FACULDADE DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO THKSE DO |r. fnix ínfonia d;t wtos 18 7 6 1 I h Secção de Sciencias Medicas.- Caieira ie Pathologia (Feral DIATHESE E MOLÉSTIAS DIATHESICAS. aawessiéss Secção de Sciencias Accessorias -Caieira lie Piiysíca MATÉRIA, FORÇAS, MOVIMENTOS. Secção de Sciencias Cirúrgicas - Caieira ie Anatomia geral 6 patliologica DO CANCRO. Secção de Sciencias Medicas.--Caieira ie PatholOgia geral DO ESTADO PATHOLOGICO EM GERAL. THE SE APRESENTADA à FACULDADE DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO EM 30 DE SETEMBRO DE 1876 E PERANTE ELLA SUSTENTADA EM 20 DE DEZEMBRO DO MESMO ANNO (SENDO APPROVADA COM DISTINCÇÃO) POR ■ £uij Intonio da Sitoa Santos Doutor em Medicina pela mesma Faculdade, ex-interno de cirurgia dos Drs. Saboia, Miranda e Pedro Affonso no Hospital da Misericórdia, e dos Drs. Feijó, José Lourenço e Pereira Guimarães, na Casa de Saude de N.a S.a d'Ajuda NATURAL RO RIO l)E JANEIRO (CANTAGALLO) FILHO LEGITIMO DE J\£anoet Vieira da \ Silva Santos E DE Joanna Oaoemina jVíonteiro dos Santos RIO BE JANEIRO Typogeaphia Universal de E. & H. Laemmert 71, Rua dos Inválidos, 71 1876 FACULDADE DE MEDICINA DO 1110 DE JUEIIIO niRECTDR Conselheiro Dr. Visconde dk Santa Izabel. VICERIRECTOR Conselheiro Dr. Barão de Theresopolis. SECRETARIO Dr. Carlos Ferreira de Souza Fernandes. EEATES CATHEDR ÁTICOS Doutorem PRIMEIRO ANNO F. J. do Canto e Mello Castro Masearenhas (Ia cadeira). Physica em geral, e particularmenlc em suas ap- plicações á Medicina- Manoel Maria de Moraes e Valle ... (2a » ). Chimica e Mineralogia. Luiz Pienlzenauer(3a » ). Anatomia descriptiva. SEGUNDO ANNO Joaquim Monteiro Caminhoá . . . . (Ia cadeira). Botanica e Zoologia. Domingos José Freire Júnior .... (2a » j. Chimica organica. Francisco Pinheiro Guimarães .... (3a » ). Physiologia. Luiz Pienlzenauer(4a » ). Anatomia descriptiva. TERCEIRO ANNO Francisco Pinheiro Guimarães .... (Ia cadeira). Physiologia. Cons. Anlonio Teixeira da Rocha . . . (2a » . Anatomia geral e palliologica. Francisco de Menezes Dias da Cruz. . . (3a » ). Palhologia geral. Vicente Cândido Figueira de Sahoia . . (4a » ). Clinica externa. QUARTO ANNO Anlonio Ferreira França . . . . (Ia cadeira). Palhologia externa. João Oamasceno Peçanha da Silva . . . (2a » ). Palhologia interna. Luiz da Cunha Feijó Júnior(3a » ). Partos, moléstias de mulheres pejadas e de recem-nascidos. QUINTO ANNO João Damasceno Peçanha da Silva. . . (Ia cadeira). Palhologia interna. Francisco Praxedes de Andrade Pertence. (2a » ). Anatomia topographica, medicina operatória e apparelhos. Albino Rodrigues de Alvarenga (examinador) (3a » ). Matéria medica e therapeulica. SEXTO ANNO Anlonio Corrêa de Souza Costa (examinador) (Ia cadeira). Hygiene e historia da Medicina. Barão de Theresopolis(2a » ). Medicina legal. Ezequiel Corrêa dos Santos(3a » ). Pharmacia. João Vicente To res-Homcm . (ia » ). Clinica interna. Agostinho José de Souza Lima Benjamin Franklin Ramiz Galvào João Joaquim Pizarro. João Martins Teixeira (examinador) Augusto Ferreira dos Santos IJEATES SUBSTITUTOS >Secção de Sciencias Accessorias. Cláudio Velho da Moita Maia José Pereira Guimarães Pedro AÍTonso de Carvalho Franco Anlonio Caetano de Almeida Secção de Sciencias Cirúrgicas. José Joaquim da Silva João José da Silva João Baplista Kossulh Vinelli > Secção de Sciencias Medicas. <V.A Faculdade não approva nem reprova as opiniões emitlidas nas Theses que lhe são apresentadas AOS MANES DE Meu honrado Pae. Á SENTIDA MEMÓRIA DE 11I1THA CÁKA JLTÓ PATEK1TA. W JBK JESMEOZrak >LA_ DE Minha Virtuosa Amiga D. Paula Alves de S. Pedro E tlc seu digno filho JERONYMO VIEIRA TORRES. AOS MANES D E MEUS AVÓS. Á MINHA BOA E CÁRA MÃE A Exma. Sr a. ®. MARIA WLALIA MATOITT AO MEU PREZADO IRMÃO BW WHKIO M mH Mfflà AO MEU CÁRO CUNHADO E PROTECTOR MK ¥HÍM. WWBS ÀS MIH1H8 WftTTOSAS MAS D. Julia Cacemira da Rocha D. Adelaide Cacemira Torres D. Maria Cacemira Ritter Nunes D. Eugenia Cacemira dos Santos AOS MWS CÁMS BMÁM Dr. José Veríssimo dos Santos João Veríssimo dos Santos Augusto Veríssimo dos Santos Manoel Vieira da Silva Santos Á memória de minha irmã D, Maria Cacemira da Silva Santos E de meus innocentes irmãos VIRGÍLIO E HORACIO. Á MINHA CUNHADA E PRIMA S. jraAWCXSCâ CAfflWMA BTOOW E A SUA DIGNA FAMÍLIA A meu cunhado Augusto Correia da Rocha Á MEMÓRIA DE 31 EU CUNHADO Francisco Leite Ritter Nunes A Exma. Sra. B. WA®WA CíIKBBYH. MABBITY E Á SUA DISTINCTA FAMÍLIA AOS MEUS PARTICULARES AMIGOS Manoel da Costa Sampaio Franklin Hermogeneo Dutra José Affonso Fontainha Julio Cesar Torres Rangel AO MEU BOM AMIGO E COMPANHEIRO DE INTERNATO DA CASA DE SAÚDE pR. pATURNINO pIMPDICIO DE pALLES yEIGA E à SUA EXMA. ESPOSA AOS DISTINCTOS AMIGOS E BENEMERITOS MINEIROS ®a. siw» nanas m wbs E BERNARDO SATURNINO DA VEIGA Aos flípos directores da Casa de Sande de N.a S.a d'Ajnda ffi&EJiWIL <U©A©©Hffi KBIEákS E DR. JOSÉ LOURENÇO J)E MAGALHÃES m mb® «b« E MUITO ILLUSTR VDO MESTRE ® St. ®r. J)edro Afonso /ronco AOS MEUS OOL1EOAS BE AMO AOS MEIS PAEEKTES E AMOS AOS MEUS EXAMINADORES DE THESE Os Srs: Dr. José Martins Teixeira Dr. Albino Rodrigues de Alvarenga Dr. João Vicente Torres Homem Dr. Antonio Corrêa de Souza Costa à ILLUSTRADA FACULDADE DO RIO DE JANEIRO AOS MEUS CONTEMPORÂNEOS DE ESCOLA A SKSSBASS SAíWABAto-S®® PAG. L1KH. EM VEZ DE LÊA-SE 9 31 persistente preexistente 26 8 Erasistrato Herophilo 30 7 exigir erigir 58 13 estas aquellas GO 27 natureza mesma das anatomia mesma e das func- funcções ções 61 19 diatliesicas chronicas 78 15 quatro cinco 79 5 affecções affecções chronicas 83 18 no ou 101 3 agentes elementos KSSEWiÇÀ® BISSfflTâCÃO 1111 1'0(1 U('(;ão On ne peut attendre de grands progrès dans una Science oú la méthode philosophique a été negligée, que lorsqu'on renouvelle le corps entier de la doctrine, conformément aux vrais pinncipes de cette méthode. (Barthez- Science de 1'homme, pag. 3.) Frustrà magnum expectactur augmentum in scientiis ex superinductione et insitione novum super vetera, sed instauratio facienda est ab imis fundamentis, nisi libeat perpetuo circumvolvi in oibem cum exili et quasi contemnendo progressu. (Bacon- Nov. Org., Aphor. XXI.) Estudando com o máximo cuidado, nos auctores principaes e. dos mais competentes que têm escripto sobre o nosso ponto, as idéas dominantes e os principios fundamentaes, que têm dirigido e os que dirigem ainda a eminente questão da -diathese-, passa'mos pelo immenso desgosto de vir encontrar ahi, n'esse canto obscuro da sciencia, tudo por crear-se ainda, tudo por começar. Nada rigorosa mente ha de fixo, de scientificamente estabelecido; tudo ahi soffre controvérsia e discute-se ainda sem proveito, desde os principios elementares da questão até as conclusões extremas e 4 as classificações arbitrarias, que correm em livros diversos e nas Pathologias geraes como cousa sufficieniemente estabelecida. Isso, porém, tem uma razão de ser clara a todo o espirito des- prevenido e disposto a aceitar os princípios que a lógica e a sã philosophia nos ensinão. Assirn, a eterna e infecunda discussão encetada pelos pathologistas e travada até hoje com ardor, sob a protecção dos systemas, pecca essencialmente pela base. O vicio capital está no ponto de partida, e bem assim n'aquillo que geralmente passa como verdade elementar, axioma physiologico, e que não é mais do que uma creação arbitraria e gratuita de espíritos abstractos. O ponto de partida foi asynthese, uma concepção synthetica, e por isso mesmo viciosa em sciencias biológicas. Devia ser aanalyse. Bordeu, um dos primeiros sábios que se entregou com interesse ao estudo desta matéria, aceitou dos antigos a palavra diathese e com ella a synthese abstracta, mal concebida, de disposição geral mór- bida ou morbigenica, que nella julgava encerrar-se como noção de um facto positivo. Os auctores que lhe succedèrão basearão os seus estudos e, portanto, as suas conclusões nos mesmos princípios e nas mesmas premissas viciosas do seu introductor. E, assim formada a magna questão, passou de éra em éra, variando intinitamente de fórma, porém conservando sempre o fundo capcioso, a base incon- sequente e nulla, sobre que a philosophia a mais deplorável, o anti-philosophismo dos clinicos e a medicina abstracta dos systemas levantou um edifício monstruoso, disforme e anachronico, que a cada toque se esboroa e a cada passo se remenda. A sciencia deve agradecer, por esse triste resultado que teve o trabalho accumulado de muitos annos, muito principalmente ao exclusivismo das doutrinas medicas, que, assim constituídas, hão de subjugar eternamente as inducções da sciencia aos ca- prichos da phantasia e ás concepções absolutas da razão, pre- terindo a todo o transe a analyse em favor da synthese. Com 5 effeito, é innegavel a influencia quasi paternal que tem constante- mente exercido e continuão ainda hoje a exercer essas encon- tradas doutrinas sobre a questão da - diathese- aliás simples em seus dados objeclivos e por demais accessivel ás investigações da analyse. Armemo-nos dos bons preceitos que a lógica nos ensina, expul- semos do nosso espirito essa multidão de theorias phantasticas, que a tradição nos legou, e encaremos então o problema em seus dados elementares. Importa, primeiro que tudo, considerar que não ha philosophia medica possivel, racional e consequente, sem uma physiologia e anatomia pathologica real, em que ella se basèe. Ora, estas ultimas sciencias também não podem absolutamente existir, sem a ana- tomia e physiologia normal. Como se poderá, pois, estabelecer uma theoria sobre a diathese, sem uma anatomia e uma physiologia d'esse estado morbido? E como será, ainda, possivel uma anatomia e uma physiologia pathologica da diathese, sem o estudo prévio da ana- tomia e physiologia normal que lhe dizem respeito? A unica base racional, por consequência, sobre que se póde le- vantar uma theoria estável c fecunda para a sciencia e para a clinica, é sem duvida alguma a anatomia e a physiologia pathologica, racio- nalmente deduzidas da confrontação dos phenomenos morbidos essenciaes com as disposições normaes da nossa economia. Foi o que, no curto lapso de tempo que consagrámos ao presente trabalho, nos esforçámos por obter quanto possivel, partindo para isso dos conhecimentos actuaes de anatomia e physiologia normal, capazes de explicar a evolução latente, o movimento apparentemente disparatado, a perpetuidade tenaz e a transmissibilidade por herança de certo numero de moléstias chronicas, que o consenso quasi una- nime dos clinicos e palhologistas assenta em denominar -dia- thesicas. Todos os nossos esforços convergirão, pois, na confecção d'este 6 incompleto trabalho para um fim determinado, isto é, propor aos competentes da sciencia uma anatomia e uma physiologia da diathese, e com ella uma pathogenia positiva das moléstias diathe- sicas. Não nos foi, infelizmente, possível dar a essa ultima parte o desenvolvimento que desejávamos, em virtude do pouco tempo que reservámos para isso. Deixamol-a apenas esboçada. Quanto ao es- tudo especial das moléstias diathesicas, não o fizemos, como preten- dêramos, para não deixal-o incompleto; porquanto, sob o dominio dos princípios que defendemos n'este trabalho, esse estudo se torna extremamente vasto e complexo. Tal é, em resumo, o plano que aqui seguimos, ou melhor, a direcção que demos á sua execução. Comprehende-se, entretanto, que o laborioso empenho a que nos dedicámos não é mais do que um ensaio, a que o assumpto mesmo naturalmente convida, e que, assim como pode conquistar algum resultado positivo, pode igual- mente submergir, como outras tentativas similhantes, em um com- pleto desengano. Oxalá que a mais cruel das decepções não esteja reservada para as concepções que com sincera fé cultivamos em nosso espirito, e que a palavra julgadora de nossos mestres não venha desencan- tar-nos de uma seductora illusão no momento mesmo em que lhes pedimos mais luz. Diatee e moléstias iiateiras Mesumo Ijisíorico Para dar uma idéa justa e precisa da maneira por que tem sido considerada a noção abstracla que em pathologia geral se denomina hoje-díathese- convém de um modo absoluto fazer em rápido exame a historia da própria pathologia geral. Com effeito, até os princípios do século xvm, a contar desde os tempos os mais obscuros da Medicina, a noção de -díathese - palavra grega que quer dizer disposição, confundia-se com a própria noção de moléstia. O organismo que adoecia d'esta ou d'aquella maneira tinha ipso facto em si mesmo uma disposição para adoecer n'este ou n'aquelle sentido. Havii, pois, no entender dos antigos para cada moléstia uma diathese correspondente. O antagonismo da moléstia e da saúde lembrou ao espirito esclarecido de Aristoleles que, assim como havia uma disposição para adoecer, era forçoso que houvesse igualmente uma dispo- sição ingenita e perpétua para conservar a saúde; e, pois, veio a admittir duas especies de diatheses, a saber: uma díathese de saúde e uma diathese de moléstia. A essas noções simples succedêrão outras um pouco mais complexas com o apparecimento da doutrina dos humores; 8 fôrão os seus creadores Herophilo e Praxagoras, precursores de Galeno. Já então, a disposição vaga e indeterminada, para a qual se appellava como causa dominante e obrigada do estado hygido e do estado morbido, começava a ter uma interpretação analytica e a soffrer um exame rnais descriplivo e minucioso. A disposição que preside á conservação do organismo no seu estado normal (diathese de saúde de Aristoteles) passava a ser, para os creadores do humorismo antigo-a justa propor- ção dos humores naturaes. O accrescimo ou diminuição, em qualquer gráo, de um dos humores preexistentes, era - a dia- these de moléstia ou disposição mórbida. Pelas mesmas modificações e por transformações parallelas áquellas por que passou o velho humorismo, passou igualmente a noção primitiva da diathese. Assim, vemos Galeno instituir em corpo de doutrina os seus quatro humores cardeae», dando á predominância de cada um d'elles um papel absoluto na producção das moléstias. Vemos depois apparecer em campo a chimiatria arvorada em doutrina medica por Le Boê (1614-4672). Com as suas reacções acidas e alcalinas, attribuia esta doutrina ás variações que offerece o sangue em suas propriedades chimicas uma importância exclu- siva para explicar o mesmo facto. Outros doutrinários da antiga medicina são os humoro-vitalistas, que appellão para as proprie- dades vilães dos humores, em substituição ás propriedades phy- sicas ou chimicas incapazes de explicar as infinitas variações que o estado morbido apresenta. Mas os humores não são dotados de vida, nem a podem pos- suir; as propriedades vitaes competem sómente aos solidos. Assim pensão successivamente Erasistrato - o adversário de Herophilo, Themison (200), fundador do methodismo, e seus successores, Thessalus (de Tralles), Soranus (de Epheso) e Caelius Aurelianus. 9 Paracelsus (1498 - 1546) funda o vilalismo absoluto. As pro- priedades erradamente attribuidas aos solidos do organismo não lhes pertencem sinão como effeitos de um principio universal, sine matéria, que dirige todos os phenomenos da natureza--tal é o seu archêo. Van-Helmont (1577-1744) inspira-se no idéal de Para- celsus e crêa archêos a seu capricho. Slahl (1660-1734) ensina a seus discipulos que o principio da vida é a alma. No meio de u na tal confusão de doutrinas pasma Boerhaave de vêr a sciencia tão atrazada, e pede á Divindade que o inspire para crear urna doutrina-, -é o mecanicismo que elle funda. O solidismo, porém, parece a doutrina mais consentânea com a razão. São seus continuadores Hoffmann (1572-1650), Baglivi, Cullen, Brown, Basori, etc, que a ella se íilião, modiíicando-a mais ou menos, segundo a opinião de cada um, para applical-a ao estudo da producção e da natureza das moléstias. O brownismo é a doutrina medica mais popular até os últimos annos do sé- culo xvni. Thommasini (1821) ã frente da Escola de Bolonha an- nuncia á sciencia que o brownismo cahio e que o dualismo pathogenico de Basori é que contém a verdade. Brown tinha as suas dialheses -sthenica e asthenica- traduzidas em face de uma provocação em opportunidade mórbida. Basori crêa o seu dualismo também, com as denominações de diathese de stimulus e de c ontr a-stimulus. Broussais revolta-se contra todas as doutrinas medicas, e crêa a Escola Physiologica (Examen des doctrines-Paris, 1821). Nega formalmente a existência da-diathese-que para elle éuma ficção. Cada orgão tem a sua irritabilidade especial, de cujo exercício normal provém a saúde. Desde, porém, que um orgão são é solici- tado por certos agentes insolitos, ou deixa de o ser por um agente habitual, o orgão soffre e a moléstia está estabelecida. Não ha, pois, disposição mórbida persistente, não ha estado diathesico da eco- nomia ou do orgão ; não ha diathese. 10 Foi, sobre as ruinas de todos esses systemas e das doutrinas an- tagonistas, que no decurso do xvn século successivamente se creárão e fôrão abatidas, que ergueu-se pouco a pouco, já na França, já na Allernanha, a Escola anatómica, promessa imperecível do futuro da Medicina, apoiada de um lado no materialismo allemão- termo definitivo da serie de transformações por que passou o espirito phi losophico n'esse paiz (Jaccoud -Rapport sur íOrganisation des Facultés de Médecine en Mlemagne-Paris, 1864), e do outro lado nas importantes descobertas que cada dia a anatomia con- quistava para a sciencia. Esses conhecimentos, com enthusiasmo abraçadose defendidos no começo do século xvin, já ião servindo de base a novas doutrinas em contraposição com as idéas absolutas, preconcebidas sem escrú- pulo pelos humoristas, solidistas e ultra-vitalistas. Foi n'essas condições que espíritos elevados, considerando o grande alcance d'esses conhecimentos positivos, principiarão a utilisar-se dos dados fornecidos pelos estudos analomicos para a consolidação das lheorias e das doutrinas medicas à priori. Essa alliança da anatomia descriptiva com os systemas absolutos deu em resultado uma palhologia ainda mais analytica do que as precedentes, e foi por esse motivo que destacou-se, então, da noção vaga de moléstia a noção indeterminada também, mas já especial e até certo ponto restricta, da-diathese. O espirito eminente de Bordeu e a sua imaginação fertilíssima representão nas suas producções esta phase dislincta e caracleris- lica do movimento doutrinário do século xvm. As suas obras, modeladas em parte pelas tradições da Escola de Montpellier, da qual foi u u dos mais notáveis discípulos, inspiradas igualmente nas doutrinas de Stabl e Van-Helmont, que elle tenta conciliar, e com cujo auxilio empenha-se em fecundar as crescentes acquisições da anatomia descriptiva, representão um verdadeiro monumento his- tórico para o estudo das transformações por que passarão, n essa 11 épocha de transição, as doutrinas medicas com tanto ardor defen- didas em todo o decurso do século xvn e do século xvin. Não queremos fazer aqui a critica das obras de Theophilo Bordeu ; devemos, porém, já que a occasião se nos apresenta, render-lhe a justiça, que muitos auctores lhe negão, de ter sido o primeiro que lançou na sciencia os fundamentos para uma theoria das moléstias diathesicas, tentando mesmo crear para ellas uma anatomia e uma physiologia pathologica, si bem que em maior parte hypotheticas e inteiramente phantasticas. Eis as obras de Bordeu (1722-1776) que mais intimo proposilo offerecem com o nosso assumpto: Das glandulas (1757); Do tecido mucoso (1767); Das moléstias chronicas, com um appendice sobre a Analyse medicinal do sangue ( 1775). E n'esla ultima publicação, dividida em 7 partes, que elle se occupa especialmente das moléstias diathesicas, para as quaes elle busca uma definição commum, fixando, portanto, mais ou menos o valor ea accepção da palavra diathesico. Nas seis primeiras partes do seu livro occupa-se largamente das suas cacheadas humoricas, procurando arranjar para a sua explicação um mecanismo, extre- mamente complexo e extravagante, de fluxos e refluxos das secreções e dos humores aquosos. N'esse empenho sustenta as doutrinas de Stahl e Van-Helmont, satyrisando com espirito e mordacidade a doutrina dos chimislas e as theorias mecanicas de Boerhaave. A sétima parle do seu trabalho é consagrada ao estudo do sangue, como já o dissemos, sob o titulo de analyse medicinal do sangue. É ahi que elle desenvolve com engenho e mesmo clareza a sua complexa lheoria pathogenica das moléstias diathesicas (Tomo II de suas Obras completas, pag. 1010). Bichat, o admirador sincero dos talentos de Bordeu, podemos dizer sem fazer-lhe injustiça, continuou, nos seus estudos de anatomia geral ( Traitá d'Anatom. Génér, Paris, 1801), a obra por seu amigo encetada. 