QUESTÕES DE HYGIENE ARTIGOS PUBLICADOS NO «JORNAL DO COMMERCIO » PELO Cl v. òc ^((oag/afííãe^ RIO DE JANEIRO IMPRENSA NAOIONAb 1890 Reunindo neste opusculo os meus artigos sobre hygiene publica, gentilmente acceitos e publicados pelo Jornal do Commercio, tenho em mira ampliar a circulação das minhas idèas sobre as condições sanitarias da Capital Federal para agitar em seu beneficio esta questão de suprema utilidade publica. Não consta que haja logar tão batido por epidemias successivas como aqui, e onde, a julgar pelo resultado ob- tido, menos tenham aproveitado as medidas hygienicas para prevenil-as ou attenual-as. Cada reforma decretada no serviço hygienico faz re- nascer esperanças; sobrevindo qualquer epidemia, dissi- pa-se logo a illusão. O impaludismo, que em toda a parte recua ante o pro- gresso da edificação e da agricultura, não só persiste aqui, como adquire expressão singularíssima. Examinando-se o obituário, verifica-se que neste in- verno - estação considerada de tregoas para as moléstias zymoticas - raro é o dia em que não figuram casos de fe- bre amarella e também de intoxicação palustre sob a denominação de accesso pernicioso e febre perniciosa. Reconhecida, como se acha, a inefficacia das medidas parciaes ou de occasião até aqui unicamente realizadas, impõe-se a necessidade de um plano geral de sanificação, harmonico, maduramente delineado e lealmente execu- tado, não de uma vez e tumultuariamente, mas a trechos, com a possível simultaneidade e as devidas preferencias. IV Nas circumstancias actuaes deve-se considerar o sanea- mento desta cidade assumpto de interesse nacional. Não importaria sómente o bem-estar de uma parte da popula- ção do paiz, mas a eliminação de um poderoso obstáculo à expansão natural e ás aspirações de um povo apto para engrandecer e que carece progredir. As epidemias são como a guerra : atrazam pelos males duradouros que determinam. Si, apezar da lucta incessante com os elementos, temos sempre progredido, o que seria si nos fossem favo- ráveis ? Ultimamente, na Sociedade Central de Immigração, o Sr. Nicosia, discorrendo sobre assumptos de utilidade publica, referiu-se â necessidade da transformação do Brazil no seu proprio coração - a cidade do Rio de Janeiro. Outro não será o sentimento do estrangeiro dedicado á nossa patria, e outro não deve ser o nosso empenho. O saneamento desta cidade impõe-se como questão ex- cepcional e da maior urgência : para resolvel-a cumpre a todos desenvolver a energia correspondente ao patrio- tismo e à responsabilidade de cada um. Durante a publicação destes artigos foram indeferidas as propostas sanitarias do Dr. Américo de Castro e dos Drs. Hilário de Gouvêa e Lima e Castro. Em rigor de hygiene a primeira deixava muito a de- sejar : a par de medidas aproveitáveis, consignava outras completamente estranhas sobrecarregando inutilmente o orçamento e excluia algumas imprescindiveis, como V mostrou em acto official o digno inspector de hygiene publica. A drenagem do solo e o calçamento estanque - objecto da segunda proposta - são medidas que hão de imprete- rivelmente figurar em um plano completo de saneamento. O solo, saturado, como está, de matéria organica e humi- dade, é poderoso factor de insalubridade, e o calçamento actual não póde ser mais favoravel ás elaborações infe- ctuosas. A rejeição da idêa de purificar o solo é simplesmente um adiamento. A realização virá por força. Relativamente á drenagem, convém fixar o meio de effectual-a de accordo com as condições topographicas da cidade, considerando que, depois de tanto tempo per- dido, è indispensável não arriscar sacrifícios sem a maior probabilidade de exito, e ganhar em segurança o que malbaratou-se por imprevidência. Em hygiene meias medidas nada valem : não ter, ou ter insufficientemente é a mesma cousa. Outra questão provoca serio estudo : dever-se-ha fa- zer a drenagem do solo permanecendo os actuaes es- gotos ? Ignoro a opinião do inspector de hygiene a semelhante respeito. O acolhimento que prestou á proposta do con- selheiro Ferreira Vianna, quando ministro, faz suppor que considerava a drenagem como a primeira medida sanitaria, mórmente tratando-se de extinguir a febre amarella ; mas, a julgar pelo modo de exprimir-se um anno antes, em 1888, na these com que concorreu á ca- deira que tão dignamente professa, é licito inferir que VI o seu ponto de partida para o saneamento effectivo desta cidade èa reforma dos esgotos. Sinão vejamos. Citando a opinião de Pettenkoffer considera o sanea- mento do solo um recursoprophylactico superior a qual- quer outro para obstar a disseminação das moléstias epidemicas; acceita, entretanto, o Dr. Rocha Faria a propagação por contagio demonstrada em relação ao cholera e á febre typhoide e por elle amplificada à febre amarella, fundando-se para isso no « muito menor con- tingente de morbilidade pelo typho americano em ma- ritimos, depois que o conselheiro NunÓ de Andrade pro- hibiu, em certas épocas, a approximação dos navios para evitar a maculação e o revolvimento do fundo lodoso da bahia »; apresentando, para melhor definir o seu pensa- mento, o facto de « aggravarem-se as epidemias pela defi- ciência de recursos de hygiene publica e privada e pela pollucção do solo urbano na superfície e na profundidade.» Assim, o autor da these Do Mephitismo tellurico, acceitando opinião de hygienistas e bacteriologistas no- táveis, pensa também que « na applicação generalisadora a doutrina de Pettenkoffer não tem correspondido à evo- lução dos factos»; e que concluir que «sem o solo influenciado pela humidade não póde haver explosão e diffusão epidemica è destruir a biologia dos germens especificos; ê baralhar e confundir a noção de contagio e da infecção; è postergar todas as questões de hygiene internacional e administrativa para só cuidar de drenar o solo; é crear uma generalisação prematura, infundada, anarchica, que a hygiene moderna repelle e estygmatisa ». VII Quanto â reproducção do germen independentemente da influencia do solo e apenas auxiliada pela provisão de matéria organica encontrada na superfície, cumpre in- vocar, em ordem a justiflcal-a, a importação do germen de febre amarella e subsequente diffusão epidemica nos logares onde as condições meteorológicas favorecem-na. Aqui mesmo, como é sabido, basta a remoção de um doente desta enfermidade para qualquer ponto dos subúr- bios para alastrar alli a epidemia. Não é só isso : durante o verão antepassado, quando o lençol tellurico deveria ter baixado consideravelmente em virtude da secca* excepcional de então, deixou de verifi- car-se a lei das oscillações alternantes, porque não foi a epidemia da febre amarella que encontrou reforço para desenvolver-se. Releva accrescentar que nesta cidade a febre amarella ganha intensidade nas ruas próximas do mar, justamente onde menos deverá descer no verão o lençol d'agua subterrâneo. Além disso, concedido que por embebição os germens desta enfermidade sejam arrastados às camadas do sub- solo, não está demonstrado, independentemente do poder reductivo da terra, que esses germens possam voltar á superfície. Estudando a questão do transporte das bactérias por uma corrente de liquido devida á capillaridade, Fliigge nega-o, accrescentando que são pobres de germens as ca- madas profundas do solo ; e Arnould declara que a ascen- são desses germens não se verifica por meio de gazes tellu- ricos ou da evaporação da agua ; factos estes que, pondera o autor citado, embaraçam a theoria de Pettenkoffer. VIII Dito isto, escusado é recorrer a outras provas, para convencer que não se deve fundar na drenagem a espe- rança de extinguir a febre