THÉSE APRESENTADA A FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA E QUE DEVE SUSTENTAR EM NOVEMBRO DE 1865 PARA OBTER O GRÃO DE DOUTOR EM MEDICINA, ALEXANDRE AFFONSO DE CARVALHO, NATURAL DA BAHIA Interno da Clinica Medica, Filho legitimo tio negociante tnatriculatlo José Affonso €te Carvalho e O, Roma Maria tte Jesus Uttrvalho. « La nature suffít seule aux animaux pour tout les choses,elle sait elle—mème ce qui leur est nécessaire, sans avoir besoin qu'on le lui conseigne et sans Vavoir appris de personne. Elle est k premier médicin des malades, et ce n'e*l qu'en favorisant ses efforts que ron obtient quelques succés.» TYPOGRAPHIA DA «CONSTITUIÇÃO» DE F. A. DE FREITAS Rua das Campellas n. 40. IS65. FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA. O K\m. Sr. Cous.Dr. João Baptista dos Anjos. VICE-DIRECTOR O Exm. Sr. Conselltero Vicente Ferreira de Magalhães. LENTES PROPRIETÁRIOS. /.• ANNO. OS SENHORES DOUTORES. MATÉRIAS QUE LECCIONÃO. Cons. Vicente Ferreira de Magalhães . Physica em geral, e particularmente em suas applicações a Medicina. Frmcisco Rodrigues da Silva .... Chimica e Mineralogia. Adriano Alves de Lima Gordilho. . . Anatomia descriptiva. 2.o ANNO. Antônio Mariano rio Borafim .... Botânica e Zoologia Antônio de Ccrqueira Pinto.....Chimica orgânica. . Physiologia. Adriano Alves'de'Lima*GoVcAlho. . . Anatomia descriptiva, sendo os alumnos obri- gados a dissecções anatômicas. 3.o ANNO. Elias José Pedroza.......Anatomia geral e pathologica. José de Góes Siqueira.......Pathologia geral. .... Physiologia. * ' ' ' ' 4.0 ANNO.. Cons. Manoel Ladisláo Aranhas Dantas Pathologia externa. Alexandre José de Queiroz.- . . . «£^^ e de Mathias More». Sampaio..... .^"recém-nascidos. 5.o ANNO. Alexandre José de Queiroz .... Pathologia interna. Medicina operatoria e José Antônio de Freitas......Anatomia topographica, Medicina p apparelhos. Joaquim Antônio d'01iveira Botelho . . Matéria medica e therapeutica. 6.o ANNO. Domingos Rodrigues Seixas.....Hygiene, e Historia da Medicina. Salustiano Ferreira Souto.....Medicina legal. Antônio José Ozorio.......Pharmacia. Autonio José Alves.......Clinica externa do 3. e *• Antônio Januário de Faria.....Clinica interna do 5. e b. lEHTTES OPPOSITORES. Jo<é Affonso Paraizo de Moura. . • \ugusto Gonsalves Martins - Domingos Carlos da Silva . . . •} Seccâo Cirúrgica. I^nacio José da Cunha .... Pedro Ribeiro de Araújo .... iiozendo Aprigio Pereira Guimarães. ,X Seccão Accessona. Tose ígnacio de Barros Piinentel. . Virgílio Cümaco Damazio ...» Demetrio Cyriaco Tourinho . . . Luiz Alvares dos Santos......^ Secção Med.ca. Jsão Pedro da Cunha Valle. . . . Jeronimo Sodré Pereira..... SECRETARIO INTERINO—O Sr. Dr. Thomaz de Aquino Gaspar. OFFICIAL DA SECRETARIA—O Sr. D.r. José Theotonio Martins. A Faculdade não approva, nem reprova as idèas emittidas nesta Tfiese- ,J-vTJ'J'J\/\i,JVi\J\/\/'jyvi,J,J\i,J,J'J,JVAJ,J,JVíU\JVJVA/,J\/V/\ÍV/\/,JVJ'JJ'J\iJ\/^\/Vr DISSERTAÇÃO. Ce n'est qu'en comparam que nous pou- vonsjuger; nos connaissances roulent même entièrement sur les rapports que leschoses ont avec celles qui leurs ressemblent ou qui en diflerent, et s'il n'existait pas d'animaux, Ia nature de l'homme serait encore plus incompréhensible. (Buffbn.) PRIMEIRA PARTE. CHLOROSE E ANEMIA . estudo da chlorosee da anemia, emprehendido porHyppocra- Vtes e pelos príncipes da medicina na historia das cachesias, das cacochymias e das diversas espécies de amenorrhéas, mais tarde tor- nou-se o assumpto de discussões importantíssimas entre os apóstolos Quantas hypotheses, quantas theorias não appareceram então, cada qual procurando descortinar a natureza e as differenças existen- tes entre estas duas entidades mórbidas! Mas, graças ás analyses de Andral e Gavarret,uma nova era raiou paraassclencias médicas. Estes grandes práticos chegaram a pro- var á toda evidencia, por meio de suas analyses que a chlorose e a anemia não são mais do que uma e a mesma moléstia, apresentan- do como as demais que compõe o quadro nosologico formas mais oumenos variadas, segundo as condições orgânicas individuaes^ Qual a differença entre a chlorose e a anemia que se desenvol- Chlorose e anemia. vem para os indivíduos sujeitos ámás condições hygienicas, como a alimentação insufíiciente, grosseira, a habitação cm logares insalu- bres, humidos, privados em parte ou totalmente da radiação solar, expostos á emanações telluricas, palustres etc? Qual a distincção entre a anemia que se manifesta para o homem entregue á locubrações nocturnas, attacado de copiosos fluxos hemor- rhoidaes e a chlorose proveniente de uma metrorrhagia excessiva etc? Poder-se-ha considerar que a anemia,que se apresenta n'uma mu- lher robusta, creada na brisa amena dos campos, ou para uma jo- vem nevropathica, habitando logares infecciosos, se declare com o mesmo cortejo de symptomasquea anemia occasionada por tuber- culos pulmonares, metrorrhagias, cancros no utero, no estômago etc? Não de certo. E deveremos nós consideral-as outras tantas entidades pathologi- cas differentes umas das outras, ou será a mesma moléstia revestin- do-se de caracteres diversos, segundo as causas que lhes deram origem? « Nós não somos do numero d'aquellcs que julgam que, além da lesão constante dos sólidos edos líquidos, não ha certeza em patho- logia. Temos repetido muitas vezes que as perturbações funecionaes e vitaes nos fornecem caracteres tão positivos como as alterações de que tratamos. Mas, quando não acharmos sinão incerteza nas per- turbações funecionaes e nos caracteres clínicos, seremos muito feli- zes si encontrarmos uma alteração humoral constante, que nos sirva de critério. E' precisamente o que tem logarna anemia. « A analyse chimica veio muito a propósito para nos fazer crer, que a diminuição dos glóbulos e a hydroemia nunca faltam nos ca- sos em que observamos a chlorose e a anemia. (Monneret.) Abri qualquer tratado de pathologia; lede com a mais apurada attenção as discripções destes dous estados mórbidos; a anatomia pathologica, a etyologia, a symptomatologia, a marcha, a duração, a terminação e o tratamento; comparai-as ao depois; e a final haveis de confessar como o illustre Valleix: q\ie de tudo isto é preciso con- cluir, em difinitiva, que, si a chlorose apresenta na sua apparição algumas particularidades interessantes, não differe até o presente de uma maneira essencial da anemia, porque é ao estado do sangue, á diminuição de seus materiaes sólidos, principalmente dos gló- bulos, que é preciso recorrer para explicar a existência dos symp- tomas e a sua ordem de apparição. O sangue dos chloroticos e dos anemicos,segundo os Srs. Andral e Gav^rret, apresenta na sua composição intima gradações na diminui- ção de seus glóbulos, que formam o caracter constante, fundamental, d'estasduas entidades pathologicas. Chlorose e anemia. 