . O estado do doente aggrava-se. Elle apresenta-se algido, com o pulso filiforme, estertor troeheal e morre ás 11 horas da manha. Apezar dos nossos esforços, nao conseguimos o cadáver para a autópsia por que o doente era escravo. De 9 pneumonicos que tivemos durante o corrente anno na enfermaria, só n'este a terminação foi fatal, e elle confessou que abusava das bebidas alcoólicas, o que determinou a suppuração da pneumonia. A pneumonia é em geral benigna, quando medicada tende á resolução, e n'este caso, apezar da medicação enérgica, á suppu- ração foi inevitável. Os pathologistas não estão de accôrdo em relação ao papel vomitivo. mais pro- - 4* — que representa o alcoolismo chronico na gênese da phymatose pulmonar. Para uns, o abuso das bebidas alcoólicas concorre não so para a producção da pneumophymia, como também apressa a sua marcha e determina uma fôrma especial de tuberculose pul- monar ; para outros, o alcoolismo actúa de um modo favorável retardando e impedindo mesmo a marcha da tuberculose. Jackson e Peters affirmão que a tuberculose é muito rara nos individuos que abusão do álcool. Assim, em 135 beberrÕes Jackson só encontrou 5 tuberculosos. Em 70 individuos encontrados na rua mortos em conseqüência de alcoolismo agudo, em nenhum d'elles Peters encontrou tuberculos amollecidos, e somente alguns tuberculos cretáceos. Magnus Huss diz que é muito raro encontrar-se tuberculose em alcoolistas, e affirma ter encontrado em diversas autópsias tuber- culos cretáceos, indicio de que a tuberculose existio em época anterior. Bell é de opinião contraria ; o abuso do álcool, diz elle, longe de impedir a tuberculose, ao contrario transforma a predisposição em moléstia activa. V/alshe faz notar que a questão é de solução difficil, e que é preciso não confundir os homens fortes que abusão do álcool com homens fracos e predispostos a phymatose ; os vendedores de aguardente, em geral, não são tuberculosos, accrescenta elle. Tripier é da mesma opinião, em numerosas necropsias de indivi- duos queabusavão do álcool, nunca encontrou tuberculos. Fournier, recordando a opinião de Bell, diz que numerosas observações, consultadas por elle, provão que o alcoolismo exerce uma influencia desastrosa sobre a marcha da tuberculose, e que esta affecta muitas vezes nos bebedores a fôrma galopante ; con- serva-se, porém, silencioso em relação á opinião de Bell, quando diz que «o alcoolismo favorece o desenvolvimento da tuberculose.» Peter diz que o álcool não produz tuberculose, mas que o alcoolismo trazendo a degradação do organismo pôde produzil-a. Trousseau diz que a sua observação está de accôrdo com a de Bell, e que a phymatose pulmonar pôde affectar a fôrma galopante ou chronica. Para Lanceraux o abuso do álcool provoca o desenvolvimento, ora da tuberculose galopante, isto é, d'aquella que chega em um curto espaço de tempo ao periodo de ulceração, ora da tuber- culose miliar aguda, mesmo generalisada. Leudet, depois de ter comparado a edade em que a mortalidade pela tuberculose é maior, as differenças que existem entre o thea- tro de sua observação (Rouen) e o da observação de Lanceraux, depois de ter lembrado a lei de Farr (que a freqüência e a rapidez da tuberculose estão na razão directa da densidade da população por unidade de superfície métrica), chega ás seguintes conclusões : i.° O abuso dos alcoólicos não provoca o desenvolvimento da tuberculose pulmonar. N. ü3 7 - 50 — 2.° A phthisica é bastante rara nos alcoólicos. 3.° A tuberculose miliar não é mais freqüente nos alcoólicos do que nos individuos sóbrios. 4.0 Nos alcoólicos a marcha da tuberculose não é rápida, ella pôde ser latente, e é mesmo mais commum observar-se uma mar- cha lenta do que uma evolução rápida da moléstia. Finalmente, o alcoolismo augmenta nos tuberculosos a fre- qüência dos accidentes intestinaes, das hemorrhagias e das compli- cações para o lado do peiitoneo. A freqüência cTesses accidentes encontra razão de ser nas lesões visceraes. O professor Torres Homem, depois de ter analysado as opi- niões dos diversos auctores em relação á questão que nos occupa, e de ter mostrado o que a sua observação tem verificado no Rio de Janeiro, conclue do seguinte modo : « Para mim está pois demonstrado que o abuso do álcool pre- vine até certo ponto o desenvolvimento da tuberculose : digo até certo ponto, porque acredito que quando o alcoolismo chega ao extremo de produzir uma verdadeira cachexia alcoólica. com notável alteração da crase do sangue, lesões profundas dos órgãos hematopoieticos e vicio radical da nutrição, a predisposição para a phthisica se torna patente. A divergência que se nota na maneira de pensar dos auctores sobre essa questão, provém, se- gundo penso, das condições differentes em que se acharão quanto a observação dos factos: uns observarão os beberrÕes ainda fortes e bem nutridos, outros os encontrarão depauperados e ca- cheticos. Ora, como não é freqüente ver-se um individuo que abusa das bebidas alcoólicas chegar ao periodo de cachexia do alcoolismo, visto como antes d este periodo elle morre victima de qualquer das muitas lesões visceraes que a sua fatal paixão cos- tuma produzir, não admira que o numero dos que julgão o vicio da embriaguez um obstáculo ao apparecimento da phthisica, seja muito maior do que o numero dos que pensão em sentido con- trario.» (Torres-Homem, clinica medica). Os auctores divergem portanto relativamente a influencia que exerce o alcoolismo sobre a gênese e marcha da tuberculose. E', pois, como dizem Herard e Cornil, « uma questão que ainda não está elucidada. » O que podemos verificar foi o seguinte : Em numero bastante avultado de alcoólicos, cujas autópsias praticamos, não tivemos occasião de observar um só tuberculoso ; e todos os tuberculosos, ao interrogatório minucioso que fizemos, responderão sempre que não usavão nem abusavão das bebidas alcoólicas, e em todos elles faltou a triade symptomatica do alcoolismo (pituita, tremor e insomnia), e todos os phenomenos nervosos. O alcoolismo tem influencia sobre o apparecimento da gan- grena pulmonar ? Magnus Huss observou casos de gangrena pulmonar que elle attribuio aos excessos alcoólicos. — 51 — As moléstias que são acompanhadas de alteração pronunciada da crase do sangue são causas muitas vezes da gangrena pul- monar ; ora, no alcoolismo ha alteração do sangue, portanto elle pôde concorrer para a producção d^ssa entidade mórbida. O professor Torres-Homem cita 10 casos de gangrena pul- monar observados no Rio de Janeiro; só em dous d'esses casos os individuos erão sóbrios, nos outros havia alcoolismo, e elle acre- dita que o abuso das bebidas alcoólicas representa papel impor- tante na etiologia dVssa entidade mórbida, e que o alcoo- lismo é uma condição etiologica de grande valor, quando a gangrena bronchica (gangrena curavel de Laségue) se manifesta no decurso de uma bronchite ainda recente. Traube, Briquet, Layock, Laségue e Empis, citados pelo illus- trado professor brasileiro, fallão do abuso do álcool em todas as suaç observações e dão-lhe muita importância, como causa pre- disponente de gangrena pulmonar. Durante o corrente anno tivemos na enfermaria de clinica dous casos de gangrena bronchica ''gangrena curavel do Sr. Laségue). Em ambos os casos os individuos davão-se ao abuso das bebidas alcoólicas. Em um d'elles a gangrena tornou-se profunda, invadio o pulmão, limitou-se, houve eliminação da parte gangrenada e fortes hemoptyses, que determinarão a morte. A necropsia re- velou a existência de cavernas, cheias de um liquido extrema- mente fétido, e as lesões da plysteatose visceral. No outro caso tratava-se de um indivíduo, que occupou o leito n. i, de propor- ções athleticas, em quem uma bronchite recente reveste-se dos caracteres de bronchite fétida ; depois de um tratamento apro- priado o doente conseguio restabelecer-se. Apparelho circulatório.—O abuso das bebidas alcoólicas de- termina alterações para o systema venoso, para o órgão central da circulação e para o systema arterial. Absorvido pelo systema da veia porta o álcool determina a pylephlebite membranosa. Os factos d1esta moléstia são pouco numerosos, visto a pouca freqüência das affecções da veia porta, comtudo não permittem (Lanceraux) a menor duvida em relação a união causai entre o abuso das bebidas espirituosas e a pyle- phlebite adhesiva. Em sete casos, citados por Lanceraux, seis erão beberrÕes de profissão. A relação de causa e effeito parece evidente, tanto mais quanto não havia outra causa que podesse explicar o desenvolvimento d^ssa affecção, que se apresentou com caracteres symptomaucos muito análogos, sinão idênticos. Em todos esses casos havia, com effeito, nas partes alteradas mais próximas do centro circulatório, neoplasmas membranosos adherentes á parede venosa espessada, além dos coágulos negros, encontrados no interior da veia porta, de seos ramos ou mesmo das veias super-hepaticas. — 52 — Em um caso Lanceraux verificou que as cordas pseudomem- branosas erão constituídas por um trama de substancia con- junctiva, e no meio d'essa substancia existião granulos de hema- tina ou mesmo cristaes de hematoidina. Ascite abundante, de marcha rápida, recalcamento do dia- phragma, enorme hypertrophia do baço, taes erão os symptomas principaes. O appetite era nullo e a digestão difficil; em alguns casos houve diarrhéa biliosa e hemorrhagias do tubo digestivo. Do mesmo modo que na cirrhose a magresa é excessiva. A marcha da pylephlebite é rápida, sua duração depende do gráo de obliteração da veia porta e da maior ou menor dificuldade no desenvolv mento de uma circulação collateral. O melhor signal diagnostico entre a pylephlebite e a cir- rhose hepatica é a ictericia que tem sido encontrada na maior parte dos casos da primeira. A inflammação adhesiva tem sido encontrada também nas veias cava e iliaca interna (Budd, Buman, Frerichs). A phlebarterite, que até então tinha passado desapercebida, foi observada pela primeira vez por Lanceraux. Dos factos observados elle faz a seguinte descripção : « E' anatomicamente caracterisada pela presença de pro- ducções membranosas no interior do vaso, as quaes forrão uma maior ou menor extensão da parede e formão pontes ou bridas no interior do seu canal; um trama fibroso, onde se encontra cris- taes de hematina, depositados nos espaços fusiformes, tal é a com posição d'esses depósitos.» Essas producções, como se verificou em um caso, podem as- sestar-se entre a túnica interna e media; adeante d'ellas encon- trão-se coágulos fibrinosos, resistentes, negros ou descorados, mais ou menos alongados e volumosos, que obturão um ou muitos dos principaes ramos da artéria pulmonar. Os symptomas principaes são : Dyspnéa, que lentamente progressiva, termina por adquirir uma intensidade excessiva, contrastando com a ausência de signaes indicativos de uma lesão seria do apparelho respiratório. Ora ha cyanose manifesta, ora pallidez. Edema dos membros in- feriores, e no emtanto o exame dos pulmões e do coração não nos indica a presença de alteração alguma, e é esta desharmonia justamente um signal diagnostico de grande valor. Pulso é fraco, pequeno, molle, irregular, os batimentos do coração são um pouco surdos, o segundo ruido da artéria pulmonar é reforçado, mas não ha ruido anormal. Nos pulmões só ha estertores so- noros ou humidos, indicativos de bronchite ou de edema. A du- ração depende do gráo de obstrucção do vaso. A terminação pode ser lenta, porém as mais das vezes é rápida, e a morte pode ser súbita As lesões do centro circulatório podem-se dar quer para o lado do pencardio, quer para o do myocardio, ou do endocardio. — 53 - A pericardite de forma adhesiva pôde reconhecer como causa o abuso das bebidas alcoólicas. As falsas membranas, desenvol- vidas na superfície do coração, dão logar a um ruido de attrito, que desapparece mais tarde quando ha adherencia intima do pericardio com o coração. Só os antecedentes e os phenomenos concomitantes poderão servir de meio diagnostico. No pericardio podem-se encontrar depósitos adipsos, mais communs na folha visceral. A excitação continua, que entretém no systema circulatório ô abuso das bebidas alcoólicas, é por si mesma uma causa predisponente á acção mórbida Esta predisposição é ainda augmentada pelo contacto do álcool com a membrana interna d^ste systema. (Carpenter, Fournier, Jaccoud.) No começo da intoxicação alcoólica, nota-se no apparelho circulatório somente perturbações funccionaes — palpitações do coração, congestões passageiras de diversos órgãos, dyspnéa, li- geira acceleração do pulso; mais tarde essas perturbações dyna- micas são substituídas por symptomas dependentes de alterações de tecidos do órgão. O coração se hypertrophia, primeira e natu- ral conseqüência de um estimulo prolongado; mais tarde torna-se gorduroso. A configuração externa do coração (Lanceraux) é então es- " pecial. A principio mais volumoso do que no estado normal, elle torna-se sobretudo notável pela sobrecarga gordurosa de sua base e de suas paredes. A gordura não forra somente as paredes, penetra entre as. fibras musculares, e, parcialmente, deter- mina por compressão a atrophia dos elementos essenciaes á con- tracção. Situada debaixo da-folha visceral do pericardio, a gor- dura assim accumulada chega a produzir, em certos pontos, ap- pendices ou pelotões mais ou menos volumosos, podendo per- turbar os movimentos cardíacos. O deposito gorduroso fôrma uma espécie de coroa na base do coração, e ao mesmo tempo cobre o bordo ou mesmo todo o ven- triculo direito. Observa-se muitas vezes placas leitosas de diver- sas edades nas partes ventriculares livres de gordura. Mais tarde o myocardio torna-se amarellado, molle, mais friavel ; as fibras musculares são alteradas tornando se granu- losas ou gordurosas e as estrias, pouco visíveis. Pouco a pouco o elemento conjunctivo exuberante pelo facto da congestão irrita- tiva termina por comprimir e destruir em parte o elemento mus- cular. O exame microscópico revela uma ligeira hyperplasia do tecido conjunctivo e estrias dilfusas das fibras musculares, que são granulosas e em cujos interstícios encontrão-se pequenas cellulas de gordura. As cavidades cardíacas estão dilatadas, sobretudo no coração esquerdo, cuja parede ventricular é espessada. Esta dilatação de- pende da insufficiencia de energia da fibra muscular para luctar — 51 - contra a tensão do sangue. O augmento de volume do coração depende ou do augmento de gordura ou da dilatação das cavida- des com ou sem hypertrophia das paredes. Na etiologia das lesões oro-valvulares o alcoolismo é mencio- nado ao lado da velhice, do rheumatismo, da gotta, etc. As desordens que a velhice produz no coração por um gasto natural e lento (Peter), o alcoolismo as produz por um gasto arti- ficial e rápido, e muito mais promptamente, não sendo, no fundo, senão uma velhice antecipada com o seu tremor, seos atheromas, e alteração do organismo. As lesões cardíacas não existem isoladas nos alcoólicos, encontra-se juntamente com ellas uma outra lesão de origem idêntica. Budd já havia notado a coexistência freqüente da cirrhose alcoólica e das lesões oro-valvulares. Será possível determinar qual a lesão oro-volvular mais fre- qüentemente produzida pelo álcool, ao menos entre nós? Chame- mos em nosso auxilio a observação e a auetoridade do professor Torres Homem. E' exacto que o álcool actúa como a velhice, mas, por causa de sua acção sobre o endarterio, parece que elle determina mais vezes as lesões do orifício aortico. Durante o corrente anno tivemos 16 casos de lesões oro-val- vulares na enfermaria de clinica ; desses, 7 erão do orifício aortico, 5 do orifício mitral e 4 de lesões complexas. O que se deu durante o corrente anno (Torres Homem) tem-se verificado também nos annos anteriores, e dá-se o mesmo na clinica civil. As lesões do orifício aortico, portanto, são mais freqüentes entre nós do que as do orifício mitral.justamente em opposição com o que se dá na Europa, como se vê pelos dados que se seguem : Cantani e Thomasi, em Nápoles, e Guido Baccelli, em Roma affirmão que a porcentagem das lesões cardiacas, por elles observ • das, é de 2 mitraes para 1 aortica ; Potain, em França, observoa- a proporção de 3 mitraes para 1 aortica ; Freidreich, Bamberger u Meynert, na AUemanha, observarão a proporção de 5 mitraes parp 1 aortica ; Botkin, na Rússia, observou a proporção de 16 mitraeq para 1 aortica. Segundo Botkin, o rheumatismo na Rússia é a moléstia mais commum depois da pneumonia, o que explica essa enorme desproporção que se dá entre nós, onde os casos de rheu- matismo articular agudo são relativamente; raros, e o alcoolismo freqüente em virtude do clima. Estabelecido este facto e sabendo nós que o rheumatismo tem predilecção para o endocardio, ao passo que o alcoolismo tem predilecção para o endarterio, temos a razão da maior fre- qüência (Torres Homem), na Europa, das lesões