amarella, e que, apezar da utilidade deste processo como meio geral de saneamento, não deve constituir medida de excepção, urgente, impre- scindível. Vem a proposito mencionar o juizo, que ha dous annos fazia dos esgotos desta cidade o illustre inspector de hy- giene no melhor documento do seu mérito - a sua these de concurso. • Tratando dos defeitos geraes de construcção, diz: « Nas cidades dotadas de esgoto subterrâneo, como a nossa, a estagnação fecal no interior dos canaes, a porosidade dos materiaes de construcção empregados nas galerias, a au- sência de impermeabilidade nas paredes, as soluções de continuidade e a mà qualidade das juntas, permittem a pollucção do solo pelos solidos, líquidos ou gazes.» Referindo-se aos esgotos desta capital, considera-os cheios de vícios e impróprios ds condições topographi- cas do Rio de Janeiro ; e à pag. 116, alludindo aos de Pariz accrescenta « que os vicios devem mais avultar nas cidades de canalisação inferior, como se observa em mui- tas, entre as quaes figura a nossa, onde as galerias acham-se revestidas interiormente de depositos durís- simos com muitos centímetros de espessura, obstruídos, sem agua, fendidos em alguns pontos, offerecendo finalmente as consequências de uma vasta cloaca em fermentação pútrida, que infecciona o solo no mais alto grdo e corrompe as almospheras, urbana e domi- IX ciliarias, pelas exhalações nas aberturas das ruas e nas latrinas das casas.» Para melhor firmar a sua opinião quanto ao serviço dos esgotos, observa: « Do exposto è facil presumir dos e ff eitos exercidos do nosso actual systema de esgotos na contaminação do subsolo e dos esforços de sanea- mento que ha mister applicar-lhe em satisfação à hygiene desta capital.» Discorrendo sobre as emanações compostas de gazes to- xicos e de germens infectuosos no interior dos aposentos, diz : «Entre nós, graças às péssimas condições do sy- stema actual dos esgotos, o facto è flagrante, durante a noite, em quasi todas as casas mal ventiladas da zona commercial.» Finalmente, a proposito da diffusão intra-domicilia- ria dos gazes e germens morbidos assim se exprime: «Evidencia-se mais uma vez o máo funccionamento do nosso systema de esgotos, cujos syphões, na grande maioria, mostram-se seccos, fétidos e infectos; e mesmo quando providos d'agua, nas melhores installações, não são convenientemente ventilados», etc. Em vista do exposto e das considerações feitas nos meus artigos, pergunto :comprehende-se em hygiene foco mais temivel de infecção do que os esgotos desta capital ? E' possível saneai-a antes de reformar este serviço ? Seria improprio deste escripto accumular o que se tem autorizadamente dito a proposito da influencia perni- ciosa dos esgotos sobre a salubridade : limito-me a repro- duzir alguns conceitos perfeitamente applicaveis ás nossas condições hygienicas, extrahidos de dous autores de no- meada . X No opusculo intitulado-Desinfecção e propltylaxia individual-(traducção do Dr. Lacerda), o Lr. Sternberg, referindo-se às emanações infectas e outros productos ainda pouco conhecidos da decomposição organica, pondera que « não constituem matéria infecta directa, mas indi- rcclamenie, contribuindo para a propagação das molés- tias epidemicas, como ocholera e a febre amarella, porque os indivíduos expostos às emanações dos esgotos, cloacas e outros receptaculos de immundicias teem a resistência vital deprimida por effeito da prolongada exposição a ga- zes toxicos, vindo assim a ser victimados por alguma affecção infectuosa para a qual se acham predispostos ». Em seu precioso livro sobre hygiene observa o profes- sor Arnould que os resíduos orgânicos « não determinam por si a febre, o cholera, o typho, mas preparam maravi- lhosamente o organismo para sêde dessas enfermidades, determinando uma pars minoris resistentice ». O mesmo autor occupa-se também da influencia dessas matérias sobre «as misérias physiologicas de que depen- dem as a/fecções pulmonares ordinárias, a escrophu- lose, a decadência organica das familias e o flagello, ainda mais temivel do que o cholera,-aphtisica pul- monar» . Conhecidas estas e mais opiniões de abalisados hygie- nistas, unanimes em denunciar os màos esgotos como um dos maiores perigos para os centros de população ; teste- munhadas as lutuosas scenas que aqui sepatenteam, prin- cipalmente no verão ; verificada a decadência organica dos habitantes do Rio de Janeiro, a frequência da tuberculose pulmonar constituindo uma epidemia permanente ; e reco- nhecida a insidiosa e solita gravidade do impaludismo, XI será possível assistir com indifferença ou tranquillidade aos preparativos para o saneamento da Capital Federal, sem a correcção do actual systema de esgotos ? Seria crime de lesa-humanidade. Rio, 6 de agosto de 1890. QUESTÕES DE HYGIENE I Creio poder affirmar sem prejuízo da verdade que, apezar do reconhecido mérito e notoria dedicação dos proflssionaes até aqui incumbidos de prover a hygiene publica, o resultado obtido não corresponde ao esforço realizado mesmo com sacrifício. Seria, com effeito, injustiça desconhecer os serviços prestados à salubridade publica por Paula Cândido, Lavradio, Ibituruna, Souza Costa, Freire e Rocha Faria ; mas cumpre confessar que, seguramente por circumstancias superiores á sua vontade e á rigorosa comprehensão da própria responsabilidade, nenhum lo- grou ainda collocar a questão hygienica de modo a obrigar os poderes públicos a encaral-a de frente, medindo-lhe o alcance e a magnitude. Os governos faziam o que entendiam e queriam, sem saber o que faziam. Neste semi-deserto de convicções e energias as autoridades sanitarias bradavam quasi inutilmente. Emquanto todos exigiam e muitos contrariavam, poucos as comprehendiam e auxiliavam no desempenho da sua tarefa pro- videncial. Cousa singular, nenhum serviço excede em utilidade o da hy- giene-sem exageração a salvaguarda dos maiores interesses sociaes e industriaes ; no emtanto nota-se entre nós accentuada tendencia para embaraçal-o e tornal-o odioso, certo prazer em neutralizar-lhe as exigências e illudir a imprescindível vigi- lância ! Pois bem : si ha quem deva corar com as accusações que sof- fremos, além de outras, de paiz insalubre, firmadas em succes- sivas explosões epidemicas, não serão de certo os que no mais aftiictivo posto da publica administração tiveram de arcar com a 4 ignorância, a indifferença, a conspiração dos interesses, a má fé e a desidia. Qual o resultado ? E' notoria a insuíHciencia dos meios disponiveis para attenuar as consequências dos rigores meteorologicos, a ponto de aprovei- tar-nos melhor um verão propicio como o deste anno, cuja tem- peratura poucas vezes excedeu de 30°, do que as providencias até aqui realizadas. Succeda ao ultimo verão outro em condições menos favorá- veis, e certamente não se demorarão as epidemias estivaes que periodicamente nos perseguem. E tal é a verdade desta situação, que principalmente os dous últimos inspectores de hygiene publica, o Barão de Ibituruna e o Dr. Rocha Faria, perdida a esperança de conseguirem medidas radicaes, limitaram-se aos meios de aparar os golpes dessas epi- demias, attenuando-lhes os estragos. Achamo-nos, é certo, de posição tomada para responder ao primeiro assalto epidemico, porém desarmados para resolver as mais graves questões hygienicas de longa data e constantemente em agitação, das quaes depende o real saneamento desta ca- pital. Estamos na defensiva, devendo a nossa attitude ser a offensiva tenaz e sem tréguas. Ao hygienista ou ao medico que, examinando esta cidade no principio do século, encontrasse-a « por todos os lados cercada de logares pantanosos, occupando as aguas estagnadas o princi- pal logar entre as causas de insalubridade » e, communicando com os habitantes, notasse que, «no fim de tantas gerações ainda a natureza não havia concedido aos filhos do Rio de Janeiro uma constituição apta a viver sem grandes incommodos de saude, no meio de uma atmosphera em que nasceram os seus avôs » ; a esse hygienista ou medico não deixaria de impor-se o 1 Reflexões para melhorar o clima do Rio de Janeiro, pelo Dr. Ma- noel Vieira da Silva. 