3 Os glóbulos sangüíneos, que no estado normal conservam a sua media physiologica de 127:1000, oííerecem agora um abaixamento notável na sua quantidade, a ponto de chegar à 65,50, 28 e até á 21; emquanto que a fibrina, a albumina não soffrem alteração alguma; pelo contrario conservam-se em seu estado normal,excepto nos casos em que a diminuição dos glóbulos é devida à perdas excessivas do fluido sangüíneo, porque então todos os outros elementos constituin- tes do sangue vem a participar. A parte serosa augmenta consideravelmente de 790 á 915, e con- tém uma quantidade excessiva d'agua e menos saes solúveis. O coalho apresenta na sua superfície uma codea espessa, e é mais denso que no estado normal, tanto mais quanto a moléstia tem-se approximado de seu maior grau de intensidade. A presença d'estes dous phenomenos no sangue dos chloro- ticos e dos anêmicos induziu alguns práticos á classifical-as na classe das phlegmasias; mas o Sr. Andral que com o Sr. Borsiére já tinham notado a manifestação d'estes phenomenos, tira- ram uma conclusão muito diversa: que toda codea não é carac- terística de uma phlegmasia,pois que ella tem logar nestes dous es- tados pathologicos. « A manifestação desta codea, diz o Sr. Andral, é devida á pró- pria alteração que o sangue experimenta em sua composição; porque, como já vimos, havendo diminuição dos glóbulos, e a fibrina conser- vando-se no seu estado normal, acha-se necessariamente em excesso relativamente aos glóbulos diminuídos. E toda vez que esse excesso tem logar, quer elle seja relativo, quer absoluto, e que a coagulação da fibrina não se passe rapidamente, este phenomeno, ha deappa- recer. Eis a razão porque nos chloroticos e nos anêmicos o sangue pôde ser codeoso e nos plethoricos não o é; e a explicação da den- sidade e da maior fimeza do coalho, o que não se dá na plethora.» O Sr. Leber é de opinião que na chlorose ha, è verdade, diminui- ção dos glóbulos sangüíneos, mas manifesta-se uma tendência ao augmento da fibrina. Berard considera na chlorose uma diminuição notável dos gló- bulos sangüíneos, e fundando-se n'isto procura dar a explicação da diminuição do ferro existente no sangue. Diz elle: em um peso determinado de coalho para os chloroti- cos e em outro peso igual de coalho para um indivíduo no estado normal a analyse tem apresentado a mesma proporção de fer- ro. Porém que nos chloroticos havendo diminuição dos glóbulos ha- veria uma menor quantidade de matéria corante, e que havendo me- nor quantidade de matéria corante haveria menor proporção de fer- ro em uma quantidade determinada de sangue. Segundo Bequerel (chimica pathologica) ha três graus differentes Da diminuição dos glóbulos sangüíneos; o primeiro entre 100 e 120, 4 Chlorose e anemia. o segundo entre 80 e 100, e o terceiro, que é o que se nota especial- mente na chlorose confirmada, entre 40 e 80. C. Bernardo, tratando das alterações do sangue por modificação das quantidades de seus elementos, diz o seguinte: « relativamente aos glóbulos, sua diminuição parece causar um estado mórbido bem determinado, a chlorose. « Comprehende-se que n'esta moléstia, caracterisada por uma vitalidade menor, as perturbações que se observam são ligadas ã condições physiologicas anormaes creadas pela falta de glóbulos.» Além d'isto todos os órgãos da economia participam em geral do estado de pobreza em que se acha o sangue; são descorados, exan- gues e alguns até diminuídos de volume. Comparando-se as diversas condições pathologicas, que podem dar logar ao apparecimento da chlorose e da anemia, chegamos cada vez mais á confirmação da identidade existente entre estas duas moléstias. Assim, na chlorose como na anemia, os temperamentos, nervo- so, lymphatico, as constituições fracas, uma alimentação insufficien- te, má, a habitação em logares insalubres, humidos, privados da radiação solar, o abuso das bebidas alcoólicas, as vigílias successi- vas predispõem de um modo notável á manifestação tanto de um como de outro estado mórbido. A mulher, chegada á épocha da puberdade, apresenta uma ten- dência irresistível a contrahir um estado, que se tem denominado chlorose, procurando-se distinguir de outro idêntico que também se passa no homem, ao approximar-se d'essa épocha, á que se tem cha- mado anemia; porém que, na opinião do eminente pratico o Sr. Yal- leix,é umae a mesma moléstia, pois a chlorose em sua essência não é sinão uma anemia. Procurando-se estabelecer uma differença capital entre uma e outra moléstia, tem-se considerado o morbus virginum como um es- tado pathologico consecutivo á suppressão do fluxo catamenial. Cabanis, Sauvages, Desormeaux, Bleyn e outros apresentaram factos em que a chlorose se declarava com todo o seu cortejo de symptomas, não só para mulheres em que o fluxo das regras se ef- fectuava de um modo conveniente, mas também para aquellas em que elle já não mais se manifestava. Segundo o Sr. Bleaud,em 26 casos de chlorose bem caracterisada para raparigas de 11 á 32annos, quinze, em épochas determinadas, continuavam como d'antes a ser menstruadas. Tudo isso levou-os a considerar a amenorrhéa, não como a cau- sa única do morbus virginum, mas sim como uma complicação, que tem por fim augmentar a alteração primitiva do sangue; d'onde a Chlorose e anemia. explicação da chlorose tão freqüente na puberdade, quando os mens- truos se estabelecem difficilmente. A anemia, na opinião de alguns, é devida quasi exclusivamente á perdas excessivas de sangue, emquanto que a chlorose é quasi sempre espontânea, lenta a desenvolver-se, lenta em desamparar os doentes, e susceptível de reproduzir-se debaixo da influencia de uma causa a mais insignificante possível. Isto só servirá de base para estabelecer-se uma distineção capi- tal entre estas duas# moléstias? A chlorose não pode ser também de- vida á perdas excessivas do fluido sangüíneo, da mesma maneira que a anemia pode ser devida á muitas outras causas, que tenham por fim produzir a desproporção dos elementos constituintes do sangue e não unicamente á hemorrhagias, e apresentar como a chlorose a mesma lentidão no seu desenvolvimento e amesmasusceptibilidade na sua reproducção? Affecções diversas, cuja sede e natureza são completamente dis- tinetas, mas em que a alteração á que dão logar no sangue é sem- pre a mesma, são muitas vezes as causas da anemia e da chlorose. Assim obram a maior parte das lesões do orgarri central do ap- parelho circulatório, do apparelho respiratório, do systema cerebro- espinhal, do apparelho gastro-intestinal, do apparelho renal, as pi- rexias etc. Dentre as causas produetoras da chlorose e da anemia para