do orifício mi- tral cujas válvulas são formadas pelo endocardio ventricular na maior parte; e entre nós, das lesões do orifício aortico cujas válvulas são formadas na maior parte pelo endarterio. - 55 ^ A distincção entre insufficiencia aortica endocardica e endar- terica (Peter) vem ainda confirmara veracidade d'este asserto. Com effeito, o illustre cardio-pathologista. estabelecendo essa divisão, faz notar que a primeira, na maioria dos casos, reconhece como causa o rheumatismo articular agudo, a segunda, entre as diversas causas, o alcoolismo. As diversas lesões, que acabamos de passar rapidamente em vista, não apresentao symptomas que as distingão de lesões idênticas produzidas por outras causas. Assim, no diagnostico etiologico o clinico deve ter em vista o estado geral do doente, os seus antecedentes, os seus hábitos, e as variadas manifestações mórbidas que o alcoolismo determina para os outros órgãos. Já Magnus Huss havia notado, nos beberrões, na aorta thora- xica e nas artérias cerebraes a existência de placas atheromatosas disseminadas. As lezões da aorta são excessivamente freqüentes entre nós. A terça parte dos doentes (Torres Homem) que habitão as enfer- marias do Hospital, apresenta lesões da aorta, quer como mo- léstia principal attrahindo a nossa attenção, quer como moléstia secundaria, procurando o doente o Hospital por causa de outra moléstia. Ahi encontra-se desde a simples aspereza do endarterio até os atheromas, e todas as espécies de dilatação. Para o illustrado professor brazileiro, além das condições anatômicas do vaso, de sua disposição vleis das curvaturas e dos diâme- tros de Peter) é o alcoolismo que vem explicar a grande fre- qüência das lesões da aorta entre nós. As estatísticas de Lobstein e Rokitansky, que dão como mais freqüentemente lesadas a aorta ascendente e a crossa, vêm ainda confirmar a veracidade d'esta asserção. A acção do álcool sobre a aorta é complexa, ao mesmo tempo geral e local (Peter) directa e indirecta. Peter não nega a acção local, tópica e prejudicial do álcool, mas julga-a menos impor- tante; porque, diz elle, a passagem do sangue através da aorta é muito rápida, o contacto com as paredes do vaso pouco demo- rado, de maneira que o álcool contido no sangue não pode por si só produzir a lesão do endarterio. Cita em abono de sua opinião a pouca freqüência das lesões da artéria pulmonar, verifi- cada por todos, não diminuindo comtudo o valor dos factos cita- dos por Lanceraux. O alcoolismo, acerescenta elle, actúa sobre todo o organismo e diminue a vitalidade geral, collocando o indivíduo nas condições de velhice precoce com todas as suas conseqüências. As lesões determinadas pelo alcoolismo no systema cardio- vascular não se limitão ao coração e á aorta, invadem até o mais pequeno ramusculo arterial, constituindo a athcromasia ge- neralisada. Segundo as estatísticas de Rokitansky e Lobstein, de accôrdo com as leis de Peter. as artérias cerebraes (lei das curva- - oti - turas) são quasi sempre compromettídas, desde que a atheromasia se generalíse, resultando d'ahi a opportunídade mórbida para as lesões de nutrição do encephalo—hemorrhagias,amollecimento,etc. Finalmente, o abuso das bebidas alcoólicas determina e en- tretem em diversos órgãos um estado de congestão habitual. D'esta hyperemia chronica resultão muitas vezes dilataçÕes vascu- lares que dão ao alcoólico um aspecto particular, que mereceo o epitheto de enluminée. Alguns auctores assignalão nas mulheres alcoólicas a fre- qüência de perturbações menstruaes e metrorrhagias. Alterações do sangue.—Todos os auctores assignalão o estado gorduroso do sangue no alcoolismo agudo, verificado por Magnus Huss e outros observadores, á simples vista, nos individuos vic- timas da embriaguez. No alcoolismo chronico deve existir a mesma alteração (Lanceraux). Os glóbulos sangüíneos têm sido encontrados deformados e retrahidos. A diminuição da massa total do sangue, notada por alguns, a dos glóbulos vermelhos e o augmento dos glóbulos brancos exigem novas observações. A fluidez do sangue depois da morte, verificada em muitos casos, parece provar que ha diminuição da fibrina do sangue. Essas modificações—diminuição da massa, dos glóbulos ver- melhos, augmento dos glóbulos brancos, diminuição da fibrina —constituem um estado especial que Dumenil e Pouchet denomi- narão—anemia aguda dos bebedores. Tem-se observado também manchas ecchymoticas na super- fície da pelle (purpura), principalmente nos membros inferiores, indicando alteração da fibrina, e uma coloração bronzeada, enne- grecida da pelle (melanodermía), indicio de deposito de pig- mento. OBSERVAÇÃO IV No dia 19 de Maio de 1883 entrou para a enfermaria'de clinica medica o portnguez Albano Ferreira da Costa e Castro, branco, solteiro, caixeiro de venda, de 25 annos de edade, morador á rua do Conde d'Eu, indo occupar o leito n. 11. O doente está no hospital desde Io de Maio, na 4* enfermaria; d'ahi é transportado para a enfermaria de clinica. Anamnese. — 0 doente refere que, ha quatro annos, esteve no hospital para se tratar de dores que sentia no peito ; que tem tosse, que já teve cancros, mas não teve manchas pela pelle ; que nunca teve rheumatismo ; que é caixeiro de venda e que porisso viu-se obrigado a abusar das bebidas alcoólicas, porque assim exigia sua profissão, tomando grande quantidade de diversas bebidas para — 57 — dar exemplo aos freguezes. Queixa-se actualmente de cançaço, que data de bastante tempo, sempre que faz o menor exercício*. Tem tosse, oppressao, vertigens, palpitaçao de coração e dificuldade na respiração. Estada actual.— Habito externo: Trata-se de um indivíduo de- pauperado, pallido, que apresenta-se desconfiado, triste, inquieto, fazendo muita apprehensao sobre a moléstia e julgando-se irreme- diavelmente perdido, porisso incommoda-se muito com o seu estado. Nao tem engurgitamento ganglionar ; nao tem edema nem ascite. Queixa-se de dores retro-sternaes. Apparelho digestivo. — A lingua apresenta-se coberta de sabur- ra branca ; o doente nao tem appetite ; tem vômitos de manha ; nao tem diarrhéa nem constipaçao de ventre. O figado ligeira- mente augmentado de volume. O baço, normal. Apparelho circulatório.—A extensão da obscuridade da área precordial está augmentada. Auscultando-se o doente no maior repouso não se percebe ruido de sopro anormal no coração; porém fazendo-o andar ou levantar-se ás pressas do leito e auscultando-se o foco aortico, ouve-se um sopro brando, aspirativo, diastolico ; em toda a aorta thoraxica ouve-se uma bulha de percussão franca e uma bulha de sopro no primeiro tempo. Ha bulha de sopro no pescoço, mas nao ha o duplo sopro crural. O pulso é retroce- dente. Apparelho respiratório. — Phenomenos de bronchite. Systema nervoso. — O doente apresenta-se inquieto; tem insomnia rebelde, vertigens e tremor bastante pronunciado nos membros superiores. Diagnostico. — Aortite chronica com dilatação e insuficiência aortica, dependente do abuso das bebidas alcoólicas. Foi submettido ao uso do iodureto e bromureto de potássio. Tintura de iodo em embrocações na região sternal. O doente fez uso d'este tratamento até o dia 24, sem apresentar melhora alguma. Instando por sua alta e sendo-lhe negada fugiu da enfermaria. Eis um caso em que a influencia deletéria do alcoolismo, en- contrando um indivíduo predisposto, se fez sentir muito cedo, determinando lesões tão graves em um indivíduo moço, em que nenhuma outra causa parece ter influenciado. Systema nervoso. — As perturbações nervosas no alcoolismo chronico podem affectar, quer separada, quer simultaneamente, a sensibilidade, a motilidade e a intelligencia, Ora, são simples perturbações funccionaes, não persistentes, de curta duração e curaveis, desde que cesse o abuso das bebidas alcoólicas ; ora são perturbações graves, resultadas de lesões definitivas, que não cedem nem á abstinência, nem a tratamento algum, e que, pelo N. 6» 3 — 58 — contrario, seguindo a evoluçãodas lesões, chegão sempre á termi- nação fatal. Sensibilidade.—A sensibilidade pôde apresentar-se pervertida, exaltada ou enfraquecida. Quando ha perversão da sensibilidade o doente accusa sensa- ções anômalas, que, começando por pruridos, formigamentos principalmente nos membros superiores e inferiores, tornão-se mais tarde um dos maiores tormentos para o doente. A principio intermittentets, tornão-se mais tarde continuas, in- vadindo, além dos membros superiores e inferiores, outras partes do corpo, collocando o doente em grande agitação ; e degenerão muitas vezes em dores lancinantes, em espasmos fugazes seme- lhantes a commoções electricas, ou mesmo em verdadeira hype- resthesia. Muitas vezes o doente queixa-se de sensações bisarras, que constituem um de seus maiores tormentos, como a de piolhos espalhados pelo seu corpo, obrigando-o a despir-se, a sacudir suas vestes, afim de expellir esses pequenos animaes que elles julgão ver em todo seu corpo ; emfim, são variadas as sen- sações que os doentes accusão e que elles muitas vezes não sabem definir. Um doente, observado por Voisin, victima de excessos al- coólicos, queixava-se de que estava cheio de pulgas e piolhos, ao mesmo tempo que accusava dores fulgurantes nos membros in- feriores. Um doente, observado por Morei, ao mesmo tempo que sentia formigamentos nos membros inferiores, acompanhava com uma inquietação estúpida os movimentos de um animal que, subindo pelas pernas, cravava as garras nas suas carnes. Tal era a dor e a allucinação, que o doente comprimia forte- mente o escroto, suppondo ter prendido o animal. Um doente da enfermaria de clinica, que occupou o leito n. 20, queixava-se de prurido e formigamentos nos primeiros dias, após sua entrada ; alguns dias depois, queixava-se de que á noite não podia dormir por causa da grande bicharia (segundo sua expressão) que passeava pelo seu corpo. Mais tarde, como sóe acontecer, este symptoma tornou-se um tormento constante para o doente O Dr. Teixeira Brandão, que se encarregava d'essa enfermaria du- rante as ferias, observou esse doente. Todos os auctores assignalão a hyperesthesia no alcoolismo, e Magnus Huss admittia mesmo uma forma hyperesthesica. Comtudo a hyperesthesia não è muito commum e é sempre par- cial (Lanceraux, Jaccoud, Fournier, Voisin). As dores accusadas pelos doentes apresentao caracteres differentes; são muitas vezes gravativas, contusivas, algumas vezes terebrantes, lancinantes e acompanhadas de perturbações da motilidade—sobresaltos, con- vulsões, que concorrem para augmentar a angustia do doente, - 59 - A hyperesthesia coincide com formigamentos e anesthesia de outras regiões do corpo. Apresenta duas variedades : hyperesthe- sia cutânea, e n'esse caso a pelle é de tal sorte sensível que, ao me- nor contacto, pela mudança de posição, ás vezes espontaneamente, o doente sente dores atrozes e dá gritos; —hyperesthesia das partes profundas na qual as dores parecem assestar-se nos músculos. Sua sede de predilecção é nos membros inferiores. Ella pode apresentar todas as fôrmas imagináveis, e a interpretação delirante de que é o objecto, está em relação com a disposi- ção psychologica anormal do doente. E' assim que uns dizem que sentem moscas na superfície do corpo ou um véo que é applicado em seu rosto e que elle de- balde procura arrancar; outros queixão-se de que se queima ou se molha certas partes do seu corpo, e procurão debalde fugir a esses tormentos imaginários. Todas essas sensações se ligão ao mesmo gênero de lesão, á irritação dos apparelnos nervosos que presidem á sensibilidade geral. A hyperesthesia é um symptoma grave, quando persistente; mas pode desapparecer, qualquer que seja a gravidade e intensi- dade, sob a influencia de um regimen severo e privação dos alcoólicos, porém privação methodica. A exaltação da sensibilidade é observada no começo da in- toxicação. Em periodo mais adiantado apresenta-se uma alteração inversa—a anesthesia. O caracter mais freqüente do alcoolismo é a diminuição da sensibilidade (Voisin). O doente percebe uma diminuição de sen- sibilidade táctil, que começando nos artelhos, ganha a planta dos pés, a face dorsal, o tibia, o concavo poplitêo, onde geralmente se detém, podendo comtudo, n'esse gráo adiantado da intoxicação generalisar-se. Os mesmos phenomenos se observa no membro superior. Esta marcha symetrica ecentripeta é a mais commum; comtudo, ha um phenomeno singular observado e estudado por Magnan : é a perda da sensibilidade exactamente limitada a uma das meta- des lateraes do corpo. Em seu livro « Delírio alcoólico e seu tratamento » elle apresenta diversas observações de alcoolismo chronico com hemi- plegia e hemianesthesia da sensibilidade geral e dos sentidos especiaes. N'esses factos, com a perda da sensibilidade da metade lateral do corpo coincidia as da visão, da audição, da olfação, e da gustação, todas de um só lado. Em um dos factos de Magnan, o doente, que havia feito uso do absintho, tinha allucinações e Alu- sões, ao mesmo tempo que hemianesthesia, e, facto raro, perda completa da sensibilidade de uma das corneas, posto que se pu- desse excitar a secreção das lagrimas em ambos os olhos, tocando com o dedo somente no affectado. - 60 - A anesthesia, que no começo apresenta remissões e pode ser combatida, desde que chega a um certo gráo, torna-se per- sistente e não é susceptível de cura. Ella pode marchar pa- ralelamente á paresia muscular, concorrendo assim para ag- gravar rapidamente o estado do_ doente; porém, em geral, é posterior aos phenomenos de paresia muscular. A's perturbações da sensibilidade se ligão ainda os seguintes phenomenos : cephalalgia, insomnia, sonhos, etc A cephalalgia, acompanhada de vertigens, é um phenomeno commum e que atormenta o alcoólico. E' intensa e de sede variável. Os doentes accusão batimentos, pancadas no interior do craneo, ás vezes simples peso. A cepha- lalgia é tanto mais intensa, quanto mais consideráveis forão os excessos alcoólicos. Essa intensidade está também em relação com o uso de certas bebidas que alterão profundamente o sys- tema nervoso, como absintho, vinho branco, ou outras bebidas aromatisadas e fabricadas com alcools de má qualidade. A dôr se estende as mais das vezes a toda a^cabeça, limi- tando-se em certos casos á parte superior ou ás regiões occipital e frontal, principalmente entre os olhos. A insomnia é um dos phenomenos commummente observa- dos no alcoolismo chronico. Em geral o bebedor de profissão dorme mal e, quando elle chega a dormir, é despertado por pe- sadelos e sonhos de caracter penivel, que o fatigão de tal modo, quede manhã elle sente-se incapaz de mover-se do leito. Os órgãos dos sentidos apresentao alterações análogas. As funccões dos apparelnos sensoriaes, axaltadas a principio, so- ffrem mais tarde um enfraquecimento gradual. Têm sido melhor estudadas as perturbações da visão e da audição. No começo da intoxicação as perturbações sensoriaes asseme- lhão-se aos symptomas observados em muitas outras moléstias. A vista torna-se escura, os objectos parecem cercados de uma nuvem; o doente vê clarões phosphorescentes, objectos luminosos, cores variadas, sombras, objectos trêmulos, animaes asquerosos que augmentão, diminuem, approximão-se, ou affastão-se. Em alguns casos (Magnan) o doente vê a principio uma man- cha escura, negra, de contornos diffusos, apresentando depois li- mites distinctos com prolongamentos que transformão-se em patas, em uma cabeça, para formar um animal, um gato, um rato, etc. Um doente de delirium tremem, que esteve na enfermaria de clinica, chamava com insistência a attenção dos seus companhei ros para uma procissão de macacos que só elle via e que chegavão até ao seu leito. Um outro, que occupou o leito n. 4 da mesma enfermaria, procurava constantemente por meio de movimentos apressados e agitados, livrar-se de grande numero de laços, que lhe atiravam seus perseguidores para enforcal-o. — 61 — Um cocheiro, observado por Marcet, detinha bruscamente os seus animaes, dirigia-os, ora para um, ora para outro lado da rua, afim de evitar obstáculos que elle distinguia claramente e cuja existência imaginaria elle reconhecia mais tarde. Estas allucinações são muito communs durante a insomnia. As allucinações são phenomenos puramente psychicos, com- tudo somos obrigado a fallar d'ellas aqui, por causa da interven- ção directa dos sentidos. As allucinações apresentão-se com seus caracteres particu- lares os quaes, por sua constância ao menos relativa, e por seo valor diagnostico, devem ser tomados em conta. Esses caracteres são os seguintes : as allucinações são sempre de natureza pejiivel, de mobilidade extrema, e estão em relação com as occupações ordinárias do iniividuo, ou com as ideas dominan- tes do momento ou do meio em que elle vive Em periodo adian- tado da intoxicação tornão-se permanentes as perturbações da visão ; ha dilatação da pupilla e perda de sensibilidade á luz ; os objectos parecem trêmulos e cobertos de uma nuvem ; o doente não pôde ler. Esta amblyopia degenera muitas vezes em verda- deira amaurose. Produz-se então uma atrophia dos nervos ópticos, que marcha com rapidez e traz em pouco tempo cegueira com- pleta e absolutamente irremediável. (Fano, Fournier). Com a amblyopia apparece algumas veses uma perturbação na percepção das cores (dyschromatopsia) estudada por Galezo- wski. As perturbações da audição são menos communs do que as da visão, e consistem em zumbidos, sons variados, cantos, gritos, etc. Muitas vezes os doentes julgão-se interpellados, outras vezes recebem ordens, e, cumprindo-as, commettem crimes horríveis. Em periodo avançado ha enfraquecimento e pôde haver mesmo surdez. As perversões são menos communs e menos variadas para o paladar e o olfacto ; comtudo o alcoólico não escapa nem aos odores, nem aos sabores desagradáveis. Assim, sente algumas vezes cheiro de enxofre, de miterias putrefactas ; outras vezes, seus alimentos têm gosto de terra, contêm veneno, algumas vezes os doentes achão nos medicamentos o gosto de seus liquidos favoritos. As funccões genesicas. depois de um curto periodo de excita- ção, soffrem uma depressão pronunciada. Motilidade.