1808. 5 deseccamento dos pantanos como a primeira necessidade, ante a qual o arrazamento do morro do Castello figuraria em segundo plano, como aconteceu ao Dr. Manoel Vieira da Silva. A esta seguia-se no seu pensar a de « determinar o logar para as habitações, marcar-lhes a altura das portas, aterrar as ruas novas, demarcando a direcção e a largura; prohibir os enterros nas igrejas, estabelecer cemitérios nos extremos da cidade ; im- pedir a importação dos germens de moléstias epidemicas por meio dos lazaretos proporcionados ás differentes repartições; remover o matadouro, inspeccionar os alimentos, assegurar a boa qualidade da carne verde » além de outras providencias de real utilidade, embora menos importantes. Naquella occasião outros conselhos não podiam vir de quem criteriosamente'cuidasse de melhorar as condições dos habitantes desta cidade, affectados, como se achavam, de cachexia palustre. No relatorio do ministério do império de 1834 pedia o ministro conselheiro Chichorro da Gama aos representantes da nação re- cursos em beneficio do saneamento da cidade, allegando « não ser possivel ver com indifferença o ferro da morte segar cente- nas de vidas, esperanças de nossa prosperidade e apoio de nu- merosas famílias, que ficavam entregues á orphandade e à misé- ria. O bem estar da humanidade, accrescentava elle, e o inter- esse do paiz altamente o reclamavam ». No anno seguinte e em peça de igual natureza o ministro José Carlos Pereira de Almeida Torres communicava « que esta capi- tal continuava a ser acommettida de mortíferas febres.» « A conservação da saude publica, dizia no relatorio de 1838 Bernardo Pereira de Vasconcellos, não pôde deixar de merecer os primeiros cuidados de um governo que aspira a reputação de benefico e patriótico. » Desse pensar foram os ministros subsequentes, todos pátrio- ticos, descrevendo opportunamente e com rigorosa exactidão as condições da salubridade publica : entretanto o saneamento da capital continuou no mesmo estado apezar dos successivos crédi- tos de milhares de contos de réis ! Inquestionavelmente o deseccamento dos pantanos realizou-se em grande parte, não em virtude de plano proposital, mas pela 6 fatalidade do augmento da população e da necessidade correlata de preparar terreno para edificação. Ainda assim, como teem sido geralmente aterrados os pân- tanos ? Do modo o mais imperfeito e offensivo da hygiene, contra o qual tanto reclamou o Barão de Lavradio. O anno passado atravessavamos, um delegado da inspectoria de hygiene e eu, um dos bairros desta cidade, quando o meu companheiro, apontando para certo terreno baldio, disse-me : « aquelle está sendo aterrado com lixo, cachorros e gatos mortos.» Succediam-se as epidemias. Em 20 annos, de 1830 a 1850, o Barão de Lavradio, no seu Esboço Histonco, enumera 23, « numero, sem duvida, abaixo do real», segundo diz. De 1851 a 1870, conforme refere o mesmo autor, soffreu esta capital 40 epidemias, de duas a cinco por anno, e a população gemia conformada: morituri te salutant. De 1871 a 1890, quantas epidemias? Não sei dizer ao certo ; falta-me tempo para veritical-o ; foram, com certeza, muitas e mortíferas, principalmente a da febre amarella, que implantou-se aqui, firmando domicilio e impri- mindo ao Brazil o ferrete de - paiz inhospito. Que somma incalculável de sacrifícios ! Que tributo de vidas, de nacionaes e estrangeiros, pago á con- temporisação e á imprevidência ! Reatemos o assumpto. O Visconde de Mont'Alegre, pedindo às camaras (o relatorio traz a data de 1850, mas com certeza foi elaborado em 1849) au- torização para promulgar regulamentos sanitários e creai' a po- licia sanitaria, assim dizia: «Não é só para impedir o contagio das bexigas, ellas (as providencias) o são igualmente para evitar a introducção de outras moléstias epidemicas... ; para emflm arredar de nós tantos outros fócos de enfermidades, que se ali- mentam á sombra da desattenção (o grypho é meu) com que è tratada a saude publica, ceifando todos os annos milhares de vidas que podem e decem ser poupadas.» 7 Foi presentimento: no flm de 1849 estalava aqui a epidemia da febre amarei la, encontrando tudo desprevenido e levando a confusão e a mortandade a todos os cantos da cidade. Sob a pressão da epidemia foi creada a junta de hygiene pu- blica, expelido o regulamento de 29 de setembro de 1851 e esta- belecido o hospital da Jurujuba. O Dr. Paula Cândido, presidente da junta de hygiene, logo no primeiro relatorio propoz contra as moléstias epidemicas e endé- micas as seguintes medidas hygienicas: lazaretos - esgotos - despejos-remoção dos cadaveres de animaes-limpeza das praias e dos cães; irrigação das ruas - abastecimento de agua - arbori- sação da cidade. No relatorio immediato sustentava a necessidade das mesmas providencias hygienicas, desenvolvendo-as com grande critério e proficiência. No de 1854 ainda mais encareceu a imprescindível necessidade de attender ao estado da salubridade publica: «Não ha, pois, não deve haver, disse elle, consideração alguma que faça recuar ante a imperiosa necessidade de medidas permanentes de salu- bridade que o paiz reclama.» Nos subsequentes relatórios o zeloso funccionario insiste desen- volvidamente na sua opinião sobre as causas da insalubridade, evidenciando a necessidade de removel-as. São notáveis as reflexões por elle feitas sobre o excitador epi- demico ou principio material que produz a febre amarella, o cho- lera, a peste, o typho etc., principio que é levado de wn a outro logar nas cousas e nas pessoas. «Uma de duas, diz elle: ou o ex- citador epidemico ó representado por decomposições organicas e é pois um fermento (o grypho é seu); ou por animaes ou vege- taes de ordem inferior.» Havendo naquella epoca recomeçado na Allemanha os estudos sobre o parasytismo nas moléstias epidemicas, reduzidos mais tarde a corpo de doutrina pelas investigações de Pasteur, o Dr. Paula Cândido apossou-se immediatamente dos fundamentos da nova etiologia, applicando á febre amarella o « excitador que viaja com as pessoas e as cousas, representado por um fermento, por animaes ou vegetaes de ordem inferior ». 8 A' memória de tão preclaro facultativo deixo aqui consignada sincera homenagem. Sob o titulo Apontamentos sobre os trabalhos de salubridade e utilidade publica publicou em 1858 o Dr. Manoel da Cunha Galvão um opusculo, tratando com muita lucidez de vários as- sumptos de hygiene e reclamando para o saneamento desta ci- dade- abundancia de agua; esgotos, limpeza, calçamento, banhos e lavadouros públicos, ventilação, arrazamento dos morros do Castello e de Santo Antonio, habitações para os operários, arrua- mento geral da cidade, caes geral, mercados, latrinas e mijadouros públicos. Como se vê, é a synthese dos melhoramentos exigidos por imperiosa necessidade e sempre procrastinados. Referindo-se ao morro do Castello, disse o autor que « si tão importante obra jãnão se acha em conclusão ou andamento, teem sido as causas, entre outras, a mesquinhez dos governos colo- niaes, a vacillação proveniente das commoções politicas, e a falta de espirito de associação >. Em preciosos trabalhos o Barão de Lavradio, além de occu- par-se de vários assumptos parciaes de hygiene, deixou formu- lado o plano de melhoramentos a seu ver adequados ao sanea- mento desta cidade. Os seus relatórios honram-no sobremaneira, afflrmando simul- taneamente os grandes recursos da sua intelligencia, illustração e zelo pela causa publica. Em 1874 o ministro do império nomeou uma commissão, com- posta dos Barões de Lavradio e Torres Homem e do Dr. Souza Costa para propor as medidas necessárias ao melhoramento das condições hygienicas desta capital. Apresentado o parecer no anno seguinte, outra commissão foi nomeada para rever as medidas sanitarias aconselhadas pelo precedente. Em satisfação da incumbência outro relatorio foi apresentado em 1876. Além disso creou-se acommissão «de melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro », composta de distinctos engenheiros, que no mesmo anno apresentaram dous importantes relatórios. 