a mulher, ha uma que deve merecer toda a attenção do medico pra- tico, e que infelizmente era desconhecida pelos nossos antepassa- dos: é o estado de gestação. As observações dos Srs. Andral e Gavarret, Regnauld e Pour- chat provam—que o sangue durante o período de prenhez experi- menta nos seus elementos modificações dignas de attenção; isto é, que a fibrina augmenta a partir do sexto ao nono mez; que a albu- mina diminue gradualmente; que os glóbulos soffrem um abaixa- mento notável na sua cifra normal; emquanto que a água cresce de um modo espantoso; emfim que o sangue torna-se cada vez menos denso. A influencia das emanações dos preparados de chumbo sobre a economia, por algum tempo, desenvolve um estado cachetico em que o sangue deixa ver a mesma alteração que acabamos de obser- var na anemia e na chlorose. O estudo comparativo de todo o apparato de symptomas de que se revestem a chlorose e a anemia não nos deixa ao espirito a me- nor duvida sobre a sua identidade. Sobre os que se passam nos apparelhos vascular e nervoso é que devemos cora especialidade dirigir toda a nossa at enção, porque « Chlorose e anemia. são a bússola que nos conduz ao diagnostico differencial entre estas duas moléstias e todas as outras que compõem o quadro nosologico. A percussão do orgam central da circulação revela-nos ou que elle conserva o seu volume normal, ou que tem soffrido altera- rão nas suas dimensões. A auscultação fornece-nos resultados ainda mais interessantes. Assim applicando-se o ouvido armado ou despido de stetoscopio na região precordial, ouve-se ao principio os batimentos do coração tu- multuosos, mais ou menos enérgicos, segundo o estado de exaltação do systema nervoso. As palpitações succedem-se pari-passo umas ás outras, a tal ponto que incommodam aos doentes, mormente quando se acham sob a influencia de uma causa qualquer capaz de exci- tar a innervação, a circulação, dando logar ao apparecimento de lipothymias, syncopes, que as vezes tornam-se funestas, principal- mente para as mulheres,em que por assim dizer existe umadiathese nervosa. Concentrando cada vez mais toda a nossa attenção sobre os phe- nomenos Íntimos, cujo theatro de manifestação è o coração, perce- be-se no primeiro tempo da evolução cardíaca um ruido de sopro, brando, que tem sua sede na base do coração, e que irradiando-se em grande parte do thorax, nas carótidas, no epigastrio leva-nos muitas vezes á confundir esse ruido com o que se passa nos prin- cipaes troncos arteriaes. Em auxilio aos dados colhidos pela auscultação do coração vem os resultados da observação dos phenomenos,que tem sua sede nos prin- cipaes vasos do organismo. Com effeito,levando-se o stetoscopio sobre as artérias cruraes, carótidas etc, principalmente a direita, ouve-se um ruido de sopro intermittente, claro, correspondendo á diastole arterial. Além d'esse ruido intermittente, applicando-se o dedo para fora da inserção inferior do externo-cleido-masthoide, no bordo supe- rior e na extremidade interna da clavicula, tendo antes o cuidado de que os tecidos estejam bem estendidos, o mento levantado, a face voltada para o lado opposto, percebe-se um tremor similhante ao que produz uma corda de instrumento em acção; signal este que al- guns práticos tem considerado como pathognomonico da chlorose e da anemia. A auscultação ahi revela-nos um ruido continuo, as vezes sono- ro, outras vezes obscuro, musical, assemelhando-se ao canto monó- tono da roula, que o grande Laénnec denominou canto das artérias ou canto modulado. Em alguns casos, porém, o ruido continuo, coincidindo com o ruido intermittente, de que acabamos de faltar, dá logar ao appare- Chlorose e anemia. cimento de um phenomeno, que Bouillaud denominou sopro conti- nuo de dupla corrente ou ruido do diabo, isto é, um ruido de sopro continuo apresentando accessos correspondentes á diastole arterial. O apparelho cerebro-espinal torna-se a sede de manifestações pathologicas do maior interesse aos olhos do observador. A tristeza, o abatimento, a melancolia são os companheiros in- separáveis dos chloroticos e dos anêmicos. A sensibilidade e o movimento revestem-se de caracteres mais ou menos exagerados, segundo o grau mais ou menos adiantado do mal e as condições orgânicas individuaes. A sensibilidade, tanto geral como especial, augmenla-se muitas vezes, dando logar á sensações de frio, ao apparecimento de nevral- gias faciaes, intercostaes, dentárias, schiaticas, hemicranias, cepha- talgias, vertigens, sensações subjectivas dos apparelhos da visão e au- dição, amaurose, hallucinações, dilirio, gastralgias, paralysias; fi- nalmente todas nevroses sem excepção podem ser apreciadas. A intelligenciae a contractilidade enfraquecem; os doentes não procuram sinão o repouso, porque o menor movimento é immedia- tamente seguido de palpitações, lipothymias, sincopes etc. Na mulher, por exemplo, todos os phenomenos nervosos apre- sentam caracteres muito mais aterradores; pois, como acabamos de dizer, sendo ellas dotadas de uma diathese nervosa, concorre pode- rosamente ao apparecimento de todos estes symptomas com muito mais intensidade que no homem. O pulso é ordinariamente fraco, desigual, irregular, acceleran- do-se ao menor movimento; outras vezes se apresenta cheio, de- senvolvido, vibrante, ondulante; emfim depressivel, molle, quasi imperceptível aos dedos do observador. Os dados colhidos pelo habito externo são auxiliarès de grande importância no estudo da chlorose e da anemia. A pelle apresenta um matiz descorado, assemelhando-se á cera envelhecida, sobre tudo nos lábios e na conjunctiva, signal este que lem sido considerado por muitos práticos como um auxiliar de gran- peso no diagnostico differencial d'estes dous estados pathologicos. O descoramento vai proseguindo com passos agigantados á pro- porção que o sangue vai perdendo de seus glóbulos. Em alguns ca- sos os doentes conservam a sua côr normal que, segundo Monneret, deve-se attribuir à condições orgânicas individuaes. O olhar é lan- guido, amortecido; as carnes flaccidas, conforme o gráo de adianta- mento do mal, magrem, edémacia nas extremidades, bouffissure no rosto, as veias subcutaneas abatidas, os vasos capillares imperceptí- veis, raras vezes derramamentos nas grandes cavidades,e quando te- nham logar devemos attribuir á uma alteração que não aquella que caracterisa a chlorose e a anemia, isto é,a desalbuminação do sangue. 8 Chlorose e anemia. 