—As perturbações da motilidade são representadas pelo tremor, sobresaltos tendinosos, convulsões, contracturas e finalmente pela paralysia ou antes paresia. O tremor é um dos primeiros phenomenos que se manifesta, e é também um dos phenomenos que persiste por mais tempo. Depende quasi sempre de uma irritação especial determinada nos centros nervosos ou nos nervos periphericos; differe do tremor que se observa na paralysia geral} que é determinado pelo enfra- - 62 — quecimento da actividade nervosa e insufficiencia da contracçao muscular. E' um dos phenomenos mais communs e precoces do alcoolismo chronico. E' sobretudo de manhã que se nota o tre- mor; assim, ao levantar-se, o doente sente difficuldade em ves- tir-se. (Marcet). A' principio dissipa-se depois da ingestão de um pouco do liquido predilecto. O tremor consiste na agitação convulsiva de certas partes do corpo, e, começando pelas mãos, invade depois os braços, as pernas, a lingua, os lábios ; quando invade assim di- versas partes do corpo, constitue (Trousseau) uma espécie de frêmito universal. Se se apoia a mao sobre a espadua do doente, este, por assim dizer, vibra. A principio, para observar o tremor, é preciso mandar o doente estender as mãos. Se o doente conser- var os dedos unidos uns aos outros, notar-se-á que o tremor de oscillaçÕes muito pouco extensas consiste em movimentos alterna- dos de flexão e extensão. Se os dedos, porém, estiverem separa- dos, observar-se-á que á estes movimentos reune-se um outro de lateralidade. Todos os movimentos executados pelo doente resen- tem-se da falta de precisão e coordenação ; assim, elle não pôde vestir-se, nem levar os alimentos á bocca ; vacilla quando anda ; a palavra torna-se tremula ; ás vezes apparece gagueira, e a sua palavra torna-se muitas vezes difficil de ser entendida, e a marcha impossível. No começo da intoxicação o tremor é passageiro, intermittente, e é susceptível de melhora; mais tarde, porém, torna-se continuo e irremediável. Na maioria dos casos o tremor alcoólico é constituído por uma serie de abalos rythmicos; em alguns casos, porém, as contracçÕes são mais extensas e simulão os espasmos da choréa, d'ahi o nome de choréa dos alcoólicos ; mas, ao contrario do que se dá com os movimentos choreicos, o somno não os interrompe. Km periodo avançado da intoxicação o tremor se complica de uma outra perturbação funccional da—paresia—enfraquecimento muscular. Esta paralysia apresenta alguns caracteres importantes : não é nunca completa, não é verdadeira paralysia. Bem que o doente não possa andar, nem apprehender os objectos, elle pôde comtu- do mover seus membros ; e se assim não acontece é que, apar da influencia alcoólica, ha uma outra lesão independente. ( La- ségue). Os phenomenos de paresia seguem uma marcha centripeta, caminhando da extremidade dos membros para o tronco. Final- mente, são os membros superiores de preferencia compromet- tidos. Não é symptoma constante e deixa de manifestar-se em indi- viduos que abusarão do álcool por muito tempo, apparecendo em outros que abusarão do álcool por muito menos tempo. Os membros superiores, caracter importante, são quasi sempre affe- ctados. A mão apprehende mal os objectos, deixando-os cahir muitas vezes, os dedos tornão-se inhabeis e sem movimentos. — 63 - A paresia, invadindo successivamente os ante-braços e braços; chega um momento em que o doente mal serve-se dos membros superiores, sendo necessário que outra pessoa leve-lhe a comida á bocca. A paresia invade os membros inferiores, a estação torna-se difficil, a marcha incerta, e, invadindo successivamente os mús- culos do dorso, o desgraçado paralytico vê-se obrigado a guardar o leito, incapaz de se manter em qualquer outra posição. A lin- gua, os intestinos, a bexiga e o esophago, apresentao alterações no seo funcionalismo. No começo da intoxicação, se o doente abs- tem se dos excessos alcoólicos, estes phenomenos podem atte- nuar-se muito e são mesmo susceptíveis de cura. Mas, não se deve esperar cura nem mesmo melhora, desde que a intoxicação chegou a um certo gráo e principalmente depois que os músculos visceraes forão invadidos. No começo as perturbações da motilidade se achão em relação com perturbações funccionaes do systema nervoso ; mais tarde, porém, uma outra causa explica essas alterações : é a alteração gordurosa dos músculos, acompanhada de atrophia. As outras perturbações funccionaes do systema muscular cons- tituídas por caimbras, sobresaltos tendinosos, convulsões são mais raras. As caimbras, convulsões dos músculos gastro-cnemios e dos flexores dos pés, acompanhão o tremor e apparecem prin- cipalmente durante a noite. As convulsões com rigidez consecutiva são raras ; são ora simples, ora choreicas ou epilépticas. A epilepsia alcoólica apparece depois dos phenomenos prece- - dentes ou depois de ataques reiterados de delirium tremem e é precedida de um estado vertiginoso ; pôde curar-se pela suppres- são da causa, desde que não coincida com a paresia, caso em que é quasi sempre fatal. Apparece, em geral, na edade adulta, algumas vezes é prece- dida de uma aura, que consiste na sensação de estalidos dos ossos ou de convulsões em um dos artelhos. Magnus Huss refere fa- ctos de alcoólicos victimas de epilepsia pela abstinência do álcool a que estavão habituados. Intelligencia. — As perturbações da intelligencia, múltiplas e variadas, se dividem em dous grupos : a principio passageiras, agudas, essas perturbações manifestão-se sob a forma de accessos, depois dos quaes a rasão é recuperada ; mais tarde essas pertur- bações tornão-se persistentes, e sua chronicidade indica uma alteração profunda, muitas veses definitiva das faculdades. E' sobretudo debaixo do ponto de vista moral que o alcoólico offerece uma physionomia característica, que convém precisar. Tudo n'elle demonstra o maior abatimento e incontestável degra- dação moral. Ha uma disposição particular, em virtude da qual elle delira sob a influencia da menor causa, das menores contra- — 64 — riedades e das moléstias as mais insignificantes. Seu caracter modifica se, elle torna-se taciturno, desconfiado; mais tarde é atormentado e perseguido por idéas fixas. Accessos de cólera, de excitaçáo semi-maniaca e de turbulência, apparecem sem a menor provocação. N'este estado o individuo ainda pôde dirigir os seus negócios, e pôde mesmo entregar-se a trabalhos sérios, quando de repente vem o accésso e elle commette um acto reprovado ; despedaça suas vestes, por exemplo, e apparecem as allucinações com os caracteres próprios. Este estado passa desapercebido por muito tempo, por causa da integridade apparente das faculdades intelle- ctuaes. Mas, chegado á esse periodo, o individuo está modificado, o álcool transformou-o em outro. O álcool não exerceu em vão sua influencia. Não são mais as mo li fica çõ es passageiras, pertur- bações funccionaes, que só deixam como resultado de sua passa- gem um ligeiro máo-estar; produziu-se uma degradação profunda, a nutrição está alterada em todos os órgãos, systemas e tecidos, a própria cellula está alterada. Sob a influencia do álcool um duplo processo desenvolveu-se ; o organismo, em sua totalidade, é victima de uma velhice precoce, e soffreu a degenerescencia gor- durosa ; e com a steatose ha uma tendência ás irritações chroni- cas e diffusas; duplo processo—sclerose e steatose—característico do alcoolismo chronico. Conforme a predominância nos centros nervosos d'um d'esses processos, o desgraçado alcoólico caminha para a demência (steatose e atheroma) ou para a paralysia geral (sclerose intersticial diffusa) (Magnan). Memória enfraquecida, raciocínio pouco lógico, incapaz de dis- cernimento, imaginação abolida, incoherencia de ideas, sensibili- dade moral completamente embotada, completão o quadro sym- ptomatíco do desgraçado alcoólico. Nas seguintes palavras de Magnan encontramos o quadro fiel e resumido do estado a que chega o individuo que abusa das be- bidas alcoólicas : « Apathique, indifférent, hébété, 1'alcoolique chronique n'a aucun soin de sa personne, ne prend nul souci de sa famille, il a baissé dans toutes ses facultes intellectuelles, morales et affectives, et se trouve livre sans défense aux caprices des ses appétits ins- tinctifs. Cest á ce moment que l'on peut répéter le vieux prover- be: Qui a bu boira ; le malade y est poussé de diverses maniéres, sans que Ia raison apporte le contre-poids suffisant á Tarrêter. Les excès de boissons sont devenus une habitude ; incite, en outre, par ses tendances hypochondriaques, le vieil alcoolisé renouvelle ses excès, pour porter remèdeá ses maux, reprendre des forces, faire cesser rincommode pituite du matin. Les résultats de cette médicationne se font pas attendre ; le malaise augmente, de lá ce cercle vicieux d'oú ne sort le mtlheureux patient que pour tomber dans Ia démence Ia plus absolue. » — 65 — Na ultima phase da intoxicação a intelligencia é nulla, desap- parecem insensivelmente as concepções delirantes, as preoccupa- ções hypochondriacas, e todas as perturbações sensoriaes; o al- coólico apresenta todos os symptomas indicativos de lesões pro- íundas, como na demência senil. As perturbações da intelligencia apresentao, portanto, modali- dades ^diversas, o que lhe tem valido differentes denominações. Ora, são ideas tristes que dominão a scena mórbida ; o doente torna-se triste, taciturno, e, vivendo debaixo da maior tristesa, é o primeiro a exprobrar a vergonhosa paixão que o degrada ; ora, ao contrario, torna-se irritadiço, furioso, commette actos de vio- lência e brutalidade, atacando a quem encontra deante de si; pra- tica assassinatos, porque elle tem necessidade irresistível de matar para obedecer ás allucinações. E' conhecido o facto do individuo que, victima de allucinações, ouvia uma voz que lhe ordenava que matasse o filho ; procurou a principio desviar-se, porém, a voz insistindo, o desgraçado não podendo resistir, banhado em lagrimas, estrangulou o filho. Está provado que o abuso das bebidas alcoólicas é uma causa perturbadora da vida moral e intellectual e que, as desordens que affectão a esphera intellectual, são numerosas e variadas. D'entre a grande variedade d'esses estados mórbidos, são commummente observados o delirium tremem, a lypemania, a demência e a paralysia geral. Os symptomas, por meio dos quaes se caracterisão esses di- versos estados mórbidos, estão incluídos nas perturbações funccio- naes já descriptas. O que caracterisa cada um d'esses estados mórbidos, e os differencia uns dos outros, é o grupamento d'esses phenomenos e a intensidade predominante com que alguns se manifestão. Dtlirium tremem.—Manifestação aguda da intoxicação chro- nica, é muito raro que o delirium tremem appareça sem causa de- terminante apreciável: ora éuma moléstia aguda que constitue um verdadeiro estado de opportunídade, como pneumonia, embaraço gástrico etc. ; ora elle sobrevem na convalescença de diversas mo- léstias, ou depois de traumatismos, ou pela privação do álcool, que se tornou por effeito do habito um excitante necessário dos centros nervosos, finalmente depois de libaçÕes repetidas. O delirium tremem não se manifesta d'emblée; tem prodromos que denuncião seu apparecimento próximo : máo-estar, annore- xia, somno difficil, agitado, interrompido por pesadelos, fraqueza, fadiga sem razão de ser, prenuncião as vezes o accésso de delirium tremem ; em alguns casos, são modificações no caracter, nos gostos e nos instinetos, ausências intellectuaes, perdas sú- bitas e temporárias da memória, medo de seres imaginários, que denuncião o accésso. Em seguida a esses prodromos apparece o accésso; o doente apresenta-se na maior agitação, com a face N 63 9 — 66 — vermelha e turgida, olhos injectados e arregalados, oscillantes, e um terror súbito se apodera d^lle ; ha agitação desordenada dos músculos, e um tremor violento e geral nos intervallos de repouso ; o individuo solta gritos, vocifera, despedaça os objectos que o cercão, ameaça as pessoas que o rodeião, tem impulsões homicidas, e, em lucta com seres imaginários, elle procura fugir atirando-se contra os obstáculos que encontra, e por qualquer parte que lhe é possivel. Se suppuzermos esses phenomenos no seu mais elevado gráo de agitação, e addicionarmos os ataques epileptiformes, teremos a fôrma super-aguda do delirium tremem descripta por Dela- siauve. Menos furioso, em certos casos, o delírio não deixa de ser tão animado. O doente entrêtem palestra com pessoas que elle julga em torno de seo leito , suas palavras são breves, apressa- das, e é de uma loquacidade inexgotavel. Occupa-se de mil cousas, dirige diversos trabalhos imaginários, empregando a sua maior actividade. As suas resoluções são de uma mobilidade e instan- taneidade espantosas, do mesmo modo que os meios de expressão e execução. Os movimentos, mesmo os voluntários, não tem precisão e coordenação. Por maior que seja a agitação, a con- sciência não é completamente perdida, e o delírio, ordinariamente professional, segue a evolução das allucinações. A insomnia é completa durante três ou quatro dias e não é raro vel-a persistir durante 10 ou 12 dias. Os symptomas communs para o lado do apparelho digestivo são: inappetencia, sede viva, lingua sêcca e vermelha, ás vezes saburrosa e humida, vômitos biliosos, con- stipação de ventre, etc. A acceleração do pulso está em relação com a agitação geral do doente ; suores abundantes cobrem-lhe o rosto. E' difficil reunir em uma descripção todas as modalidades possíveis do delirium tremem^ e mostrar os diversos gráos de suas manifestações symptomaticas; contenta-mo-nos, portanto, de ter descripto as duas fôrmas acima, fazendo notar que mesmo nessas fôrmas podem falhar certos phenomenos, ao passo que outros exaggerão-se. D'entre os symptomas do delirium tremem, ha alguns, que pelos seus caracteres particulares, por sua constância ao menos relativa e por seu valor diagnostico, merecem particular attenção. Assim, as allucinações com seus caracteres especiaes constituem o^symptoma predominante; são, na maioria dos casos, allucina- ções da visão e da audição, embora os outros sentidos possão ser affectados. São allucinações de caracter penivel, moveis, e a sua expressão delirante está em relação com as occupações ordinárias do indi- viduo : caracteres que já foram assignalados. O doente julga-se cercado de animaes asquerosos, perseguido, etc. - 67 - Para evitar esses animaes, essas perseguições, o doente pro- cura fugir. O delirio, embora possa manifestar-se sem allucinações, está quasi sempre em relação com ellas. E' um delirio lógico (Fournier) e a tendência a fugir que manifesta o delirante é o re- sultado das medonhas allucinações. Magnan divide em três grupos os doentes de delirio alcoólico, em relação a marcha, duração e terminação do delirio: i° grupo, doentes de delirio alcoólico de convalescença benigna, rápida ,e completa ; 2° grupo, doentes de delirio alcoólico de convalescença lenta e reincidências fáceis ; 3o grupo, doentes de convalescença lenta, muitas vezes retardada por idéas delirantes, affectando a fôrma de delirios parciaes. Do estudo aturado dos phenomenos que caracterisão o deli- rium tremem, Magnan chegou á certas conclusões, que são de grande valor sob o ponto de vista do prognostico. Os sympto- mas, da observação dos quaes elle estabelece deducçÕes em relação á marcha e terminação do delirium tremem, são a temperatura, o tremor e a paresia. De todos elles o mais importante é a temperatura. Assim, nos casos em que, as oscillaçÕes da temperatura não passão além de 38°, não ha gravidade e a cura pôde ser annun- ciada, que realisar-se a, salvo complicações imprevistas. Nos casos, porém, em que a temperatura se eleva desde os primeiros dias a 38° e 39o, e nos dias subsequentes attinge a 40o, 41o e 42o, ha gravidade máxima e a morte é a terminação ordi- nária. A extensão do tremor a todos os músculos do corpo, o appa- recimento de frêmitos musculares e ondulações persistentes, mesmo durante o somno, trazendo como conseqüência no se- gundo ou terceiro dia o esgotamento nervoso e abatimento com- pleto das forças, a persistência desses phenomenos, indicando um trabalho irritativo intenso dos centros nervosos e mais parti- cularmente do eixo rachidiano, tornão o prognostico grave. A paresia é o menos importante dos três symptomas ; nos casos de delirium tremem, porém, a sua accentuação brusca e rá- pida é de prognostico desfavorável. Como já fizemos notar é muito raro, mesmo na maior exalta- ção, que o estado consciente seja completamente abolido. Con- segue-se fixar a attenção do doente e interromper o delirio, desde que se falle alto e em um certo tom de auctoridade. Uma questão longa fatiga sua attenção e não tem resposta > porém, sendo pequena e precisa, é seguida de resposta. As allu- cinações reapparecem desde que a sua attenção não seja des- pertada. O suicidio, freqüente na lypemania, é raro no dilinnm tre- mem. E, quando o doente morre por ter-se atirado n'um abysmo, ou por um accidente qualquer, a morte é o resultado — 68 — de uma aberração perceptiva, sem que haja da parte do doente determinação para o suicídio. O tremor não é companheiro forçado do delirio, senão nos casos em que a affecção é primitiva, quando o delirium tremens se apresenta em individuos até então apparentemente sãos ; nos casos, porém, em que elle apparece sob a influencia de uma mo- léstia intercurrente, pôde faltar (Trousseau). O accésso de düi- rium tremens dura, em geral, de dois a seis dias; rara vez excede esse limite ; a terminação é indicada por um somno profundo, d'onde o desgraçado sahe exgotado, e sem lembrança bem precisa do que se passou. A volta ao estado anterior se faz de um modo rápido. A cura é em geral a regra. A terminação pela passagem ao estado chronico (demência) e morte não são muito communs. A terminação pela morte pôde ser em conseqüência da adynamia consecutiva ao accésso, ou subitamente no máximo de um pa- roxysmo, ou finalmente por uma complicação cerebral ou pulmo- nar. O dilirium tremens pôde terminar-se por uma meningite, (Jaccoud), OBSERVAÇÃO V.