12 Barthez, na Escola de Montpellier, abandonando, pelo con- trario, as descripções e desprezando a anatomia incompleta e as vezes fictícia do seu antecessor, aproveitou, com a vasta erudição e notável habilidade do seu genio, os mesmos princípios que elle smtentára, para applicar-lhes o Methodo Philosophico de Bacon. Infelizmenle para a sciencia, essa marcha que tomou, depois das obras de Bordeu, o movimento scientifico nas diversas escolas me- dicas e a evolução consequente das doutrinas offerecem, apezar do grande esforço intellectual dos seus imaginadores, uma direcção protundamenle viciosa. A alliança dos princípios e das suggestões da razão com os dados inabalaveis das investigações anatómicas e physiologicas, a fusão das doutrinas humoristas e solidistas com os princípios do vilalismo, com tanta perícia e talento tentadas nas obras de Bordeu, devia trazer como resultado fatal uma doutrina do justo meio, um eclectismo de mais em mais sensato, uma sã philosophia em summa, representada pelo exercicio da lógica e da razão sobre os factos brutos da vida. Bordeu, porém, não teve conlinuadores. Ficou sem fructos na sciencia a sua inglória tentativa, e a doutrina eclectica creada pelo seu genio cahio logo no olvido, para dar togar á estréa brilhante e ruidosa de dous novos talentos - o grande Bichat em Paris e Barthez em Montpellier. Ficou, por esse modo, viciosamente dividida em dous syslemas antagónicos a doutrina eclectica de Bordeu: a Escola analomo- physiologica e a Escola vitalista. Coube, pela natureza mesma do assumpto, em partilha a este ultimo systema a theoria metaphysica da diathese, refundida no methodo philosophico de Barthez, e aperfeiçoada ou simplesmente modificada pelos seus iIlustres suc- cessores, na Escola de Montpellier. Fôrão elles Lordat, Dumas, Berard, Anglada, Jaumes, Dupré, etc., cujos trabalhos servem de modelo ao estudo das theorias vitalistas. 13 Depois das obras de Barthez, sobretudo dos seus Elementos da Sciencia do Homem, dignamente commentados pelo seu amigo e successor, o sabio Lordat, fôrão os espíritos em França se occupando com altenção particular da theoria da diathese, exposta naquella obra, e que a todos parecia inspirada ruais ou menos na evidencia de factos incontestáveis. E assim que, aceita a idéa fundamental d'essa lheoria, com abstracção do systema no qual ella teve origem, vêmol-a modificada de mil modos nas obras dos auctores francezes, pondo-se ahi de accórdo com o systema de cada um. Broussais é o unico que nega categoricamente a idéa funda- mental da theoria da diathese. Entre as obras publicadas no nosso século, merecem, com relação a essa questão, attenção especial os livros - de Dumas sobre a Dou- trina geral das moléstias chronicas, de Anglada sobre A moléstia e a a/fecção mórbida, o tralato de Pathologia geral de Jaumes, o de Castan e o de Baumès (de Lyon), sobre as Diatheses, e as theses sus- tentadas por Battle e Aynard, trabalhos publicados em Montpellier. Em Pariz apparecêrão sobre este assumpto trabalhos não menos dignos de leitura, como sejão as theses de concurso de Nonat, Gri- solle e Racle, e ainda as Pathologias geraes de Chomel, Monneret, Behier, Bouchut, e Chauffard. Temos noticia da Pathologia geral de Lebert, publicada ultimamente, na qual este auctor reserva um capitulo especial para fazer largo e minucisso estudo das moléstias diathesicas (Gazette Hebdomadaire n. 24 - 1876, pag. 381). No seu Tratado dos tumores, Broca occupa-se também da questão e emitle algumas idéas uteis para o seu estudo completo (pags. 142 - 164). O mesmo faz Hardy, no seu Tratado das moléstias dartrosas', Gigot-Suard no Tratado do herpetismo-, Berthier na sua memória sobre as Nevroses dathesicas, etc., etc. Citemos, finalmente, o artigo Diathese do Dicionário de Jaccoud, no qual o Dr. Maurice Raynaud, com toda a prudência e critério, encara e analysa a questão sem nada accrescentar nos seus pojitos 14 capilaes. De lodos os trabalhos especiaes que consultámos é este, em nossa opinião, o que melhor discrimina e desenreda os elementos necessários para que o problema da dialhese seja convenientemente discutido. Uhle e Wagner, bem como os auctores de outras Pathologias geraes que não mencionamos aqui, não tratão desta matéria. O Diccionario em trinta volumes, e o de Fabre e Tarnier não têm a palavra diathese. Taes fôrão as fontes históricas, onde fomos beber os precisos conhecimentos para a discussão das theorias cujo desenvolvimento adiante apresentamos. Generalidades de ©nfohgia Mledica Na ordem ontologica dos conhecimentos de biologia ou de phy- siologia geral, quer estes se refirão ao estado hygido, quer ao es- tado morbido da nossa economia, uma serie de lermos existe, cor- respondentes a outras tantas entidades abstractas, que, por uma in- terpretação viciosa, constituem-se causas numerosas e frequentes dos parai logismos seductores e de lodos esses paradoxos de que estão eivadas as doutrinas medicas de todos os tempos. No ardor da phantasia, tão em jogo na creação e na discussão das theorias, nas quaes a abstracção se torna indispensável, a imaginação solicitada a todo o instante pelas difficuldades do assumpto toma muitas vezes um exercício absoluto, estende o seu dominio sobre todas as idéas, transfigura os factos e configura os entes da razão, passa a esphera dos possíveis e nem sempre é, atempo, dominada para evitar o absurdo. São, por exemplo, de emprego trivial, nas questões de philosophia medica a mais elementar, certos termos ou vocábulos de pura razão philosophíca, representando por consequência meras abstrac- ções, mas que, substituindo, por necessidade imprescindível de todas 16 as discussões, os factos complexos a que elles se relerem, empreslão a esses factos qualidades que elles não possuem e, muitas vezes, incompatíveis com a sua própria natureza, O inverso se dá também e ainda com mais frequência; isto é, certos factos complexos, substituindo as abstracções que entro os seres da razão representão o seu valor absoluto, emprcslão- Ihes qualidades relativas que ellas não podem possuir, por isso que a sua significação repelle-as como contradictorias cornsigo mesmas. É, pois, de toda a conveniência, na necessidade em que nos achamos - de discutir uma das mais difliceis *e obscuras questões a que a pathologia geral se propõe, estabelecer com precisão o valor philosophico e o alcance racional de certo numero de vocábulos, que ahi têm, nas condições d'esses de que tratamos, a mais commum applicação. Estão no caso vertente, além de muitos outros que omittimos por menos importantes, os seguintes de que adiante nos vamos occupar: constituição, temperamento, predisposição, affecçâo, mo- léstia, causa, reacção, etc. Teremos forçosamente, na determinação das questões que mais tarde nos importa ventilar, de voltar á definição de alguns lermrs que aqui já ficão explicados, e definir mesmo outros que a elles se prendem por estreitas relações. Mas isso ainda não nos dispensa da precaução que tomamos desde já, por isso que importa levar com antecedencia, em discussões desta natureza, o espirito sempre prevenido contra todos os preconceitos que de mil pontos nos assaltão. O proprio termo-diathese - cuja discussão faz o assumpto desta these devêra ser incluido no numero dos termos ácima enunciados; como, porém, nos convém dar mais largo desen- volvimento á sua explicação e exame, reservamos para isso o capitulo que se segue. 17 0 que se deve entender por constituirão, em sciencias bio- lógicas? Não é necessário recorrer aos auclores para determinar o valor relativo d essa palavra ; para o nosso intuito, o seu proprio valor absoluto na lechnologia geral nos póde servir de guia. Constituirão quer dizer base, fundamento, composição, com- pleição ou disposição intima, segundo a qual os sêres manifestão, em uma escala indefinida, a resultante geral ou o valor collectivo dos seus agentes formadores {constituintes). Assim, a palavra constituição implica dous termos essenciaes para formar um sentido completo: base ou apoio, e forca collectiva. Base de um sêr - são os seus proprios elementos; força collectiva é o resultado potencial, a energia ou synergia resultante da collisão ou coalição d'estes últimos. A base do organismo são os seus agentes orgânicos em geral ou os agentes physicos da organisação. A sua coalição, isto é, a collisão perenne em que se achão os agentes physicos do or- ganismo, consiste, em sua ultima analyse, em um equilíbrio in- stável, vencido por solicitações contínuas, mas em condições de renovar-se e com uma tendencia perpétua a restabelecer-se prom- ptamente. Constituição do organismo não é, pelo que fica dito, outra cousa mais do que o proprio organismo com relação á força collectiva dos elementos que o compoem. Ora, esta se mani- festa pela tendencia ou resistência que esses mesmos elementos oppoem á acção antagónica dos seus solicitadores naturaes. A constituição do organismo vem a ser, por conseguinte, o grão de força ou de resistência que o organismo oppõe aos agentes naturaes que o solicitão. D esta noção resulta que a constituição do organismo só póde modificar-se em doussentidos contrários: para mais ou para menos; isto é, no sentido de augmento ou diminuição da força potencial 18 que ella exprime. Devemos, portanto, admitlir, d'entre todas as modificações de que é capaz a constituição do organismo, apenas duas especies. A constituição typica, isto é, aquella que serve de typo ou de norma para organisações similhanles, é a constituição normal. As suas variações para mais devem ser comprehendidas sob a denominação de constituições fortes ou excessivas, e as variações para menos de constituições fracas ou insutlicienles. Baseado n'essas primeiras noções,poderemos definir com precisão e clareza outros termos não menos obscuros da ontologia biologica, cuja determinação philosophica bastaria para dissipar, no terreno da pathologia geral, a obscuridade aterradora de muitas questões con- troversas, se não fossem tão complexos os phenomenos que elles ahi representão . Ê no sentido de constituição do organismo ou constituição geral que ordinariamente se emprega em medicina a palavra constituição. Entretanto não é isso razão sufficiente para que se não reconheça também a existência de constituições parciaes. Assim, uma parte qualquer do organismo, desde que se indi- vidualise por um complexo de actos tendentes a um mesmo fim, desde que se componha de um certo numero de agentes similhanles, unidades homogéneas ou elementos, formando um todo determi- nado e contribuindo com a sua resultante para a constituição geral, -essa parte do organismo possue a sua constituição parcial. Portanto todo o systema de forças da nossa organisação tem, ipso facto, a sua constituição própria. O systema nervoso, por exemplo, o sanguíneo ou o lymphatico tèm uma constituição que lhes é pecu- liar, variando em seu grão de força para mais ou para menos, con- forme o typo que os representa em organismos similhanles. Se applicarmos essa mesma noção aos apparelhos orgânicos, aos orgãos, aos territórios cellulares, e emfim á própria cellula, teremos um resultado analogo, isto é, uma constituição para cada apparclho, para cada orgão, etc. 19 0 lypo ou norma de toda a organisação suppõe uma certa pro- porção entre as synergias parciaes que concorrem, pelo seu equi- librio, para a constituição de um organismo. A variação para mais ou para menos, que soflre, n'aquella proporção lypica, a constituição de um systema do organismo, acarreta um desvio ou modificação lateral da constituição do proprio organismo, no sentido do systema que se modifica. Si essa modificação lateral de que a constituição se resente não é sufliciente para determinar oscillações consideráveis no equilíbrio total ou parcial dos systemas, o desvio póde subsistir indefinidamente. Tal é o-temperamento - se se trata de um dos grandes systemas, e a*-predisposição-se se trata de um orgão ou systema inferior. Descendo progressivamente, por uma decomposição methodica, na escala das synergias do organismo, chegamos em ultima analyse á constituição elementar, simples e indivisível, cuja decomposição importa por si mesma na negação absoluta da própria organisação. Da synergia dos agentes orgânicos immediatos, em numero sufliciente para tomar a fôrma organisada, resulta o elemento do organismo ou organismo elementar. A fórma organisada, em sua ultima analyse, exige, como condição essencial, que um agente orgânico immediato qualquer (substancia organica de Ch. Robin) em collisão com outro, e arrebatado constantemente por um terceiro que o solicita, seja prompta e continuamente substituído por um agente similhante que um meio conveniente lhe fornece. A collisão de dous agentes orgânicos immediatos, capazes de equilibrio, symbolisa uma resistência, por isso que em taes condições só podem obrar-resistindo - á provocação de outro agente. Um agente orgânico qualquer (immediato), capaz de romper aquelle equilibrio, symbolisa uma potência, por isso que obra - solicitando - ou expellindo um dos agentes em collisão (desassimilaçào). O equilibrio, porém, se renova incessantemente 20 pelo encontro do agente isolado com um novo agente que chega {assimilação). Na successão alternativa dos phenomenos de assimilação e desassimilação consiste a nutrição, que é o facto mais elementar da conservação do organismo ou vida. O resultado da desassimilação, de um lado, e da assimilação, do outro, é o que se chama funcção, que se divide, portanto, em funcção eliminadora e funcção reparadora. A successão indefinida d'esses dous resultados se denomina evolução. A evolução de um organismo se faz segundo o proprio systema de agentes orgânicos immediatos que entrão na sua composição. Cada systema de agentes orgânicos capazes de compôr um organismo constitue um typo de organisação, de evolução e de vida. O concurso de todo agente accidental, extranho á composição do organismo, ou ás suas condições normaes, occasiona por sua presença uma modificação correspondente nos productos da evo- lução. A evolução assim desviada do seu typo anterior é o que representa a affecção. Os productos mesmos da evolução, modificados pela existência de uma affecção no organismo, é o que constitue a moléstia. O agente extranho á norma de um organismo qualquer obra, pois, como causa de affecção e de moléstia. A serie de actos novos que a presença de uma causa de moléstia provoca no organismo é o que se chama vulgarmenle reacção . Dadas estas noções preliminares, com cujo auxilio queremos evitar digressões ulteriores na exposição do nosso assumpto, passemos a indagar agora a noção que o termo-diathese- encerra. lieeã© de diafFiese w Antes de levantar o edifício é mister pensar nos alicerces. (Balmes.- Philos. Fundamental.) Essa noção, tão diversamente interpretada e definida, tira o seu proposito da necessidade imperiosa que sente o espirito do medico de procurar nas disposições geraes do nosso organismo as leis que regem certa ordem de phenomenos especiaes observados na marcha e evolução das moléstias diathesicas. O que é moléstia diathesica ? Não pode haver difficuldade, em vista do que acabamos de dizer, em dar a esta questão uma resposta satisfatória, por isso mesmo que a moléstia diathesica destaca-se por si do quadro nosologico, pelo simples exame dos factos especiaes a que nos referimos. Entretanto, alguns auctores, senão quasi todos, desviados inteira- mente do proposito d'aquella separação clinica pelo impu Iso de idéas preconcebidas, emprestarão á questão primitiva intuitos de alcance diverso, e virão-se levados, pela successão lógica de suas consequên- cias, a admittir, de accôrdo com os seus princípios, um numero extremamente variavel de moléstias diathesicas. Assim é que 22 muitos, como Anglada, Baumès, Bouchut e outros vitalistas derão-lhe um numero infinito. Foi por uma razão opposta que Broussais e a sua Escola negarão-na completamente. Ainda por um motivo ana- logo, os antigos confundirão-nas com as outras moléstias, não en- contrando, sob vistas limitadas, nada de especial na observação dos symp tomas que os auctorisasse a crear o grupo das moléstias dia- Ihesicas ; para elles todos os symptomas se explicavão por um estado indefinido ; o termo diathese fôra synonymo de affecção, se então fosse adoptado. Deixando, por isso, de parte a opinião dos auctores por emquanto, respondamos á nossa questão nos termos simples em que a Clinica a propõe. Eis aqui os únicos factos especiaes, cuja explicação as necessi- dades clinicas exigem dos conhecimentos anatómicos e physiologicos que a sciencia até hoje possue : 1. Tenacidade.-Existem certas moléstias que resistem energi- camente a todo o tratamento e, quando melhoradas ou apparente- mente curadas por qualquer medicação, tomão novo incremento e reapparecem em campo, se a medicação se suspende. 2. Hereditariedade.- Algumas dessas moléstias modificão a tal ponto a e conomia de um indivíduo ou a eila se incorporão, que a sua transmissão se effectua por via de geração, fazendo eclosão nos filhos em certas épochas da vida, em uns immediatamente, em outros sob a influencia decircumslancias variaveis. 3. íntermittencia.- As manifestações próprias d'essas moléstias podem, por sua mesma evolução, deixar o indivíduo livre durante um tempo variavel para reapparecer mais tarde, com menor, a mesma ou maior intensidade. 4. Snbstitutividade.- Depois de terem feito eclosão em um ponto e terem desapparecido mais ou menos completamente, podem certas lesões apparecer immediatamente depois em outros pontos com a mesma ou com formas diversas. 23 5.° Promiscuidade.