9 Sobre os trabalhos da commissão de engenheiros publicou o Dr. L. R. Vieira Souto no Jornal do Commercio uma serie de interessantíssimos artigos, que mais tarde reuniu em opusculo. Como si isso não bastasse, dous annos depois outra commissão de médicos foi encarregada de fazer o que estava feito e refeito - organizar e apresentar um plano de melhoramentos, etc., etc. Em 1884 o Dr. Paula Freitas apresentou ao conselheiro Ma- ciel uma memória sobre o saneamento da capital, e o Dr. Freire, baseando-se nos efflcazes melhoramentos realizados em New-Or- leans, propunha-os para esta cidade, em alguns pontos em pari- dade de circumstancias. Afinal e rapidamente chego aos dous planos de saneamento mais completos : do Barão de Ibituruna em 1886 e o do Dr. Rocha Faria apresentado o anno passado ao Congresso Medico-Cirur- gico, reunido em 2a sessão, e por este approvado. Não permittindo a indole deste trabalho examinar detidamente os dous projectos, limitar-me-hei a ponderar que, salvo os addi- tamentos feitos pela força das circumstancias e que progressiva- mente complicam o problema da hygiene entre nós, nos mesmos projectos, como em todos, figuraram e figurarão sabe Deus até quando as medidas ha quasi um século reclamadas. Será possível prolongar esse estado de incertezas e soffri- mentos ? lí Em 1886 o Barão de Mamoré, então ministro do império, ex- pondo em relatorio as mâs condições hygienicas desta capital, e accentuando como medida politica e humanitaria a necessidade de saneal-a, estimava em 100.000:000$ a despeza a fazer com este melhoramento ; mas, considerando as condições financeiras do paiz, contentava-se com um credito especial e uma dotação annual para aquelle serviço. Ascamaras concederam 300:000$, que foram consumidos, pre- terindo despezas urgentes, na conimissão confiada a um enge- nheiro franCez bem conhecido, que andou a explorar a altura do lençol de agua subterrâneo e a medir o grdo da nossa longanimidade e indifferença. Em um discurso sobre o mesmo assumpto no Instituto Polyte- chnico 0 illustrado engenheiro Dr. Paula Freitas, apresentando o perigo da humidade do solo e propondo variãs providencias^ elevod também a 100.000:000$ o orçamento das obías^ que não poderiam terminarem menos de 20 a 30 annos. Annunciaranicom jubilo os jornaes desta capital nos priineiros dias de dezembfo que 0 ministro do interior, Dm Aristides Lobo encarregara o Dr. Paula Freitas de organizar o orçamento das obras do sanOaihentó da cidade de acCordo com O parecer do digno inspector de hygiené publica, adoptadó, como já tive oeca- sião de dizer, pelo congfesso medico-cirurgico em sua ultima S6SS8.0 • Recordo-me mesmo de ter lido que o ministro exigirá a maior brevidade nesse serviço, tal era o seu empenho de prestar a esta capital tão assignalado beneficio, que muito recommendaria á gratidão publica o incipiente governo republicano. 12 Depois nada mais se soube : constou-me que o Dr. Aristides Lobo declinara do seu proposito em vista da enormidade dos gas- tos em completa desproporção com o estado das finanças publicas. Depois de tantos estudos, de tanta commissão, de tantos pro- jectos, de tanto sacrifício de vidas, de tanto descrédito, de tantas promessas e esperanças, o resultado éeste: não se ata nem desata. O problema hygienico a complicar-se cada vez mais, a despeza com as obras a subir sempre, sobrecarregando infructiferamente os cofres públicos, a capital a carecer hoje do que sempre lhe fal- tou, além de outros melhoramentos reclamados pelo seu desen- volvimento, o o desanimo a dominar por igual a boa vontade dos ministros ! Por que ? Por querer-se todos os melhoramentos ao mesmo tempo, o que elevaria fabulosamente a despeza : ou tudo ou nada. Como sahir do embaraço ? Dil-o-hei. 0 Dr. Rochard, eminente hygienista francez, considerando que « uma cidade moderna será ordinariamente victimada por molés- tias infectuosas, a despeito de quaesquer aperfeiçoamentos da arte e da sciencia, sendo desasseiados os habitantes, as casas, as áreas, e não havendo limpeza dos regos e esgotos », enuncia o seguinte conceito : «toda agglomeração humana carece em pri- meiro logar de boa agua e de prompta eliminação das immundi- cias.» Parecendo-me indiscutivel esta opinião, que a meu ver contém força de axioma, porque effectivamente é impossível haver hy- giene sem agua e esgotos, tomal-a-hei por base das minhas refle- xões, ou antes do exame das nossas actuaes circumstancias, para verificar o gráo de confiança a depositar actualmente neste ser- viço ou o que falta fazer parta evitar os poderosos elementos que podem porturbal-o. Vejamos. Agua-E' incontestável que até aqui esta capital não tem tido agua sufficiente para os diversos misteres do serviço publico e in dividual. 13 Qualquer negativa neste sentido encontra desmentido no cla- mor geral durante a estação calmosa. A agua não é, pois, sufflciente. Uns attribuiam o facto â quantidade canalisada para os diver- sos depositos ; outros a derivações clandestinas ; e não faltou quem explicasse a deficiência pela mà distribuição do precioso liquido, rumorejando-se mesmo desaccordo e attrito entre os funccionarios encarregados dorespectivo serviço. O rigoroso verão do anno passado provocou clamor nunca visto até então. O governo expedia a trechos umas ordens anony- mas ao inspector de obras publicas recommendando attenção e providencias às reclamações geraes. Simultaneamente com a falta de agua lavrava desapiedada- mente a febre amarella, e por cumulo de infelicidade vieram as mortes repentinas e os accessos perniciosos completar o lutuoso quadro. Peste ! temos a peste ! Tal foi o grito angustioso que chegou a escapar, tão parecido era o nosso desespero com o das populações do Oriente outr'ora devastadas por essa moléstia sinistra e implacável. Os jornaes franqueiaram as columnas a reiteradas reclamações contra a falta de agua. O que pensava e fazia a engenharia official não sei dizel-o ; parecia calma, prudente, e, si não satisfeita de si mesma, pelo menos conformada. Nesta conjunctura um engenheiro brazileiro lançou às altas regiões offlciaes o seguinte repto : « tantos milhões de litros de agua em oito dias.» Quem assim se abalançava podia ser um louco; sim, um louco, - mas dessa loucura physiologica denominada - grandeza das acções. A intenção não serà facil de atinar, mas o certo é que o mi- nistro da agricultura mandou immediatamente celebrar o con- tracto com o engenheiro. O que então occorreu está na lembrança de todos. Nunca o sentimento publico pronunciou-se entre nós tão uni- forme e intensamente como nessa occasião: o voto e um era o de todos. 