0 apparelho gastro-intestinal deixa rara vez de ser alterado em sua funcção peculiar. Na epidemia de Anzin os symptomas gastro- intestinaes predominavam íi todos os outros, e era sobre elles que os médicos dirigiam com particularidade toda a sua attenção. Anorexia, pega, malacia, náuseas, vomiturações, vômitos, di- gestões laboriosas com desenvolvimento de gazes, borborygmos, eó- licas, meteorismo, constipação etc. , são pouco mais ou menos os symptomas fornecidos pelo apparelho digestivo. A respiração ordinariamente franca, accelera-se ao menor aba- lo, como pelo trabalho da digestão, as evacuações sangüíneas, ou quando as outras palpitações se manifestam, e então torna-se ancio- sa, irregular, difticultosa, etc. Quanto aos órgãos genito-urinarios, partecipam quasi sempre da alonia geral; outras vezes desenvolve-se uma excitáçao venerea bastante considerável. Para algumas mulheres o fluxo catamenial é diminuído, mais descorado, soróso, doloroso; outras vezes ha uma perfeita amenorrhéa ou é substituído por um fluxo leucorrheico abundante; em alguns casos, porém, manifesta-se uma meteorrha- gia abundantíssima, ou alguma hèmorrhagia supplementar tem lo- gar, como epitaxis etc. As ourinas esbranquiçadas, aquozas, ácidas, contem menos saes, uréa, ácido urico e uratos; e são menos densas que no estado normal. A marcha da chlorose e da enemia varia segundo as causas que lhes deram origem. Conforme a maioria dos autores, a anemia nos casos ordinários tem uma marcha lenta: os primeiros symptomas que se apresentam são o descoramento da pelle, as perturbações do orgam central da circulação; pouco depois vão se manifestando as alterações do appa- relho digestivo, locomotor,acanceirano acto da marcha, as nevroses, as nevralgias, e todos os outros symptomas que a caracterisam. Nos casos em que a anemia é devidaá perdas excessivas de san- gue, ou nas epidemias, todo o cortejo de symptomas,que a constituo, apparece rapidamente sem guardara menor relação no seu modo de apparição. Na chlorose a marcha também é lenta, chronica, e apresenta a mesma ordem na manifestação dos symptomas que na anemia, não proveniente de perdas excessivas do fluido sangüíneo. Mas nos casos em que a chlorose pode ser produzida por perdas de sangue, como uma metrorrhagia., uma sangria etc, não terá ella uma marcha rápida como na anemia, e seus symptomas não se ma- nifestarão da mesma maneira, sem conservarem a menor ordem entre si? Chlorose e anemia. 9 Além disto na chlorose, que alguns consideram o apanágio ex- clusivo da mulher, não podem outras causas actuar sobre a sua eco- nomia impedindo a terminação do mal, e por conseqüência favore- cendo o seu desenvolvimento, como as affecções moraes, o uso dos atavios, as vigílias, a falta de cumprimento das regras prescriptas pela hygiene? A chlorose e a anemia tem uma marcha indeterminada, ora len- ta, ora curta. A terminação ordinariamente é favorável, outras vezes fatal. O tratamento finalmente, como dizia o pai da medicina, é quem nos vem confirmar a identidade d'estas duas molestias,mostrando-nos qual a natureza dellas. Duas indicações essenciaes devemos preencher no tratamento da chlorose e da anemia. A primeira consiste em debellar o mal alevantando as forças ra- dicaes do organismo, restituindo ao sangue os materiaes de que ne- cessita para o preenchimento da sagrada missão áque é destinado; a segunda em combater ou mitigar a intensidade de certos phenome- nos, que revestem-se de uma forma aterradora, sobre tudo para as mulheres. As prescripções dos meios fornecidos pela hygiene, isto é, affas- tar o indivíduo o mais possível de todas as causas originadoras do mal, ou que parecem concorrer ao entretenimento de sua marcha, a administração dos tônicos analepticos, representando o ferro o pa- pel principal, parecem-nos preencher satisfactoriamente a primei- ra das indicações. O ferro ingerido achando-se em relações intima3 com a túnica ipterna do estômago, em virtude de sua acção tópica excitante, con- vida-o a entrar de novo na integridade de sua funcção, favorecendo a absorpção dos princípios assimiláveis dos alimentos, que devem fornecer os materiaes necessários ao trabalho da nutrição; pouco de- pois dissolvendo-se no sueco gástrico é também por sua vez assimi- lado e levado ao interior da economia, e ahi vai desafiar a funcção hematosica dos vasos,que se acha por assim dizer enfraquecida, dan- do logar á formação de novos glóbulos contendo o principio ferru- ginoso, enriquecendo d'este modo o fluido sangüíneo, que é desti- nado á espalhar sobre todo organismo o liquido nutritivo empre- gado nos mysteres da nutrição e das secreções. Algumas vezes, porém, em certos indivíduos, que parecem com- pletamente zombar da acção dos preparados ferruginosos, tornando- se totalmente refractarios, em virtude de uma outra causa desap- parecem, como por exemplo uma viagem, uma emoção agradá- vel, ou mesmo debaixo da influencia unicamente da alimentação, 3 IO Chlorose e anemia. sem que concorramos para isso com partícula alguma de ferro. Tem-se aconselhado que as preparações insoluveis ou pouco so- lúveis devem ser empregadas no começo da medicação, uma áduas vezes por dia, na dose de um á trez grãos ou mais ainda, porém no principio de qualquer refeição; porque tem-se observado que duran- te a evacuação do estômago, apparecem náuseas, arrotos, peso no estômago, e em vez de facilitar pelo contrario diíficultam a digestão. Além disto tem-se chegado a provar que no começo da ingestão dos alimentos ha mais vantagem para acção do medicamento; por isso que o sueco gástrico ahi depositado contém uma grande quanti- dade de ácidos, e não é neutro ou alcalino como acontece antes ou depois da digestão. Os Srs. Desormaux e Blache dão a preferencia ao oxido negro de ferro e ao sub-carbonato. Outros como os Srs. Merat e Delens empregam indifferentemen- te uma ou outra preparação. A limalha de ferro, o ferro reduzido pelohydrogenio, o hydrato de peroxido de ferro e o sub-carbonato de peroxido de ferio são aconselhados pelos Srs. Trousseau e Pidoux. Desde que os compostos insoluveis são supportados, recorre- mos aos compostos solúveis, o lactato, o citrato, o tartrato ferrico- potassico etc, persistindo sempre na sua applicação até que alguma modificação favorável se apresente, depois do que suspenderemos o uso por alguns dias, guardando sempre um certo intervallo, afim de que a economia não se ache saturada pelo medicamento, como tem- se observado, depois da manifestação dos primeiros symptomas para mulheres em que os preparados ferruginosos já não produziam ac- ção alguma. Toda vez que se manifestarem perturbações do apparelho diges- tivo ,como dyarrhéas etc e que o emprego dos ferruginosos é indicado, tem-se aconselhado que recorramos antes á applicação do sub-ni- trato de bismuth, á calumba, ao nitrato de prata, para depois de acal- mados os symptomas gástricos então lançarmos mão das prepa- rações pouco solúveis,e em doses diminutas: quando pelo contrario é uma constipação que tem logar podemos recorrer ao alóes, que alem do effeito purgativo determina a congestão dos órgãos contidos na ca- vidade pelviana, razão porque não devemos empregal-o em certas oceasiões para as mulheres, sobre tudo durante o estado de prenhez, pelo que devemos dar á preferencia a magnesia, ao rhuibarbo, ao sulfato de soda, purgativos brandos que nenhuma complicação po- dem acarretar. A segunda indicação pode ainda ser sufficientemente preenchi- da pelo uso dos compostos marciaes, como os Srs. Trousseau e Pidoux apresentam factos de gastralgias, nevralgias, asthma, amau- rose, hemorrhagias, leucorrhéas debelladas unicamente pela suaap- Chlorose e anemia. 