- Certas manifestações de algumas d essas moléstias affectão iudistinctamente, alternada ou simultaneamente, orgãos e regiões, entre os quaes não existe muitas vezes uma relação physiologica ou anatómica positiva. Taes são os phenomenos especiaes que a razão clinica não pôde ainda explicar. Esses factos postos de parte, as moléstias em que elles se passão entrão para o quadro das moléstias triviaes. Elles constituem, portanto, caracteres bem distinctos d'essas mesmas mo- léstias. É, pela reunião dos caracteres geraes das moléstias diathesicas, que se fórma o typo cornmum, que na pathologia geral as representa. E assim fica-nos explicado o proposito da palavra diathese, e a noção elementar que ella deve exprimir. Ella não encerra, com effeito, outra cousa maisdo que a noção dos caracteres communs ás moléstias diathesicas e differenciaes das outras moléstias. É o typo que resulta da reunião daquelles caracteres e representa no mais alto grao a razão classica das moléstias que os offerecem, isto é, a razão pathologica da differença que medeia entre estas moléstias e todas as outras do quadro nosologico. Definição preparatória. - Diathese é, por consequência : a razão pathologica, em virtude da qual certo numero de moléstias, tenazes a todo o tritamento, se transmittem por herança, se manifestão com inlermitlencias mais ou menos longas, por lesões que se podem substituir, em certas condições, e affectão promiscuamente tecidos e orgãos diversos, variando de fórma de um modo indeter- minado. D esta definição resulta naturalmente uma duvida, uma interro- gação que o espirito faz a si proprio. Ella encerra, de facto, um problema a cuja resolução a pathologia se applica . Qual a razão pathologica, em virtude da qual certas moléstias manifestão aquelles caracteres ? Tal é o problema. A historia da medicina moderna e contemporânea registra em 24 suas paginas a discussão renhida que travarão nasciencia as diversas escolas medicas, com o fim de resolvêl-o. Vejamos o resultado que a sciencia d'isso colheu. Éo proposito do subsequente capitulo. €$£inie áfls Iljeorias Si quelqu'un parvenait à dégoúter les philosophes, les physiologistes, les médecins, de la rechercne de 1'inaccessible et à diriger tous leurs efforts intellec- tuels vers 1'accessible, quelle somme de forces, actuel- lement encore perdue, ne serait elle pas tinie dans 1'interêt de la vérité ! (Broussais.- Philos. de la Méd., pag. 10.) As theorias diversas que nos foi possível recolher, pela leitura da historia geral da medicina e pelo estudo especial da matéria que nos occupa, íilião-se, como todas as outras theorias, aos syslemas creados desde Hippocrates e Galeno, ou antes desde Themison e este ultimo, para philosophar nas sciencias medicas. Assim, podemos dividil-as, segundo a ordem desses mesmos systemas, em: humoral. solidista, vitalista, humoro-vitalista, solido- vitalista, eclectica, chimista, etc., etc. Comquanto a theoria humoral dadiathese tenha sido de ha muito julgada pelos progressos da sciencia, comtudo, tendo dominado por muitos séculos, enraizou-se nos espiritos de tal modo, que, tomando com aquelles mesmos progressos fôrmas mais seductoras, chegou a atravessar esse longo tempo e goza ainda hoje do prestigio de alguns homens notáveis. 26 Segundo ella, a diathesenão émaisdo que uma alteração perma- nente das qualidades do sangue, acarretando desordens mais ou menos profundas na nutrição dos tecidos em geral e, d'ahi, lesões mais ou menos variaveis de ordem anatómica e physi ologica. Osauctores d'essa theoria se limitão na sua exposição a simples aílirmações, uigas e indecisas, cuja base é lambem uma proposição incerta, além de obscura e por demais elastica. Não nos referimos ceita- mente á doutrina de Galeno e menos ás idéas de Erasistralo, segundo as quaes a moléstia consistia em uma variação da pro- porção normal dos humores da economia, pois fôra ocioso fazermos hoje considerações sobre o valor de taes doutrinas. Uma theoria, em sciencia, para que mereça esse nome, deve sustentar-se sobre uma base bem positiva, estável e definida. Axioma ou não, o principio de que ella se origina deve ser um principio scientifico, uma verdade evidente ou evidentemente demonstrada. De premissas duvidosas ou de princípios hypothelicos não podem ser deduzidas senão conclusões contestáveis. É um abuso de- plorável e infelizmente bastante em moda na creação de theorias medicas essa facilidade com que se invenlão a cada passo suppostas verdades sem o menor escrupulo, e sobre ei las se erguem escolas e doutrinas. Quem já demonstrou no sangue dos diathesicos uma alteração apreciável que não seja commum a todas as moléstias chronicas? E é justo quede experiencias absolutamante negativas se queirão tirar illações tão peremptórias? A theoria hu moral, portanto, cahe por leviana demais, illogica e sem fundamento nos factos. A isso limitaríamos as nossas reflexões e passaríamos adiante, se o artificio caprichoso da imaginação humana não houvesse, com vantagem digna de melhor applicação, retocado de brilho seductor, appellando para o progresso da sciencia, as parles vulneráveis d aquella theoria. Tt De facto, uma velha theoria pertence antes ao domínio da historia do que á sciencia contemporânea em que se conhece a cellula e a funcção cellular como elementos da organização e da vida. Seria irrisorio e digno de profunda lastima que o mais singular dos sábios viesse em nossos tempos fallar em humores da economia como elementos da moléstia ou princípios da organisação animal. Mas é que nem a razão theorica nem a nossa phantasia es- gotão jámais os seus recursos, e cada lacuna que a sciencia assignala no campo de suas investigações é um arsenal immenso de abstracções, com que a imaginação provê aos seus insaciáveis caprichos. Aqui, no caso em que discutimos, servem de apoio á theoria uma ordem de argumentos muito em voga na expo- sição das doutrinas, mas apenas de valor no que respeita á sua categoria. São os argumentos per absurdum ou por exclusão, baseados no methodo inductivo. Vejamos como procedem os defensores da theoria humoral na formação do seu systema. Partindo da idéa de que as moléstias diathesicas affectão in- distinctamente todos os pontos do organismo, estabelecem corno caracter indiscutível d essas moléstias a sua universalidade, isto é, a ubiquidade da causa morbiíica que preside ás suas manifes- tações . Quer isso dizer que todos os tecidos do organismo soflrem a influencia directa ou de presença do principio morbigenico ou da condição mórbida universal. Ha incontestavelmente n'aquella classe de moléstias uma disposição anómala ou pathologica, cuja séde se discute, é verdade, mas sob cuja dependencia se perlurbão os actos geraes da nutrição dos tecidos, com deter- minação de lesões variaveis em qualquer ponto da Busquemos, então, a causa, pois que ella infallivelmente existe. Haverá porventura um effeito sem causa? um pheno- meno determinado sem um principio que o explique? Será 28 possivel que uma serie indefinida de lesões apparenles, com- promeltendo promiscuamente qualquer ordem de tecidos ou passeiando livremente por todos os orgãos da nossa economia, não reconheça uma causa também universal? Um principio que acompanhe esses effeitos ? Ora, o sangue é o unico vehiculo possivel para um principio tão caprichoso, e é por consequência a séde provável, senão in- contestável, da causa que preside ás determinações da moléstia diathesica ; é ahi que está a diathese. É por isso que Hiffelsheim a define explicitainente : « Um eslado morbido do sangue, manifestado por localisações mórbidas em um humor ou em um tecido particular. » Adialhese não passa, portanto, de uma dyscrasia para a theoria humoral contemporânea. Assim pensão, em resumo, os auctores e proselytos d'essa theoria, e, se a analyse directa, chimica, physica ou microscópica, nada demonstra rigorosamente a esse respeito, nem por isso deixão aquelles theorisadores de sustental-a, ás vezes com talento nu mesmo com enthusiasmo. Entretanto, para todo aquelle cuja razão não está fatal- mente dominada pela preoccupação de uma theoria, ou pelo império absoluto de um systema, torna-se bem claro o vicio da argumentação precedente. Basta para isso que indaguemos, n'esta serie de illações, a consideração que merecem não só as premissas estabelecidas, como a direcção que foi dada ás suas conclusões. Se quizermos seguir fielmente os preceitos clássicos da lógica, veremos de facto que, em uma de suas primeiras e mais banaes recommendações, ella exige como essencial, para que se chegue a conclusões verdadeiras e inconcussas, que as allirmações contidas nas premissas sejão certas e evidentes, ou evidentemente demons- tradas. O que fazem, porém, os humoristas? Partindo da idéa de que as moléstias diathesicas atacão indistinctamente todos os tecidos do 29 organismo, é que elles chegão as suas ultimas conclusões. Ora, estará demonstrada á evidencia, como exige terminantemente a lógica, esta proposição absoluta? Nas moléstias diathesicas, mesmo nas mais universalisadas que a clinica consigna ou que a pathologia conhece, na syphilis, por exemplo, na escrophulose ou no cancro, acaso poderão as suas lesões caracteristicas atacar, ou atacão effec- tivamenle qualquer ordem de tecidos sem distincção ou escolha ? Quem já o provou á evidencia? Quem o demonstrou na sciencia? Aquella proposição categórica, aproveitada pelos humoristas e encaixada na sua doutrina, como base de uma theoria geral, corre, é verdade, nos livros dos especialistas e nas pathologias geraescomo cousa mais que provada. Diz-se, por exemplo, como facto incon- troverso, que a syphilis é capaz de determinar lesões, não só de ordem funccional, como de ordem organica, em qualquer ponto da economia ou em qualquer orgão indistinctamente. É assim que: cila ataca a pelle e as mucosas, o systema osseo, o systema mus- cular, o systema nervoso, o circulatório e as vísceras. Com o cancro se dá o mesmo e ainda com o herpetismo. As diíferenças topogra- phicas que entre essas moléstias se podem assignalar são apenas de predilecção. Mas agora vejamos se essa aflirmação banal póde ser sustentada em rigor, ou se está demonstrada como proposição absoluta. A syphilis ataca a pelle, de facto, e em toda a sua extensão; ninguém o póde negar. Mas porventura a syphilis póde assestar as suas lesões em qualquer ponto com relação aos tecidos? A pelle não é um simples tecido, mas urna reunião de tecidos ; não é mesmo um simples orgão, mas um complexo de orgãos. Terão as lesões da syphilis a sua séde positiva indistinctamente nas cellulas epi- dérmicas, no corpo mucoso de Malpighi, no trama fibroso do derma, nos foliicuios sebaceos, nas glandulas sudoríparas, nos folliculos pillosos, na rede lympathica sub-epidermida ou dermica, ou emfim colleclivamente em todos os tecidos ? 30 Quando é omusculo que soffre, é na fibra muscular que se loca- lisa a lesão, ou nos tecidos que a rodeião ? As mesmas interro- gações poderemos ainda fazer com respeito aos demais orgãos em que lesões diversas apparecem, sob a influencia da syphilis. Relativamente ao cancerismo e ao herpetismo existem as mesmas duvidas e as mesmas incertezas. A nenhuma das questões pro- postas respondem com a precisão exigida as descripções as mais completas da anatomia pathologica. E como exigir sobre taes bases, sobre princípios incertos e gratuitos, uma theoria geral e absoluta ? Poder-se-ha impunemente transportar as illações que d'ahi se tirão para o terreno da philosophia medica, e arvoral-as em verdades dogmá- ticas? Outra objecção capital é sem duvida a que se sefere á applicação das conclusões da theoria a factos que não entrarão nas premissas. Se a dyscrasia só é demonstrada rigorosamente, nas moléstias d ia- thesicas, pela universalidade de suas manifestações, ella só deve existir ou só pode ser affirmada quando esta tiver logar. A conclusão não deve em caso algum ser mais extensa do que as suas premissas. Ora, não só esse caracter (falíamos da universalidade) não pertence a Iodas as moléstias dialhesicas, como, mesmo n'aquellas que o pos- suem, elle não é permanente, o que importa em dizer que a dyscrasia só existe para estas ultimas moléstias, nas quaes entre- tanto ella sobrevem como accidente- Ainda mais. Será effectivamente o sangue o unico vehiculo capaz de transportar um principio morbifico por toda economia, pelo menos nos mesmos limites em que o sangue o póde fazer? Não o poderá ser a lympha?E, se a causa da moléstia não é uma substancia extranha ao organismo, mas uma simples condição, um vicio orgânico qualquer, não estará o systema nervoso nos casos de tel-a em si? Nada d'isto prevío a theoria humoral. Finalmente, admitíamos, por um momento, que a economia 31 inteira soffra a influencia directa ou de presença do principio ou causa morbifica, e que o sangue seja o unico vehiculo capaz de tornal-a universal. O que é, porventura, o sangue e que papel representa cile no organismo? E uma massa liquida, sem existência individual, queremos dizer, sem qualidades próprias, que representa a orga- nisação inteira em seus elementos constituintes, mas que os recebe de fóra ou da funcção dos tecidos. Renova-se a cada in- stante, rehavendo do exterior o que lhe tirão os tecidos e dando con- stante sahida ao que os tecidos lhe entregão. Portanto, a massa san- guínea tem uma composição toda relativa áquillo que percebe e áquillo que despende; os principios que ahi existem lhe vêm de duas fontes. Se um elemento novo ou qualquer principio estranho á sua composição primitiva foi encontrado em seu seio, é forçoso que uma fonte também nova e anormal se tenha aberto fóra do organismo ou nos seus proprios tecidos. Se a alteração dyscrasica perdura, quer isso dizer que a fonte tornou-se perenne. Nahypothe.se de uma causa negativa, a falta, qualquer que ella seja, deve ser igualmente referida a uma perturbação, por ausência de elementos, nas fontes naturaes que proveem á sua composição. Eis ahi, em poucas palavras, sufficientemente provado que, se dyscrasia existe, como quer a theoria humoral, ella só existe como eíleitoe não como causa absoluta. Tal é o apoio que encontra essa theoria nos dados racionaes. Já vimos igualmente que os factos a desmentem. Surge então na arena, rodeiado de prestigio e animado de espe- ranças, o velho solidismo de Erasistrato e de Themison, alargando de seus limites acanhados a caduca pathogenia humoral. Crnlius Aurelianus, Hoffmann, Baglivi, Cullen, Brown, Rasori e a Escola de Bolonha transportão-no através dos séculos e protegem-no com os progressos da sciencia. E o que descobrirão esses grandes homens? que património deixarão elles á sciencia contemporânea? 32 É no solido que devemos ir buscar a modificação primordial de toda a moléstia chronica; é n elle, sim. que está a causa domi- nante e geratriz d essa classe de moléstias. O solido é a fonte origi- naria de toda a alteração permanente. Os humores não têm vida, nem podem responder por uma alteração duradoura á acção de uma causa morbifica; o sangue se renova incessantemente. Elle é um producto do trabalho collectivo dos solidos, e não um agente de producção, uma fabrica; é um simples deposito, e não uma fonte activa de materiaes; é um effeito que se substitue a lodo o instante e no qual se denuncião as modificações de sua causa. Ora, se é verdade que o effeito nunca pode exceder á causa que o produzio, segue-se que toda a alteração dyscrasica com o caracter de perma- nência deve ser forçosamente referida a uma modificação perma- nente e preexistente dos solidos. Nos solidos está, por consequência, localisada a diathese, a causa prima das moléstias diathesicas. Por uma etiologia desconhecida e provavelmente complexa, os elementos solidos modificão-se lenta e gradualmente em sua constituição. D ahi uma disposição mórbida geral, e uma modificação parallela no seu funccionalismo e perversão mais ou menos profunda na sua nutrilidade. Um circulo vicioso se estabelece em taes circumstancias, e e assim que uma provocação mesmo passageira (rheumatismo, etc.) póde motivar em casos es- peciaes uma disposição mórbida persistente. E então que, debaixo de influencias ligeiras ou mesmo espontaneamente, uma suscep- tibilidade se desperta, e se traduz promptamente por uma lesão apparente. Tal é a theoria solidista da diathese. Esta consiste em uma mo- dificação constitucional dos solidos, acarretando uma perversão radical da nutrição do organismo. O sentido em que se efleclua tal modifi- cação varia essencialmente, segundo as opiniões que a pretenderão decifrar. Para Themison ella se realiza de dous modos oppostos-ou pelo strictum ou pelo laxum. No primeiro caso, ossolidos se conchegão 33 e se apertão por uma tendencia irresistível, fazendo recuar os líqui- dos que os separão, com todas as consequências que dahi devem provir. 1X0 segundo caso figurado, dá-se precisamente o inverso. Para Brown, os factos se passão de modo differente: não ha sym- pathia nem antipathia, porém um augmento ou diminuição de sua energia natural com depressão ou exaltação de sua actividade nor- mal. A isso consistem as suas diatheses, que se dividem em sthenica e asthenica. Rasori designou-as-de stimulus e de contra-stimulus. Cumpre notar que essas theorias de Themison, Brown e Rasori têm igual applicação para as moléstias chronicas e para as moléstias agudas. Fôra quasi dispensável discutirmos similhantes theorias, já per- didas nas trévas do século passado. O seu principal defeito, no que toca ás moléstias diathesicas da technologia actual, consiste em partir de uma hypothese. Que ordem de factos nos provão que os solidos, na apparencia normaes, estão positivamente affectados de um vicio constitucional? Soffrèrão lodos elles ou apenas um limitado numero delles? A lheoria soli- disla não tem uma base sufficiente para optar por esta ou por aquella afiirmaçào. O segundo defeito, e também essencial, que oflêrece a lheoria solidista da diathese, consiste na falta absoluta de alcance scienti- lico. Com ettêito, ella pouco nos adianta tirando a causa morbifica do liquido para fixal-a no solido. E que merecimento pode ter uma lheoria que nada nos esclarece, ou limita o seu proveito a recuar as trévas da sciencia de um para outro canto do horizonte? De que póde servir um raciocínio no vago e no meio de hypotheses? Vicio desconhecido, causas desconhecidas, acções desconhecidas-tal é a origem das leis que nos dá como fructo de suas investigações aquella doutrina medica. É, porém, n essas condições que o espirito imaginoso e fecundo dos theorisadores antigos e modernos recorre como a unica tabua 34 de salvação da sciencia, naufragada com o descalabro dos systemas, a um principio novo, temperado na philosophia de Bacon pelo genio de Barthez, e portanto mais elevado, menos accessivel aos factos, seu eterno desengano. Barthez creou o principio vital, deu-lhe o sceptro despotico da vida e o condão magico de todas as moléstias possiveis. Tal foi o recurso supremo de que lançou mão o chefe da escola de Montpellier para secundar os velhos systemas, reunindo-os em uma só doutrina, a que a sua escoía se consagrou até hoje, com uma tenacidade digna de uma concepção mais progressista. A theoria vitalisla dadiathese, resultado da applicação da doutrina bartheziana ao estudo das moléstias diathesicas, é das mais com- plexas e vastas, mas nem por isso menos obscuras e inconsequentes do que as anteriores. Dumas a expõe extensa e detalhadamente no seu livro sobre a Doutrina Geral das Moléstias Chronicas (Paris - 1824-T. II, Cap. VI, Pag. 77). Vê-se, por essa longa exposição, pacientemente feita por Dumas, quanto se esmera a escola de Montpellier em destacar a noção de affecção da noção de estado morbido. Com relação ás moléstias diathesicas, este constitue a - dialhese - e aquella as suas mani- festações. Estabelecendo esta dislincção categórica entre estado ou dispo- sição e a/Jecção ou acto morbido, a escola de Barthez parece prestar um serviço real e incontestável ao estudo theorico da pathogenia das moléstias. Os princípios, porém, em que essa escola se basêa para crear a theoria da diathese são absolutamente falsos, indemons- íraveis e de uma applicação viciosa. Varia ella infinitamente de fórma, segundo o juizo de seus auctores, conservando, porém, o fundo invariável do systema que as gerou . Tudo quanto dissemos acima com relação aos aphorismos arbi- trários do humorismo e do solidismo, por identidade de motivos, tem aqui inteiro cabimento: apenas o principio vital, verdadeiro 35 faototum dos vhalislas, é constantemente imocado nos pontos em que a ignorância dos factos se faz sentir com desanimadora crueldade. Por exemplo, aquelle principio admiravel presta seniços de ines- timável importância para explicar a universalidade da diathese e promiscuidade das lesões diathcsicas,caracteres esses cuja exposição philosophica não pode ser brilhantemente feita com o simples apoio dos factos. E preciso appellar então com franqueza para os recursos da imaginação, entrar resolutamente no arsenal das abstraeções, e es- colher dentre as mais singulares aquellas que melhor se amainão com esses caracteres obscuros. Eis a mola real, o eixo magico da doutrina vitalista ! Lordat, Dumas, Berard, Anglada, Dupré, Jaumes e Castan, res- peitando religiosamente os principios elementares da physiologia de Barthez, como artigos sagrados do codigo vitalista, imprimem modificações de alcance diverso á theoria diathesica da Escola. Assim, Lordat e Berard mui pouco se afastão das idéas theoricas desenvolvidas no livro de Dumas. Anglada, dilatando alguns pontos incompletos e precisando outros indecisos, define a diathese : «uma affecção mórbida especifica, per- sistente, geral, sempre chronica, latente, tendo symplomas especiaes cujo apparecimento, desapparecimento e reapparecimento se ligão sempre á influencia da affecção preexistente». Anglada, além disso, não admitte como Dumas a necessidade de uma lesão dos solidos ou dos liquidos para que haja diathese. Esta pode reduzir-se a uma simples affecção do principio vital, isto é, segundo a linguagem da sua escola, a uma impressão constitucional. Jaumes concorda n'esta ultima consideração com Anglada; porém, requintando o que a theoria vitalista tem de mais vago e abstracto, capitula a diathese de uma simples qualidade apposta ánatureza da affecção. < A palavra diathese, diz eile, não passa de um adjectivo 3G empregado como substantivo, disignando uma maneira de ser e que, separado do seu objecto, não tem existência real.» Assim, por exemplo, o rheumalismo, que é em si uma aífecção vulgar, da ordem das moléstias agudas, torna-se diathesico, segundo Jaumes, desde que se enraíza na constituirão do indivíduo. 