14 A attenção voltou-se para a serra do Commercio, onde um homem realizava prodígios, parecendo dispor de magico poder. Trabalhavam todos denodadamente, e os telegrammas, annunci- ando o proseguimento dos trabalhos, eram anciosamenterecebidos. A lucta era formidável, mas as difflculdades abatiam progres- sivamente até que chegou o oitavo dia. O que succedeu então ? A' hora determinada o Dr. Frontin fez jorrar no Barrilão o tantos milhões de litros de agua verificados offlcialmente. Não foi só a victoria de um homem, fortalecido por energicos auxiliares; foi também o triumpho de uma população inteira, porque desde esse dia ficou, póde-se afflrmar, resolvido o mais importante problema do saneamento desta capital. O que seguiu-se não vale a pena recordar : a canalisação provisória das aguas - ainda litigiosas - do rio S. Pedro fo triste arremedo ou acto de contricção, mas nunca o desempenho de um plano previamente elaborado em sotícorro de uma popu- lação ha tanto tempo opprimida pela sêde. Neste interim assumiu a gestão da pasta da agricultura o conselheiro Lourenço de Albuquerque. Comprehendendo a situação, fez do abastecimento de agua a esta capital um dos principaes assumptos de suas cogitações, to- mando a peito realizal-o com a maior brevidade. Para isso apressou e resolveu a desapropriação das aguas da serra do Commercio, ordenando se fizesse definitiva a canalisação provisória e do mesmo modo procedeu em relação às aguas do rio S. Pedro. Nomeou uma commissão para examinar o rio Sant'Anna, medir o volume das aguas e orçar as despezas com a canalisação. Autorizou o Dr. Frontin a fazer estudos para a canalisação das aguas do Xerém e Mantiqueira e a encommendar desde logo o material necessário. Para facilitar o transporte do mesmo material (tal era o pro- posito de aproveitar tempo) mandou lançar uma ponte sobre o rio Iguassú. Mais alguns mezes e teríamos reforçado definitivamente o abastecimento com as aguas da serra do Commercio^ dos rio S. Pedro, Xerém e Mantiqueira, ficando á mão e de estudo feitos as do rio Sant'Anna. 15 Para regularisar a distribuição, como se fazia mister, nomeou o preclaro estadista uma commissão, que occupou-se immediata- mente do assumpto, propondo a ligação do reservatório do Pe- dregulho ao do morro da Viuva. Com igual promptidão ordenou a execução do encanamento indicado, o qual havia chegado ao largo do Cattete, quando o conselheiro Lourenço de Albuquerque teve de deixar o poder : na pendula dos nossos destinos soava a ultima hora da mo- narchia. Iniciado o novo regimen politico e á parte as primeiras hesi- tações inevitáveis em uma transformação tão brusca e radical, não pararam os trabalhos com o abastecimento de agua a'esta capital. Continuava o assentamento dos tubos, mas, accentuada a esta- ção calmosa, foi interrompido em observância da disposição mu- nicipal contraria ao revolvimento de terras nessa quadra annual. Que continua o trabalho da canalisação infere-se da noticia do Jornal do Commercio de 18 de março, relativamente á pró- xima visita do Sr. ministro da agricultura às obras do encana- mento dos rios Xerém e Mantiqueira. Está, pois, tudo disposto e em grande adiantamento para em curto prazo gozarmos o principal e imprescindível beneficio hy- gienico, sem o qual mallograr-se-hão quaesquer providencias em relação ao saneamento da cidade. Para tão importante acquisição justo é contar com o maior empenho da parte do Sr. ministro da agricultura, cujo coração campineiro não póde deixar de confranger-se com as noticias desoladoras de sua terra natal, segunda vez invadida pela febre amarella, precisamente por falta dos dous requisitos indispen- sáveis para garantia da vida e do bem-estar: abundancia de agua e bom systema de esgotos. Em Campinas, além de ser o sub-solo profundamente viciado por matéria organica, succede que o despejo das aguas servidas e resíduos de cozinha faz-se nos quintaes, a céo aberto, o que determina a aggravação das lamentáveis condições hygienicas da localidade. 16 Não havendo alli agua em abundancia e esgotos para tudo, Campinas continuará a ser annualmente o scenario de pungentes soíITimentos, e uma ameaça para o Estado de S. Paulo, como esta capital para o paiz inteiro. Permitta o Sr. ministro da agricultura que, firmando-me na observação dos factos, solicite a sua attenção para certas occur- rencias dadas aqui ha quatro annos. Eu as resumirei em poucas palavras. Constando ao ex-inspector de hygiene publica o Barão de Ibi- turuna que no districto servido pelas aguas dos Tres-Rios e Covanca abundavam affecções gastro-intestinaes agudas, resol- veu o energico funcci onario examinar em pessoa o estado da- quelles mananciaes e alli encontrou horrores. Em offlcio de 29 de dezembro de 1886 levou ao conhecimento do governo os gravíssimos attentados contra a saude publica commettidos. pelos habitantes dos terrenos marginaes, os quaes, além de conservarem á borda da agua chiqueiros para porcos, que alli mesmo eram criados e lavados, lançavam nos rios os animaes mortos e toda a matéria excrementicia : o cumulo da immundicia. « Não podíamos conjecturar, dizia o inspector de hygiene pu- blica ao governo, que a tão poucos kilometros do centro desta cidade existissem desassombradamente tantas causas de molés- tias e de morte para os moradores de seus bairros mais popu- losbs. » Escusando-se de descrever tudo quanto observou, pelo asco que lhe causava a tarefa, continuou o Barão de Ibituruna nestes termos : « Limitar-me-hei a chamar a attenção da alta adminis- tração para esse fóco medonho de moléstias, que deve ser quanto antes eliminado, mesmo à custa dos maiores sacrifícios do Estado. Terminando o offlcio condensou na seguinte synthese o que presenciou : « As paredes internas da caixa do reservatório, onde são recebidas as aguas dos Tres-Rios, fizeram-me lembrar do interior das galerias de esgotos de Londres. > 17 Que providencias pensa o Sr. ministro da agricultura haver tomado o governo ao receber a reclamação da primeira autori- dade sanitaria ? Como não será facil atinar vou dizel-o, servindo-me das notas que tomei: o governo em aviso de 4 de dezembro do mesmo anno recommendou ao inspector de hygiene publica fizesse inti- mar aquella gente para remover todos os elementos que concor- riam para alteração das aguas. A' reclamação de ser quanto antes eliminado aquelle foco medo- nho de moléstias, mesmo à custa dos maiores sacrifícios do Estado, pareceu o governo ligar pouca importância em vista da medida que decretou. E' verdade que, assumindo calculada energia, recommendava na mesma peça offlcial ao Barão de Ibituruna que recorresse á autoridade policial, caso não fosse attendida a aterradora in- timação. E' facil comprehender a cómica obediência dos intimados por ordem do governo ; não é também difficil imaginar o estridor das gargalhadas daquella gente ao regressar da autoridade e o contingente excrementicio em seguida atirado aos rios em com- memoração da energia policial. Não estava no timbre do Barão de Ibituruna tolerar seme- lhante ludibrio, e o resultado foi o que devia ser : ficar tudo no mesmo estado, apezar das successivas reclamações da imprensa, continuando os que são obrigados a servir-se daquellas aguas a tomal-as temperadas de um modo tão nocivo. E' incrivel mas desgraçadamente verdadeiro. Não está no meu caracter apedrejar o sol no occaso, ou feste- jar auroras sorridentes : mas pelo conhecimento que tenho da nossa historia hygienica, entenebrecida por sacrifício enorme de vidas que em grande parte se poderia ter poupado, não posso conter o meu pezar ante a sorte desta capital, que seria outra e incalculavelmente mais feliz si tivéssemos tidogovernos na altura das circumstancias, ou, como dizia Bernardo Pereira de Vascon- cellos, « que aspirassem á reputação de beneflcos e patrióticos ». 