11 plicação; e quando não o possamos conseguir lançaremos mão dos calmantes, corno a belladona, o chloroformio,a datura extramonio, os opiaceos e dos hemostaticos, como o perchlorureto de ferro, os ads- tringentes; e finalmente os vesicatorios ammoniacaes, salpicados de sulphato de morphina, quer junto quer separadamente,com o fim de destruil-os completamente ou no caso contrario mitigar-lhes a violência. Tem-se também aconselhado que não devemos prescrever os preparados chalybeados toda vez que os indivíduos soffrerem de tu- berculos pulmonares no primeiro gráo, ou quando tenhamos suspei- ta do estado em que se acham os órgãos contidos na cavidade tho- raxica, porque, em logar de produzir-se o effeito que tínhamos em mira, não vamos fazer mais do que dar origem á manifestação de phenomenos, que deveríamos a todo transe prevenir. O Sr. Trousseau, como a maioria dos práticos, é de opinião que, nos casos de chlorose e anemia devidas á uma diathese siphilitica, escrofulosa, ou tuberculosa devemos dar a preferencia ao iodureto de ferro, medicamento este ultimamente muito empregado, cuja ef- ficacia é devida mais ao iodo que ao ferro ahi existente. Os amargos tem sido empregados com algum proveito. Finalmente as emissões sanguineas aconselhadas por Hyppocra- tes e recommendadas pelo Sr. Hoffmann estão hoje felizmente lan- çadas no esquecimento; e quando são empregadas por alguns mé- dicos è em casos muito excepcionaes, como nas phlegmasias inter- correntes, e ainda assim com a maior prudência e circumspecção na sua applicação. Assim, pois, as imaginárias differenças que alguns autores teem procurado descobrir entre a chlorose e a anemia, constituindo en- tidades pathologicas muito diversas, não existem. São uma e a mesma moléstia, apresentando-se, como as demais que compõem o quadro nosologico, debaixo de formas mais ou me- nos variadas, segundo as causas que lhes deram origem, e as con- dições orgânicas individuaes: em que observamos sempre a mesma alteração, isto é, diminuição dos glóbulos sangüíneos, emquanto que a albumina e a fibrina conservam a sua media physiologica, excepto nos casos em que são dependentes de perdas successivas e excessi- vas do fluido sangüíneo; porque então á par da alteração dos glóbu- los ha ao mesmo tempo abaixamento na cifra dos outros elementos constituintes do sangue, como a fibrina, albumina, saes, etc SECUNDA PARTE. Qual o modo de obrar do» ferruginosos no tratamento da anemia e da chlorose? Desde ainfima classe da escala zoológica até o homem, a per- feição da animalidade, importantes são os elementos que concorrem á funcção do systema da nutrição. Para aquelles, em virtude da sim- plicidade e da homogeneidade de sua organisação, ha myster da presença de um liquido organisavel, em que os sólidos encontrem todos os materiaes indispensáveis para sua conservação e para seu desenvolvimento; de um corpo solido dotado de uma certa faculda- de, que Sthall denominou tonicidade ou movimento tônico eLamark orgasmo, por intermédio da qual reaja sobre o liquido, seu excitan- te normal, de forma a determinar-lhe movimentos diversos. Da reacção dos sólidos sobre os líquidos resulta necessariamen- te a troca de seus princípios constituintes; a formação de um novo producto que, mais tarde não convindo fazer mais parte do orga- nismo, é regeitado; finalmente, como conseqüência inevitável da ac- ção dos dous elementos entre si, a manifestação do calor animal. Para este o systema da nutrição é muito mais complicado. Além do que acabamos de fallar, é de summa necessidade o auxilio de cer- tos órgãos, vísceras; umas encarregadas de fazer passar os princípios de que elle se serve para sua reparação e para o seu desenvolvimen- to por certas phases indispensáveis á tornal-os aptos a preencher as funcções d'aquelles á que vão substituir; outras, já com um fim mui- to diverso, são destinadas a eliminar dos alimentos o que elles con- tém de supérfluo, e ao mesmo tempo os materiaes resultantes do tra- balho da nutrição. Um systema de órgãos delicadíssimos—o systema nervoso gan- glionar —contém debaixo do seu domínio, preside e anima as func- ções peculiares á cada apparelho, estabelecendo uma perfeita har- monia de acção entre elles; contrahe relações intimas com o sensorio commum á advertir o animal á ir em busca dos elementos necessá- rios á preencher a sagrada missão que lhe é destinada pelo Creador. Mas, se condicções pathologicas diversas vierem actuar sobre qual- 14 Chlorose e anemia. quer dos elementos constituintes da organisação, entidades mórbi- das lambem diversas não tardarão muito a se manifestar; umas ca- racterisadas pela insufficiencia dos elementos que devem fazer par- te do liquido organisavel—o sangue; outras pelo enfraquecimento da tonicidade ou orgasmo de todos os tecidos, condição sine qua não podem mais reagir de modo a estabelecer a mudança reciproca de seus elementos; outras finalmente podem ainda se manifestar affec- tando directa ou indirectamenle á força enérgica, constante com que o systema nervoso anima e regularisaá todos os actos da economia, á synergiavital, á força medicatriz da natureza, o queda logar ao ap- parecimento dadesharmonia,áadynamia,aocollapso de todas as func- ções, ao enfraquecimento da resistência vital, á todo esse cortejo de phenomenos que caracterisam a vida prestes a extinguir-se. Felizmente, porém, uma classe de medicamentos, á que deno- minam medicamentos tônicos, é destinada providencialmente á ir de encontro á acção destruidora que o principio morbifico espalhou sobre a economia, ou como diz Galeno, a combater o inimigo corpo a cor- po e derrubal-o violentamente, já dando ao sangue os principios- de que faz myster para o restabelecimento de sua funcção especial; já restituindo aos sólidos o orgasmo de que necessitam; já imprimindo ás forças vivas do organismo a resistência vital, e restabelecendo as synergias; d'ahi a divisão dos tônicos em tônicos analepticos, tônicos reconstituintes e tônicos nevrosthenicos. Além das propriedades características, que servem de estabelecer