0 mesmo se póde dizer do escorbuto, da hysteria, dos dartros, etc. Jaumes reduz, pois, a entidade diathese a um simples caracler da moléstia dialhesica-a chronicidade ou tenacidade- queelle associa aos outros caracteres da moléstia. Jaumes explica, portanto, o facto por uma questão de palavras, evitando por uma commoda evasiva analysar o problema. Á parte essa inconfessável fugida do eminente professor, fica entendido, segundo a sua opinião, que toda a moléstia chronica é diathesica ipso facto. A moléstia chronica para elle (Leqons ovales) não é mais do que a moléstia que ataca o temperamento ou um temperamento rnorbido. Temperamento é o complexo de qualidades constantes que especificão a vida do indivíduo. De onde se conclue que a diathese, para Jaumes, é o complexo de qualidades mór- bidas que especificão a vida do indivíduo. Mas quaes são essas qualidades mórbidas que especificão a vida do indivíduo diathesico? Para o auctor é a chronicidade. Portanto, a sua explicação redunda em uma petição de principio. Bazin, também da escola de Barthez, estabelece uma distincção arbitraria e inútil entre moléstias constitucionaes e as dialheses. Diz elle: «Moléstia constitucional é toda a moléstia-aguda ou chronica, pyretica ou apyretica, contínua ou intermittente, ordinariamente de longos períodos, contagiosa ou não-caracterisada por um com- plexo de productos morbidos e affecçoes variadas, interessando in~ distinctamente todos os systemas orgânicos.» < Diathese é a moléstia (descripta acima) caracterisada pela for- mação de um só producto morbido.» 37 Sem querer tomar em consideração o desaccôrdo singular que vai entre essas definições e os preceitos elementares da lógica, fòra para desejar que o professor Bazin definisse precisamente o que entende producto morbido. É natural, porém, acreditar que esse producto consiste no resul- tado material da evolução mesma da causa morbifica; de onde se deduz que toda a affecção catarrhal das mucosas, todas as phlegma- sias suppuradas, a febre typhoide, o cholera-morbus, emfim as mo- léstias as mais disparatadas, segundo as idéas de Bazin, devem ser diathesicas. Ora, estabelecer differença capital entre as moléstias, a favor de um caracter tão frivolo, é cei lamente um abuso sem razão que o justifique. Além disso, a classificação dada por este auctor esta incoherente com a sua própria definição, porquanto elle admitte a diathese gangrenosa, e não admitte a diathese syphilitica. Castan( Traitédes diathèses- Montpellier, 1867 ) mostra-se mais fiel aos principios da Escola. O seu empenho todo consiste em fazer a fusão das idéas de Jaurnes com as de Anglada, seus mestres. Eis, em resumo, o que nos diz esse auctor: < Entre a aífecção chronica e a diathese não vai grande distancia: a diathese é uma moléstia chronica com, caracteres particulares. » Esses caracteres particulares são enumerados e definidos na se- guinte ordem, mais ou menos: viciação constitucional do organismo' unidade de causa morbifica; identidade da natureza de suas mani- festações; perpetuidade ; transmissibilidade hereditária. De onde a seguinte definição : «Diathese é uma affecção mór- bida, constitucional, por consequência chronica, persistente, po- dendo ficar por mais ou menos tempo latente, cujas manifestações, fazendo-se sobre a sensibilidade ou a plasticidade, e desenvolvendo-se todas sob a influencia de uma causa idêntica, são incapazes de resolver a affecção primitiva, quer em facto quer em tendencia.» Sem duvida, é a theoria de Castan uma das mais regulares e mais bem estabelecidas que têm sido apresentadas. Ella, com effeilo, é 38 a que mais tende a approximar-se da realidade dos factos, e que mais clara mente expõe as suas bases e conclusões. O auctor, fundando-se na analogia essencial que, segundo os preceitos da sua escola, existe entre a molcstia chronica e a moléstia diathesica, procura justificar então perante os factos da physiologia e da clinica a separação uni- versalmente aceita entre esta e aquella. Assignalando, finalmente, os caracteres particulares da moléstia diathesica e distinguindo-a da moléstia chronica como o grupo da especie, parece com efTeito res- ponder categoricamente ás interrogações da queslão. Infelizmente, o habil professor, respeitando de mais a tradição sagrada da escola vitalista e os principies absolutos do Methodo de Barthez, parte de uma idéa preconcebida e basêa a sua theoria em uma noção completamente falsa. Moléstia chronica, para Castan, é toda a moléstia de marcha lenta e de evolução incompleta, essencialmente caracterisada pela modi- ficação pathologica que as suas causas imprimem no temperamento do indivíduo. Sobre que dados se apoia o illustrado auctor para affirmar que a chronicidade resulta dessa indemonstravel affecção do tempera- mento? O que vem a ser, ou o que póde ser um temperamento mor- bido? Porventura não é o temperamento uma simples abstracção, uma entidade subjectiva? um simples modo de ser? Temperamento, em sua accepção mais ampla, não é mais do que a relação de proporção existente entre as funcções geraes da eco- nomia; exprime, pois, um modo de ser das funcções, umas para com as outras. Ora, póde,em boa philosophia,uma qualidade qual- quer receber a opposição de uma nova qualidade? Temperamento morbido é uma expressão sem valor e nada significa, porque signi- fica ludo. Dizer que o temperamento soffre é dizer tão sómente que as funcções soffrêrão uma quebra de suas relações normaes, que o organismo mudou de typo physiologico. (7. Generalidades). Se Castan toma a palavra temperamento no sentido de 39 constituição, como parece pela sua definição, os mesmos argu- mentos servem para demonstrar que a base da expressão é ficticia, n'esse caso como no precedente. Sobre alicerces tão moveis não é possivel realmente erigir uma lheoria. Os caracteres particulares da diathese, que Caslan enumera em seu livro e que constituem a base clinica ou pratica da sua theoria, são lambem arbitrários, confrontados com os factos. Onde provou o auctor, ou alguém por eile, que a causa morbifica é unica ou idêntica nas moléstias diathesicas?... É questão ad probandum, e tão problemática como a viciação constitucional. Os outros não são exclusivos a essa classe de moléstias. Portanto a differença entre diathese e moléstia chronica não ficou fundamentada . Bouchut, filiado á escola vitalista, expõe, em seu tratado de palhologia geral e semeiologia, as idéas que adopta a respeito das moléstias diathesicas, mais ou menos de accôrdo com os chefes d'aquella escola (Traité de Pathologie Générale et Seméiologie-Paris, 1869, pag. 238.) Nota-se, pela simples leitura d'esse capitulo de sua obra, quanto é indecisa e vaga a opinião que elle defende. Elle hesita em escolher a diathese entre a constituição mórbida e a dyscrasia, cedendo final- mente, depois de frequentes oscillações, em favor da primeira hypo- these. Entretanto, os objectos a escolher não offerecem differença notável para o caso vertente; quer optasse por uma, quer por outra, não pudéra o auctor escapar da hypothese, e de uma hypothese absurda. Dizemos-hypothese absurda-com referencia á constitui- ção mórbida, expressão vazia de sentido e de emprego injustificável em ontologia medica. Quanto á sua dyscrasia, á qual elle liga uma importância capital na formação da diathese, julgarnol-a já discutida. Passemos a dizer o que pensamos a respeito da theoria, tão ro- manesca quanto singular, imaginada por Baumès (de Lyon) e 40 desenvolvida no seu Compendio das Moléstias Diathesicas (JPrécis sur les Diathèses - Lyon, 1853, pags. 26-35). Essa theoria está contida toda, no que toca aos seus princípios, na própria definição que Baumès propõe. Diz elle: « A diathese é uma necessidade anormal da vida vegelativa, muitas vezes hereditária, algumas adquirida, devendo imperiosa, fatal e espontaneamente se revelar por manifestações mórbidas que apparecem, depois desapparecem em um ponto para reappa- recer em outro, em épochas separadas por intervallos mais ou menos longos, e que affectão em toda a parte fôrmas mais ou menos idênticas ou revestem fôrmas diversas, porém sempre derivadas do mesmo principio. » A theoria de Baumès é com certeza uma das mais engenhosas e seducloras. A de Bordeu não o é mais. Intercalada, porém, em um livro de sciencia, ella representa apenas um abuso pouco escrupuloso, tratando-se sobretudo de um sabio, como o é certamente Baumès. Diz este auctor que a diathese é uma necessidade anormal da vida vegelativa. .. Vida vegetativa é o complexo de actos que o organismo executa em prol da conservação do seu estado natural. Necessidade quer dizer sensação ou percepção affectiva da ausência de alguma cousa ou falta de execução de um acto. Vê-se que a phrase de Baumès é toda metaphorica. As necessidades normaes da vida vegetativa são, aliás, em resumo -a crase do sangue e a integridade funccional dos solidos do organismo motilidade e nevrilidade de Ch.Robin). Em qual d'essas condições da vida vegetativa se faz sentir a necessidade anormal de Baumès? Elle não nôl-o diz; e voltamos assim á-lesão constitucional - dos auctores precedentes, idéa preconcebida, e sem o menor valor pratico ou theorico que a justifique. Dizer que a necessidade anormal em questão resulta de uma lesão inaccessivel aos nossos meios de investigação é evitar o problema, recuando a difliculdade e não-resolvel-o- qual é o fim da theoria. 41 Fóra da escola de Monlpellier, Hildenbrand (Médecine Pratique) emittio idéas muito approximadas á doutrina ahi seguida e nella se baseou para definir a diathese: «uma constituição própria e especial ao corpo humano, que entretem uma opportunidade particular e per- sistente, em certas moléstias, e que produz essas moléstias em diversos gra'os como causa próxima.» A constituição, porém, como já o disse- mos, é a resultante geral das energias potenciaes elementares do orga- nismo. A resistência potencial que os agentes elementares do orga- nismo offerecem aos seus perturbadores-é a constituição elementar. Dizer, portanto, que a diathese é uma constituição que entretem op- portunidade mórbida é dizer implicitamente que ella não passa de uma constituição fraca, ou de uma fraqueza geral das constituições elementares. A diathese reduzida a uma noção desta natureza nada explica; muito menos o conseguirá sob a fórma vaga em que a emittio Hildenbrand. Joseph Frank (Jntrod. à Vétude de la Méd. Clinique, pag. 19) define a diathese: «um estado morbido, dando ás moléstias um aspecto especial que se póde reconhecer e distinguir no meio dos symptomas pelos quaes se manifestão essas moléstias.» Esta definição, como se vê, nada caracterisa, ou, por outras palavras, não define cousa alguma, por isso mesmo que define tudo. Vejamos, agora, como comprehende a noção de diathese o actual e habilíssimo Professor de pathologia geral da Faculdade de Pariz. Chautfard é o homem das abstracções e das grandes vistas theoricas. Elle não comprehende as sciencias medicas sem o principio vital, e por isso disserta sobre a diathese nos termos que fielmente trans- crevemos : « Diathese é a unidade affectiva que liga manifestações mórbidas múltiplas, quasi sempre similhantes ou extranhas na apparencia, oflferecendo fôrmas organicas differentes, moveis, succedendo-se por intervallos mais ou menos afastados, substituindo-se mutuamente, mantendo-se muitas vezes em uma oscillação reciproca de um 42 apparelho a outro; desses actos diversos que abração ordinariamente uma vida inteira ella faz um todo pathologico determinado, reco- nhecendo uma mesma causa morbifica immanente e incarnada no organismo, o mais das vezes hereditária, podendo attenuar-se diante de uma firmeza feliz ou de uma excitação synergica das forças vi- lães, porém nunca desapparecendo inteiramente, e sempre prompta a reapparecer no terreno vital em que ella germinou.» Eis ahi o que escreve o illustre Professor. Elle nos dá, na verdade, uma definição muito extensa. Analysando-a, porém, minuciosamente, e livrando-a dos seus appendices e dos seus termos inúteis, temo-l'a resumida no seguinte: a unidade affectiva que liga manifestações mórbidas múltiplas, formando um todo pathologico determinado, que reconhece uma mesma causa immanente e incorporada no organismo. O que é unidade affectiva? Evidentemente é uma qualidade. De que? O auctor nos diz adiante: de um todo pathologico, formado por manifestações mórbidas múltiplas, que reconhecem uma mesma causa immanente e incorporada no organismo. O que póde ser esse todo pathologico de causa unica e ma- nifestações múltiplas? Sem duvida a moléstia diathesica. Diathese, pois, segundo Chauffard, é a unidade affectiva pecu- liar á moléstia diathesica, isto é, a noção ontologica de um dos caracteres desta moléstia. Ora, o problema que os clinicos propoem aos pathologistas, no caso das moléstias diathesicas, é sem duvida um facto mais extenso e complexo, a saber: Qual a condição pathologica ante- posta aos caracteres daquella classe de moléstias ? Qual a disposição mórbida ou morbigenica capaz de explicar a sua evolução e fórma clinica? Tal é a intenção da palavra diathese em pathologia geral. Chauffard define, portanto, tudo quanto quizer, menos a diathese. 43 Broca não é mais feliz do que Chauffard, cahindo em ignorância do elencho quando tenta defini-la. São suas as se- guintes palavras : « Diathese-não é urna moléstia, mas uma causa de moléstia.... e mesmo uma causa prematura, porque ella não cahe debaixo dos nossos sentidos.... é uma vista theo- rica do espirito e não uma causa observada ou observável, ella se destaca do raciocínio (Traité des tumeurs). » Os professores da escola de Pariz encarão a questão debaixo de um ponto de vista clinico e descriptivo, mais do que, como os vitalislas, pelo seu lado theorico e philosophico. E a esses médicos que Chauffard applica o epitheto de-phenomenalistas, no nosso entender appropriado iieste caso. A escola phenomenalista ou de Chomel não discute, a bem dizer, a questão; esluda-a de um modo superficial e, portanto, pouco conclusivo. Eis a definição de Chomel, que tanta excitação produzio na Faculdade e tão celebre se tornou : « A diathese, diz elle, é uma disposição, em virtude da qual muitos orgãos ou muitos pontos da economia são ao mesmo tempo ou successivamente a séde de affecções espontâneas em seu desenvolvimento e idênticas em sua natureza, mesmo quando ellas se apresenlão debaixo de apparencias diversas. » Esta definição certamente não resolve cousa alguma da questão, e consiste em uma simples apresentação do pro- blema. Ella foi fortememente atacada em Pariz como indu- zindo a uma petição de principio; acreditando, porém, que a pretensão do sabio Professor não foi si não reunir em uma pequena fórmula os principaes dados da questão, jul- gamo-l'a perfeitamente adaptada a seu fim. Muitos professores da escola de Pariz, tomando a questão proposta pela definição de Chomel, procurarão esclarece-la, discutindo-a e desenvolvendo-a. 44 Assim, Nonat não comprehende a diathese sinão como : « uma condição organica, em virtude da qual se desenvolvem em certos indivíduos affecções múltiplas, simultâneas ou successivas, que, apezar da sua differença de séde ou de forma, estão ligadas entre si por uma mesma natureza, e reclamão o mesmo tratamento. > Monneret extende-se um pouco mais, juntando novos dados á definição de Chomel e tentando sobre elles estabelecer uma opinião: « A diathese, diz Monneret, é um estado geral do organismo, hereditário ou innato, raras vezes adquirido, inteiramente latente até a época em que determina uma moléstia geral caracterisada por lesões ou desordensfunccionaes disseminadas em um grande numero de pontos, porém idênticas em sua natureza e cedendo ao mesmo tratamento.» Um pouco mais adiante accrescenta o mesmo Pro- fessor : « A diathese não é a moléstia, porém é mais do que a predisposição; ella constitue um estado de imminencia mórbida incessante ou antes de incubação. Ella se resolve em um verda- deiro estado pathologico, que se denomina moléstia diathesica. » Grisolle é menos extenso que Monneret, porém mais incisivo : « A diathese, diz elle, é caracterisada pela manifestação exterior, sobre muitos orgãos ou muitos pontos da economia, de desordens, lesões ou producções mórbidas de natureza indentica, desenvolvidas debaixo da influencia de uma causa interior, de uma constituição mórbida própria ao indivíduo.» Béhier e Hardy exprimem-se, com mais prudência e menos exactidão, nos seguintes termos: « Por diathese deve-se entender um estado morbido, que parece occupar a totalidade da economia e se reproduz em diversos pontos por symptomas sempre ligados entre si por uma fórma similhante, a qual revela a acção de uma causa idêntica em toda a parte.» Racle especialisa na sua definição e nas suas apreciações a idéa de constituição mórbida com modificação correlativa dos humores e da 45 nutrilidade dos solidos. Bouchut, em Pariz, como vimos acima, pensa do mesmo modo, e, na Faculdade da Bahia, o imita o Dr. Egas Carlos Moniz Sodré de Aragão, em sua these de concurso para a cadeira de pathologia geral. O nosso illustrado lente de pathologia geral, o Sr. Dr. Dias da Cruz, admitte igualmente em seu Compendio de Pathologia Geral a idéa de constituição mórbida, cingindo-se ás idéas da escola vitalista. Finalmente, Maurice Raynaud, que disserta longamente, no Diccionario de Jaccoud, a proposito da palavra Diathese, resume a sua opinião em seis proposições separadas, cujo transsumpto é o seguinte : « Estados morbidos geraes, sempre chronicos, frequentemente hereditários, apresentando no mais alto grão o caracter de uni- dade affectiva, com tendencia a determinar espontaneamente nos actos intimos da nutrição modificações de ordem diversa, sem um termo definitivo. » Donde se conclue que elle entende a questão mais ou menos do mesmo modo que os outros auctores da escola de Pariz. Tratando mais adiante do estado do organismo modificado pela diathese, diz-nos ainda esse auctor que o estado diathesico se reduz, como toda a moléstia, a uma impressão affectiva do ser vivo, expressão esta que elle emprega na falta de uma melhor, por isso que exprime o facto mais geral que nos é possivel attingir. Recapitulando tudo quanto se tem dito até hoje de mais po- sitivo sobre a-diathese, não se póde deixar de notar como o facto mais saliente das tentativas theoricas a indecisão e a inso- lução completa em que permanece ainda o ponto essencial da questão proposta por Chomel em Pariz, e ha um século discutida em Montpellier. O resultado final da extensa e perenne discussão, ahi como em Pariz, ficou sempre negativo. O que dizem os auctores em resumo? O que nos ensinão os mestres? Que a diathese é um estado geral do organismo, uma 46 condição organica, uma constituição, um temperamento, uma pre- disposição, uma opportunidade, uma imminencia, uma qualidade, uma impressão, uma vista theorica e finalmente uma ficção\ Á parte esta ultima conclusão, a discussão empenhada no terreno da philosophia medica sobre o problema da diathese tem-se resolvido invariavelmente em um-idem per idem, appli- cado ao estudo e á interpretação dos phenomenos que se dis- cutem. Liquidada, pois, a historia philosophica das theorias apresentadas para explicar a diathese, cuja noção elementar definimos no co- meço d'este trabalho, vê-se que a magna questão se acha ainda hoje nas mesmas condições em que a encontrámos ha um século. Provém isso, sem duvida, do emprego invariável que tem tido na pathologia racional o methodo synthetico para o estudo e interpretação de noções abstractas como a noção de diathese, com deducção analytica dos seus caracteres primitivos. 