18 A verdade é que estamos na immediata dependenoia das nu- vens e dos caprichos meteorologicos. Chovendo regularmente e sem interrupção reparavel, correm as cousas bem : deixando de chover alguns dias e prolongan- do-se este estado, menos que seja, sente-se logo insufflciencia de agua ecomeçam as difflculdades do abastecimento. Em um mesmo quarteirão succede haver prédios em que o supprimento não soffre alteração e ficarem outros completa- mente a secco, denotando com isso defeito na distribuição. Nestas circumstancias os moradores desfavorecidos recorrem aos vizinhos, ou mandam buscar agua com grande trabalho, pa- gando-a às vezes por alto preço : nos chafarizes faz-se cauda de barris, formam-se as tristes fileiras dos necessitados a esperarem horas inteiras que lhes chegue a vez, si antes não estancar subi- tamente a torneira, como não raro succede. Outros entram pela alta noite ou gastam a madrugada aguar- dando o momento da distribuição, preferindo a vigilia á falta de agua no dia seguinte. Isto importa, como é claro, penosissimo sacrifício, sendo o do tempo muitas vezes o menor. O Barão de Ibituruna, no projecto de saneamento apresentado em 1886, justificando a indispensabilidade do abastecimento de agua para a salubridade local, disse : « Neste ultimo verão soffremos uma verdadeira penúria de agua, que concorreu muito para o desenvolvimento da epide- mia de febre amarella. Os esgotos durante muitos dias ficaram seccos, etc. » Decorridos tres annos reproduziu-se a falta de agua occa- sionando incalculável damno ã população e queira Deus não tenhamos ainda de lamentar scenas como as do anno passado, derivadas da mesma causa. Além disto estamos até aqui privados dos benefícios da ir- rigação ; as ruas pessimamente calçadas, cheias de depressões, mal varridas e sobrecarregadas de matéria organica, princi- palmente nas linhas de bonds, só recebem agua com abundan- cia quando chove. Até pouco tempo fazia-se tão imperfeita- mente a irrigação das ruas, que o actual inspector de hygiene 19 achou prudente, e com razão, supprimil-a. Si ha chuvas torrenciaes, as ruas ficam bem lavadas, asseiadas, em boas condições hygienicas ; do contrario, a humidade fomenta as fermentações, sem haver meio de obstal-as por falta de agua. Vivemos, pois, ao Deus dará ! Si o illustre ministro da agricultura quer ligar o seu nome a um serviço de valor incalculável, sempre lembrado e que- rido pelos habitantes desta cidade, dê-lhes agua : está em suas mãos fazel-o. Não se illuda com o que presenciou durante a ultima es- tação calmosa, nem tranquillise-se por não ter ouvido as queixas do costume, porque o verão deste anno foi como ha muito não se dá, e por excepcional póde ser considerado um mimo da natureza. III Esgotos-Reproduzir as accusações dos hygienistas, clínicos e engenheiros contra os esgotos desta cidade daria matéria para um volume. Abster-me-hei disso porque apenas pretendo condensar quanto possível esta magna questão. Incontestavelmente os esgotos realizaram importante melhora- mento material, evitando o grosseiro espectaculo da remoção ostensiva das matérias excrementicias para o mar, como era costume até 1864 ; mas pelo menos é problemático que tenham produzido equivalente beneficio ás condições hygienicas da cidade, ao seu saneamento. Attribue-se aos esgotos defeitos insanáveis, pois tanto vale accusar a má qualidade do material de construcção, inclusive a substancia fraca e permeável da soldadura dos tubos, insuffi- ciente capacidade dos collectores subsidiários e a inobservância de nivel na occasião do assentamento, por descuido dos encarregados do serviço e mais tarde por falta de firmeza do sub-solo. A par desses vicios radicaes ha o do máo funccionamento, a falta de ventilação das galerias, a facilidade de arrombamento, o perigo da descarga na bahia, a imperfeita desinfecção, etc., etc. E' certo que alguns desses inconvenientes não são directos, mas derivados da insufflciente provisão de agua, como sejam as obstrucções e a incompleta ventilação das galerias ; em todo o caso os outros são tão graves que obrigam a s iria investigação relativamente ao serviço. E' de lamentar que o Visconde do Bom Retiro, concessor do privilegio, não tivesse coroado os escrúpulos que teve em decre- tal-o, organizando uma fiscalisação severa para acompanhar a construcção, o que era indispensável para garantia do resultado. 22 Não é facil decidir si é peior não haver esgotos como em Cam- pinas, ou tel-os máos como aqui. Quem nunca se conformou com o serviço dos esgotos, foi o Barão de Lavradio. Convencido da sua irregularidade e dos pe- rigos que derivariam para a população desta cidade, cuja salubri- dade estava a seu cargo, o ex-presidente da junta de hygiene foi sempre o typo do funccionario solicito e consciencioso ; foi infle- xível . Vigilante como era, começou a estudar a influencia que os elementos que lhe causavam apprehensões poderiam exercer sobre a salubridade publica ; e, convencido do perigo, foi incançavel, inexorável em denuncial-o. Julgando insufflcientes as advertências, os conselhos e a expo- sição dos factos nos relatórios annuaes ao governo, o Barão de La- vradio recorreu, para melhor apoiar-se, á autoridade da antiga Academia Imperial de Medicina apresentando em 1873 extenso relatorio, ao qual, além das ponderações anteriormente expen- didas, addicionou graves reflexões que constituíam novos argu- mentos contra a construcção e o funccionamento dos esgotos. Até então haviam passado sem reparo as palavras do ex-pre- sidente da junta de hygiene ; mas, á vista da tenacidade e da nova attitude por elle assumida, sahiu-lhe ao encontro o en- genheiro fiscal do governo junto ã companhia City Improvsments, o Dr. Mello Barreto. Do seu relatorio nada direi, limitando-me a consignar, para enunciar uma simples consideração, o seguinte conceito exarado á pag. 53 : « Reconheço que defeitos, e defeitos importantes, existem ; o meio, porém, de corrigir esses defeitos não é por certo o de que lança mão o presidente da junta de hygiene em seus relatórios annuos. » Antes de tudo, sejamos razoaveis : que meio empregou a pri- meira autoridade sanitaria para cumprir o seu dever ? Accusava os defeitos e denunciava o perigo ! A réplica brilhante, vigorosa e de todo ponto victoriosa não se fez esperar por parte do Barão de Lavradio. A' vista das occurrencias, não podendo o governo por mais 23 tempo permanecer quêdo, nomeou para examinar os trabalhos e o serviço dos esgotos uma commissão composta de dous engenhei- ros e do Barão de Lavradio; seria melhor ( permitta-se-me a franqueza ) que o illustre titular não a tivesse acceitado e muito menos assignado o relatorio oíferecido em 1875; porque o ex- presidente da junta de hygiene não podia nem devia conformar- se e subscrever a conclusão geitosamente elaborada e concebida nestes termos : «Pelo que tem exposto a commissão, são elles (os inconve- nientes ) originados em sua quasi totalidade da insufflciencia de agua ; poder-se-hia dizer : - ausência de agua. » Quanto ás outras accusações e a commissão foi prudente de mais reconhecendo que « no cuidado que reclama a construcção das galerias e dos encanamentos estã o meio de evitar a infiltra- ção no sólo » e usando da seguinte reserva : « Si esse cuidado presidiu totalmente ás construcções a cargo da empreza City Improvements, não podia hoje affirmal-o a commissão. » Fazendo parte da mesma commissão, o Dr. Mello Barreto poderia ter aproveitado a opportunidade para declarar « os defei- tos e defeitos importantes », de que tinha sciencia, conforme a sua própria confissão, e propor as providencias que