— delirium tremens No dia 31 de Maio de 1883 entrou para a enfermaria de clinica o portuguez Manoel Antônio Marques, branco, morador a praia de Santa Luzia n. 4, com 52 annos de edade, pescador, e foi occupar o leito n. 20. Anamnese. — Refere o doente que nunca soffrera moléstia al- guma, e que é a primeira vez que procura o hospital ; que nunca teve rheumatismo nem syphilis ; confessa, porém, que abusa das bebida alcoólicas, porque a sua profissão o obriga a isso, e que no mar tinha sempre comsigo um pouco de aguardende ; que tem vô- mitos ao levantar-se (pituita); que no dia 30 de Maio ao levantar-se, sentio dôr nos membros inferiores, dor que se irradiava ao longo dos nervos sciaticos propagando-se até os joelhos. Estado actual. —Habito externo.—Trata-se de um individuo apparentemente robusto, gordo, que apresenta-se aparvalhado, com o facies enluminé do alcoólico. Apparelho dijestivo.—A lingua apresenta-se coberta de saburra branca, o doente nao tem appetite. Tem vômitos, tympanisrno abdominal, nao tem constipaçao nem diarrhéa. Figado. —Aug- mentado de volume e ligeiramente doloroso á pressão. Baço, normal. Apparelho circulatório. —Para o lado do coração nada encon- tramos de anormal; mas ouve-se em toda aorta* thoraxica uma bulha de percussão clara. Pulso —64.—Temperatura—37°. — 69 - Apparelho respiratório. —Tosse, e pela escuta estertores hu- midos. Systema nervoso. — As respostas do doente sao demoradas ; ha enfraquecimento intellectual e tremor dos membros superiores, Diz o doente que sentio dor na região lombar no dia em que adoeceu, porém pelo exame elle nao revela dôr; tem paresia dos membros inferiores. Diagnostico. — Congestão raedullar na região lombar. — Al- coolismo chronico. Marcha e tratamento.—Dia 31.—Calomelanos em doses fraccio- nadas. Ventosas sarjadas na região lombar. — Pomada mercurial no lugar das ventosas. Dia Io de Junho.—O doente passou mal a noite ; tem alluci- nações e dilirio extremamente loquaz, mobilidade nos seus pensa- mentos.—O tremor está exaggerado. D'entre as allucinações nota-se a seguinte : O doente diz que teve um filho com uma negra e que o puzerao d'entro do seu ventre ; perguntado pelo seu estado, elle responde mostrando um braço, o )eito, o escroto e dizendo que esses pontos estão edemaciados, sem que isso seja exacto ; elle suppOe-se muito doente e com muitas moléstias. Prescripçao. Agoa de alface............... 120 gram. Bromureto de potássio......... 2 » Xarope de cascas de laranjas... 30 » Em 3 doses. Dias 2 e 3. —O estado do doente nao apresenta modificação, continua a mesma medicação. Dia 4.—As allucinações mudarão : O doente vê uma procissão de macacos, que passeao pelo tecto e chegão até o seu leito. A mesma poção com 4,0 de bromureto de potássio e 0,05 de ulfato de morphina. Dia 5.—Mesmo estado e mesma medicação. Dia g.—o doente apresenta-se extremamente abatido, nao tem allucinações, jáz em somnolencia no leito e responde com vagar as perguntas. Prescripçao. Agoa...................... 200 gram. Sulfato de morfina.......... 10 centig As colheres Dias 7, 8 e 9.—O doente continua na mesma e tem delirio a noite. A mesma poção e 2 gram. de chioral a noite. Dia 10. — Allucinações e dilirio, foi necessário para contel-o durante a noite a camisola de força ; apresenta-se de manhã extre- mamente abatido, comprehende mal as perguntas. — 70 — Prescripçao. Agoa.............................. 120 gram. Extiacto de cravagem de centeio....... 2 » Extra :to hydro-alcoolico de belladona... 5 centig. As colheres. Dias 11 e 12.—O estado do doente aggrava-se cada vez mais, é preciso o emprego da camisola de força durante a noite, porque o doente em delirio, e ja se acuando sem forças, leva quedas quando procura levantar-se. Prescripçao. Emulsão de amêndoas............ 100 gram. Essência de terebenthina.......... 4 » Xarope de cascas de laranjas ..... 30 » Em 3 doses. Dias 13, 14 e 15.—O doente apresenta-se cada vez mais abatido e prostrado. Prescripçao. Poção de Todd. As colheres. 1 centig. de morphina em injecção hypodermica. Dias 16, 17 e 18.—Faz uso dos alcoólicos até o dia 18, em que apresentando-se em adynamia, somrtolencia, abatimento, prescre- ve-se-lhe uma poção excitante. Dia 19.—Em decubito dorsal, na maior adynamia, sem poder levantar-se do leito, pronunciando palavras desordenadas, mettido na camisola de força para contel-o no leito e evitar queda, eis o estado em que se acha o nosso doente, Prescripçao. Uma poção com 1 gram de digitalis em pó. Dia 20.—Aggrravando-se o quadro symptomatico acima des- cripto, o doente chega a maior adynamia e fallece no dia 20 ás 2 horas da madrugada. O cadáver foi reclamado para enterro. Apresentamos esta observação, apezar da falta da autóp- sia, por causa do seo interesse. Além de apresentar inte- resse por ser um caso de delirium tremens, ella nos vem mostrar a gravidade que adquire qualquer moléstia, desen- volvida n'um individuo victima do alcoolismo chronico. A. congestão medullar em outro qualquer doente se teria outra terminaça) ; mesmo no nosso doente, os phenomenos dacon- gestao medullar cederão logo, ficando em scena os phenomenos dependentes do alcoolismo chronico, e que forao despertados pela congestão medullar. D^hi, quantas deducções em relação ao prog- nostico e a therapeutica em casos idênticos ? Lypemania. — Na lypemania alcoólica encontramos as mesmas perturbações da innervaçao que assignalamos no delirium tremens : allucinações, delirio, tremor, etc. Aqui predomina o abatimento - 71 - physico e moral; o desgraçado nao reage, nao procura evitar os seres imaginários que a sua visão compromettida colloca deante d'elle ; ao contrario deixa-se dominar, torna-se inactivo, soffredor, e, se pratica algum acto revelador de energia e deliberação, é de ordinário o suicidio ; é muito raro que elle commetta assassinato. Sao três os phenomenos (Fournier) caracteristicos d'este estado: allucinações, delirio e tendência para o suicidio. Depois do delirium tremens é a lypemania a fôrma mais fre- qüente de loucura alcoólica. O doente é victima de allucinações, illusões e concepções deli- rantes que o amedrontao; o doente suppõe-se ameaçado, perseguido; suppõe que se quer envenenal-o ,• as allucinações nao sao sempre puramente sensoriaes, muitas vezes o desgraçado lypemaniaco diz que é castigado, mordido, ou que se lhe corta til parte do corpo ; a scena muda muitas vezes, porém no fundo o quadro é o mesmo ; as allucinações, as illusões', as concepções delirantes se apresentao com o mesmo caracter de mobilidade que lhes é próprio ; todas as sensações do lypemaniaco tem um caracter commum : sao de natu- reza depressiva. Em face das ameaças que o torturão o lypemaniaco procede de diversos modos ; ora contenta-se de soffrer com uma certa calma., vive sob o peso da tristesa, porém resigLado ; ora, ao contrario, a sua resignação exgota-se, e, o meio de reacçao de que elle lança mão commumente, é o suicidio, podendo comtudo commetter outros actos reprovados. Mas, quaesquer que sejao os seus actos, elles sao sempre reflec- tidos e n'uma relação lógica mais ou menos perfeita com as alluci- nações, illusões ou as concepções delirantes que dominao n'esse momento. A duração da lypemania alcoólica é de algumas semanas, rara- mente de mezes. Ella termina-se por melhoras progressivas, mas nao completas, das perturbações intellectuaes, que reincidem com a maior facilidade, sal\ o se os alcoólicos renunciao seos fu- nestos hábitos. Quantia os excessos se prolongao e se renovao, a lypemania termina-se pela paralysia, estupidez e demência. O ver- dadeiro perigo está nas reincidências, que sao muito communs, porquanto o beberrao é muitas vezes dipsumano. As perturbações int llectuaes que acabamos de pasmar.em revista sao estados passageiros, episódios agudos do alcoolismo chronico, que os doentes podem soffrer'uma ou mais vezes e recuperar depois a razão. Além d'isso nao sao termos forçados do alcoolismo chro- nico. Muitos alcoólicos chegão ao ultimo gráo da intoxicação sem passar por esses epiphenomenos agudos. N^este caso produz-se um enfraquecimento intellectual progressivo que termina-se ou pela demência ou pela paralysia geral. Algumas vezes (Morei) a demência faz uma invasão súbita com prostração de forças, anniquilamento geral e morte rápida, - 72 — Qualquer que seja a marcha dos phenomenos, quer tenha ha- vido ou nao accidentes agudos, quer ella tenha sido intermittente, re.niuente ou uniformemente progressiva, chega um momento em que as desordens temporárias e susceptíveis de curasao substituídas por lesões definitivas e irremediáveis. O alcoolismo entra na sua phase ultima,terminando-se quer pela demência quer pela paralysia geral. Os dous modos de degenerescencia (tendência á degenerescencia gordurosa dos orgaos, tendência ás irritações chronicas diffusas associadas a steatose, podendo existir só) que dominao toda a pa- thologia do alcoolismo chronico e constituem o seu característico, explicao-nos a evolução ultima da intoxicação chronica ; com effeito, segundo a predominância nos centros nervosos de uma ou outra d'essas lesões, o alcoolismo termina-se pela demência (steatose e atheroma) ou pela paralysia geral (sclerose iutersticial diffusa). A terminação a mais freqüente é pela demência, associada muitas vezes á paralysias parciaes. Este estado corresponde a degenerescencia gordurosa acompa- nhada de atrophia da camada cortical e de focos mais ou menos numerosos (hemorrhagias ou amollecimentos) disseminados sob a fórma de lacunas nos centros optos-triados,na substancia branca ou na peripheria do encephalo (Magnan) ; lesões análogas ás da de- mência senil, e que reconhecem como ponto de partida as altera- ções do systema vascular, isto é, placas atheromatosas e algumas vezes aneurysmas miliares das artérias. A decadência intellectual, o enfraquecimento e a obtusão gra- dual e progressiva de todas as faculdades caracterisao a demência do alcoólico. O seo começo é, em geral, lento e progressivo ; a memória se enfraquece ; o raciocínio torna-se menos seguro ; a razão ó muitas vezes desviada por preoccup^ções delirantes hypochondriacas ou por allucinações de natureza triste e depressiva ; a associação^ das idéas é difiicil e a imagiuaçao pouco activa ; muitas vezes ha inco- herencia na ideaçao e a sensibilidade é embotada. Chegado á este periodo o alcoolismo tornou-se um mal irre- mediável ; o alcoólico apathico, indifferente, estúpido tem necessi- dade de ser vigiado como se fosse um menino. Se o medico, a pe- dido da família, dá-lhe liberdade, incapaz de ganhar a vida, elle entrega-se á novos excessos, que aggravao o mal, exigindo de novo a sequestraçao. Durante este periodo de tendência a demência apparecem muitas vezes accidentes agudos ou sub-agudos, accessos de mania, lype- mania, ataques epileptiformes ou mesmo idéas de perseguição, que difEcultão o diagnostico. Mais tarde a demência torna-se completa ; os phenomenos de excitaçao, as idéas hypochondriacas desappare- cerao, assim como a sensibilidade moral. O doente agita-se move- se, vegeta mas nao vive, torna-se immundo, desaceiado e termina por succumbir de affecções intercurrentes (Marcé), — 73 — A demência é quasi sempre acompanhada de paralysia incom- pleta (paresia) Aiém d'essa paralysia que é quasi sempre incompleta, convin- do-lhe o nome de paresia, que já tinha sido dado por Magnus Huss, tem-se observado no alcoolismo chronico a paralysia geral propria- mente dieta, tal como se observa nos alienados chamados paraly- ticos geraes. Os auctores, porém, nao estão de accôrdo sobre o papel etiolo- gico do alcoolismo chronico na gênese da paralysia geral. Assim, de um lado Magnan, Fournier e Gambus concordao com Contesse que em 1,343 casos de paralysia geral verificou que 106 deviao ser attribuidos ao alcoolismo ; de outro lado Laségue, Falret e Bali dizem que, embora o álcool seja uma fonte de moléstias e de degenerescencias physicas, os seus effeitos maléficos têm sido exag- gerados em relação á paralysia geral. Assim, diz Bali : « L/alcoolisme conduit á un genre particulier d'aliénation mentale, dont on ne saurait exagérer Ia frequence et Ia gravite ; mais il ne conduit point, comme ou l'a faussement prétendu, à Ia paralysie générale » Para o professor Bali, o alcoolismo em um terreno especialmen- mente preparado, em um individuo predisposto, em vez de seguir, como na maior parte dos doentes, as regras clássicas da evolução mórbida, pôde tomar a forma paralvtica, determinando uma pseudo-paralysia geral alcoólica. O que é preciso é ter muito em vista (Voisin, Dagonet) a pre- disposição individual, a herança e sobretudo a preexistência da alienação mental, porque, em grande numero de observações, parece ter havido a concomitância de qualquer d'essas circuinstâncias. Para Magnan e Gambus a paralysia geral alcoólica apresenta em sua marcha alguns caracteres especiaes, para os quaes Marcé já havia chamado a attenção. Eil-os de um modo resumido : A evolução completa da moléstia divide-se em quatro períodos : No primeiro periodo dominao as perturbações intellectuaes do alcoolismo : allucinações e concepções delirantes de natureza triste e depressiva, accessos de delirium tremens, accessos de lypemania, de convalescença lenta e de reincidência fácil. O doente procura o asylo até quatro, cinco, seis e sete vezes. No segundo periodo as perturbações sao mais complexas ; ás allucinações, ás concepções delirantes de natureza triste e depres- siva vem se reunir idéas de satisfacçao, idéas ambiciosas da para- lysia geral. A duração d'este periodo de transição é muito variá- vel e impossível de determinar. Emfim, no terceiro e quarto períodos, as idéas ambiciosas ac- centuao-se cada vez mais ; a sensibilidade se perverte; as pupillas tornão-se desiguaes ; a paralysia faz progresso e termina-se pela demência, a menos que uma affecção intercurrente venha pôr termo aos dias do desgraçado. N. «3 10 — 74 — Peita a autópsia, encontrao-se lesões anatômicas exactamente eguaes ás da paralysia geral (Magnan). D'entre os variados accidentes que o alcoolismo determina para os centros nervosos, citaremos ainda : as congestões cerebraes, as he-üjorrc^fias, cuja freqüência é facilmente explicada quer pela repetição dos raptos congestivos para o encephalo, quer pelas dege- nerescencias vasculares. A meningite e a encephalite aguda não encontrão no abuso das bebidas alcoólicas uma simples causa predísponente ; em certos casos (Fournier) parecem ser directamente