as differenças capitães d'estas três ordens de medicamentos entre si, conservam entretanto a mais perfeita solidariedade. Assim como os elementos de que acabamos de fallar se reúnem constituindo um todo indivisível, da mesma forma as três acções tônicas se acham in- timamente combinadas, participando uma das outras, ainda que indirectamente e emgráo muito menor, das propriedades queasin- dividualisam. Assim os tônicos analepticos,além de sua acção intima sobre o sangue, são ao mesmo tempo adstringentes e nevrosthenicos; os nevrosthenicos são também corroborantes ou tônicos dos tecidos; e alguns adstringentes são estomaticos e nevrosthenicos. Deixando de parte os tônicos adstringentes e nevrosthenicos, li- mitar-nos-hemos a tratar unicamente dos tônicos analepticos, com especialidade do modo de obrar dos ferruginosos no tratamento da anemia e da chlorose. Os analepticos, assim como os nevrosthenicos e os demais agen- tes do arsenal therapeutico da matéria medica, produzem sobre a economia dous effeitos essencialmente distinctos; um immediato ou physiologico, que para poder ser percebido exige a integridade de todas as funcçoes, isto é, que os indivíduos se achem no goso da mais Chlorose c anemia. 15 perfeita saúde; outro mediato ou therapeutico, que para ter logar necessita da presença de um estado pathologico qualquer sobre o qual venha exercer a sua acção. Estes dous effeitos tão distinetos um do outro acham-se as vezes tão intimamente ligados, de maneira a não deixar perceber a menor dislineção entre elles, tão confundidos estão. As mais das vezes, porém, o effeito physiologico ou immediato declara-se unicamente, sem que o effeito mediato ou therapeutico tenha logar, o que prova a variabilidade ou incerteza dos medica- mentos e por conseqüência a pouca confiança na therapeutica; d'ahi a divisão dos medicamentos em especificos e racionaes,caracterisados uns pela sua acção immediata, constante sobre o estado mórbido que se tem em mira debellar,outros pela incerteza de acção^e quando ella venha a se manifestar é as vezes procurando apparelhos differen- tes d'aquelle. que tencionavamos attacar, não mantendo entre si a mais diminuta relação, condição indispensável a efficacia de qualquer dos agentes da matéria medica. Não obstante alguns medicamentos manifestarem immediata- mente o seu effeito therapeutico, a ponto de se chegar a confundir as duas acções uma com a outra, e a constituir os medicamentos cha- mados especificos, com tudo ellas são essencialmente distinetas. E' verdade, porém, que as vezes passam-se tão rapidamente no mesmo apparelho, que não chegamos a perceber sinão a modificação therapeutica produzida, constituindo assim a medicação denominada directa, mas nem por isso deixam de ter logar e distinetamente. Outras vezes,passando-se em apparelhos muito diversos d'aquel- les em que dirigíamos nossa attenção, produzem desordens outras que não aquellas que desejávamos que tivessem logar, constituindo a' medicação indirecta. Seja como fôr, o que é certo é, todos os medicamentos sem excepção produzem sobre o organismo dous effeitos essencialmente distinetos, um physiologico, outro therapeutico, dependendo sempre o segundo da manifestação do primeiro. A acção physiologica dos tônicos analepticos, quando vem a exercer-se em individuos em que todas as suas funeções concorrem a manutenção das synergias vitaes, manifesta-se por phenomenos que, apesar de serem de pouca importância, comtudo deveremos ter em consideração, Os individuos que se entregam de preferencia ao uso quasi ex- clusivo de substancias immediatamente azotadas, ou d'aquellas em que entram em grande parte princípios azotados, como os caldos, as diversas sepecies de carnes,de porco, vitella etc, o leite, os ovos e de 16 Chlorose e anemia. muitos outros alimentos ricos de princípios quaternários,e que ao mes- mo tempo fazem uso dos preparados ferruginosos, ao principio não ex- perimentam modificação alguma sensível que possa perturbar a inte- gridade desuasfuncções, mas passados que sejam alguns dias o seu apetite geralmente diminue, as digeções tomam uma cor assemelhan- do-se ao negro, devido isto na opinião de uns ao ácido tanico ou ao ácido gallico que existe nos alimentos, na opinião de outros ao sulfu- reto de ferro que ahi tem origem. A constipação do ventre é um dos signaes quasi constantes que acompanham ou seguem ao uso das preparações ferruginosas; a diar- rhéa manifesta-se rara vez. Declaram-se todos os symptomas de plethora; a cabeça pesada, aintelligencia obtusa, incapacidade phy- sica para toda e qualquer sorte de trabalho, somno profundo, a fa- ce entumescida e de uma côr vermelha mais carregada, assim como toda a superfície do corpo,—calor incommodo na face, ourinas ver- melhas, raras, e suores abundantes. Lesões de maior importância vão se succedendo pouco e pouco. A funcção do apparelho gastro-intestinal faz-se com dificuldade, torna-se penosa, acompanhada de arrotos, peso no estômago, e mui- tos outros accidentes. Hemorrhagias, phlegmasias apparecem. Todas as secreções e exhalações se acham perturbadas com ten- dência, a diminuição; e a bexiga urinaria torna-se as vezes a sede de uma forte inflammação, precedida de prurido incommodo no meato urinaria. A dibilidade, a aberração das faculdades intellectuaes, sensiti- vas e motoras manifestam-se. Finalmente a morte vem arrebatar a sua victima em um estado de marasmo completo. Eis aqui, pois, quasi todos os phenomenos que acompanham ou seguem á acção prolongada dos tônicos analepticos,principalmente do ferro, para os individuos sãos e robustos; o contrario terá certamento logar para aquelles em que a força assimiladora do organismo se acha abattida, ou em que ha diminuição dos princípios elementa- res constituintes do sangue. Diversas teem sido as explicações quantas as theorias creadas para provar o modo de obrar dos preparados ferruginosos no trata- mento da anemia e da chlorose. Giacomini, professor de clinica da universidade de Padua, con- sidera o ferro na classe dos hyposthenisantes. Procurando explicar o modo de obrar dos preparados ferrugino- sos na chlorose, apoia-se em uma base completamente falsa, á vista Chlorose e anemia. 