0 mesmo se tem feito com outras noções vagas e abstractas, introduzidas na ontologia medica para representar phenomenos complexos e obscuros. Como se comprehende, tal methodo, nas condições que figuramos, não poderá dar sinão um resultado contra- produccente. O inverso devêra ter sido executado, segundo o exige a natureza mesma do assumpto. É o que vamos tentar. Cíirflderes áfí Seu numero e denominação. Descripção dos symptomas que elles representão. É, sem duvida, no estudo analytico da moléstia diathesica que de- vemos ir buscar os fundamentos para a formação de uma theoria racional da diathese. Analysando os caracteres communs áquella classe de moléstias e synthetisando depois os dados resultantes d'esse estudo,, é que pode- remos conhecer então os caracteres essenciaes da diathese e chegar finalmente á noção pratica e completa do que seja uma tal entidade. Já tivemos o cuidado de dar no terceiro capitulo do nosso tra- balho uma noção elementar bastante clara e philosophica do que exprime o vocábulo diathese (palavra de origem grega, que quer dizer-disposição.) Ahi, depois de termos justificado o proposito e o alcance scien- tifico de uma concepção d'esla ordem, resumimo-fa nos termos seguintes: typo nosologico formado pela reunião dos caracteres communs ás moléstias diathesicas e differenciaes das outras moléstias. 48 Em seguida, apresentámos a sua definição preparatória, para servir de base ao estudo theorico das moléstias diathesicas, e que presentemente nos vai servir de guia na apreciação dos seus carac- teres typicos. São elles, como já fizemos ver: í.° a tenacidade; 2.° a heredita- riedade; 3.° a intermitlenda; 4.° a substituíividade ; b.° a promis- cuidade . Taes são, com effeito, os caracteres reaes e legítimos da diathese, verificados pela observação directae indiscutível dos factos. Ninguém os pódepôr em duvida. A diathese, porém, segundo a entendem os sonhadores das theorias precedentemente discutidas, offerece outros caracteres mais e, se- gundo esses auctores, os mais importantes que essa entidade possue. São esses os caracteres que denominamos de falsos, por imaginários, e que lhe fôrão emprestados á custa de outras noções abstractas vicio- samente concebidas, das quaes tratámos succintamente no nosso segundo capitulo, como causas fecundas de erros e de parallogismos perigosos. Por isso, antes de estudar e fazer a analyse que pretendemos dos verdadeiros caracteres da diathese, façamos a critica que merecem aquelles pretendidos caracteres, addicionados por inducções paral- logicas, principalmente do systema de Barthez. D'entre esses caracteres são primordiaes os seguintes: constitucio- nalidade ou unidade affectiva, innaticidade, espontaneidade e especifi- cidade, todos introduzidos pela escola vitalista. Vejamos successivamente si qualquer destas noções abstractas pode ser de alguma fórma julgada-caracter de moléstia. A palavra moléstia, em sua accepção lata, já foi precisa mente definida em nossas Generalidades. Em ultima analyse ella não passa do complexo dos phenomenos que se- succedem no organismo á ingerência, em seus actos normaes, de uma potência ou resistência insólitas ; estas provocão uma série determinada de effeitos novos. 49 0 que é constituição? Eo gráo de resistência que o organismo offerece aos differentes agentes modificadores que elle encontra dentro ou fora de si. É um modo de ser do organismo mesmo. Essa resistência absoluta do organismo é a resultante geral de todas as resistências organicas parciaes. Ora, uma resistência só póde ser modificada por accrescimo ou diminuição. Logo, a constituição só póde ser modificada lambem ou enfraquecendo-se ou robustecendo-se. Ella representa o con- juncto dos phenomenos da economia, a vida do organismo, pelo lado da sua pujança ou de sua fraqueza ; ha constituições fracas e constituições fortes, assim como ha vida longa e vida curta. Assim definidas e bem limitadas as idéas de constituição e de moléstia, facil será apreciar as combinações de que são capazes esses doustermos diversos. Haverá moléstias conslitucionaes ou estado morbido constitu- cional ? O que póde ser uma moléstia constitucional? Certamenle não é outra cousa mais do que aquellaque affecta a constituição do individuo. Temos ahi uma constituição mórbida, uma constituição modificada por uma causa morbifica. Ora, como acabamos de ver, ellasó se póde modificar por accrescimo ou diminuição. Da acção de uma causa morbifica qualquer sobre a constituição só deve resultar, por consequência, uma constituição enfraquecida ou robustecida. As moléstias constitucionaes não passão, pois, de méra ficção ; não existem taes moléstias, não ha constituições mórbidas. Agora, vejamos a innaticidade, ou virtude de não ler nascimento, de não ter começo, de não ter origem, de não ter uma causa fóra do organismo, de ser inherente a elle. Vê-se que, em rigor, esse caracter singular não passa de um conlrasenso ; porquanto a mo- léstia, qualquer que ella seja, é um accidente, como o é todo o facto, todo o phenomeno possivel, e ahi temos um phenomeno sem prin- cipio, o que é um absurdo. Mas a linguagem vitalista, especial comoé, tem o direito de appellar aqui para a hermeneutica. Segundo quer essa 50 escola, moléstia innata é aquella que entra como episodio ou pro- cesso previsto na evolução normal do organismo. Tal é para os vitalistas a diathese no organismo diathesico. Admitlimos o facto como positivo, mas n este caso iranaftcícMe é perfeito synonymo de hereditariedade, os dous termos se confundem; moléstia innata e moléstia hereditária são uma e mesma cousa. Passemos á espontaneidade. Espontâneo é todo o acto que se realisa sem um motivo qualquer fóra do agente. Moléstia espon- tânea é então aquella que faz eclosão sem causa exterior, sem uma provocação causal extranha ao organismo. A sua causa, pois, está incorporada ao proprio organismo, incluída n'elle; o acto morbido tem ahi mesmo o seu motivo, e tira a sua origem de uma disposição organica preexistente, de uma condição mórbida contem- plada no plano do organismo adoecido; é um facto anormal indu- bitavelmente, pois que não é commum a lodosos indivíduos. Ora, esse facto preexistente não póde ser sinão um facto constitucional morbido, uma constituição mórbida, isto é, a constituição fraca ou forte, si a disposição é geral; será uma hypersthenia ou hyposthenia parcial, si a disposição é também parcial. Será este facto peculiar á moléstia dialhesica? Será elle um caracter da diathese? A escola de Montpellier admilte a disposição geral, isto é a constituição mo- dificada. E esta por si só seria capaz de produzir uma moléstia? Fôra preciso que o effeito pudesse exceder á causa, que a acção excedesse o agente. Finalmente a especificidade. Especifico é o facto que por si só constitue uma especie, sem analogo, que se isola por seus caracteres. Moléstia especifica é, portanto, aquella que, por ser a unica em sua especie, constitueo typo de si mesma. A diathese, segundo a escola de Barlhez, está precisamente n'este caso. Mas a diathese não é uma moléstia, é muito mais do que isso, por isso que é uni typo de moléstias, implica pluralidade ; e teremos assim a pluralidade espe- cifica ou unica, que encerra contradicção. 51 Ahi estão os caracteres vitalistas, ajuntados, coitados artificial- mente á diathese, mas que d'ella se desprendem naturalmente desde que se dissolve o artificio. Entramos agora em uma nova ordem de considerações, de maior alcance para o nosso fim, pois que d'ellas se destaca naluralmente toda a theoria que no capitulo subsequente vamos expôr e desen- volver, de accôrdo com os dados da presente analyse. A tenacidade é indubitavelmente uma das qualidades mais sa- lientes das moléstias diathesicas. A moléstia aguda tem a sua evolução cyclica e, de duas uma, ou extingue a vida do indivíduo atacado, ou elimina, á custa de sua própria evolução, a causa que a produzio. A moléstia chronica póde ter também a sua evolução cyclica, embora lentamente se desenvolva e lentarnente desappareça. Quando a chronicidade perdura e se torna indefinida, ella é sem duvida tenaz, tende a perpetuar-se e resiste muitas vezes ao mais activo tratamento, podendo mesmo ser physicamente incurável. Não obstante isso, n'essa numerosa classe de moléstias offerecem-se milhares de exemplos de cura radical, quando um tratamento racional, que a eilas se anteponha, é rigorosamente seguido; esse mesmo tratamento póde, em casos sem conta, sustar a marcha do mal, limita-lo, torna-lo latente ou diminuir-lhe os estragos, quando a moléstia é incurável. A moléstia diatheUca é tenaz no mais alto grão; nenhum trata- mento radical póde ser garantido; ella resiste aos mais energicos com uma certeza desanirnadora. Uma pequena melhora obtida a ninguém, sinão ao desgraçado que soffre, dá esperanças de suc- cesso ; nenhum clinico experimentado jamais se apoia sobre um successo considerável para garantir que elle seja completo. Essa moléstia, em summa (a escrophulose, o rheurnalismo, a syphilis, o tubérculo), symbolisa a resistência perpétua, a tenacidade inven- civel. Não será isso uma qualidade formal para constituir-lhe um caracter? 52 Todas as moléstias poderáõ ser hereditárias, como podem ser tenazes? Indaguemos, em primeiro togar, que facto ou que ordem de factos são representados em physiologia normal e pathologica pela idéa de herança. É fóra de toda a duvida que as disposições e aptidões elementares, bem como as mais complexas da organisação em geral, animal ou vegetal, são falalmente transmittidas dostypos preexistentes para os representantes naturaes de sua faculdade reproductiva. O producto que resulta constantemente do exercício d'essa faculdade de que gozão os sêres organisados constitue um typo mixto, no qual se synthetisão por uma fusão exacta os typos de que elle se origina. Em busca de uma explicação physiologica d'essa propriedade notável que a organisação manifesta de um modo brilhante e fatal, o sabio professor de histologia de Pariz analysou, com a sagacidade admiravel do seu genio e com a penetração de suas vistas philoso- phicas, ao lado dos phenomenos communs que se passão na evolução genesica do organismo, certos phenomenos especiaes relativos á transmissão de suas disposições ou propriedades pathologicas. « As lesões pathogenicas, diz esse sabio histologista, devem ser procuradas nas substancias organicas; são com effeilo estas que estão modificadas molecularmente, o que provão: « 1.°-as affecções em que podemos verificar as alterações sof- fridas por certas substancias organicas ; « 2.°-as diíferenças de coagulação das substancias organicas, as diílerenças de reacções que essas substancias determinão; « 3.°-e sobretudo, as modificações que sobrevêm na formação e expulsão dos princípios immediatos da segunda classe, resul- tantes da desassimilação das substancias organicas. (Leçons sur les substances organiques). » Depois de ter fixado com a maior precisão a noção histológica ou elementar de lesão e as i Ilações variadas que dresse principio dimanão, 53 estuda Charles Robin, com o critério eminente que o glorifica entre os sábios mais notáveis, os phenomenos em virtude dos quaes os elementos anatómicos ou hislologicos do organismo recebem das substancias em geral e da matéria morbifica em particular quali- dades próprias e inherentes a essas mesmas substancias. Eis como elle se exprime a esse respeito, já nas suas Lições sobre as substancias organicas, yÁ na edição de 1873 de seu Diccionarw de Medicina: «... .Para dar conta dos phenomenos de herança, convém saber, além d isso, quedas substancias organicas gozão da propriedade de transmittir, por simples contacto com as substancias de uma outra especie, o estado molecular particular que qualquer substancia exterior nellas produzio. Ora, ha certos estados geraes do organismo, certas aptidões, que não residem evidenlernente só em um simples arranjamento passageiro dos tecidos e dos humores, porém que têm ao contrario desenvolvido uma modificação molecular especial em todos os pontos do organismo. Segundo a propriedade que têm as substancias organicas de transmittir de uma maneira lenta, porém contínua, seu estado molecular ás substancias com as quaes ellas estão em contacto, é evidente que todas as partes que nascerem em consequência do desenvolvimento das primeiras cellulas geradoras do ovulo serão modificadas para bem ou para mal, segundo o estado em que este se oíTerece. » A parle a idéa de estados morbidos geraes ou modificações de todos os pontos do organismo, noção absolutamente inexacta, como já demonstrámos, e adquirida á custa de uma falsa concepção de diathese, os princípios de Charles Robin sobre a herança evolutiva têm uma base inconcussa em factos incontestáveis. Ha, ali, uma omissão com respeito ás moléstias nervosas. Não obstante, d'esses princípios se conclue que uma condição essencial para que haja herança de moléstias é aquella aptidão 54 mórbida ou modificação adquirida lentamente pelos nossos tecidos, em longo contacto com as substancias organicas morbigenicas. Logo, as moléstias chronicas podem ser transmittidas por herança, por isso que preenchem a condição essencial exigida para que essa transmissão se realise. Tal é, com efTeito, o que a razão nos suggere. Com a moléstia aguda isso não se dá. E na moléstia diathesica que essa propriedade do nosso orga- nismo se revela peremptória e quasi fatalmcnle, percorrendo ge- rações "successivas de um modo indefinido, consubstanciando-se com as disposições e aptidões innatas dos tecidos que affecla e perpe- tuando-se assim no indivíduo e na especie. Para completar a analyse ea demonstração d'este caracter pudé- ramos transportar para aqui alguns d'entre os principaes dados clínicos e experimentaes com que auctores eminentes têm enrique- cido esta parle do estudo pratico das moléstias chronicas em geral. Prescindimos, porém, d'esse trabalho por julga-lo dispensável. Importa agora tratar da intermittencia ou latencia, caracter, para os auctores, de uma importância capital, e que de um modo formal especialisa a physionomia própria das moléstias diathesicas. E, com effeito, nesta classe de moléstias que vamos encontrar per- feitamente realisado este curioso phenomeno. Sem duvida, em sua accepção rigorosa elle constitue um caracter negativo, porquanto exprime a ausência ou desapparecimento intermittente das mani- festações próprias da moléstia diathesica. Entretanto, por outro lado, elle implica ou suppõe um estado positivo de moléstia, uma disposição mórbida effectiva e permanente, com a circumstancia particular de conservar-se latente, de subtrahir-se aos meios sensiveis de observação, negando ao exame clinico as suas manifestações habituaes. Assim, vemos a cada passo na pratica, entre milhares de outras manifestações das moléstias diathesicas, as nevralgias rheumaticás, 55 as erupções syphiliticas, escrophulosas, ou herpeticas, as arthralgias gol tosas, desapparecer em um tempo dado e reapparecer com a mesma ou com maior intensidade, depois de uma longa ausência, durante a qual deixão o individuo livre. Não se póde, é verdade, dizer de uma maneira absoluta que o individuo fica completamente livre da moléstia diathesica, isto é, dos seus symptomas proprios. Assim, no syphilitico temos os engurgitamentos ganglionares, que no escrophuloso constituem mesmo uma das manifestações mais caracteristicas; no rheumatico temos o alquebramento mais ou menos pronunciado das forças, o emagrecimento que quasi sempre o acompanha, etc , no hysterismo as modificações estáticas da sensibilidade, da indole e do caracter, no herpelisrno a seccura e aspereza da pelle ou a hypercrinia sudoral da mesma; finalmente no tuberculoso, no qual a bronchile, a hemoptyse, os phenomenos cerebraes e abdominaes, ligados á presençado tubérculo, constituem a moléstia tuberculosa, dado o caso que desappareção totalmente, fica sempre a lesão e affecção organica, que vem a ser o proprio tubérculo. Isso mesmo, porém, serve para demonstrar ao observador que a affecção subsiste sempre, embora se tenha aplacado, que a dispo- sição mórbida preposta á moléstia diathesica guarda apenas maior ou menor latencia. A latencia, por conseguinte, é um caracter i ndubilavel d'essa moléstia, bem que não seja absoluto, quer na sua extensão, quer na sua generalisação. Esse caracter, não obstante, não éexclusivo á moléstia diathesica, mas notoriamente extensivo a quasi todas as moléstias chronicas, ou em rigor a todas ellas. Latencia mais ou menos completa, mais ou menos longa, mais ou menos caprichosa, é facto que se verifica a cada passo na clinica de qualquer ordem de moléstias. É um phenomeno ordinário, que a ninguém causa pasmo ou extranheza, e contra o qual o medico frequentemente se previne, 56 indo procurar a moléstia através de um symptoma quasi nullo, sob a advertência de uma simples presumpção. Tratemos do penúltimo caracter que atrás deixámos enunciado. E a substitutividade. Vemos em um indivíduo atacado de uma afeção articular de fundo rheumatico que tem durado algum tempo, de repente, sem uma causa determinada, sem um motivo apparente ou sob a in- fluencia de um tratamento direclo da lesão articular, desapparecer esta mais ou menos completamente para manifestar-se com os mesmos caracteres ou com caracteres diversos em um ponto de ordinário afastado-na pleura, por exemplo, na serosa ce- rebral, ou mesmo em outras articulações. Igual facto se observa muito commummente com as erupções dartrosas, etc. O cancro tem alguma cousa de similhante, porém nelle a lesão que primeiro faz eclosão não é substituída sinão nos casos ern que a sua ablação se faz, reincidindo então, ás vezes em logares distantes do que foi primeiro atacado, mas ordinariamente no mesmo logar. Na escro- phulose, na morphéa e em outras moléstias diathesicas, o facto da substitutividade é positivo, nas mesmas condições que o rheuma- lismo e o herpelismo. Na tuberculose, entretanto, nada se pôde dizer de categórico, porque a moléstia não se resolve, como também acontece com o cancro, nem póde ser jugulada, unico caso em que se pudera saber si ella se substituiria ou não. Ora, como bem se vè, o phenomeno não é fatal para todas as moléstias diathesicas, e varia sobremodo de uma para outra. Mas nem por isso elle deixa de ser o mais caracteristico de todos os phenomenos especiaes que a noção de diathese encerra. Com eíleilo, não ha no quadro nosologico moléstia chronica alguma que o apresente com aquella physionomia ou com uma extensão tão notável. É um caracter quasi exclusivo, quasi pathognomonico da moléstia diathesica. Não obstante, em rigor, varias moléstias o apresenlão também, em 57 um grão, porém, muito inferior e com uma extensão mais limitada» É sabido, além d'isso, que a tberapeutica o imita com felicidade, em seu proveito, transfigurando por um artificio o phenomeno observado, isto é, invertendo o jogo das lesões que se têm de substituir. Assim é que, por meio de uma lesão provocada a seu contento, ella consegue fazer desapparecer, muitas vezes, uma affecção preexistente. Tal se observa no emprego dos vesicatórios, dos sedenhos, dos conticulose dos irritantes em geral. 