produzidas pelo álcool. Qual o estado anatômico do encephalo no alcoolismo chronico ? As lesões anatômicas do encephalo apresentao grande variedade não só em relação á sede como também á natureza. Em relação á sede, ellas podem assestar-se em todas as partes componentes dos centros nervosos : vasos, massa cerebral e invó- lucros. Em relação á natureza, são na maioria dos casos conges- tões e inflammações de marcha chronica, e muitas vezes amolleci- mento, hemorragias e degenerescencia gordurosa. O abuso prolongado das bebidas alcoólicas colloca a principio os centros nervosos n'um estado de excitação mais ou menos pro- nunciada, e, em certos limites, este estado não é inteiramente des- favorável ao funccionalismo physiologico dó systema nervoso ; assim os beberrões de profissão tratâo de procural-o, desde que elle teuha desapparecido pela falta do álcool. O álcool, com effeito, torna- se em certo momento um excitante necessário; a substancia nervosa tomou-se preguiçosa e precisa, para funccionar com certa activi- dade, d'esse excitante artificial. Quantos escriptores, quantos poe- tas, despresando as Musas, vão aos altares de Baccho pedir-lhe inspirações ? Mas, persistindo o abuso, e elle persiste quasi sempre, a exci- tação é substituída por depressão. Em certos casos de delirium tremens a necropsia não tem dado resultado. A substancia nervosa não apresentava lesões apreciá- veis, e a congestão, quando observada, podia ser antes explicada pelas perturbações asphyxicas da agonia do que por uma iHtação fluxionaria preexistente. Assim, parece admissível a opinião de Gubler e muitos outros de que, em grande numero de casos ao menos, o delirium tremens é uma nevrose de causa tóxica. Mas, continuando a irritação dos centros nervosos pelo álcool, em um momento dado, em uma epocha variável, conforme o individuo e conforme o gráo de concentração da bebida, o cérebro, a medulla e os seus invólucros tornão-se sede de lesões mais ou menos pro- fundas que nos dão a chave dos accidentes graves do alcoolismo chronico. A congestão passageira da dura-mater por occasião de cada excesso torna-se chronica; mais tarde essa membrana se inflam- ma ; falsas membranas, delgadas, cellulosas cobrem a sua fsce interna j essas membranas chegão muitas vezes á um gráo de or- -75- ganisação relativamente adeantada, e vasos de nova formação ap- parecem na sua espessura; a ruptura d'esses vasos, sob a influencia de um rapto congestivo incapaz de determinar a ruptura dos vasos normaes, dá lugar a hemorragias circumscriptas (hematomas da dura-mater) ou diffusas (hemorrhagias meningéas propriamente dietas) com todas as suas conseqüências (ataques epileptiformes, ataques apoplectiformes). A arachnoide e a pia-mater são sede de processo irritativo aná- logo. As lesões tem preferencia para a convexidade dos hemisphe- rios cerebraes. N'esse ponto a arachnoide perdeu sua transparên- cia, tornou-se opalina; esta mudança de côr e de espessura se apresenta sob a forma de bandas ou linhas que seguem regular- mente a direcção dos vasos que rampeião nas anfractuosidades. A pia-mater está egualmente espessada e congestionada ; seus vasos e sobretudo as veias estão cheias de sangue, sinuosas e mesmo varicosas ; suas malhas estão infiltradas de maior ou menor quantidade de serosidade, que exhala, quando o ultimo excesso data de dous ou três dias, um cheiro pronunciado de álcool. Mas as alterações mais importantes são sem duvida as que se passão para o lado da substancia cerebral. Ella é sede de um duplo processo : um processo irritativo que determina um endurecimento inflammatorio e um processo destruetivo que dá em resultado a degenerescencia granulo-gordurosa dos elementos nervosos. As lesões parecem começar pelas paredes dos pequenos vasos da substancia nervosa ; ha a principio augmento de núcleos ao longo d'essas paredes, e mais tarde degenerescencia granulo-gordurosa dos elementos cellulares. Em virtude òVessas alterações do systema vascular, os elementos nervosos, já irritados pela presença do álcool são mal nntridos e alterão-se; os que se achão mais próximos dos vasos doentes infiltrao-se de granulações proteicas e mais tarde de granulações gordurosas. A alteração continua, dos vasos ella pro- paga-se, e, em um momento dado, a massa cerebral, transformada em grande parte em productos regressivos, torna-se incapaz de funecionar e apparece então a demência. Mas, mesmo em periodo adeantado, a transformação não é completa, ha elementos nao alterados, e estes podem, em certos momentos sob a influencia d'essas exacerbações agudas ou sub-agudas, tornar-se sede de uma irritação funccional; é assim que se explica esses episódios agudos durante a marcha essencialmente torpida da demência. Eis em resumo a degenerescencia granulo gordurosa. Mas, ao lado do processo destruetivo, ha o processo irritativo. As congestões repetidas determinão uma congestão chronica, e depois inflammação. O tecido conjunctivo, esparso pela massa cerebral, prolifera e soffre mais tarde a retracção As circumvoluções cerebraes fortemente adherentes á pia-mater, diminuem de volume e endu- recem, como se tivessem sido macer^das em álcool. Os elementos nervosos, comprimidos e abaf d"* p^las malhas do.tecido retra- indo, soffrem a degenerescencia granulo-gordorosa. - 76 - À' esse processo irritativo, que termina-se também pela degene- rescencia granulo-gordurosa dos elementos nervosos, correspondera os •symptomas da paralysia geral. Estes dous processos marchão parallelaniente muitas vezes, porém ordinariamente um ou outro domina e dá o cunho a moléstia. Para ambos a sede de predilecção é a mesma ; quanto mais rica em vasos é a região, tanto mais pro- nunciadas são as lesões ; as circumvoluções são as primeiras que soarem : são alterados diversos pontos da substancia cinzenta e mais particularmente as camadas ópticos e os corpos esfriados ; estes achatão-se muitas vezes, e a cavidade do ventriculo apresenta- se deformada e augmentada. A1 essas lesões correspondem, como já dissemos, o düirium tremens, a lypemania, a demência e a paralysia geral. As lesões das meningeas, os raptos congestivos parciaes do cérebro explicão os ataques epileptiformes ou apoplectiformes. As lesões da medulla são pouco estudadas, parece, porém, que são da mesma naturesa que as do encephalo (Lanceraux). Do mesmo modo que no encephalo, tem-se observado na medulla : congestão, sclerose (myelite sclerosica) e amollecimento—degene- rescencia granulo-gordurosa. As alterações dos troncos e filetes nervosos isolados têm sido muito pouco estudadas. Apparelho urinario e genital. A physiologia nos ensina que os rins representão papel importante na eliminação do álcool ; esta passagem reiterada do álcool nos vasos e nos canaliculos uriniferos dos rins, do mesmo modo que para o figado, constitue para aquelles órgãos uma causa de irritação, determinando congestões, que podem tornar-se ponto de partida de alterações consecutivas, tornando-os mais predispostos á soffrer as impressões mórbidas externas. O que é facto e que existe uma relação etiologia evidente entre os excessos alcoólicos é as lesões renaes (Bright, Christison, Malmsten, Fre- richs, citados por Jaccoud, Lecourché) As lesões mais freqüentes são a sclerose renal e a nephrite parenchymatosa. Alguns auctores negão a influencia do alcoolismo sobre as mo- léstias renaes, e o que é verdade é que essa influencia parece menos constante do qu9 se suppoz durante muito tempo (Jaccoud). Para Lanceraux o alcoolismo determina sobretudo a degeneres- cencia gordurosa dos rins, e para Dickinson nSo ha relação regular entre a freqüência da nephrite e a do alcoolismo na população. Alguns auctores dão como prova indirecta da influencia etiologica do alcoolismo sobre as moléstias renaes a associação da nephrite intersticial com a cirrhose do figado ; esta associação nao tem a freqüência precisa para a demonstração, e o argumento parece ser desfavorável á these que se quer demonstrar (Jaccoud). Esta associação foi verificada por Dickinson e Stewart na pro- porção de 15 por 100, e Bamberger ainda encontrou proporção me- nor—4,8 por 100 ; assim, se não se pôde recusar ao alcoolismo — 77 — papel etiologico na gênese das moléstias renaes, elle deve occupar o ultimo lugar (Jaccoud). Tanto as lesões anatômicas como as per- turbações funccionaes das moléstias renaes de origem alcoólica não apresentao caracteres especiaes, por meio dos quaes se possa distiDguil-as das lesões renaes dependentes de outras causas; ha, porém, um conjuncto de circumstancias que nos levão ao diagnos- tico etiologico. Si, em doses moderadas e mesmo na intoxicação aguda, o ál- cool activa a secreção urinaria, ao contrario na intoxicação chronica a secreção é diminuída, (Magendie, Smith) ; a urina contem menos uréa, porque a quantidade é também menor, e a quantidade de ácido urico augmenta (Smith). As diversas lesões renaes são mais communs nos bebedores de cerveja do que nos de outras bebidas mais fortemente alcoolisadas ; este facto, desde que seja verdadeiramente verificado, parece provar que na gênese d'essas moléstias a hyperemia funccional e a polyu- ria gosão de papel mais importante do que a acção irritativa do álcool (Jaccoud). Para o lado da bexiga tem-se notado sobretudo certos espasmos do collo e catarrho. Tem-se verificado nos individuos que se dão á excessos alcoóli- cos uma senilidade prematura, no ponto de vista genital, caracte- risada ou pela ausência de desejos venereos, ou pela impossibili- dade de erecção, ou por impotência genesica ; senilidade que coin- cide quasi sempre com atrophia dos testículos (Roesch), flacidez do escroto e do penis, ao mesmo tempo que o esperma arnarellado con- tem poucos espermatozoides. Não se sabe nada de positivo a respeito dos ovarios nas mulhe- res alcoólicas ; porém as perturbações da menstruação, a cessação prematura das regras e o aborto parecem mais communs n'ellas. Os estudos de Lippich provão que os alcoólicos procreão menos do que a media normal, o que pode ser devido, quer á impotência do coito, quer á impotência da fecundação. Apparelho da locomoção.—No começo da intoxicação os museu" los apresentão-se descorados, molles e carregados de gordura, sobre' tudo no6 intervallos das fibrillas ; em periodo mais avançado, as fibras musculares soffrem a degenerescencia gordurosa, perdem em parte as estrias, e a massa muscular é atrophiada e reduzida ao quarto ou quinto de seu volume primitivo. Como conseqüência d'essas modificações anatômicas apparecem fraqueza e incerteza dos movimentos, fadiga rápida e algumas ve- zes myalgias e caimbras que podem também depender de modifica- ções do systema nervoso. Os ossos contem maior quantidade de gordura, que se accumula na cavidade medullar á custa do tecido ósseo ; esta alteração è muito notável nos ossos curtos. Como conseqüência, ha uma predispo- sição ás fracturas, cuja consolidação é sempre retardada ; dores — 78 — Vagas nos ossos longos, as quaes, embora não se exacerbem á tarde, comtudo dão logar muitas vezes á uma insomnia que desperta a idéa de syphilis. Para evitar o erro, convém ter em vista os hábitos do doente, e que as dores dos alcoólicos não apresentao á tarde as exacerbações mais ou menos regulares das dores osteocopas da syphilis. As articulações são muitas vezes sede de dores (arthralgias) profundas, de intensidade variável; porém nada ha de fixo á res- peito das lesões anatômicas, ás quaes correspondem esses sym- ptomas. MARCHA. - DURAÇÃO. - TERMINAÇÃO A marcha do alcoolismo varia conforme sua localisação mór- bida, a inportancia funccional dos órgãos lesados, etc; quando tratámos do alcoolismo chronico em geral, mostrámos a sua marcha nos casos mais freqüentes. Sua duração é muito variável e não pôde ser precisada. Ora dura apenas alguns mezes ou annos; ora sua duração é longa e pôde estender-se á muitas gerações. Em geral, quanto maiores são os excessos, tanto mais curta é a sua duração. A sede da localisação mórbida, a importância funccional dos órgãos lesados, assim como a natureza das bebidas, influem sobre a duração. O alcoolismo pôde terminar-se pela cura, por um certo gráo de melhora ou pe*a morte. A terminação pela cura ó possível, quando não ha lesão persistente de órgão algum importante, e quando as desordens nervosas são puramente funccionaes. N'essas condições, a cura tem sido verificada, desde que o individuo renuncie seus hábitos. O velho alcoólico é quasi sempre dipsoroanu, porisso as reincidências são muito freqüentes. Quando o alcoólico não é mais susceptível de cura, elle pôde, comtudo, melhorar. Esta melhora é uma parada que impede os progressos do mal, diminuindo as ma- nifestações, sem fazel-as cessar. Em qualquer periodo o alcoolismo pôde terminar-se pela morte ; é esta a terminação mais commum do segundo periodo. A morte n'esse caso pode depender de varias condições ; assim, pôde ser a conseqüência de lesões orgânicas do cérebro, figado, pulmões, rins, etc; no primeiro periodo, é quasi sempre conseqüência de uma manifestação aguda, de um accésso de delirium tremens, de convul- sões epilépticas repetidas. Em outros casos é um traumatismo, uma fractura, uma ferida, que pela gravidade que adquire determin i a morte ; finalmente, a morte pôde depender de uma cachexia mais ou menos adiantada, ou de uma moléstia intercurrerte, e, entre outras, são mais freqüentes a pneumonia, pleuriz e erysipela. - 79 - ALCOOLISMO HEREDITÁRIO Temos tratado até aqui dos alcoólicos que, depois de terem abu- sado das bebidas espirituosas, apresentao em certa edade as conse- qüências do alcoolismo chronico, dependendo,portanto, sua moléstia dos excessos por elles praticados ; mas, ao lado d'esses alcoólicos, encontrão-se desgraçados muitas vezes em tenra edade e que, apezar de nunca terem abusado das bebidas espirituosas, apresentao for- migamentos, cephalalgia, tremor, nevroses diversas e por vezes asy- metria do craneo ou microcephalia ; estes devem a moléstia aos seus progenitores. Pela historia d'esses doentes chega-se á saber que seu pae fora alcoólico ou mesmo sua mãe. Ha outros individuos, descendentes de pães alcoólicos e que apresentao em tenra edade um certo gráo de intoxicação muito pronunciado, parecendo ter herdado de seus pães a paixão pelo álcool. Diversos auctores não só attribuíão este facto ao exemplo, como também suppunhão que esses individuos, apezar da tenra edade, abusavão dos alcoólicos ; chegarão, porém, mais tarde a verificar que isto não se dava. E, depois de grande numero de observações em individuos em tenra edade, e em condições em que o alcoolismo n'elles só podia ser attribuido á herança dos pães, chegarão á conclusão de que o alcoolismo não desapparece com o individuo que o contrahiu, mas que, em grande numero de casos, elle continua em sua descendên- cia e snb fôrmas múltiplas, indefinidas por assim dizer, e que varião desde a simples tendência a usar de líquidos concentrados até á degt nerescencia a mais completa do gênero humano. O alcoolis- mo, dizem elles, do mesmo modo que a escrofula, a tuberculose, a syphilis, não produz suas terríveis conseqüências somente no individuo que o conirahiu ; não só elle marca esse individuo com o sello indelével e determina a morte, mas também transmitte- se â seus descendentes sob fôrmas múltiplas, dependentes de uma só e mesma causa, isto é, do envenenamento lento e continuo. O professor Jaccoud resume nos termos seguintes as conseqüên- cias do alcoolismo dos progenitores sobre os seus descendentes : « Au point de vue de Ia famille et de Ia descendance, les consé- quences de 1'alcoolisme sont plus pernicieuses encore parmi les en- fants des ivrognes ; les uns devienent imbéciles ou idiots ; d'autres présentent un affaissement intellectuel, une perversion morale, et arrivent progressivement à Ia dégradation Ia plus complete ; d'autres enfin sont épileptiques, soudrs-muets, scrofuleux, hydro- — 80 — céphales, sujets aux convulsions, etc Si l'on envisage maintenant Ia race, on peut affirmer que 1'alcoolisme est une des grandes causes de Ia dépopulation et de Ia décadence des nations. Dans les pays ou règne 1'alcoolisme, Ia mortalité des producteurs est plus grande, et les produits sont á Ia fois plus rares e degeneres ; cette proposi- tion me parait resumer cette désastreuse influence.» O alcoolismo hereditário, melhor estudado ultimamente, não era desconhecido dos antigos. Hippocrates notou e assignalou os terríveis effeitos da embria- guez sobre o producto da concepção. Já Amyot dizia que o alcoólico não produz nada que preste, e Bacon verificou que a virilidade se enfraquece nos beberrões e que muitos idiotas e imbecis nascerão de pães alcoólicos. Segundo os auctores, os beberrões não transmittem sempre o estado mórbido que os affecta ; em alguns casos os filhos não herdão o mal, mas sim tendências para contrahil-o. Com effeito, dizem elles, é muito commum ver-se filhos