julgasse convenisntes. Seria um serviço precioso naquelle momento a revelação e os conselhos do digno fiscal do governo, profissional geralmente conhecido por provadissimas habilitações. Calar, porém, o que sabia e assignar aquella conclusão em que os inconvenientes arguidos eram na « quasi totalidade » imputa- dos á « ausência de agua », parece não ter sido a melhor solução. Relativamente ao assumpto, cumpre mencionar o juizo expen- dido pelos engenheiros Drs. Passos, Moraes Jardim, e Marcellino Ramos da Silva, membros da « commissão de melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro». No primeiro relatorio, igualmente publicado em 1875, disseram elles : « Não é menos prejudicial â salubridade desta capital a falta de impermeabilidade dos seus canos de esgotos. Erradamente con- struídos com o fim, segundo cremos, de concorrer também 24 para o deseccamento do sub-solo e tendo, por conseguinte, in- terstícios na parte superior ; devendo, além disso, ter muitas j untas em máo estado, como consequência das alterações que teem soffrido os calçamentos, deixam esses canos escapar gazes que infiltram no sub-solo poroso e pela acção capillar vão-se es- tendendo até debaixo das casas. « E' mesmo possivel que os proprios líquidos, elevando-se acima daquelles orificios, derramem-se no terreno e ahi accumu- lem focos de infecção, cujos mãos effeitos se sentem quando, na abertura de valias para quaesquer fins, rasga-se a camada im- permeável ao calçamento.» Àlludindo ao imperfeitissimo processo da desinfecção das ma- térias antes de lançal-as ao mar, assim se exprimiram : « O maior resultado que o Rio de Janeiro tem colhido do seu systema de esgotos não é, pois, devido unicamente á falta de um abundante supprimento de agua para lavagem dos canos, como acreditam al- gumas pessoas.» Para não alongar-me, chego ás extraordinárias e dolorosissi- mas occurrencias do anno passado, dignas por certo de maior re- flexão. Affeita às epidemias que, pôde-se dizer, fazem parte integrante das condições de vida nesta capital, e por isso quasi indiAferente ás suas manifestações periódicas, sobresaltou-se, entretanto, a po- pulação ante as scenas que aqui se deram nos primeiros mezes do anno passado. Reinava, havia mezes, a epidemia da febre amarella e não inspirava temor ; mas, continuando elevada a temperatura e crescendo de modo nunca visto os casos de morte súbita e por accessos perniciosos, não foi possivel conter o terror. Quem é que nesses dias de triste recordação, ao despedir-se da familia para a labutação diaria, deixou de perguntara si: vol- tarei com vida ? Nesses dias angustiosos tornaram-se eclio do clamor geral os jornaes da capital por meio de artigos sobre as nossas péssimas condições hygienicas - encaradas sob diversos aspectos. 25 0 Pais de 8 de março, em fôrma interrogativa, referiu-se a boatos sobre a causa do mal que affligia a população, apontando « os encanamentos da City Improvements internamente cobertos de crostas e matérias fecaes, devido isso á falta de agua». O engenheiro do governo junto à companhia, dirigindo-se ao ministro da agricultura, apressou-se em contestar a noticia d'O Pais, considerando-o mal informado quanto ao estado dos en- canamentos da City Improvements por falta de agua, e affirmou que as aguas recebidas « conservam as matérias fecaes em fluctua- ção constante, para serem levadas atè d casa das machinas, onde se procede á desinfecção, decantação, filtração e descarga no mar-». Uma perfeição em summa 1 São também do mesmo engenheiro as seguintes expressões : «posso assegurar que não chegamos felizmente ao ponto que se afigura a «0 Paiz». Quantas desgraças não correram por conta do - felizmente - do engenheiro fiscal ?! Apezar disso os esgotos tornaram-se o assumpto da cogitação publica. Os obitos no dia 7 elevaram-se a 129, « numero, disse o Jornal do Commercio, na Gazetilha, que não nos consta ter sido attingido nesta cidade». Os jornaes regorgitavam de artigos, sobrelevando um do Dr. L. R. Vieira Souto, no Jornal do Commercio de 10 de março, que causou profunda impressão. Este artigo trazia, além de outros trechos de publicações por elle feitas em 1886, o seguinte : « Em algumas ruas tem-se en- contrado, junto das galerias dos esgotos, deposito de liquidos em completo estado de putrefacção e cujas exhalações os moradores circumvizinhos e os transeuntes mal podem supportar, etc.» Denunciando novas e graves faltas no serviço dos esgotos, lem- brou o illustre engenheiro a lavagem artificial, como um meio mais poderoso de modificar as tristes condições sanitarias em que nos acha vamos. « Si a secca que nos afflige prolongar-se até abril proximo, a cidade do Rio de Janeiro ficará inhabitavel », terminava assim o seu importantíssimo artigo. 26 Foi então que o ministro da agricultura reuniu em conferen- cia o engenheiro fiscal, os representantes da companhia City Im- provements e o Dr. Vieira Souto, a quem, ouvidas as opiniões, encarregou de experimentar com urgência o apparelho de chasse. Do péssimo estado em que se achavam os esgotos deram noticia os jornaes, principalmente a Gazeta de Noticias de 19 de março, nos seguintes termos: «No collector geral que acompanha a praia de Botafogo (5o districto), havia estagnado liquido preto e infecto, etc., etc.» Iniciados os trabalhos, o inspector de hygiene publica reclamou ao ministro contra as excavações nas ruas, allegando perigo para a salubridade naquella quadra desfavorável. Foi uma medida de cautela, não ha duvida, mas, a meu ver, inopportunamente requerida, porque, si por vezes a experiencia tem demonstrado que as excavações feitas -já se vê - sem cor- rectivo indispensável aggravam as más condições hygienicas das ruas, incomparavelmente maior era o perigo do encalhe das ma- térias fecaes em fermentação, tornando-se por isso urgentíssima e imprescindível a lavagem dos esgotos, feitas as excavações com as cautelas hygienicas, a que não deixaria de attender um en- genheiro interessado no saneamento da cidade e dotado de conhe- cimentos especiaes sobre o assumpto. Não tendo convidado o digno inspector de hygiene publica para a reunião e recorrido ao seu abalisado juizo em assumpto imme- diato de salubridade publica, o ministro da agricultura incorreu, não ha negar, em sensível falta, mas é de crer que isso não ti- vesse influído para que o Dr. Rocha Faria se oppuzesse â reali- zação de uma importante medida de hygiene, porque, considerados os perigos, maior não podia ser o que então corria esta cidade. Em todo o caso, as gravíssimas occurrencias clinicas na estação calmosa e as accusações então renovadas co.n a maior plausi- bilidade contra os esgotos impunham a necessidade urgente de um plano racional de medidas hygienicas, sendo a mais impor- tante, quanto à opportunídade, examinar durante o inverno se- guinte as galerias e o encanamento, para verificar o estado das paredes internas, da soldadura e das camadas do sub-solo. Ha poucos mezes, por occasião dos reparos feitos em uma casa 27 á rua da Ajuda, encontrou-se rôto o cano de communicação com o collector subsidiário e grande infiltração de matérias no solo. Quantas casas não haverá nas mesmas condições? Infelizmente nada fez-se, e com surpreza vi apenas incluída no projecto de saneamento approvado pelo ultimo Congresso Medico- Cirurgico a syndicancia dos esgotos entre as medidas urgentes, quando, independentemente do reforço deste voto, era mais que sufficiente a autoridade do digno inspector de hygiene publica para propor e obter do ministro a decretação immediata da syn- dicancia urgentíssima e inadiavel. Entretanto, sem este elemento de convicção poder-se-ha pelos