0 facto, pois, é mais commum do que parece e pouco digno de extranheza. Chegamos, finalmente, ao caracter que mais tem actuado na attenção dos clinicos e pathologistas, induzindo-os a crêr que existe em toda a moléstia diathesica uma disposição mórbida geral. É a promiscuidade. A moléstia diathesica extende as suas lesões a quasi todos os pontos do organismo, sem regra fixa nem distincção de orgão. Ella ataca quasi todos os tecidos da economia, affectando fôrmas múltiplas e tomando intensidade variavel. porém não poupando quasi orgão algum. Esta é effectivamente a regra; numerosas, porém, são as suas excepções si quizermos toma-la em rigor, e ahi temos á frente de todas a tuberculose ou granulose, cuja esphera anatomo-patholo- gica é por demais limitada ; temos no mesmo caso a gôtta, o mormo e ainda as boubas. Isto quer dizer que a generalisação d'este caracter só com muitas reservas e restricções bem definidas se deve admittir. Não é, comludo, menos certo que elle concorre com os outros carac- teres, sinão mais do que todos elles, ao menos nas mesmas pro- porções e na mesma qualidade, para dar ás moléstias diathesicas a sua physionomia especial. Com respeito á sua extensão, elle não pôde tão pouco ser tomado em sentido absoluto. As moléstias diathesicas que mais vasto dominio exercem sobre o organismo são com cer- teza a syphilis e a cancerose, si assim nos é dado chamar a esta. 58 ultima. E, no emtanto, dado que ellas ataquem lodos os orgãos ou regiões da economia, o mesmo se dará com todos os tecidos da organização animal? Porventura alguém poderá affirmar que o cancro ataca a fibra nervosa ou a fibra muscular, o tecido elástico, o tecido glandular, ou mesmo o tecido seroso ? E permittido duvidar, e a anatomia pathologica até certo ponto demonstra que essas lesões são encontradas ou no tecido epithelial ou no tecido conjunctivo. Só observações incompletas e dissecções pouco precisas fazem suppôr o contrario. Tomado de um modo geral e absoluto, o caracter promiscuidade não é certamente applicavel ássimples moléstias chronicas,como não o é também ás moléstiasdialhesicas. Em sentido restricto, porém, edeum modo relativo, estas têm também a sua-promiscuidade. Aqui terminando a descripção abreviada dos principaes carac- teres nosologicos que, reunidos sob uma fórmula abslracta, con- stituem o typo pathologico-diathese, assiste-nos o direito de per- guntar de novo aos palhologistas que o introduzirão na sciencia com que base o creárão, retirando do quadro geral das moléstias chronicas essas moléstias a que elles chamão-diathesicas. Fizerão-no, sem duvida baseando-se nos seus caracteres especiaes. Acabamos de proceder a uma analyse sobre esses caracteres, succinta é verdade, porém exacta e rigorosa, e, como primeiro resultado que agora se nos offerece, temos uma conclusão a tirar: entre as mo- léstias dialhesicas e as moléstias chronicas em geral não existe differença essencial. E, de facto, nenhum só existe, dos caracteres que constituem a diathese ou typo das moléstias diathesicas, que não tenha em maior ou menor gráo o seu correspondente no quadro symptomatico de quasi todas, sinão de todas as moléstias chronicas conhecidas. Assim, estas são tenazes em gráo ascendente até á moléstia dia- thesica, que d'ellas se distingue por ser a mais tenaz d'entre todas. São também transmissíveis por herança, em numero mais limí- 59 lado, é verdade, e em gráo menor, porém ascendente até a menos transmissível das moléstias diathesicas. Quem o póde contestar? O que não soffre a menor duvida é que as moléstias chronicas offe- recem em um gráo crescente até á diathese todas as condições exigidas para atravessar as gerações. Charles Robin o demonstra. E ainda cousa positiva e de conhecimento banal a intermittencia ou latencia na longa serie das moléstias chronicas. Ha mesmo em uma boa parte d'estas moléstias, n'aquellas que derivão de uma moléstia aguda antecedente, uma tendencia fatal a diminuir progressivamente de intensidade até reduzir-se a ves- tígios ou mesmo desapparecer, deixando apenas em seu logar uma fraqueza da constituição do orgão, um abaixamento do nível de sua resistência, e n'isso consiste a predisposição, cujo valor já definimos no segundo capitulo d'este trabalho. É, em taes condições, sob a influencia da menor provocação ou de uma occasião inferna, que a reacção de novo se desperta e a moléstia reapparece em scena. Eis ahi a latencia ou intermittencia de um certo numero de moléstias chronicas. A outra parte d'estas moléstias começa chronica desde a sua pri- meira manifestação (reacção); são as moléstias chronicas cuja tendencia ordinaria é sempre a augrnentar de intensidade e extender as suas desordens, porquanto o seu começo mesmo de- monstra uma fraca resistência (energia) da parte do orgão ou do tecido affectado. Aqui a latencia é inicial, a moléstia, como se diz em linguagem pittoresca, começa traiçoeiramente. Essa latencia inicial ainda se repete mais tarde, vindo a encobrir-se a marcha da moléstia, por occasião de um phenomeno previsto pelas leis physio- logicas. Esse phenomeno é a compensação, providencialmente esta- belecida pela existência dos orgãos ou das funcções congeneres ; estas se exagerão, porque as necessidades respectivas do organismo n'aquelle ponto se exagerão também. A reacção, por consequência, do orgão affectado ou do ponto compromeltido diminue á proporção 60 que a compensação se estabelece até reduzir-se a um equilíbrio mais ou menos instável, que póde ser mesmo estável por algum tempo. Como a funcção do orgão ou do ponto compromeltido tem limites na sua dilatação, quebra-se de novo o equilíbrio no ponto que está doente e a moléstia reapparece. Portanto, esta especie de moléstias chronicas tem também a sua latencia inlermittente, que os auctores irreflectidamenle teimão em dar ás moléstias diathesicas como caracter quasi privilegiado. Nas moléstias agudas ha também uma latencia inicial, que os auctores denominão de periodo de incubação, e ha uma tendencia, ás vezes notável, para voltar a ella, que é a remissão das moléstias febris, que, sendo pronunciada, caracterisa as febres remittentese certas febres graves, como é a febre amarella. Nas febres inter- mittentes essa tendencia triumpha da moléstia e a latencia se es- tabelece com intervallos diversos. Não está no nosso intuito dar aqui a pathogenia d'essa latencia das moléstias agudas; mas, como se comprehende á primeira vista, ella não diflere essencialmente da que se observa na marcha das moléstias chronicas. Passemos á substitutividade. Ella resulta directamente da lei da compensação, ha pouco por nós estabelecida. Toda a moléstia chro- nica, por consequência, e ainda a moléstia aguda, tem, de accôrdo com a capacidade compensadora maior ou menor dos orgãos con- generes áquelles que ataca, a faculdade de fazer substituir certo numero de lesões caracteristicas por outras da mesma ou de ordem diffe rente. Finalmente, a promiscuidade é caracter que deriva da natureza mesma das funcções exercidas pelo tecido, região, orgão, apparelho ou systema compromeltido pela moléstia. Assim é que, soffrendo o capillar lymphatico ou sanguíneo, por exemplo, de moléstia que impeça a sua funcção regular, os outros exa- gerão a sua funcção (congenere); d'esse trabalho demasiado resulta que estes também podem soffrer, vindo n'esle supposto a adoecer 61 novos orgãos, e assim por diante, succedendo-se uma serie de lesões, cuja distribuição é determinada pela própria distribuição topogra- phica dos capillares lymphaticos. Por consequência, toda a moléstia, mais ou menos, tem sua pro- miscuidade, cuja extensão vae-se augmentando na classe das mo- léstias chronicas até á diathese, que a possue no mais alto gráo possivel, physiologicamenle só comparável ás febres exanthematicas, ou a qualquer outra moléstia que abale todo um systema. Si, pois, como temos demonstrado, as diatheses ou antes as moléstias diathesicas não têm, d'entre seus caracteres clínicos bem fundamentados, nenhum especialmente seu, exclusivo, que as dis- tingua essencialmente dos outros estados morbidos, onde buscar as bases para a separação que a clinica instantemente reclama? Não é mais licita uma hesitação na resposta, e seria irrisorio recorrer-se ainda á creação de uma nova doutrina medica ou pedir-se bases aos systemas existentes, para uma resposta, tão deter- minada e tão simples que não passa de uma conclusão a tirar. Si, com effeito, os caracteres fundamentaes das moléstias dia- thesicas não se achão encerrados em sua fôrma clinica, como está sullicienlemente provado, onde busca-los sinão na anatomia e na physiologia pathologica d'essas mesmas moléstias? E estudando a pathogenia especial de cada um dos seus carac- teres clinicos, isto é, as condições anatómicas e physiologicas necessárias para a sua producção no organismo, e reunindo depois d'isso as noções colhidas d'esse estudo, que chegaremos a determinar a anatomia e physiologia pathologica d'aquellas moléstias, e portanto a sua natureza e causas. É, por outras palavras, pelo emprego successivo da analyse que acabamos de fazer, e em seguida da synthese ao estudo dos factos em questão, que poderemos chegar ao conhecimento da verdade, isto é, dos princípios que os crêão e das leis que os dirigem na sua producção. G2 Eis ahi, parece-nos que explícita, a razão principal por que trévas tão espessas e tão eterna confusão têm invariavelmente rei- nado no estudo e na classificação das moléstias dialhesicas. Tudo está, com effeito, no que toca aos principaes motivos de controvérsia e desharmonia entre os auctores, em procurar uma diíferença essencial, fundamental e absoluta entre as moléstias agudas, chronicas e dialhesicas-onde na realidade tal diíferença não existe. Dahi, a necessidade sentida pelos pathologistas extre- mados de procura-la na própria phanlasia, e essa tendencia fatal para abstrahir e raciocinar improficuamente no vacuo-tendencia perniciosa e indomável, que não tem sido sustada nem pela negação mais categórica dos factos, nem pela esterilidade perpétua de seus incansáveis esforços. É que o desconhecido, com a sua altracção mysteriosa, seduz a nossa immaginação, como o abysmo seduz ao abysmo; a razão hu- mana, irritada em sua contingência, dá então francas regalias áquella que a tudo attinge, e é assim que mais tarde cultiva como suas as inspirações pueris que só a phantasia pudéra conquistar-lhe. Infelizmente para a sciencia, o desconhecido aqui, o almejado quid ignotum, é o inaccessivel de Broussais, o impossivel absoluto. Não é um quid, é o nihil! das moléstias diathesicas. Toda a theoria representa essencialmente umasynthese dos ca- racteres fundamentaes e das leis que regem certa serie de factos. Uma theoria pathogenica applicada ás moléstias diathesicas (vide noção de diathese) deve, pois, representar a synthese geral dos caracteres clássicos e das leis pathogenicas d'essas mesmas moléstias, especificando as analogias e as differenças fundamentaes que estas offerecem com as outras classes de moléstias. O conhecimento mais ou menos preciso, a determinação mais ou menos exacta d'aquelles factos especulativos, de que a razão se apodera em proveito da verdade, faculta-nos o dominio mais ou menos abso- luto dos phenomenos e das causas que queremos explicar. Esses factos geraes, cuja reunião systhematica constitue a própria sciencia, representão em nosso espirito a razão natural das cousas. Ora, tra- tando-se, como em o nosso caso, de phenomenos de ordem pa- thologica, os factos geraes ou especulativos obtidos do seu estudo analytico nos devem infallivelmente dar a sua razão biologica (patho- genica), que é aqui a incógnita. 64 Assim, o problema que a noção de diathese encerra póde ser posto em discussão de um modo simples e completo, nos termos em que abaixo o formulamos : Problema. - Qual a-razão biologica-em virtude da qual certas moléstias aílectãoem sua evolução os caracteres geraes de-tenaci- dade , hereditariedade, latencia ou intermittencia, substit atividade e promiscuidade no mais alto grão que comportão as condições na- turaes da nossa organização? Essa razão estará simplesmente na séde da affecção? nas funcções da parte affectada? ou no principio pathogenico? Será anatómica, physiologica ou etiologica? Ahi temos, em uma fórmula bastante clara e determinada, resu- midos os pontos capitaes da questão que nos propomos a discutir. A razão ou condição pathogenica dos caracteres ácima enunciados, isto é, dos factos particulares que caracterisão as moléstias diathe- sicas, não reside certamente, nem póde residir, na causa que as deter- mina, e isso por motivos diversos. Em primeiro lugar, a causa ou principio pathogenico julga tão sómente da natureza de um facto; apenas póde esclarecer-nos o espirito a respeito das qualidades intrínsecas ou subjectivas d'esse facto e nunca das suas qualidades extrínsecas ou objeclivas. Não ha duvida alguma que do estudo da causa depende inteira- mente o conhecimento do seu effeito absoluto ; mas o estudo do seu effeito relativo implica, não o conhecimento da causa que o pro- duzio, mas unicamente o do terreno em que a sua acção se mani- festa. O resultado do exercicio de um agente qualquer (effeito relativo) é encontrado nas modificações que o paciente experimenta ou experimentou, e para a determinação positiva de taes modificações precisamos rigorosamente de conhecer as disposições normaes e pro- priedades activasdo ser modificado. É, então, do effeito observado que passamos á deducção do seu principio, cujas propriedades potenciaes por aquelle se manifestão e sem elle jámais poderáõ existir em nosso pensamento. 65 Em segundo logar, na questão que discutimos, o nosso intuito não é outro sinão tomar conhecimento dos motivos por que certas moléstias são hereditárias, intermittentes, etc., no máximo gráo, pois que as qualidades mórbidas que esses vocábulos exprimem são communs em maior ou menor grão a uma infinidade de moléstias, sem referencia á causa que as engendrou no organismo (vide carac- teres da diathese). Trala-se no problema em questão de effeitos re- lativos comparados a outros effeitos analogos; a verificação exacta das suas analogias nos levará á apreciação ulterior das suas diffe- renças. A idéa de causa não entra, assim, em nossa discussão, sinão como objecto secundário ou elemento isolado e dispensável. Tudo isto equivale a dizer, em conclusão, que as leis da diathese são anatomo-physiologicas e não etiologicas. Estas ultimas, com effeito, suppoem dados de ordem muito diversa, os quaes se achão contidos em um outro postulado, e exige para a sua determinação theorica a formação de um segundo problema. Esses dados são, entre outros, o contagio ou inoculabilidade dos productos morbidos, as propriedades chimicas, physicas e histológicas de taes productos, etc., etc. A entidade abstracta que encerra esse novo problema lira os seus caracteres de uma serie de factos muito distinctos dos factos dialhesicos, de outra ordem e alcance pathologico: são as qualidades estalicas dos symptomas (dyscrasias e nosorganias). Deixemos, portanto, de parte os caracteres etiologicos das mo- léstias diathesicas, cujo estudo nos levaria sem duvida á determi- nação das leis etiologicas d'essas moléstias, mas que só pudéra- mos fazer si livessemos o tempo requerido para desenvolver a segunda parte do nosso ponto. E, na verdade, do estudo analy- tico dos symptomas, isoladamente considerados, que se destaca o problema etiologico. Si as condições pathogenicas dos caracteres da diathese não residem na causa determinante das moléstias diathesicas, coma 66 fica demonstrado á evidencia, devemos necessariamente procura-las nas disposições anatomo-physiologicas que o organismo offerece. Sendo invariáveis as leis que dominão a evolução do organismo, toda a affecção reduz-se a uma modificação das disposições normaes da economia, sob a dependencia de uma causa variavel. Os ca- racteres com que se apresentão taes modificações devem assim referir-se á causa que as determina ou á anatomia e physiolo- gia do orgão que ellas interessão. Já vimos que os caracteres da dialhese nada têm que ver com o principio pathogenico, e a sua accepção mesma o indica. E, portanto, á anatomia e á phy- siologia normal que devemos dirigir no presente caso as nossas interrogações. As leis analomo-physiologicas de uma affecção qualquer só podem ser obtidas á custa dos factos biologicos que se realizão na esphera de sua evolução. Esses factos são de duas ordens: l.° factos hygidos (funcções e productos normaes da evolução) que nos são conhecidos pelo estudo da anatomia e da physiologia normal; 2.