de alcoólicos entregarem-se desde tenra edade a excessos de bebidas, mesmo quando não são educados no seio da família, não se podendo por conseguinte invocar a influencia do exemplo, e sim o effeito d'uma modificação orgânica hereditária. Morei não hesita em admittir que muitos filhos de pães alcoólicos sao arrastados irresistiveimente para as bebidas. O mesmo auctor diz que não ha moléstia em que as influencias hereditárias sejão tão fatalmente características. Se a imbecilidade congenital, o idiotismo, diz elle, são os termos extremos da degradação nos descendentes dos alcoólicos, ha um grande numero de estados intermediários que se revelão ao observador. Os auctores parecem, portanto, de accôrdo a respeito do alcoo- lismo hereditário. Os effeitos do alcoolismo hereditário são de duas ordens : uns puramente funccionaes se revelão por uma susceptibilidade nervosa excessiva, uma excitabilidade reflexa anormal, e em certo periodo da vida por uma necessidade irresistível pelos líquidos alcoólicos ; os outros se revelão por lesões materiaes que affectão de preferencia o systema nervoso central e cujas conseqüências varião conforme o periodo da existência em que elles se manifestão. Para terminar trancreveremos as seguintes palavras de Lance- raux, que resumem de um modo conciso e exacto os diversos acci- dentes que se observa nos descendentes de progenitores alcoólicos : «L'individu qui hérite de 1'alcoolisme est en general marque du sceau d'une dégénérescence qui se manifeste tout particuliére- ment par des troubles des fonctions nerveuses. Enfant, il est em porte par des convulsions ou d'autres désordres nuveux ; il reste idiotou imbécile. Adulte, il a un cachet spéciale. Sa tête est petite (ten- dance á Ia microcéphalie) sa physionomie est hébétée, son regard sans expression ou stupide. Une susceptibilité ou une mo- — 81 — bilíté nerveuse plus ou moius accentuée, un état nevropathique voisin de 1'hystérie, des convulsions épileptiforrnes, des idées tristes, de Ia mélancolie ou de rhypochondríe, tels sont ses atributs. La passion des boissons alcooliques, Ia i.endauce á Pim- moralité, á Ia depravation, au cyaisme, tel est en somme le triste héritage que laissent á leurs descendants un nombre malheureu- sement trop grand d'individus adonnés aux boissons alcooliques.» A herança do alcoolismo chronico está, portanto demonstrada por numerosos factos ; mas qual o gráo de alteração do organismo para que se dê a transmissão ? Qual o meio de reconhecer o momento em que se deve dar a transmissão ? Sao questões importantes, e cuja solução não pode ainda ser estabelecida (Lanceraux). N. 63 11 — 82 — DIAGNOSTICO Na descripção nosographica do alcoolismo chronico, procu- ramos, tanto quanto nos foi possível, tornar salientes os caracteres, por meio dos quaes se distinguem na maioria dos casos os diversos estados mórbidos produzidos pelo abuso do álcool, dos produzidos por causas de outra ordem, mas que actuão determinando lesões idênticas; trataremos agora de estabelecer o diagnostico da entidade mórbida—alcoolismo chronico—Assim encarado, o diagnotic■> se apresenta ás nossas vistas como um dos pontos d'esta dissertação que, por sua importância, reclama da nossa parte grande attenção, porque é ahi que, não só o nosso juizo prognostico como a thera- peuthica, vão haurir os elementos de certesa e precisão, sempre ne- cessários em questões de tal ordem. Abordando a questão do diagnostico consideral-o-emos sobre três pontos de vista : assim, trataremos em primeiro logar do diag- nostico etyologico ; em segundo, do diagnostico differencial das di- versas intoxicações que se podem confundircom o alcoolismo chro- nico ; em terceiro, finalmente, do diagnostico differencial das diversas perturbações nervosas do alcoolismo chronico e das produzidas por outras causas. Si é verdade que, para estabelecer o diagnostico etiologico, não temos signal pathognomonico, não é menos verdade que, a reu- niSo de certas manifestações symptomaticas, o conhecimento dos variados accidentes determinados pelo alcoolismo, a coexistência d'um certo numero d'esses accidentes, a marcha e, em certos casos os dados anamnesticos nos servirão de muito- Entre as manifestações symptomaticas, já por seus caracteres, já por sua coexistência com outros accidentes, tem grande valor para o diagnostico o tremor, a pituita, a insomnia, os sonhos e os pesadelos. Para exemplificar tomemos um caso clinico, e, de preferencia, um que foi por nós observado na enfermaria de clinica a cargo do professor Torres Homem (observação 4a.) Trata-se de um individuo de '25 annos de edade, caixeiro de venda, que, ha quatro annos, tem dores retro-sternaes e tosse; que nunca teve syphilis, nem rheumatismo; que cança-se ao menor exercício; que tem palpitações do coração, oppressao, ver- tigens, insomnia, sonhos e pesadelos; que tem formigamentos nos membros inferiores; tremor que se pronuncia, quando o doente estende as mãos, e vômitos de manhã; e que, finalmente, confessa que abusa das bebidas alcoólicas. — 83 — O exame minucioso a que procedemos nos revelou o seguinte : A obscuridade da área precordial é maior do que no estado nor- mal; a escuta, estando o doente em repouso, não revela ruido de sopro anormal no coração; fazendo-o, porém, andar ou levantar-se ás pressas do leito, ouve-se um sopro brando, aspirativo, diasto- lico, no foco aortico; em toda a aorta thoraxica ouve-se uma bu- lha de percussão franca no segundo tempo, e bulha de sopro no primeiro tempo; o pulso é retrocedente; ha bulha de sopro no pescoço, mas não ha o duplo sopro crural. O resultado do exame dos outros apparelhos, excepto o do appa- relho nervoso que já apresentamos resumidamente, não tem interesse, além d'isso vem consignado na observação á que já nos referimos. O quadro phenomenologico descripto nos levou ao diagnostico de—aortite chronica com dilatação e insufíiciencia aortica, depen- dentes do abuso do álcool. Sem duvida a historia do doente e o quadro symptomatíco nos mostrão que só o alcoolismo podia produzir essa serie de lesões tão graves em um individuo ainda moço. Com effeito, a triade symptomatica, (tremor, insomnia, pituita) a ausência de outra causa que nos podesse dar conta d'essas desor- dens, a confissão do individuo e todos os outros symptomas para o lado do apparelho nervoso nos attestâo que só o alcoolismo podia produzir essa serie de desordens. A profissão do doente, n'esse caso, nos servio de muito; trata-se de um caixeiro de venda, que tinha á sua disposição todas as espécies de alcoólicos e que, para attrahir a freguezia (como elle dizia) era obrigado á provar todas as bebidas. E se, para alguns que exercem essa profissão, ao modo das mulheres que exercem em Pariz a singular e desgraçada profissão de inviteuses, o álcool não traz conseqüências tão próximas e tão funestas, para outros, em cujo numero está o nosso doente, o ál- cool traz muito cedo conseqüências funestas para os diversos appa- relhos orgânicos. Passemos a segunda parte do diagnostico. A intoxicação pelo sulfureto de carbono assemelha-se muito ao alcoolismo; a noção de causa, porém, a marcha dos accidentes, a pouca freqüência ou mesmo ausência das perturbações digestivas na intoxicação pelo sulfureto de carbono, e as ailucinaçõee no alcoolismo com seus caracteres próprios, na maioria dos casos, nos darão a chave do diagnostico. Ha uma questão importante e para -a qual o clinico deve estar preparado; nos operários que trabalhão em caoutchouc, em cuja industria o sulfureto' de carbono entra como base, a intoxicação por este corpo se desenvolve sob a influencia da excitação produ- zida pelo alcooL Pertence então a sagacidade do clinico descrimi- nar todas as particularidades. - 84 - A intoxicação saturnina chronica se manifesta, do mesmo modo que o alcoolismo chronico, por perturbações das funccões nervosas e digestivas e mais tarde cachexia; mas a expressão symptomatica, a marcha e os caracteres d'essas manifestações nos dão os meios de distinguir essas duas entidades mórbidas. Assim, a anesthesia saturnina, ao contrario da anesthesia no alcoolismo que é ascen- dente e começa pelas extremidades, invade diversas partes do corpo. A sede da paralysia saturnina nos músculos extensores, a au- sência da hyperesthesia cutânea, a atrophia muscular concomi- tante e a perda de contractilidade electrica dos músculos paraly- sados, são signaes de muito valor para distinguir-se a paralysia saturnina da de origem alcoólica. O tremor e a cachexia satur- ninas só apparecem depois de muitos accessos de eólicas e diffe- rem dos do alcoolismo chronico pelos seus caracteres próprios. As desordens symptomaticas para o lado do apparelho digestivo sao também muito differentes; assim o embaraço gástrico, a dys- pepsia-e os vômitos dos saturninos são muito differentes dos mesmos symptomas nos alcoólicos; ha, além d'isso, o liseré das gengivas na intoxicação saturnina. Alguns symptomas do mercurialismo poderião fazer crer em alcoolismo; mas não só pela noção etiologica, analyse e marcha d'esses symptomas chega-se a tistinguir esses dous estados mórbi- dos, como também ha certos symptomas que são cempletamente differentes em um e outro caso; assim a estomatite é particular ao mercurialismo ; o delirio e as allucinações são symptomas próprios do alcoolismo. Os formigamentos são raros no mercurialismo; o tremor, que augmenta de ordinário com a continuação dos excessos nos bebedores, não apresenta modificação pelos excessos baechicos no mercurialismo, onde é mais desordenado. A intoxicação pela benzina e essência de terebenthina determi- não para o lado das funccões nervosas desordens análogas á aquel- las que são produzidas pelo abuso do álcool; assim, a anesthesia ou hyperesthesia, que começa pelas extremidades é de marcha ascen- dente; ha abolição mais ou menos completa da motilidade, zum- bidos, vertigens, etc. A marcha aguda e súbita d'esses accidentes pôde confundil-os com os accidentes da embriaguez, e não com o alcoolismo chronico, cuja marcha é lenta e onde as funccões diges- tivas são de ordinário compromettídas. Em todos esses casos as manifestações dolorosas são freqüentes e violentas, ao contrario do que se dá no alcoolismo. A acçao prejudicial da nitro-benzina e da anilina, empregadas na fabricação da fuchsina, manifesta-se por symptomas que tem analogia com os do alcoolismo; assim, n'esses individuos ha en- fraquecimento da motilidade com anesthesia ou hyperesthesia as- cendente, formigamentos nas extremidades, zumbidos de ouvidos, diminuição da vista, dyspepsia, vômitos e diarrhéa. - 85 - Mas, o meio em que se desenvolvem esses accidentes, as condi- ções particulares de seu desenvolvimento, as eólicas mais ou menos freqüentes que acompanhão a diarrhéa, servirão para estabelecer-se o diagnostico. Além d'isso observa-se nas extremidades dos mem- bros e nos escrotos erupções papulosas ou vesiculosas que nunca forão observadas no alcoolismo. Se os accidentes, cuja reunião constitue a uremia, podem ser confundidos com o alcoolismo, tanto mais facilmente quanto estes dous estados mórbidos podem existir ao mesmo tempo, não é menos verdade que o seu grupamento e o seu modo de expressão os distinguem bem. Assim, o vomito, que no alcoólico apparece, em geral, de manhã, sobrevem á qualquer hora do dia quando é expressão symptomatica da uremia , n'esta o doente tem tendências ao coma e convulsões, delira mas não tem allucinações; no alcoolismo são as perturbações da sensibilidade e delirio com allucinações que predo- minão. São estes os primeiros elementos de um diagnostico, que será mais tarde confirmado pelos commemorativos e pelo exame das urinas. Quanto aos envenenamentos pelo ópio, belladona, distinguem- se do delirium tremens pelo estado das pupillas, e pela tendência ao coma, muito differente do somno profundo, mas calmo, que apparece no fim do accésso do dilirio ebrio. Ha, além d'isso, um meio de grande auxilio n'esses casos e que serve para dissipar as duvidas, é a acção sedativa do álcool, tão notável no delirio dos alcoólicos. Passemos a terceira parte. No diagnostico das perturbações nervosas determinadas pelo alcoolismo os antecedentes do doente tem muito valor e, quando bem verificados, constituem o ponto de partida o mais seguro para as conclusões clinicas e therapeuticas. N'este periodo, já pelo conhecimento que o clinico tem muitas vezes do doente, já pelos dados que lhe são fornecidos pelas pessoas que o cereão, elle pôde, em geral, estabelecer o diagnostico. Mas, ha casos, em que a sagacidade e a experiência do clinico têm de supprír a insuficiência absoluta de commemorativos. Assim, supponhamos um individuo que se apresenta de súbito com delirio violento; pessoa alguma suspeita seus hábitos, ou não quer revelar o segredo por causa da pooição social do indi- viduo, ou por qualquer outra circumstancia. O clinico vê-se, por- tanto, deante de diniculdades sérias, tanto mais que as condições sociaes do individuo exigem grande reserva. Elle só tem de buscar os elementos para o diagnostico nos symptomas observados, deixando de parte todas as circumstancias externas. Tem de atten- der para os diversos symptomas que descrevemos minuciosamente na nosographia. — 86 — Procuremos estabelecer o diagnostico das perturbações nervosas mais communs e que descrevemos na nosographia: Delirium tremens, lypemania, epilepsia alcoólica, demência e paralysia geral. Delirium tremens. A reunião e o modo de associação dos phe- nomenos já descnptos constituem um quadro symptomatologico que permitte estabelecer o diagnostico do delirium tremens, e não con- fundil-o com outras entidades mórbidas, como a febre palustre de fôrma delirante, a meningite e outros delírios agudos, com os quaes elle só se assemelha por um ou outro symptoma isolado. (Jaccoud.) O delirium tremens pode-se confundir com a encephalopathia saturnina aguda, e o diagnostico é tanto mais difficil quanto os operários envenedados pelo chumbo o são quasi sempre pelo álcool. Comtudo no saturnismo cerebro-spinal as perturbações são muito menos intensas; os symptomas musculares são menos pronunciados, não ha titubiação ; os doentes tomao e conservão muito melhor os objectos que se lhes apresenta ; não tem o tremor da língua e dos lábios, e não tem por conseguinte embaraço da palavra. Se á esses signaes negativos reunirmos o stigma do chumbo nas gengivas, na pelle e nas unhas, e se tivermos em vista os ante- cedentes do doente, teremos quasi sempre elementos para o diag- nostico. Na mania aguda não ha ataxia do movimento ; nao ha tremor nem os terrores súbitos ; as idéas são completamente incoheren- tes, sem associação, e não são como no delirium tremens o pro- ducto directo das allucinações. O diagnostico differencial entre o delirium tremens e os delírios symptomaticos nas affecções febris é de muita importância, já em relação ao prognostico, já em relação a therapentica. Este diagnos- tico se baseará na loquacidade, agitação dos movimentos, tre- mulação, allucinações com os caracteres próprios do delirium ire- mms, — insomnia persistente, caracter profissional do delirio, a temperatura e sua marcha. A paralysia geral, em seu começo, apresenta períodos de exci- tação que podem ser tomados por um accésso de delirium tremens, e o erro pode ser tanto mais facilmente commettido, quanto os excessos alcoólicos provocão muitas vezes o apparecimento d'essa crise. O paralytico geral, porém, apresenta muito menos allucinações do que o ahoolico e o seu delirio offerece menores exacerbações noc- turnas. Depois a marcha da moléstia é completamente differente ; assim, se o alcoólico não morre durante o accésso, depois de um tratamento regular, elle recupera a saúde ao passo que o paralytico, livre da crise, continua a apresentar o quadro de uma decadência progressiva que, bem observada, não deixa duvida. Lypemania alcóolica.—A lypemania toma muitas vezes no alcoólico a forma de dilirio de perseguição ; o doente tem alluci- - 87 - nações muito pronunciadas da vista e ouvido, com predomi- nância das do primeiro sentido. Mas o caracter d'essas perturbações sensoriaes basta para destin- guil-as de uma vesania propriamente dieta. Assim o alcoólico vê animaes, figuras que o amedrontão ; sonha com as oecupações de sua profissão e vive no meio de suas preoecupações diárias, o perse- guido tem sobretudo allucinações do ouvido e,victima de idéas fixas, elle se affasta cada vez mais das lembranças da vida normal. Alem disso, os signaes physicos do alcoolismo differem dos da me- lancolia ordinária e, em muitos casos por si só, bastarião para estabelecer o diagnostico, O diaguostico entre a lypemania e o primeiro período da para- lysia gerai é diflicillimo em certos casos. Basea-se na ausência ou menor freqüência das allucinações, nas idéas de grandeza, incohe- rentes e sem relação com as pertubações sensoriaes, auzencia de perturbações para o lado das vias digestivas, integridade do somno, marcha progressiva e longa duração da paralysia geral. Epilepsia alcoólica. — A epilepsia alcoólica pode confundir-se com a epilepsia essencial; mas differe não só pela marcha, epocha do apparecimento como também pelas causas que provocão os accessos. Assim a epilepsia essencial começa nas primeiras edades, ao passo que a epilepsia alcoólica apparece mais tarde. A epilepsia al- coólica apparece as mais das vezes depois de uma emoção, no decurso da embriaguez ou depois de uma orgia, ou durante um accésso de delirium tremens. A epilepsia alcoólica cura-se pela suppressão da causa, a epi- lepsia verdadeira persiste. O tremor, as allucinações, os formiga- mentos, a dyspepsia e a pituita auxiliarão o diagnostico. Demência alcóolica.