19 dos meios de que a sciencia dispõe para chegar ao conhecimento de um grande numero de estados pathologicos, e das alterações que os acompanham. « Para elle a chlorose não é mais do que uma arterite chronica, occasionada ordinariamente pela suppressão do fluxo catamenial, de- vida ao choque continuado que uma superabundancia na massa do sangue tem determinado na túnica interna das artérias, augmentan- do a contractilidade vital, á ponto de collocal-as em um estado de contração mórbida permanente. « Que o sangue dos chloroticos não apresenta modificação algu- ma em sua composição, pelo contrario apresenta ás analyses to- dos os princípios do melhor sangue, e até é mais vermelho que nos individuos athletas, robustos, apresentando uma codêa phlogistica. « Finalmente,que a acção do ferro é análoga a das sangrias, que quando è diminuta augmenta a perturbação da circulação, mas con- tinuando-se o seu emprego vão desapparecendo pouco e pouco os symptomas, os battimentos do coração diminuem de intensidade, a irritação das ultimas radiculas arteriaes decresce, a pelle recupera a sua côr normal, o pulso amplo, cheio etc » Idéas estas que não podem mais ser acceitas pela sciencia,á vista das bellas analyses de Andral e Gavarret, em confirmação ás expe- riências do Sr. Le-Canu analyses que tem sido abraçadas pela maioria dos práticos, e ultimamente em 1864 pelos Srs. BernoeDe- lore, professores da escola de medicina de Lyon. Os Srs. Le-Canu, Berzelius, Robin e Verdeil são de opinião que o ferro sendo absorvido e levado a torrente circulatória vai fazer parte integrante e necessária da matéria corante do sangue. Outros como os Srs. Mulder, Brande, Sanson, Van-Gondiever dizem que o contrario é o que certamente se dá; que o ferro não concorre de forma alguma a coloração da massa do sangue. Persoz e Hetet admittem que o ferro existe no sangue no estado de sulfo-cyanureto. Mialhe attribue a reconstituição do sangue pelos preparados fer- ruginosos á presença do peroxido de ferro, resultante da decompo- sição dos saes de ferro pelos alcalis existentes no sangue. «E' incontestável, diz elle, que todos os preparados ferrugino- sos capazes de reproduzir ou de regenerar os glóbulos sangüíneos, tem por caracter commum pôr em liberdade na torrente circulató- ria todo o oxido de ferro, que entra na sua composição. « E' pois á este oxido e não aos compostos salino-ferruginosos que sua acção physiologica deve ser attribuida. » A formação dos glóbulos sangüíneos è concebida por Mialhe do seguinte modo: «Os saes de ferro sendo absorvidos e levados a torrente circu- 5 18 Chlorose e anemia. latoria, em presença doalbuminatoalcalino do sangue, se decom- põem mutuamente, produz-se um novo sal e albuminato de ferro, verdadeira base do cruor. « Esta decomposição sendo~eslabelecida, não se acha mais ferro nas ourinas, porque o oxido de ferro participando então das pro- priedades de textura orgânica dos elementos albuminosos não pode ser mais eliminado dos vasos que o contem.» Mialhe, não pretendendo explicar o modo porque o seu albu- minato de ferro procede no organismo para a formação dos glóbulos sangüíneos, apresenta comtudo a seguinte experiência, digna de ser mencionada: « Derramando-se em uma solução albuminosa um sal de peroxido de ferro precipitado algum não se manifesta, mas se addicionar-se uma certa quantidade de clorureto de sodium, sal commum, um precipitado abundante tem logar. Ora ensina-se em physiologia que os glóbulos de sangue são solúveis n'agua distillada e não n'agua carregada de sal marinho, como o soro que os contem. Os glóbulos sangüíneos procedem em tudo com as soluções salinas como o com- posto ferrico-albuminoso de que acabamos de fazer conhecer. » Ultimamente os Srs. Berne e Delore, em um tratado de physio- logia publicado em 1864, apresentam três modos diversos de en- carar a reconstituição do sangue pelos preparados marciaes, que,se- gundo a declaração dos próprios authores, não passam de vans hy- potheses: « Que o ferro sendo absorvido poderia se ajuntar á cada glóbulo em separado, augmentando a sua riqueza individual; que o ferro tornaria a massa alimentar mais absorvivel, ou absorvido estimula- ria por intermédio do systema nervoso o organismo, que tornar-se- hia mais apto a apropriar-se dos principios reconstituintes dos ali- mentos; que o ferro administrado como medicamento permitte a absorpção do ferro contido nos alimentos. Os Srs. Trousseau e Pidoux consideram o ferro obrando de dous modos muito diversos na chlorose e na anemia: que oferro ingerido e posto em contado com a mucosa do apparelho-gastro-intestinal de- termina uma acção local excitante, que tem por fim facilitar a func- ção d'este apparelho, concorrendo a reconstituição do indivíduo, e que, sendo dissolvida uma certa porção no sueco gástrico,é provavel- mente absorvida e levada a torrente circu!atoria,e ahi achando-se em contado com a face interna dos vasos,em virtude de uma acção pu- ramente vital, vai excitar a funcção hematosica dando lògar a formação de novos glóbulos sangüíneos contendo o principio fer- ruginoso. Terminando é forçoso confessar: até o estado adual dos conhe- cimentos médicos a sciencia ainda não disse a sua ultima palavra Chlorose e anemia. 19 acerca do modo de obrar dos ferruginosos na chlorose e na anemia. Quer a reconstituição do sangue dependa da presença do pero- xido de ferro, como quer o Sr. Mialhe; quer seja devida ao sulfó- cyanureto de ferro, como os Srs. Persoz e Hetet; quer o ferro vá fazer parte integrante e necessária da matéria corante do sangue, como muitos outros; quer emfim obre topicamente, e absorvido vá exci- tar a funcção hematosica, dando logar a formação de novos glóbulos sangüíneos, como os Srs. Trousseau ePidoux, pouco importa-nos. O que temos unicamente em mira é debellar o mal logo que e^ e se nos apresente,e quando não o possamos fazer mitigar-lhe a viol encia. Que o ferro existe no sangue ninguém o pode contestar, pois as experiências as mais modernas provam, segundo Dumas, que 1000 grammas de sangue contem 16 centigrammas de ferro. Que o ferro é absorvido também não resta a menor duvida; pois as experiências emprehendidas pelos Srs. Tiedemann e Gme- lin tem provado a presença do ferro na bexiga e no sangue das veias mesenthericas e portal de cavallos á quem 6 horas antes ti- nham feito ingerir 6 onças de proto-sulfato-de ferro. A observações do Sr. Bruck vem em auxilio as experiências dos Srs. Tiedemann e Gmelin. Diz o Sr. Bruck: « nós ignoramos se o ferro é realmente o prin- cipio corante do sangue, mas novas experiências sobre coelhos tem permittido provar que o ferro administrado entra effectivamen- te na massa do sangue: tem-se achado que o phosphato, o muriato e o carbonato e menos rapidamente a limalha são dirigidos e assi- millados na dose de 1 grão por dia para os primeiros e de meio grão para a ultima. «Comparando-se, continua o auctor, as experiências que provam a absorpção do ferro, vê-se que para as mulheres chloroticas o sangue torna-se cada vez mais vermelho, debaixo da influencia d'este me- dicamento; pelo que nos parece permittido concluir que o ferro, quando mesmo não seja a causa immediata da coloração do sangue, augmenta as partes d'esse fluido susceptíveis de secorar em verme- lho pela respiração—os glóbulos e seus invólucros. A maneira porque os preparados ferruginosos procedem na tor- rente circulatória dando logar á formação dos glóbulos sangüíneos tem sido o grande desideratum da sciencia. De todas as theorias a que nos parece mais satisfazer ao espirito é a theoria emittida pelos Srs. Trousseau e Pidoux. Que o ferro obra topicamente excitando a funcção digestiva, os factos estão a cada passo nos demonstrando;que uma certa quantida- de dissolvida no sueco gástrico é absorvida e vai excitar a funcção he- matosica, dando logar a formação de novos glóbulos, parece-nos bas- tante provável, pois as experiências de Andral e Gavarret provam a não deixar a menor duvida, que o caracter anatômico constante da chlorose e da anemia é a diminuição dos glóbulos sanguineos. PROPOSIÇÕES. SECÇÃO CIRÚRGICA. Quaes as relações da anatomia com o estudo e pratiea da medicina? l.a—A anatomia é a chave, a base, a luz da medicina. 