° factos morbidos (lesões e symptomas) que a obser- vação clinica, a anatomia e a physiologia pathologica nos fornecem. Conseguintemente, é pelo cotejo methodico d essas duas ordens de factos com referencia aos caracteres da dialhese que chega- remos a determinar as leis anatomo-physiologicas, sob cujo do- mínio aquelle estado morbido se estabelece. Temos a estudar em primeiro logar a tenacidade ou chroni- cidade, que consiste na persistência da affecção com ou sem mo- léstia apparente. Para a perfeita comprehensão d'estes termos, somos obrigados a repetir e desenvolver aqui o que a esse respeito deixámos dito no capitulo das generalidades. Segundo ahi nos exprimimos, todo o agente accidental, estra- nho á composição do organismo ou ás suas condições normaes, occasiona por sua presença uma modificação correspondente nas 67 funcções elementares (assimilação e desassimilação), e, portanto, nos produclos immediatos da evolução. A desassimilação, porém, é o termo fatal, o ponto rigorosa- mente terminal dos actos evolutivos, porquanto todo o agente assimilado é, em virtude mesmo do papel que representa no organismo, desassimilado logo depois, para ser subslituido por outro. Por consequência um agente extranho accidenlalmenle in- troduzido no organismo, si é assimilado, desassimila-se logo e é delle retirado pela funcção eliminadora; si não é assimilado e obra por simples presença, inílue nos actos evolutivos como con- dição nova, imprimindo modificações correspondentes nos pro- ductos da evolução, e pondo-se assim em equilibrio com as con- dições habituaes. D'ahi a seguinte conclusão: a lendencia do organismo nos casos de affecção é fatal no sentido de faze-la desapparecer, elimi- nando a sua causa ou neutralizando os seus effeitos. Si a causa ataca o organismo de uma só vez, eliminada que seja, aquelle volta ás suas condições primitivas; si persiste, ou as suas provocações se repelem indefinidamente, a economia crêa para si novas condições e fornece productos anormaes, de accôrdo com o principio ou a condição mórbida que a affecta. No pri- meiro caso, temos a aftecção e a moléstia aguda ou cyclica; no segundo, a moléstia chronica. N'esta ultima hypothese está bas- tante explicita a razão da tenacidade da affecção, que vem a ser a persistência do agente extranho de onde ella provém. Em o nosso proposilo não está verificar os casos em que a affecção depende da duração indefinida da causa exterior. O que nos importa indagar são as razões anatómicas ou phy- siologicas em virtude das quaes o organismo retem em si proprio ou reproduz indefinidamente certos agentes ou con- dições morbigenicas, que, pela regra, devêrão ser de uma vez eliminados. 68 Quaes as condições anatomo-physiologicas ou as disposições or- gânicas affectivas da tenacidade das moléstias? A evolução mais ou menos longa e mais ou menos complexa, que resume em si o facto completo da vida de um organismo (vide generalidades), reduz-se em ultima analyse á successão alternativa dos phenomenos da assimilação e desassimilação (nu- trição). O primeiro phenomeno representa-a funcção repara- dora- e o segundo-a funcção eliminadora - do elemento; ambos podem ser comprehendidos sob a denominação de-funcções ele- mentares do organismo. Pela assimilação incorpora-se ao organismo toda a causa de affecção, ou é recebida toda a influencia extranha de que a orga- nização se resente. Pela desassimilação é eliminado o agente ex- tranho ou neutralisada a influencia insólita, á custa do producto que se fórma. Comprehende-se que, si se trata do elemento do organismo ou de um micro-blasta (si assim podemos exprimir-nos)t o acto as- similador é immediatamente seguido do acto desassimilador. O tempo que dura o exercicio de cada agente é o minimo nos actos da organização; um agente extranho ao typo do elemento determina, por consequência, uma alteração de sua constituição tão rapida quanto possível, isto é, uma affecção agudíssima no maior grão imaginável. Si considerarmos, agora, vários elementos ou micro-blastas, reu- nidos como elles se achão naturalmente no organismo, formando um organismo elementar, esses elementos modificão mutuamente as suas energias assimiladoras (synergia), e fazem uma troca igualmente mútua dos productos de sua desassimilação. Estes pro- ductos se confundem para serem retirados conjunctamente do or- ganismo, mas encontrão em sua passagem os materiaes da as- similação, que vão reparar as perdas soffridas, e os modificão pelo seu contacto ou diffusão (catalyse de Ch. Robin). Suppondo, 69 pois, que um agente morbifico ou uma condição insólita, que alterão a normalidade do meio nutritivo, são transportados ao seio do organismo elementar, esse agente ou essa condição anor_ mal passão por tramites mais numerosos do que no simples micro-blasta, e, depois de eliminados, soffrem ainda um retorno parcial que reclama nova eliminação, até o restabelecimento com- pleto da situação primitiva. Já por aqui se vê que, á proporção que o organismo se com- plica, as funcções elementares se multiplicão também, a sua funcção total se torna mais complexa, e a evolução leva mais tempo a percorrer o seu cyclo. Ora, a affecção não é sinão a própria evolução modificada; segue-se d'ahi que a sua duração deve estar forçosamente de accôrdo com a duração d'esta ultima, isto é, em relação com o tempo que esta leva a completar-se, ou íinalmenle na razão directa da importância bruta do orgão compromettido. Por outras palavras e de um modo mais incisivo podemos dizer, como regra absoluta, que: a duração cyclica de uma a/fecção qualquer está na razão directa da extensão evolutiva ou am- plitude funccional do orgão que ella modifica. Assim, a duração cyclica de uma affecção do micro-blasta suppõe apenas dous actos elementares, nos quaes a apropriação do agente ou condição insólita é logo seguida de uma desapro- priação inevitável. A affecção da cellula requer já um maior lapso de tempo para completar a sua evolução. Ahi o cyclo morbido é pre- enchido por uma successão mais numerosa de actos differentes, a saber: actos assimiladores, collisão dos productos da assimila- ção, actos desassimiladores, collisão dos productos da desassi- milação, diluição d'estes pelos princípios reparadores, retorno de uma parte dos productos alterados e eliminação da outra parte (eliminação progressiva). 70 Si varias cellulas se reúnem formando um território (Goodsir e Virchow), a evolução se complica ainda mais, e o cyclo evolutivo se alonga em proporção. Vários territórios reunidos uniformemente em grupo, isto é, formando uma nova sy- nergia organica e funccional, podem constituir já um orgão ou pelo menos um folliculo com fôrmas variadas; a sua evolução se torna assim mais complexa e leva mais tempo a consum- mar-se. Chegamos deste modo, subindo progressivamente de categoria anatomo-physioiogica, na escala dos orgãos da eco- nomia, aos apparelhos mais extensos e aos grandes systemas do organismo. Applicando, agora, a estes factos, que um estudo philosophico do organismo nos revela, a lei da evolução acima estabelecida, podemos traduzi-la por est outra mais simples : maior éo orgão affec- tado, maior será o cyclo que a affecção tem de percorrer. Dahi se deprehende que, si o nosso organismo inteiro pudesse adoe- cer, a affecção que o avassallasse seria a mais longa e a mais tenaz de iodas, por isso que o devêra acompanhar até o seu aniquilamento completo. Haverá uma affecção capaz de modificar o organismo na totali- dade dos elementos que o compoem? um agente pathogenico que possa diffundir-se e comprometter pela sua presença todos os pontos do organismo? E isso um facto realizável ou porventura realizado para a philosophia nosologica ? Examinemos a questão. A affecção, como já ficou dito em nossas generalidades, resulta da introducção de uma força ou de um systema de forças novas entre os agentes normaes que compoem o organismo. Essas forças, pondo-se em collisão com as forças preexistentes, ou exagerão certa ordem de aclos addiccionando-lhes um numero determinado de effeitos, ou deprimem-nos, pelo contrario, deminuindo-lhes o effeilo habitual. Temos, assim, aaffecção reduzida á sua expressão mais 74 simples, isto é, a uma exaltação ou depressão absoluta de um sys- tema determinado de actos orgânicos ou economicos. Em taes condições, dizer que o organismo inteiro está affeclado por uma causa morbiíica qualquer é dizer que elle está exaltado ou deprimido em absoluto. Ora, o que é o organismo exaltado na funcção ou exercicio de todos os seus elementos?o que é o orga- nismo deprimido na totalidade de suas forças ou agentes?. . . No primeiro caso é um-colosso biologico ; no segundo-um pigmeu da organisação. O que é certo, tanto no primeiro como no ultimo caso, é que a exageração ou o abatimento absoluto em nada lhe póde alterar a saúde, que não é maisdo que a harmonia ou equilíbrio perenne que preside á lula perpetua dos elementos orgânicos, isto é, a evo- lução das potências animadas no meio de seus agentes e resistência naturaes. Para que haja affecção é necessário que a uma força qualquer ou agente extranho sobrevenha depressão ou exaltação de certa ordem de agentes, com exaltação ou depressão relativa das suas resistências naturaes, ou o inverso desse facto com consequências analogas. Essa alteração de numero ou de intensidade das forças que compoem uma synergia, produzindo um desvio na producção dos phenomenos evolutivos normaes, póde manifestar-se, portanto, em um território celluiar, em um orgão qualquer, em um apparelho ou em um dos grandes systemas economicos,-mas nunca na totalidade do organismo. 0 organismo todo não póde se affectar. Todas as resistências exaltadas com prejuizo das potências ou inverso seria o aniquila- mento da vida, a negação da luta que a constitue e que ella repre- senta no estado de saúde ou de moléstia. Em vista desta verdade inconcussa-de que não póde existir mo- léstia constitucional ou affecção universal, isto é, cuja causa aclue em todos os pontos do organismo-achamo-nos auctorizado a concluir que as affecções dos systemas economicos serão as rnais longas e as 72 mais tenazes, supposto queellas ataquem-no em toda a sua extensão ou uma parte considerável d'elle. Ficão, assim, expendidas de um modo geral e resumido as con- dições anatomo-physiologicas, das quaes depende im mediatamente a tenacidade e duração das affecções, e com relação a este caracler são ellas breves, longas ou indefinidas (*). Passemos a averiguar as condições pathogenicas do segundo caracter das moléstias diathesicas-a hereditariedade. Quaes as condições anatomo-physiologicas exigidas para que uma affecção se transmitia por via de geração ? No ovulo masculino e no ovulo feminino se reúnem todos os agentes simples da evolução ou mono-blastas, cujo agrupamento em systema completo e uniforme constitue o typo de organização de cada indivíduo; é pela fusão exacta d'essas duas syntheses elemen- tares e pela evolução consecutiva de seus agentes constituintes que se fórma um novo individuo com uma organisação similhante á daquelles que o gerarão. Os agentes evolutivos ou mono-blastas do ovulo masculino, encontrando no ovulo feminino agentes corres- pondentes para os quaes têm franca aílin idade, rompem o equilíbrio preexistente entre estes últimos para substitui-los por um novo equilíbrio mais complexo e mais completo com tendencia á pro- gressão. Tal é a fecundação, ponto de partida da evolução dos seres organisados que têm orgãos especiaes de geração. Cada grupo, ordem ou systema de mono-blastas congeneres vai formar pelo processo evolutivo um orgão, um apparelho ou um systema. No ovulo achão-se representados infallivelmente, por meio dos agentes simples a que chamamos mono-blastas, todas as dispo- sições organicas hereditárias, e é por meio d'aquelles elementos (*) Cumpre notar aqui que a agudeza, significando violência de symptomas, e a chroniciãade, na accepção de symptomas moderados, são caracteres etiologicos, pois que dependem da maior ou menor energia com que as cansas se exercem. 73 que se effectua a transmissão. Por consequência, toda a manifes- tação pathologica transmittida por herança teve nos ovulos de onde sahio o indivíduo a sua condição primordial, isto é, o agente ou e systema de agentes palhogenicos cuja evolução ul- terior deu logar ã intercurrencia de certos phenomenos mór- bidos na serie dos phenomenos normaes. E forçosa, n'estes casos, a presença no ovulo de um ou de muitos mono-blastas modi- ficados, que tenhão alterado em sua origem o lypo de orga- nização do orgão, do apparelho ou do systema que mais tarde adoeceu. Ora, para que tal facto se realize é necessário, como o diz Charles Robin, que o agente ou os agentes transmittidos se tenhão perpetuado no orgão, no apparelho ou no systema progenitor, encontrando n'elle as condições precisas para a sua conservação ou evolução; e, sendo assim, para que uma afTecçãose transmitia por herança, é necessário que a sua causa efliciente se introduza como elemento evolutivo ou disposição permanente no orgão, no apparelho ou no systema comprometlido. Portanto as condições anatomo-physiologicas exigidas para que uma affecção se transmitia por via de geração são as mesmas, já estudadas, para que ella seja tenaz. D'esta consideração somos le- vados a tirar também para a herança das affecções, como o fizemos para a sua duração, uma lei especial, que resumiremos assim: a hereditariedade das affecçoes está na razão directa de sua duração no organismo; quanto mais tenaz é a a/fecção. tanto mais heredi- tária. Estalei, approximadaá lei da tenacidade, ainda se transforma n'esta outra: mais extenso é o orgão affectado, com mais certeza será transmittida a affecção. Quaes as condições palhogenicas da latencia? Latencia, caracler negativo, quer dizer, como a palavra o exprime, ausência de symplomas. Que factos analomicos ou physiologicos dão logar a uma tal ausência ? Para proceder a um estudo logico e cabal d esta questão, importa 74 antes de tudo saber o que é symptoma. Esta palavra, anatómica ou physiologicamente considerada, exprime a differença que existe entre um phenomeno normal e esse mesmo phenomeno observado no doente. O symptoma póde, pois, significar accrescimo ou dimi- nuição de uma qualidade qualquer, com respeito ás qualidades normaes de um facto biologico ; é uma novidade, positiva ou nega- tiva, para mais ou menos, que sobrevem em tal ou tal manifestação do organismo. Esse accidenle, não contemplado no typo evolutivo do ser organi- zado, resulta aliás da presença, em um ponto do organismo, de um agente novo ou de uma resistência advenlicia, influindo nos actos physiologicos por um augmento ou restricção dos seus effeitos normaes; nada se faz, com effeito, sem uma causa determinada, e causa, na ordem dos phenomenos physicos, é synonymo de força (agente ou resistência). Ora, dado o caso de existir, na producção de um phenomeno, accrescimo ou diminuição de agentes ou o que será preciso para que a differença entre a synergia normal e a synergia pathologica (lesão pathogenica) não se manifeste por uma differença proporcional entre o effeito anterior e o effeito posterior á lesão? o que será preciso para que o symptoma se não produza?.. . Evidentemente uma-compensação. Entretanto, para que a compensação das forças organicas se possa estabelecer, é necessário que, de duas ou mais synergias, uma só ou algumas estejão atacadas ou adulteradas em sua constituição. D'ahi, a necessidade absoluta que lemos de conhecer as synergias em suas relações reciprocas, afim de que possamos determinar e definir o acto ou o complexo de actos, em virtude dos quaes a phenomeno tem logar. Toda a synergia tem forçosamente uma resultante. Nas synergias organicas, como nas outras synergias, essa resultante se manifesta por uma acção de totalidade ou por um effeito geral, que resumem todas asacçõese effeitos parciaes. Sendo a synergia isolada, seu effeito 75 total tem o caracter de unidade e se exprime por um resultado directo e igual nente isolado. N'esta hypothese, alterando-se a sua consti- tuição por um motivo qualquer, o seu resultado também se modi- fica e a alteração intima se revelafalalmente por um facto exterior. Si, porém, temos duas synergias'congeneres reunidas, a resultante de cada uma se divide, e duas d'essas divisões exprimem o laço que as reune; as outras duas divisões das resultantes se manifestão no exterior por um effeito directo eimmediato. Comprehende-se, agora, que, si uma. força exlranha ou um agente novo vem actuar sobre uma d:estas synergias, a sua resultante que está repartida em duas se incrementa em um ou em outro sentido; si a força adventícia se junta em favor do effeito exterior, a resultante interior se attenúa em proporção e a outra synergia soffre uma influencia indirecta, da qual resulta-lhe uma modificação em sentido, inverso: a sua resul- tante interior se incrementa e a exterior diminue. Por consequência, o effeito ostensivo, que é a resultante final das duas synergias, conserva-se sempre o mesmo, desde que o equilíbrio interrompido se renova. Actuando o agente extranho sobre a resultante interior, um movimento opposlo tem logar, mas ainda com o mesmo effeito ostensivo. É este, em sua expressão mais simples, o mechanismo de todas as compensações organicas, e, assim concebido esse phcnomeno complexo, torna-se por demais facil e natural a comprehensão da latencia, á primeira vista tão extranha e inexplicável. Entretanto outros phenomenos orgânicos, que se succedem á compensação inicial,merecem ser tomados também em consideração. Assim, si ao agente insolito introduzido na synergia sobrevêm outros da mesma natureza, um em seguida ao outro sem o in- tervallo suíliciente para que os primeiros sejão eliminados, soffrendo uma das resultantes lateraes (a interior ou a exterior) um augmento progressivo com prejuízo da outra e fazendo-se um desvio proporcional da synergia contígua, chega um momento 7$ em que o equilíbrio se rompe entre as duas synergias, e a re- sultante das forças adventícias vai acluar adiante. E então que a sua presença se patentèa de novo, cessando a latencia inicial. Portanto a latencia mórbida entre duas synergias elementares é de uma duração muito curla> e de uma estabilidade precá- ria. Mas, si as synergias congeneres elementares são em nu- mero considerável, a duração e a estabibilidade d'aquelle pheno- meno se torna também notável, effectuando-se de um modo tanto mais completo e duradouro quanto maior é o numero dos elementos synergicos e congeneres. D'estes dados mais que positivos, e por assim dizer mathema- ticos, podemos com toda a segurança deduzir a lei biologica da latencia das affecções ou inlermittencia das moléstias. Essa lei póde ser concebida em termos analogos aos das leis preceden- tes. Assim, podemos estabelecer que: a latencia das affecções é tanto mais longa e mais estável quanto maior é o numero das sy- nergias congeneres do orgão que ellas affectão e quanto menor é o nu- mero de synergias affectadas. A substilutividade das moléstias deriva, como já o dissemos em outra parte (caracteres da diathese), da própria latencia das affecções, e basêa-se como esta no facto da compensação. Vimos, ha pouco, tratando d este ultimo phenomeno, que para a sua execução é necessário que uma synergia organica ou muitas synergias reunidas corrijão pelo seu concurso as desordens pro- duzidas em uma synergia congenere pela acção de um principio pathogenico. Pelas modificações indirectas por que passão aquellas primeiras, vimos que ellas substituem os effeitos pathologicos d'esta ultima. Ora, esgotada a faculdade compensadora do orgão af- fectado, comprehende-se que a lesão inicial deva manifestar-se. Suppondo, agora, que esta seja sustada em sua marcha progres- siva ou em seu desenvolvimento, por um facto (accidental ou therapeutico) que neutralize os seus effeitos, renova-se a latencia 77 da affecção, reproduz-se o movimento compensador, e, no termo da compensação, esgotado o equilibrio das synergias congeneres, a lesão se manifesta em outra parte; os caracteres da nova lesão, que n'estas condições se produz, assimilhão-se ou se ap- proximão dos caracteres da lesão inicial, visto como se origina de um desarranjo similhante ao da affecção