—A demência alcoólica se estabelece lenta e progessivamente, na maioria dos casos, depois de uma serie de reincidências e remissões temporárias. E' geralmente precedida de um longo periodo, em que ha di- minuição e depressão da intelligencia do que demência propria- mente dieta, com amnésia, preoecupações melancólicas, abolição dos sentimentos moraes, apathia, indifferença, illusões, allucina- ções e alternativas repetidas de agitação e depressão. N'esse periodo o diagnostico é fácil, mas, chegado a um certo gráo, não tem caracter algum que distinga a demência alcoólica das outras fôrmas de decadência intellectual e physica. Paralysia geral. — Em muitos casos o clinico encontrará diffi- culdades no diagnostico differencial do alcolismo chronico e da paralysia geral, e em alguns será mesmo impossível. Os caracteres, por meio dos quaes essas duas entidades mórbi- das se distinguem uma da outra, forão muito bem estudados por Magnus Huss, Laségue, Falret, Voisin e resumidos com clareza — 88 — e precisão por Fournier n'um quadro que vem annexo ao seu artigo no diccionario de Jaccoud. Destacaremos d'esse quadro aquelles signaes que são de grande valor para esse diagnostico, mostrando as differenças essenciaes que separão essas duas entida- des mórbidas. A fraquesa muscular é um dos principaes caracteres do alcoo- lismo chronico. Nos paralyticos geraes, ao contrario, as forças musculares são muitas vezes conservadas no começo, e, algumas vezes, são mesmo exaggeradas, e as perturbações da motilidade,— tremor, etc, são antes phenomenos espasmodicos do que paralyticos. Quando, em periodo mais adeantado, a paralysia confirma-se, os outros phenomenos tirarão as duvidas. No alcoolismo as per- turbações para o lado do apparelho digestivo são muito pronuncia- das : o appetite é nullo, ha uma secreção exaggerada das glândulas muciparas do estomogo, dando em resultado os vômitos (pituita). Na paralysia geral, ao contrario, as funccões digestivas são con- servadas e mesmo exaggeradas. O paralytico tem uma fome devo- radora, o alcoólico quasi que não come, o que constitue um ele- mento de grande valor diagnostico. As allucinações, raras na paralysia geral, são, ao contrario, um dos caracteres do alcoolismo. A mobilidade e os outros caracteres próprios d'essas allucinações serão tomados em conta. A insomnia é muito mais pronunciada nos alcoólicos do que nos paralyticos. A depressão, a tristeza, a lypemania são, no ponto de vista moral, a expressão habitual do alcoolismo. Ao contrario, a satisfacção, a alegria e a exaltação são caracteres dominantes da paralysia geral. Pôde haver paralyticos tristes e alcoólicos alegres, e n'esses casos, quando se trata da paralysia o doente preoccupa-se muito com a sua saúde e teme a morte. Os alcoólicos, ao con- trario, tem tendência ao suicidio e é muito raro que elles apre- sentem essas idéas hypochondriacas, muito communs na fôrma depressiva da paralysia geral. Finalmente, a intelligencia é muito melhor conservada nos alcoólicos, os quaes, na maioria dos casos conhecem o seu estado e são os primeiros a exprobrar sua sorte. Em grande numero de casos esses caracteres nos levarão ao diagnostico differencial, que estudamos. Como já dissemos, porém, ha casos tão difficeis, que só a marcha da moléstia e a observação attenta do doente virão tirar as duvidas. Não só na descripção das perturbações do systema nervoso,como no diagnostico das mesmas, procuramos ser tão completo quanto possivel, sem termos apretenção de tel-o conseguido. — 89 — PROGNOSTICO O prognostico do alcoolismo chronico é serio e quasi sempre grave, já porque ha diflicnldade em fazer com que os individuos habituados aos excessos alcoólicos deixem os seus funestos hábi- tos, já porque os meios therapeuticos são completamente inefiica- zes em certo periodo de sua evolução. O prognostico varia segundo condições múltiplas,—constitui- ção individual, edade, sexo, gráo de intemperança, profissão, meio social, qualidade da bebida, etc. Si a intoxicação está em primeiro periodo, si o doente renuncia os seus funestos hábitos, si não ha lesões materiaes definitivas, as modificações do organismo são susceptiveis de melhora, e o prognos- tico é favorável ,• ao contrario, si as reincidências são inevitáveis, si a intoxicação chegou ao segundo periodo, se existem lesões defi- nitivas e irremediáveis (steatose, cirrhose hepaticas, lesões cere- braes, etc) o prognostico é fatal. O alcoolismo, sob o ponto de vista moral, corrompe, degrada e embrutece; sob o ponto de vista physico, ataca os órgãos e as funccões principaes do organismo; em relação a espécie, a dege- nera e esterilisa (Fournier). O alcoolismo degrada o individuo fazendo-o perder os hábitos de trabalho regular, arruinando sua intelligencia e sua força, obrigando-o a sacrificar sua familia para ter que beber; torna-o immoral, destroe os laços conjugaes; finalmente o reduz á miséria, com seu cortejo de soffrimentos physicos e moraes, embrute- cendo-o e obrigando-o á todas as espécies de crimes. O alcoolismo determina conseqüências de duas ordens : umas directas, resultado immediato ou longinquo da intemperança; outras indirectas, onde elle constitue um estado de opportunídade mórbida, diminuindo, pela perturbação das funccões e pela depres- são geral do organismo, a resistência do individuo para as in- fluencias morbifícas. Assim, o alcoólico contrahe mais facilmente do que qualquer outro individuo differentes moléstias. Ainda mais, essas moléstias revestem-se de caracteres novos, apresentando gravidade excepcional, determinando tendência á adynamia, acci- dentes nervosos e sobretudo delirio. No alcoólico a menor affecção desenvolve accidentes que põem em perigo a sua vida ; assim uma ferida, uma fractura simples, uma contusão leve, o menor accidente, uma simples indisposição, bastão muitas vezes para provocar o delirium tremens n'um individuo, cuja saúde apparente N. 63 18 — 90 - era até então boa. E esta opportunídade mórbida se conserva mesmo depois que o individuo deixou os hábitos de beber. Os alcoólicos sao sempre máos doentes, elles supportão mal a moléstia e o tratamento; a adynamia e a prostração apparecem quasi sempre no decurso das moléstias mesmo de si benignas. Algumas vezes, facto curioso, a moléstia percorre todas as suas phases e, chegada ao periodo terminal, a convalescença não se estabelece; as funccões de nutrição tornão-se languidas; apparece diarrhéa e um estado progressivo de consumpçao determina a morte do doente. Estas considerações applicão-se não só aos alcoólicos em estado de fraqueza e cachexia, como também á aquelles que apre- sentao uma saúde e vigor apparentes. A duração da vida é consideravelmente diminuida nos al- coólicos; e, para essa grande mortalidade, concorrem, além das lesões próprias do alcoolismo, o suicidio e as mortes accidentaes. O alcoolismo é causa de alienação mental, assim em 100 casos d'esta affecção 18 correm por conta do alcoolismo, e a proporção augmenta todos os dias (Jaccoud). O alcoolismo não termina a sua marcha devastadora no indivi- duo que o contrahiu, elle vai até a sua descendência. O alcoolismo transmitte-se por herança e, desenvolvendo-se n'um individuo degradado debaixo do duplo ponto de vista physico e intellectual, reveste muito maior gravidade. « Eu nunca vi curar-se, diz Morei, os doentes cujas tendências ebrias tinhão como ponto de partida predisposições hereditárias.» Para Morei não é preciso que os descendentes de alcoólicos com- mettão os mesmos excessos para apresentar o typo de uma degra- dação progressiva, basta a influencia hereditária. Morei divide em duas classes os individuos que herdão o al- coolismo : Uns trazem comsigo, ao nascer, o germem d'uma dege- nerescencia completa, sao imbecis ou idiotas, seu estado é fixo e irremediável; outros apresentao até certa época da vida um certo gráo de intelligencia, além do qual tornão-se incapazes de qual- quer progresso; revelão cedo seu estado mental por tendências más, depravação dos instinctos, onanismo, etc. São refractarios á edu- cação, irritaveis e violentos. A herança do alcoolismo pôde ainda manifestar-se de diversos modos. A descendência do alcoólico fornece uma proporção consi- derável deepilepticos, surdos-mudos, escrofulosos, hydrocephalos. São sujeitos á convulsões, são muitas vezes impotentes, apezar do desenvolvimento normal dos órgãos genitaes. Finalmente con- correm para augmentar a população das prisões. Mas, ao lado d'um quadro tao aterrador da herança do alcoolismo, devemos confessar que muitas vezes a intoxicação dos pães não parece pro- duzir effeito sensível sobre sua descendência; ha filhos de alcoólicos bem constituídos, vigorosos e intelligentes, - 91 - TRATAMENTO Àrracher un alcoolique á sa funeste habi- tude, ce n'est pas seulement, on le sait, ren- die Ia santé á un individu, mais c'est aussi le mettre en état de procréer autre chose qub des imbéciles, des epileptiques, ou de fous. (Magnan.) O tratamento do alcoolismo chronico divide-se em prophylatico, palliativo ou curativo. O alcoolismo, uma vez desenvolvido e chegado a certo periodo, é difficil senão impossível de curar-se, porisso raras vezes o tra- tamento curativo dá resultado; ao passo que, por bons exemplos de temperança e por uma prophylaxia sabia, póde-se evital-o e porisso a importância d'esta sobe de ponto. O tratamento prophylatico do alcoolismo tem sido objecto cons- tante de preoecupações de homens illustres, hygienistas notáveis e sociedades prestigiosas. Sem fallar nos meios empregados por Lycurgo, Solon, nas leis romanas que davão ao marido o direito de punir com a morte a mulher que se embriagasse, meios que serião hoje completamente inefiicazes, vemos leis decretadas com o fim de prohibir o abuso do álcool em quasi todos os paizes civilisados. Mas essas medidas coercitivas não têm produzido effeito algum ; o povo, habituado ás bebidas alcoólicas, encontra-as sempre á sua disposição. E bem que a intervenção por parte dos governos possa ter valor, comtudo por si só ella é insufíiciente para impedir a marcha invasora do alcoolismo. Todas as leis, diz Ischoke (citado por Lanceraux) não têm força bastante para extirpar um mal que começou com a vida do povo ; é do povo mesmo que deve partir a reforma dos costumes, e nenhum governo é bastante forte para fazel-a. Mas, para que o povo possa por si fazer essa reforma, elle precisa de instrucção e educação ; é preciso também que elle tenha meios de educar-se e moralisar-se. E1 preciso que o povo por uma instrucção sufliciente possa co- nhecer os effeitos deletérios do' abuso do álcool. E' preciso que S9 desenvolva no povo o amor pela propriedade e pela família, - 92 - Jolly, depois de ter assignalado os diversos tratamentos phar- maceuticos, accrescenta : « Mas é preciso reconhecer que o trata- mento moral deve dominar todos os tratamentos pharmaceuticos e outros.Como prophylaxia, é inútil dizer que a sobriedade é o primeiro tratamento; a sobriedade e não a abstinência, mas a medida sabia- mente applicada ás condições de edade, sexo, constituição, clima, e que é preciso dizel-o, se regula muito mais pelo exemplo do que pelos conselhos ; por conseguinte o exemplo como principio de educação physica e moral, o exemplo na infância, o exemplo na família, o exemplo em todas as regiões sociaes ; eis ahi a verda- deira prophylaxia do alcoolismo; e sob esse ponto de vista a admi- nistração ou mesmo a legislação podem intervir com efficacia em nome da hygiene e da moral publica.» (Jolly, citado por Magnan. A' exemplo dos norte-americanos, muitos povos da Europa têm fundado sociedades de temperança, com o fim de, empregando meios suasorios e tornando conhecidos os effeitos deletérios do álcool, evitar esse abuso. Essas sociedades têm dado muito bons resultados, e o seu nume- ro eleva-se hoje a centenas e o numero dos associados a milhares. D'entre os seus sócios são escolhidos aquelles que, por sua reconhe- cida illustraçao e por sua posição social, exercem influencia sobre o povo, para, em conferências publicas, mostrar ao povo os effeitos perniciosos do abuso do álcool. E, por esse meio, essas sociedades têm conseguido grandes e incontestáveis benefícios, o que demons- tra que, para ser efíicaz a reacção contra o álcool, deve partir do povo. O Dr. Roulet, em um brilhante discurso pronunciado no Con- gresso de Hygiene de Gênova do anno passado, depois de ter mos- trado os deletérios effeitos do abuso do álcool e a grande mortali- dade dependente d'esse abuso na Suissa, propõe as seguintes medidas : « A sociedade tem o dever de luctar energicamente contra o fla- gello do alcoolismo. Ella o deve fazer não só por intermédio do Estado como dos individuos e das associações livres. « O Estado deve empregar os seguintes meios : « 1.' Impostos sobre a fabricação e a venda das bebidas distilla- das, os quaes serão tanto mais elevados, quanto maior for a quanti- dade de alcools impuros contida nessas bebidas; « 2.° Direitos mais elevados para as vendas que, ao lado das bebidas fermentadas, venderem bebidas distilladas; «3.° Exame rigoroso das bebidas, tanto fermentadas como dis- tilladas, que são vendidas ao povo, e penas elevadas sobre os ven- dedores dê bebidas alteradas ou falsificadas ,• « 4.° Legislação rigorosa para os estabelecimentos onde são for- necidas ao povo bebidas fermentadas e distilladas,- « 5.° Repressão da embriaguez publica habitual e voluntária. Os individuos e as associações intervirão do seguinte modo ; — 93 - « Io a. Pela formação de sociedades que tenhão por fim com- bater o abuso das bebidas alcoólicas, não só pelo exemplo dado por seus membros, como pela propaganda á favor da temperança. « 2o b. Pela formação de sociedades que tenhão por fim forne- cer habitações por preço commodo ao povo e que cooperem para a manutenção da classe pobre. « 3o c. Pela formação de sociedades que auxiliem a fabrica- ção de bebidas úteis, econômicas e de boa qualidade. « 4o d. Pela publicação de obras onde o povo possa ler e ver os deletérios effeitos do abuso do álcool e as vantagens da tempe- rança. « 5o e. Pela organisação de instituições que possão substituir as vendas, fornecendo á classe operaria passatempos outros além das tabernas. » Nem todas essas medidas sonvêm ao nosso paiz, mas ha algumas d'ellas que nos parecem applicaveis, principalmente hoje que se trata de fundar na nossa Faculdade um laboratório de hygiene. N'essa mesma sessão do Congresso de Hygiene o Sr. Barão de Theresopolis, como representante do Brazil, propõe como prophyla- tico do alcoolismo o café, nos seguintes termos : « Je prétend, Messieurs, qu'il y a en realité un antagonisme physiologique entre le café, d'un cote, les alcooliques et 1'opium de 1'autre. L'usage habituei du café rend Torganisme d.e rhomme bien moins susceptible parfois refractaire aux insultes de 1'alcoo- lisme. Cest á 1'action préventive du café que j^ntends devoir rattacher 1'étonnante tempérance de mes compatriotes, qui va dans de nombreuses familles jusqu'á 1'aversion absolue pour les bois- sons alcooliques. Les miens sont du nombre 1 » E ao terminar o seu discurso, acceitando as medidas propostas pelo Dr. Roulet, elle accrescenta a seguinte para ser incluída no art. 3e — c — do Dr. Roulet — : « e particularmente pela torre- facção e venda do bom café, que constitue a bebida a mais hygie- nica e útil contra o alcoolismo. » Si não podemos contestar com estatísticas a opinião do Sr. Barão de Theresopolis, que considera o Brazil como uma « sociedede geral de temperança », contrapomos a ella a mui auctorisada opinião do Sr. Conselheiro Torres Homem que considera o alcoolismo fre- qüente entre nós, e, se nos fosse permittido, invocariamos aquillo que nos mostra a observação diária nas enfermarias de clinica. Passemos ao tratamento curativo. No tratamento curativo o clinico tem de dirigir a medicação, ora contra a intoxicação em si, ora elle tem de attender ás múlti- plas determinações mórbidas do alcoolismo, dirigindo a medica- ção contra este ou aquelle symptoma que domina a scena mórbida. Aqui ainda o tratamento hygienico corre parelhas com o trata- mento curativo. - 