2.a—E' a bússola que induz o cirurgião a ir com mão certeira procurar, entre os innumeros órgãos que concorrem a formação do organismo, o vaso que deve ser ligado, a luxação que exige ser re- duzida, os tumores que necessitam ser extirpados, a parte que deve ser eliminada. 3.a—E' ella que leva o pratico na escolha dos diversos metho- dos e processos operatorios, e nas differentes modificações que el- les devem experimentar e nas indicações a preencher. 4.a—O estudo da anatomia constitue o primeiro elo da grande cadeia das sciencias médicas: é elle que nos faz conhecer os diffe- rentes órgãos que entram na constituição do organismo, as relações que guardam entre si, as diversas camadas de que se compõe cada região, e os elementos que entram n'estas diversas camadas. 5.a—O conhecimento das alterações que podem apresentar os diversos órgãos é uma condição indispensável ao cirurgião na esco- lha da occasião em que a operação deve ser praticada. 0.a—Sem o estudo prévio da estructura dos órgãos e apparelhos que formam o organismo, não podemos chegar necessariamente ao conhecimento dos usos e funcções d'esses mesmos órgãos e appa- relhos. 7.a—A physiologia limita-se a estudar no estado dynamico o que a anatomia estuda no estado estático. 8."—A verdadeira physiologia tem sua origem na observação e na experiência. 9.a—O organismo, como diz Bichat, sendo composto de ma- chinas particulares envolvidas em uma machina geral, constituindo 6 Proposições. o indivíduo, é de necessidade o conhecimento minucioso de todas es- tas machinas, das peças que entram na sua construção,e dos diversos usos que cada uma dellas pode prestar. 10.a—A anatomia, e a physiologia são bases indispensáveis para o conhecimento da pathologia, da clinica e da medicina. ll.a—Sem conhecer-se a estructura intima dos órgãos, do co- ração por exemplo, seus usos, como diagnosticar-se as alterações que ahi tem logar? Necessariamente navegaríamos no maré magnum das supposições, eo naufrágio seria inevitável. 12.a—Sem anatomia não se pode chegar a descortinar as lesões que caracterisam as diversas entidades pathologicas, as alterações que podem sobrevir, as indicações a preencher, o medicamento que deve ser dado de preferencia á outro qualquer. SECÇÃO MEDICA. Crizes. l.a—Hippocrates e seus discípulos consideravam a crise como o resultado da eliminação de um dos humores predominante no or- ganismo, depois de ter experimentado o phenomeno da cocção. . 2/—Phenomenos criticos, segundo elles, são evacuações de ma- térias mórbidas, epistaxis, matérias mucosas, hemorrhoidas, uri- nas etc. 3.a—As crises podem ser salutares ou desfavoráveis. 4.a_0s dias de manifestação das crises denominam-se dias cri- ticos. 5.a—Os dias criticos podem ser, segundo elles, decretorios, in- dicadores, intercalares, etc: as crises podem ainda se manifestar na véspera ou no dia seguinte ao dia indicado. 6.a_A definição de crise admittida por Hippocrates, Galeno, e seus discípulos, assim como a determinação dos dias criticos são hoje regeitadas. 7>a_crise> segundo as idéias modernas, é toda mudança favo- rável ou não que sobrevem no curso de uma moléstia, debaixo da influencia natural ou expontânea do organismo. 8.a_As crises são sempre precedidas pelos phenomenos cri- ticos. 9.a_As crises teem uma influencia notável sobre a terminação rioc TYiQlpstiâS IO.3—As crises sobrevem ordinariamente no curso das moléstias agudas. U/_As crises teem necessidade muitas vezes de ser provo- 12.a—A terminação de uma moléstia pela successão decrescente de seus symptomas é o que se denomina lyses. ^^g^^^m^ SECÇÃO ACCESSOR1A. Vinagres medicinaes. l.a—O liquido que resulta da acção dissolvente do vinagre so- bi^e os princípios medicamentosos constitue uma preparação phar- maceutica denominada—oxeolados. 2.a—Os oxeolados podem ser simplices ou compostos. 3.a—A acção dissolvente dos vinagres é dependente d'agua e do ácido acetico que entram em sua composição. 4.a—Tem-se proposto addicionar aos vinagres uma certa quan- tidade de álcool, outros preferem o ácido acetico. 5.a—As diversas espécies de vinagres influem na confecção dos vinagres medicinaes; o branco é preferido ao vermelho, e jamais de- vemos fazer uso do obtido pela distillação da madeira. 6.a—De um grande numero de meios se tem lançado mão para a falsificação dos vinagres no commercio. 7.a—Diversos processos teem sido descobertos para chegar-se ao conhecimento dos corpos empregados na falsificação dos vinagres. 8.a—As substancias empregadas para a preparação dos vinagres medicinaes necessitam ser bastante divididas, e privadas o mais pos- sivel de sua água de vejetação,. 9.a—Os principios medicamentosos não alteram de forma algu- ma a composição dos vinagres; pelo contrario os vinagres corrigem a acção irritante de algumas substancias. 10.a—Dous processos teem sido empregados para a prepararão dos vinagres medicinaes,' a maceração e a distillação. 11.a—A maceração é o processo geralmente abraçado. 12.a—Os vinagres obtidos pela distillação são pouco empregados em meçlicina; tem sua applicação especial nos toüettes etc. è HIPPOCRATIS APHORISMI. I. Yita brevis, ars longa, occasio praeceps, experientia íallax, ju- dicium diíhcile. II. Naturam morborum curationes ostendunt. III. Mulieri menstruis deficientibus, è naribus sanguinem fluere, bonum. IV. Si íluxui muliebri convulsio et animi deliquium superveniat, malum. V. In morbis acutis extremarum partium frigus, malum. VI. Ubi somnus delirium sedat, bonum. Rcmettida à commissào revisora. Bahia e Faculdade de medicina £6 de Setembro de 1865. Dr. Gaspar. Está conforme os Estatutos. Bahia 5 de Outubro de 1865. Dr. Talle *Imtioi\ Dr. Moura. Dr. «#. Sortré. Imprima-se. Bahia c Faculdade de Medicina líí de Outu- bro de 186o. Dr. Miaptista.