primitiva. Em vista d'estes factos, podemos concluir de um modo geral que: a substitutividade das moléstias é tanto mais extensa e tanto mais notável quanto mais extenso e mais compromettido é o orgão affectado. Finalmente, falta-nos tratar do ultimo caracter que as molés- tias diathesicas apresentão. O que é promiscuidade? É a faculdade que tèm certas affecções de se manifestarem em muitos pontos do organismo ou em differentes orgãos da eco- nomia, que não guardão entre si uma relação anatómica ou phy- siologica conhecida. Os pontos ou regiões do organismo em que se fazem as determinações mórbidas das affecções promíscuas não entretêm, de facto, relações anatomo-physiologicas conhecidas, mas que essas relações devão existir ninguém o póde negar, ape- nas sendo ellas ignoradas por não estarem evidentes nem serem intuitivas. O que é verdade é que essa promiscuidade na elecção tópica das manifestações pathologicas, reduzida ás suas proporções oa- turaes, isto é, considerada nos limites restrictos em que ella é observada, não exprime outra cousa mais do que um facto tri- vial, que nas affecções diathesicas faz vulto eminente por suas proporções extraordinárias (vide caracteres da diathese). A determinação mórbida ou symptoma se localisa n este ou n'aquelle ponto do organismo conforme o orgão que soffre, e é com o seu auxilio que chegamos a precisar a séde da affecção. Sempre que uma alteração pathologica qualquer se estabelece em uma região da economia, existem infallivelmente n'essa região 78 orgãos ou elementos orgânicos determinados que soffrem a influencia de um agente ou condição pathogenica. Si essa alteração é secundaria, isto é, si deve ser referida a uma lesão preexistente em outra região do organismo, incontestavelmente o agente que a produzio teve origem n'esta ultima e foi transpor- tado por um vehiculo qualquer para o segundo ponto affectado. Não queremos já indagar si esse vehiculo foi o sangue, a lympha ou a fibra nervosa. O que não soffre a menor duvida é que a via transmissoria do agente pathologico faz em taes condições parte integrante e essencial da séde da affecção. Dessas considerações deduzimos a seguinte lei para a pro- miscuidade pathologica: a promiscuidade das moléstias está na razão directa da extensão da séde do orgão affectado; mais extensa é a promiscuidade, maior é o orgão doente. Das quatro leis pathogenicas, que assim ficão estabelecidas com relação aos phenomenos dominantes nas affecções diathesicas, facil nos será deduzir, com a maior certeza e precisão que é pos- sível sob um ponto de vista geral, a séde d'essas mesmas affec- ções. Para isso, basta reunir as quatro leis em uma só propo- sição, pois que ellas têm um elemento commum [a extensão do orgão affectado), e compara-las com os caracteres da dialhese, es- tudadas no capitulo precedente. Demonstrámos n'esse capitulo que os caracteres geraes das af- fecções chamadas diathesicas distinguem-nas das outras affecções sómente polo elevado gráo em que ellas o possuem. Com ef- feito, em geral todas as affecções chronicas dão logar em sua evolução aos phenomenos que constituem aquelles caracteres, exprimindo-os em um gráo ascendente até á affecção diathesica, que o exprime no gráo mais elevado. Ora, acabamos de provar com razões mui positivas, ou pelo menos lógicas e philosophi- camente estabelecidas, que - a tenacidade ou duração, a heredita- riedade, a latencia, a substitutividade e a promiscuidade das 79 affecções em geral estão na razão directa da extensão ou importância bruta dos orgãos affectados. Por consequência, devemos inferir sem receio de errar: que as affecções chamadas dialhesicas são aquellas que se assestão nos mais extensos orgãos da economia animal, e, vice-versa, as affecções assestadas nos orgãos mais extensos da economia animal são ipso-facto diathesicas. Quaes são os orgãos mais extensos da nossa economia? Sem duvida, são os systemas orgânicos em primeiro logar, e os grandes apparelhqs, em segundo. Estes últimos, entre os quaes avultão o apparelho digestivo, o ourinario, o sudoriparo, o osseo e o muscular, não affectão aquelles caracteres morbidos sinão em grão muito limitado, e em geral não soffrem isoladamente, quando os caracteres diathesicos se observão. Portanto aos sys- temas geraes da economia deve ser referida a séde das affecções diathesicas. Os systemas economicos são em numero de tres essenciaes - o lymphatico, o sanguíneo e o nervoso-que por sua vez se sub- dividem em systemas secundários. Em conclusão, pois, as affecções diathesicas têm por séde os systemas lymphatico, sanguíneo ou nervoso, ou uma de suas sub- divisões principaes. Baseado n'esta conclusão final, daremos a nossa definição de diathese e proporemos aos nossos mestres uma classificação das affecções diathesicas. fiejwição de diatljese. .... Sendo o fim das nossas indagações o conhecimento da natureza das cousas e devendo a definição expôr o resul- tado d'estas indagações, como se ha de começar pela con- clusão ? Definir é pôr a equação d'onde se deduz a incógnita e na solução de todo o problema esta equação é a ultima. (Balmes - O critério, pag. 133.) É notável e digno de séria lastima que os auctores em geral, mesmo os mais criteriosos, tenhão começado os seus estudos sobre a diathese apresentando uma definição cabal d'esse estado morbido, sem se lembrar de que tal procedimento esíá em opposição formal com os conselhos os mais comesinhos da boa lógica. Assim, vemos quasi todas as Pathologias Geraes e a maior parte dos livros especiaes sobre as affecções ou sobre as moléstias dia- thesicas, sem haverem ainda preparado uma base segura e posi- tiva, encetar as suas razões ou os seus estudos por uma definição categórica, não da palavra diathese, porém da própria entidade diathesica. É por isso que a generalidade dos auctores impensada e aeria- mente têm admittido a constituição ou o temperamento geral do individuo como séde da affecçào diathesica, tirando d'ahi conclusões vagas, como as premissas estabelecidas, e variaveis ao infinito. 85 Para taes auctores a constituição geral ou o temperamento geral adoecendo {disposição ou estado morbido geral) é que dão logar á moléstia diatliesica, obrando como causa próxima ou causa effi- cienle das determinações pathologicas que caracterisão esta moléstia. Sobre o valor d'esla presumpção à priori, que custa a crer se tenha propagado com tanto successo na sciencia, já nos expli- cámos largamenle nos capítulos anteriores. Não só nenhum facto suíficienle auctorisa ao observador circumspecto a inferência de uma conclusão tão absoluta, porquanto nos indivíduos diathesicos o estado geral se resente depois das determinações pathologicas e nunca antes d'eslas (excepto si a affecção é hereditária), como também (e esta razão é de todo o peso) a própria noção absoluta de constituição geral é incompatível com a noção essencialmente relativa de affecção ou estado morbido. Não ha negar que a constituição geral se resente, em gráo va- riável desde a ligeira fraqueza até a mais profunda cachexia, das desordens trazidas pela affecção diatliesica, enfraquecendo-se de par em par com o depauperamento do organismo e baixando por assim dizer na escala de sua resistência. Entretanto, que motivos ou que factos valiosos nos auctorisão a responsabilisaha pelos accidentes especiaes que a diathese manifesta ? Não é por fórma alguma ella que está tomada pela affecção, nem ahi que devemos procurar a disposição mórbida primitiva. A affecção diathesica, o vicio ou alteração pathogenica, que sob tão prodigiosa variedade de fôrmas se apresenta no quadro clinico das affecções cbronicas em geral, tem, como toda a affecção, um estudo anatomo-pathologico definido, uma séde bem determinada no organismo e regiões que se podem precisamente delimitar; empre- gados os meios convenientes, ella se poderá localisar tão material, mente e com tanta exaclidão como qualquer affecção chronica conhecida. A jnlgal-a pelos seus caracteres gcraes, como lemos feito até aqui, 83 a sua séde deve ser referida a um dos grandes syslemas economicos sem cujo auxilio a vida não póde manter-se na esphera de suas attribuições em ponto algum do organismo. Quaessão os syslemas da economia, sem osquaes é rigorosamente impossível que a mais limitada região guarde accôrdo com o typo orgânico e physiologico que a natureza lhe marcou? Sem duvida alguma, são o systema lymphalico (hemato-poietico), hemo-vascular {circulatório) e nervoso {regulador). O primeiro recebe os prin- cípios alimentares do exterior e prepara a matéria prima dos tecidos-éo systema formador;o segundo transporta o sangue a todas as regiões da economia, fornecendo-lhes os princípios necessários para a sua reparação - éo systema reparador; e finalmente o terceiro dirige o organismo ou procura para elle as condições que melhor o podem conservar-é o systema direclor ou conservador. De accôrdo com as idéas expendidas definiremos a diathese: toda a affecção chronica que tem por séde um dos grandes systemas econo- micos no que, em sua evolução, o interessa essencialmente, mani- festando-se por lesões e symp'ornas de ordem e natureza variavel, ligados entre si pelas connexões naturaes do systema interessado. Sitíisão e £-Í£issi|t£fi(ão áeis jaffceçõcs diflfijesims. Guiando-nos pela nossa definição de dialhese, devêramos dividir as affecções diathesicas em tres grandes ordens, conforme o sys- tema orgânico em que ellas têm a sua séde presumível. Entretanto, como somos levados a crêr que algumas affecções, percorrendo os períodos ulteriores de sua evolução, attacão mais de um systema, sendo aliás isso muito natural em vista das connexões intimas que ligão esses systemas, entendemos dever accrescentarás tres divisões primordiaes uma quarta divisão, comprehendendo as affecções que têm a sua séde em dous ou nos tres systemas* Assim, dividiremos as affecções chronicas d'esses orgãos nas quatro ordens seguintes: l.a affecções chronicas do systema lymphatico ; 2. a affecções chronicas do systema sanguíneo ou hemo-vascular; 3. a affecções chronicas do systema nervoso ; 4.a affecções chronicas de mais de um systema. Segundo a séde que presumi mos para cada uma das affecções 86 diathesicas conhecidas, vamos distribuil-as pelas quatro ordens acima enumeradas, da maneira seguinte: DIATHESES LYMPHATICAS. 1 .* Syphilis. 2. a Boubas. 3. a Mormo. 4. a Escrophulose. 5. a Tuberculose. 6. a Diphterile (?) 7. Cancerose. DIATHESES HEMOVASCULARES. 1. a Uricemia. 2. a Anemia (Chiorose, hypoglobulia, hypoalbuminose). 3/ Alcoolemia. 4. a Atheromatose. 5. a Hydrargirismo. 6. a Arcenicismo. 7. a lodismo. 8. a Plumbicismo. 9. a Phosphorismo. 10. a Morphinismo etc., etc. DIATHESES NERVOSAS. l.a Nervosismo ou hystericismo. 87 2. a Ilyslerismo. 3. a Polymania essencial. 4. a Bheumatismo. DIATHESES MIXTAS (nEVRO-HUMORICAs). 1 .a Gôtta. 2.a Herpetismo. 3 a Impaludismo. 4. a Erysipela. 5. a Morphéa. Muitas affecções são ainda ordinariamente ciladas pelos auctores da Escola de Pariz e por alguns de Montpellier entre as affecções diathesicas. No meio d'ellas encontramos algumas que illudem com facilidade ao espirito pouco prevenido, mas que entretanto não offerecem os caracteres primordiaes das affecções diathesicas, nem tão pouco preenchem as condições anatomo-pathologicas d'aquellas mesmas affecções. Taes affecções consistem na producção simul- tânea ou progressiva do mesmo producto morbido em muitos pontos de um dos grandes apparelhos do organismo. A essa ordem de affecções denominaremos, na falta de um nome mais expressivo, de psQudo-cl iathes icas. São ellas, d'entre as principaes, as seguintes: 1. B Lupose. 2. a Lipomatose. 3 a Fibromatose. 4. a Osleomatose. 5. a Rachitismo. 6 a Forunculose, etc. 88 Si nos fôsse possivel alongar um pouco mais o trabalho que temos em mãos, procuraríamos justificar, pela descripção especial década afíecção diathesica, a classificação que apresentamos ; entretanto, o tempo de que dispomos aclualmenle para tão ardua tarefa é por demais limitado, e somos assim obrigado a deixar a nossa classifica- ção desprotegida de outras razões que não sejão as que o proprio critério do leitor nos proporcionará. PROPÚSIÇOES Secção de sciencias accessorias. CADEIRA DE PHYSICA. Matéria, forças, movimentos. i Das noções abstractas de força, matéria e movimento se occupa a Ontologia physica. II A Ontologia physica resulta da applicação da Ontologia geral ao estudo dos phenomenos physicos. III As noções de força, matéria e movimento derivão da applicação das noções metaphysicas de causa, substancia e effeito á analyse de um phenomeno physico. IV A idéa de força reunida á idéa de matéria dá a noção de agente ou força physica. 92 V O atomo é synonymo de agente simples e nega a idéa de extensão. Esta resulta da approximação dos átomos e da collisão dos agentes. VI Os agentes manifestão a sua força pelo movimento, que é a sua perpetua tendencia. VII O repouso absoluto é uma ficção, por isso que importa em a negação da força. VIII O resultado da collisão de dous agentes de igual força é o equilíbrio. O equilíbrio demonstra a força dos agentes pela negação do movimento. IX A ruptura do equilíbrio entre dous átomos pela intervenção de um terceiro importa, pois, no movimento. X O equilíbrio absoluto é representado na natureza pelo crystal. O movimento absoluto, pelo estado gazoso. Ha um estado inter- mediário que é o estado liquido. XI Da noção d'esses estados differentes da matéria é que resulta 93 a noção de corpo. Por consequência: corpo é o complexo de phenornenos que resulta da collisão dos átomos. XI1 A noção de corpo é uma idéa abstracta. As propriedades que lhe são altribuidas são noções abstractas dos phenornenos atomicos. Xill A extensão, 1'órma, cor, luz, calor, elecíricidade, calalyse, ele. são phenornenos que resultão: quer do estado de equilíbrio, quer do estado de movimento dos agentes atomicos. Os do primeiro estado são - propriedades estalicas; os do segundo são-pro- priedades dynamicas. XIV Na successão d'esses dous estados opposlos resolvem-se todos os phenornenos da natureza. Secção de sciencias cirúrgicas. CADEIRA DE ANATOMIA GERAL E PATHOLOGICA. Do cancro. I Por cancro entende-se uma neoplasia dotada de certos caracteres especiaes. A sua noção está incluída na noção de diathese. Os caracteres especiaes do cancro são os seguintes : hereditariedade, reincidência, promiscuidade e independencia evo- lutiva. II A tenacidade resulta, como a tenacidade de toda a moléstia dia- thesica, da difficuldade de eliminação dos agentes que a determinão. No cancro essa difficuldade existe no mais alto gráo. Hl Essa difficuldade de eliminação dá-se em consequência de actuar a sua causa determinante no mesmo sentido que o agente evolutivo ou o sólido, isto é favorecer a tendencia d'esle, que é a evolução. 96 IV A hereditariedade é a possibilidade de transmissão da causa por via de geração. V Para que a causa (Vid. Generalidades') se transmitia por via de geração é necessário que os ovulos, de cuja reunião procede a geração, a tenhão adquirido como adquirem os agentes evolutivos em gerai. VI A reincidência do cancro resulta da persistência in loco ou da transmissão pelos lymphaticos da causa ou agente immediato que provocou a sua evolução. VII A promiscuidade resulta da disposição mesma do systema orgânico que o cancro aílecta, que é o systema lymphatico (reticular ou ganglionar) ou o emunctorio geral (pelle e mucosas). VIII As cellulas do cancro não são mais do que o resultado da evolução das cellulas angioleucemicas ou dos epithelios, em condições anormaes. IX Essas condições anormaes, palhogenicas da degeneração can- cerosa. resumem-se em um facto positivo: a cessação completa ou a diminuição notável da eliminação funccional. 97 X Chamamos-eliminação funccional ou physiologica-a elimi- nação secretora ou excretora, cellular ou não, que se effectua em virtude da própria funcção do orgão ou do tecido. XI A eliminação funccional dos vasos e dos ganglios lymphaticos (systema hemalo-poielico) se faz á custa de dous elementos prin- cipaes : o globulo lymphatico e a lympha. XII A eliminação funccional dos epithelios em geral se faz á custa da própria cellula epithelial e das excrecções ou secrecções liquidas. XIII É pela eliminação funccional que os orgãos, em geral, moderão a sua evolução e restringem o seu crescimento. Si ella se torna excessiva ou sobrepuja o movimento assimilador, o orgão tende a alrophiar-se e a desapparecer da economia {degenerescencia re- gressiva, reabpsorçãu); si ella diminue notavelmente ou é detida por um motivo orgânico ou por uma condição adventícia, conser- vando-se o movimento assimilador no mesmo grão, o ponto com- promettido se destaca do orgão ou apparelho a que pertence e faz vulto na economia. 98 XIV A independencia evolutiva é o caracter primordial do cancro e exprime no mais alto gráo a cessação da eliminação funccional dos epithelios e do tecido angioleucemico. Quebrada esta pro- videncia economica, o ponto lesado se isola da economia e per- corre livremente todos os períodos da evolução que lhe é própria. Secção de sciencias medicas. CADEIRA DE PATHOLOGIA GERAL. Do estado pathologico em geral. I 0 estado patriologico é o contrario do estado physiologico, mas não é o opposto, que seria a negação do estado organizado. II A noção do estado pathologico e do estado physiologico resultão directamente da noção de estado organizado. III Estado organizado é aquelle em que a matéria se acha em con- dições atómicas taes que o equilibrio molecular, constantemente roto pelas solicitações de um meio especial, é renovado em acto contínuo e successivo pela emergencia perenne de agentes analogos aos primeiros. 100 IV A evolução é o resullado do estado organizado, e significa vida. V O estado physiologico é a evolução de uma certa ordem de agentes orgânicos, segundo o typo que essa mesma ordem de agen- tes representa. VI A perturbação d'esse typo pela intervenção de um agente estra- nho ou adventício é o estado pathologico. VII Este novo agente, dando uma nova tendencia á certa serie de- terminada de agentes do ser organisado, traz como consequência uma serie parallela de phenomenos, cuja successão evolutiva cons- litue a affecçào. A manifestação exterior d'esta é a moléstia. VIII O estado pathologico está fatalmente em relação com o agente que o determina. IX Si o agente é eliminado promptamente, o que se dá pela sua mesma evolução, a affecção é aguda. X Si a sua eliminação é lenta, a affecção é sub-aguda ou chronica. 101 XI Si essa eliminação não se faz, por acluar o agente estranho, directa ou indirectamente, no mesmo sentido que certa serie de agentes normaes, a affecção é chronica e sempre crescente em extensão e gravidade. XII O estado pathologico varia ainda conforme o orgão que soffre, e as condições em que este é sorprendido pelo agente pathogenico. HIPPOCBATIS APHOBISML 1 Vita brevis, ars longa, occasio praeceps, experimentum fallax, judicium diflicile. (Sect. I, Aph. 1o.) 11 Ad extremos morbos extrema remedia exquisite óptima. (Sect. I, Aph. 4o.) Hl Ubi somnus delirium sedat bonum. (Sect. II, Aph. 2o.) IV Somnus, vigilia, utraque modum excedentia, malum. (Sect. II, Aph. 3°.) V Duobus doloribus, simul obortis, non in eodem loco, vehe- mentior obscurat allerum. (Sect. II, Aph. 46°.) VI Mulier, menstruis deficientibus, e naribus sanguinem fluere, bonum. (Sect. III, Aph. 2o.) Esta these está conforme os Estatutos. Rio de Janeiro, 5 de Outubro de 1876. Dr. José Pereira Guimarães. Dr. Souza Lima. Dr. Ferreira dos Santos.