94 - Assim, a primeira indicação é obter do doente que elle deixe seus funestos hábitos, regulando-lhe a abstinência. Para conse- guir este desideratum, não se pôde prescrever regra geral, com- pete á sagacidade do clinico ver o melhor recurso para o caso par- ticular, tendo muito em vista a causa que levou o doente ao abuso das bebidas alcoólicas. Assim, si se trata de um individuo que bebe por viver na ociosidade, elle deve dar-lhe occupação, tendo sempre em vista o estado do seu organismo e o estado da circula- ção cerebral d'esses desgraçados ; si se trata de um individuo que bebe por causa de um pezar que o opprime, é preciso proporcio- nar-lhe distracções e exercícios. Tendo, portanto, em vista a causa que deu origem ao abuso das bebidas espirituosas, o clinico empregará os meios que julgar convenientes. A privação brusca do excitante, que o habito tornou necessário e indispensável ao organismo, tem dado conseqüências funestas, porisso a abstinência será graduada e progressiva. Completa os cuidados hygienicos um regimen tônico e recons- tituinte adequado ás condições do tubo digestivo e ao estado geral do individuo. Alguns auctores têm procurado, addicionando álcool aos ali- mentos e ás bebidas dos alcoólicos, inspirar-lhes aborrecimento por esses líquidos, fazendo assim com que elles deixem de beber. Este meio não tem dado resultado satisfactorio, e em muitos casos essa intoxicação artificial tem determinado a morte. Outros, addicio- nando aos alimentos e ás bebidas dos alcoólicos o óleo infecto de certos alcools, procurarão determinar o mesmo effeito ; porém este meio não só é de difficil applicação, como também não tem dado resultado satisfactorio. Os preparados de nox-vomica, administrados quer internamen- te, quer em injecções hypodermicas, têm dado bons resultados nas mãos do Dr. Luton, já fortificando o systema nervoso, já accele- rando as digestões, augmentando a tonicidade das túnicas muscu- lares gastro-intestinaes. Contra as perturbações do systema nervoso tem-se aconselhado diversos meios, conforme a modalidade symptomatica, e entre esses, o ópio, a morphina, se ha convulsões ou allucinações ; o óleo empyreumatico, (fermentoleum solani) na dose de 25 a 30 cen- tigr., para combater o tremor e as diversas perturbações do tubo digestivo ; a assa-fetida e a camphora, nos casos de epilepsia ; a estrychnina e o phosphoro para combater a fraqueza muscular, a paralysia, a anesthesia e a obtusão intellectual. Para combater esses mesmos accidentes Marcet preconisa o oxydo de zinco em doses crescentes até 0,40, começando por 0,10. Pára combater as diversas manifestações mórbidas que se dão, quer para as visceras abdominaes, quer para as thoraxícas, os agentes são os mesmos que os aconselhados para combater essas entidades mórbidas, quando dependentes de outras causas. — 95 — A cura do alcoolismo, assim como as indicações á preencher (Lanceraux) baseão-se na natureza da causa e das lesões anatô- micas. As lesões, como sabemos, são de duas espécie?— degenerescencia gordurosa dos órgãos e inflammação chronica especial. Em periodo adeantado é difficil obter a cura ; no primeiro caso, por causa da profunda modificação por que passou o elemento orgânico ; no se- gundo, por causa da organisaçao completa e definitiva do neoplas- ma membrauoso ou parenchymatoso. Mas no começo, diz elle, essas alterações, como é de presumir, podem ser vantajosamente influen- ciadas pelos agentes therapeuticos, comtudo, accrescenta elle, esses agentes nos são desconhecidos ; e propõe, sem recommendar, as inhalações de oxygeno, admittindo que a degenerescencia gor- durosa depende d'uma falta de oxydação do sangue. E, pela analogia que as hyperplasias conjunctivas apresentao com certas lesões syphiliticas, elle propõe o arsênico, como análogo ao iodureto de potássio. Magnan aconselha mesmo este ultimo agente therapeutico. Contra os accidentes nervosos são ainda indicados oshromuretos alcalinos, os banhos prolongados e os sedativos em geral. Os pur- gativos, manejados com prudência, são úteis em todas as formas e em todos os gráos do alcoolismo, já contra as perturbações diges- tivas, já descongestionando os centros nervosos por sua acção revul- siva sobre o tubo digestivo. Em diversos períodos do alcoolismo o clinico terá de recorrer muitas vezes a sequestração ou á vigilância attenta do doente, reu- nindo-lhe o exercício physico de accôrdo com o estado geral do doente e distracções de todo o gênero, substituindo por esses meios a falta de estimulo a qut estava habituado. O estado de anemia e cachexia a que chegão os alcoólicos exige um tratamento tônico, do qual constituem a base as preparações de ferro, quina, a hydrotherapia, etc Não ha duvida que, em muitos casos, póde-se obter com qual- quer d'essas medicações resultado satisfactorio, mas não se deve esperar a cura completa do doente, e sim acção palliativa por parte d'essas medicações. Como se vê, a maior parte d'esses medicamentos são indicados para combater este ou aquelle symptoma, que está ligado a exis- tência de uma lesão material e irremediável; o alcoolismo, portan- to, não tem especifico. Duas palavras sobre o tratamento do delirium tremens e da ly- pemania. Seria longo enumerar a serie de methodos e medicamentos empregados pelos diversos auctores para combater o delirium íre« mens : lembraremos ligeiramente os principaes. O delirium tremem, na maioria dos casos, cura-se sem tratamento (Fournier) e^ dos numerosos ensaios therapeuticos, resulta que — 96 — não ha espesifico contra elle e nenhum tratamento applicavel a todos os casos. O ópio, em doses moderadas, tem dado bom resultado em alguns casos. A tinctura de digitalis, em dose elevada, tem dado bons resul- tados nas mãos de diversos práticos ; e, entre elles, Jones que ad- ministrava uma dose de 12 gr. em um pouco d'agua, quatro horas depois dose egual, e algumas vezes uma terceira dose de 6 gr. E, diz o auctor citado, n'essa dose ella produz somno e determina a cura ; longe de deprimir o pulso, ella torna-o mais cheio, mais forte e mais regular, e não determina symptoma inquietador. N'essa dose a digitalis parece actuar (Jones) antes sobre o cére- bro do que sobre o coração. Em um caso, no espaço de 10 horas, Jones elevou a dose a 36 gr., e para elle o perigo está nas doses pequenas. O chloroformio em inhalações repetidas produz, segundo certos auctores, uma sedação instantânea seguida de cura rápida e com- pleta. Para Richardson, porém, não só elle não tem vantagem, como é mesmo perigoso. E' preciso ter em vista (Jaccoud) as condições em que apparece o delirio ; si depende da suppressão brusca do álcool, este é indi- cado ; si apparece depois dos excessos, são indicados os calmantes (ópio, digitalis, chloral) ou a simples expectação, dando-se ao álcool tempo de exgottar sua acção. O diagnostico differencial entre o delirium tremens febril e o delirium tremens associado ás affecções intercurrentes (Magnan) é indispensável para se estabelecer uma therapeutica racional. O delirium tremem, associado ás affecções intercurrentes, apre- senta-se sob fôrmas as mais diversas e fornece indicações especiaes, segundo a moléstia a que está associado. No delirium tremens febril o doente apresenta grande agita- ção, d'ahi a indicação : Proteger o doente e as pessoas que o cer- cão (sequestração); e como, mesmo depois dos excessos, o álcool conserva-se no organismo, d'ahi a indicação. Fazer com que o álcool se elimine; e como á excitação succedem o collapso e a prostração, d'ahi a indicação : Sustentar e levantar as forças do doente (Magnan). Para preencher a primeira indicação Magnan propõe a seques- tração por meio do artificio, por elle imaginado, com o fim de evi- tar os inconvenientes da camisola de força. O doente, por esse meio, transpira abundantemente e respira com facilidade, d'onde duas portas abertas para eliminação do álcool, ás quaes virá au- xiliar o emprego de bebidas diuretiras. Para combater a prostração e o callapso que succedem á agita- ção, recorre-se aos tônicos e à boa alimentação. A lypemania cura-se espontaneamente. Assim todas as medi- cações (ópio, purgativos, duchas, etc) tem dado resultado. O co- nhecimento da marcha natural dos phenomenos levou os patholo« - 97 — gistas á estabelecerem ura tratamento simples : isolamento do doente, cuidados hygienicos, distracções ou occupações diver- sas, etc. Quando a moléstia progride e tende a terminar-se pela paraly- sia geral, os revulsivos, os derivativos intestinaes e sobretudo o aloes, dão bons resultados. N'este periodo Magnan propõe o uso do iodureto de potássio e Foville o do arsênico. Terminando, o alcoolismo chronico não tem especifico; as indi- cações consistem, portanto, em afastar as causas, regulando a abstinência, e depois combinar judiciosamente a hygienie e a the- rapeutica, com o fim de melhorar a nutrição, as funccões de as- similação e despertar a acção nervosa enfraquecida. N. tia lü I PROPOSIÇÕES cadeira de medicina legal e toxicologia LETHALIDADE DOS FERIMENTOS i A lethalidade dos ferimentos merece da parte do medico-legista attenção seria ; porquanto o legislador consagra no art. 195 do Código ei irainal a indispensável necessidade do seu juizo n'essa questão. II A distincção antiga entre os diversos gráos de lethalidade (le- thalidade absoluta e relativa) dos ferimentos não tem importância pratica. iii Comquanto o legislador não tenha definido a palavra mortal, o art. 195 do Código criminal parece ter determinado a sua signi- ficação. IV Comprehendida assim a significação da palavra mortal, o perito terá de responder se «o ferimento em questão» pôde ou não deter- minar a morte, e deve fazei-o com a maior reserva. v Para dar essa resposta, elle deve ter em vista o principio esta- belecido por Foderé : « Tudo quanto não depender propriamente da natureza do ferimento, não pôde ser imputado ao seu auctor » . vi Este principio, embora de um modo restricto, parece ter sido estabelecido pelo art. 194 do Código criminal. VII O medico legista deve ter muita reserva, quando tiver de dar o seu juizo sobre uma moléstia que determinou a morte durante q tratamento de ura ferimento, — 102 — vm Não raras vezes determina a morte um ferimento, que a prin- cipio não inspirava receio, e vice-versa, termina-se felizmente outro de que se esperava a morte ; portanto é muito difficil decidir a priori da lethalidade dos ferimentos. IX Ha alguns ferimentos que, em certas e determinadas condições, são as mais das vezes mortaes, quer subitamente, quer alguns dias e mesmo algum tempo depois. x Assim, os ferimentos do coração e principalmente os penetran- tes, os ferimentos profundos do pulmão, do diaphragma, da tra- chéa, da aorta, das carótidas, etc determinão a morte na maioria dos casos. XI Os ferimentos do estômago, dos intestinos, do figado, baço, rins, as vastas queimaduras, etc. determinão quasi sempre a morte. XII Os ferimentos do cérebro, cerebello, bulbo, medulla, etc, tam- bém determinão a morte na maioria dos casos. cadeira de clinica cirúrgica DIAGNOSTICO DA COMMOÇÃO E CONTUSÃO CEREBRAL i A. commoção e a contusão cerebral são observadas depois de traumatismos, que actuao sobre o craneo, quer directa, quer indi- rectamente. II A commoção e a contusão cerebral não apresentao symptomas bem distinctos e determinados, de maneira que o diagnostico dif- ferencial entre essas duas entidades mórbidas é sempre difficil. III A perda do conhecimento, do movimento e da sensibiljdade, a resolução muscular, sem paralysia nem contractura, sobrevindo logo depois do traumatismo, indicão commoção cerebral. IV O decrescimento gradual d'esses phenomenos e a volta mais ou menos rápida das funccões viráõ confirmar o diagnostico. v A contusão cerebral é as mais das vezes suspeitada do que re- conhecida no leito do doente (Follin), e na máxima maioria dos casos ella só pôde ser suspeitada depois do apparecimento dos phe- nomenos inflammatorios, VI Reconhecida qualquer d'essas affecções, é preciso saber se ella existe só ou si ao lado d'ella existe uma lesão concomitante do encephalo. Vil A epocha de apparecimento dos accidentes em relação a data do traumatismo nâo tem o pretendido valor. - 104 - vni Os movimentos convulsivos, a agitação e a paralysia, conside- rados symptoraas característicos da contusão, a somnolencia e o coma, considerados característicos da commoçãu, não merecem esse valor. IX Os commemorativos, as circumstancias minuciosas do accidente, o modo por que se deu o traumatismo, a fôrma, o volume e a con- sistência do agente que determinou o traumatismo, são de grande valor para o diagnostico differencial d*essas duas affecções. x Em geral um gráo menor de violência é uma presumpção era favor da commoção, um gráo mais elevado é em favor da contusão. XI Os signaes ophthalmoscopicos differenciaes, indicados por Bou- chut, não tem o valor dado por elle ; porquanto a maior parte d'el- les tem sido encontrada em outras lesões traumáticas do ence- phalo. XII O diagnostico differencial, portanto, d'essas duas affecções é muito difficil e muitas vezes impossível, tanto mais quanto ellaa coexistem era muitos casos. CADEIRA DE CLINICA MEDICA QUAL O TRATAMENTO QUE MAIS APROVEITA N^S CASOS DE ANEURISMA DA AORTA? i Não ha tratamento algum que possa ser indicado, de um modo geral com exclusão dos outros, nos casos de aneurisma da aorta ; o clinico, deante de um caso d'essa affecção, terá de lançar mão de uma medicação complexa, attendendo ás variadas indicações. O tratamento será ora palliativo, ora curativo. II Seja qual fôr o tratamento empregado, o medico procurará, tanto quanto fôr possível, o repouso do corpo e do espirito para o seu doente, reunindo á esses cuidados uma alimentação apropriada. in O methodo de Albertini e Valsalva, que consiste em fazer com que o doente se conserve no leito durante quarenta dias, de- pois de uma ou duas sangrias, e sujeito a um regimen dietetico severo, não deve ser empregado, e está hoje completamente aban- donado. IV O methodo de Tufnell, que se approxima do precedente, cora a differença de que Tufnell proscrevia a sangria, e só empregava o repouso, uma dieta severa e a privação tanto quanto possível das bebidas, com o fim de augraentar o poder de coagulação do san- gue, é de applicação difíicillima e está completamente abandonado. v A compressão não só não apresenta vantagens, como é mesmo perigosa, fazendo destacar coágulos que irão constituir embulos e determinar effeitos desastrosos ; sirva de prova o facto de Tillaux. VI As injecções hypodermicas de ergotina, feitas nas visinhanças do tumor, com o fim de obter a retracção gradual do aneurisma, não merecem a confiança que lhes dava Langenbeck, mas devem ser applicadas com o fim de auxiliar o iodureto de potássio. N. 63 14 — 106 — VII As applicações refrigerantes, por meio de saccos de gelo sobre o tumor ou no ponto do thorax correspondente, comquanto tenhão seus inconvenientes, têm dado bons resultados, determinando a retracção do sacco aneurismal, quando associadas a outros meios. VIII O acetato de chumbo, que deu bom resultado nas mãos de di- versos práticos, está hoje abandonado e não merece a confiança que lhe davão aquelles que o preconisavão. IX Ha um meio, empregado pela primeira vez por Ciniselli, que tem ultimamente attrahido a attenção dos diversos práticos e que tem sua indicação em certos e determinados casos : referimo-nos á electrolyse. x Este methodo, para ser empregado, requer certas condições in- dicadas pelos auctores, taes como : um aneurisma de data recente, pequeno, em fôrma de ampola lateral e que só communique com a luz do vaso por um pequeno orifício, ausência de collateral ao nivel do sacco aneurismal, integridade do coração e dos vasos e bom es- tado geral do doente. XI A electrolyse exige, para ser empregada, uma precisão quasi mathematica de diagnostico, qje só pôde ser encontrada em um clinico que disponha de sentidos bem adestrados, convenientemente educados, e de longa observação. XII O tratamento pelo iodureto de potássio, combinado ás ínjecções hypodermicas de ergotina, é o que tem dado melhores resultados nas mãos dos diversos práticos. HIPPOCRATIS APHORISMI I Potu quam cibo refici proclivius est. Sect. II. Aph. 11». II Famera vini potio solvit. r Sect. II. Aph. 21». III Si ebrium quempiam vox deficiat derepente, convulsus moritur, nisi eum febris prehendat aut qua hora crápula solvi solet ad vocem redeat. „.».«- Sect. V. Aph. 5». IV Quibus bibendi de nocte appetentia est, iis admodum sitienti- bus, si obdormierint, hono est. Sect. V. Aph. 27». V Ex multo potu rigor et delirium, malum. Sect. VII. Aph. 7". IV Anxíetudinem, oscitationem, horrorem, vinum cequali aqua temperatum epotum solvit. Sect. VII. Aph. 56». Esta these está conforme os Estamos. Rio de Janeiro, 29 de Setembro de i883. -=-^é. CGac£ano- cie <=Qr/fnei't/ci. £$U £%ent'cw t/e JDtfútete. £2?t. €écaZ> £%u/ÁZe*.