factos clínicos julgar da influencia perniciosa dos esgotos sobre a salubridade publica ? Vejamos. IV Declarada a epidemia do anno passado com caracter aterrador, voltaram-se todos para as autoridades sanitarias, anciando por medidas que ao menos minorassem os soffrimentos. Atravessávamos uma quadra realmente aterradora. Neste transe, e acudindo á solicitude da imprensa, o illustrado inspector de hygiene, em communicação dirigida a O Paiz, tratou de « esclarecer (palavras textuaes) a opinião publica sobre todos os assumptos que pudessem comprometter-lhe a saúde, accrescen- tando que uma outra epidemia, a malarica, despertou com ca- racter epidemico, revestindo-se de gravíssima violência no modo brutal (o grypho é meu) com que agora acommette indistincta- mente a população e mostrando-se no maior numero dos casos superior ou indi ff crente aos recursos therapeuticos ». Ao ler as ultimas palavras, que textualmente transcrevo, tomei-me de gravíssimas apprehensões. Como ? Pois além da febre amarella a roubar-nos annualmente tantas vidas preciosas, ainda mais a epidemia palustre, mas de um impaludismo até então desconhecido, unico, excepcional, e reservado para cumulo de infelicidade da população desta ca- pital ? Não ha caso em que tão alto se elevo o poder do clinico como na applicação opportuna do sulfato de quinina, seja qual for a violência e a intensidade do accesso pernicioso. Não é certamente recurso infallivel, mas tão seguro que é considerado especifico contra as manifestações palustres, qual- quer que seja a sua fórma clinica. Quem escreve estas linhas clinicou por muito tempo em uma cidade onde quasi annualmente o impaludismo assumia caracter epidemico - mais ou menos grave ; teve um sem-numero de 30 occasiões de applicar o sulfato de quinina, encontrando sempre soberano recurso contra as mais agudas e graves manifestações da infecção ma larica. Com essa pratica e a continuada observação até o anno pas- sado era impossível deixar de interrogar a si proprio : que epi- demia malarica ê essa, denunciada pela própria autoridade sani- taria, que mostra-se, na maioria dos casos, superior ou indiffe- rente aos recursos therapeuticos ? E' tão grave o facto, que mesmo passada a crise epidemica, cumpre estudal-o a fundo e seriamente reflectir nos aconteci- mentos clínicos que aqui se deram nos primeiros mezes do anno passado, porque, além de outras razões intuitivas, não é de tran- quillisar a confissão de haver nesta cidade - zombando dos re- cursos therapeuticos - uma moléstia que em toda a parte se debella, e que, a continuar assim, seria a peior de todas as mo- léstias, mais temerosa ainda que a febre amarella, o cholera e a peste. Naquella ocoasião fui convidado pelo capitão de fragata Mancebo, pessoa de minha amizade, para visitar um doente em sua casa. Era uma criança de 5 para 6 annos, que amanhecera febril no dia anterior. Informaram-me então que, não obstante a applicação de um laxante de oleo de ricino e seis decigrammas de sulfato de quinina, sobreviera-lhe, das 10 para as 11 horas da noite precedente, intenso accesso febril acompanhado de agitação e prostração consecutiva. No exame que fiz, não encontrei augmento de volume dofigado ou do baço ; a lingua estava pouco saburrosa; era graude a sêde; nada mais havia, á excepção da temperatura a 38°,5 : o estado geral era regular e o doente parecia abatido. Mediquei-o com sulfato de quinina, procurando prevenir o accesso nocturno, ou pelo menos attenual-o. Renovando á tar- dinha a visita, convenci-me de que tratava-se apenas de uma manifestação palustre, que dava-me tempo de debellar. A temperatura não tendia a subir, e por isso, mandando, por 31 segurança, applicar mais uma dôse de sulfato de quinina, retirei- me tranquillo. Ao visitar o doente na manhã seguinte, soube com grande sur- preza que mais violento do que na vespera voltara o accesso, caracterisado por elevadíssima temperatura e grande fraqueza. Com effeito, encontrei-o mais cahido, marcando o thermometro 39°. Entendendo, á vista do occorrido, que não convinha começar tão cedo a prevenir um accesso que se declarava alta noite, limitei-me a indicar cozimento de Lewis de duas em duas horas, devendo applicar-se ao meio-dia e repetir às 3 horas da tarde- meio gramma de quinino. A' noite maior abatimento, sendo igual á da manhã a tempe- ratura axillar. Mais meio gramma de quinino, poção vinhosa, affusões frias durante o accesso, que me parecia inevitável, eis o que aconselhei, retirando-me desanimado. Effectivamente pela manhã tive de passar attestado de obito : ao terceiro accesso succumbiu o doente, ficando a limpo a supe- rioridade ou indifferença do mal aos meios therapeuticos. Com pequeno intervallo tive outro doente na mesma casa. Apezar de haver eu da outra vez empregado sulfato de quinina fornecido por uma pharmacia de confiança, a do Sr. Araújo no largo do Machado, tendo-o experimentado com o melhor exito em outros doentes, inclusive uma pessoa de minha familia, re- commendei que se recorresse ao sulfato de quinina de superior qualidade que costuma haver na pharmacia dos Srs. Leone e Werneck. Não houve meio de evitar-se o fallecimento do doente ao ter- ceiro accesso pernicioso, ficando provado que o melhor sulfato de quinina equivaleu a uma substancia inerte, sendo de notar que, havendo eu começado o tratamento desde os primeiros symptomas, não pude prevenir o primeiro accesso, o segundo e menos ainda o terceiro. Pelo mesmo tempo succumbiram na extincta casa de saude de Nossa Senhora da Ajuda seis doentes, com pequenas variantes, de modo surprehendente, inexplicável e fora de toda previsão. Eu não carecia, é certo, testemunhar esses factos para con- 32 vencer-me da diminuição das probabilidades de sobrevivência naquella quadra calamitosa em que estavamos desarmados contra manifestações malaricas, superiores ou indifferentes aos meios therapeuticos, porque bastava-me a autorizadissima afflrmação do illustrado inspector de hygiene publica. Em todo o caso vi com os meus olhos e avaliei que a gravidade da situação era muito maior do que geralmente se pensava. Todos temiam, sem saber que havia razão para temer ainda mais. A nossa vida estava á mercê das circumstancias, e, si a Providencia Divina, para quem, antes do conselheiro José Bento, jà appellava o conselheiro Paulino de Souza em um dos seus relatórios, não nos acudisse com a chuva, que começando a 14 de março tornou-se copiosa do dia 17 em deante, teríamos testemunhado uma verdadeira hecatombe. Como o perigo passou, não ha inconveniente em revelal-o ; sim, ha vantagem de provocar medidas em ordem a preservar a população de grandes males futuros. No relatorio de 1869 o Barão de Lavradio presagiava « grave compromettimento da saude publica, sobretuio si algum anno de secca prolongada se manifestar». Realizou-se o vaticínio do provecto hygienista, e o tributo pago á singular imprevidência não podia ter sido mais cruel. A' vista do occorrido, cabe perguntar : a epidemia malarica foi um producto eventual, unico, das condições meteorológicas e outras aqui reunidas o anno passado, ou tem raizes em annos anteriores ? V Os dous mais importantes trabalhos publicados aqui sobre o impaludismo, a saber : o Estudo clinico sobre as febres do Rio de Janeiro (segunda edição), do Barão de Torres Homem,de saudosa memória, e o de mais recente data A Malar ia e suas diversas moda- lidades clinicas, do illustrado professor de clinica Dr. Martins Costa, nada adeantam relativamente á existência de manifesta- ções palustres - superiores á acção da therapeutica. Nesses livros é bastante desenvolvida a parte relativa á febre perniciosa, e minuciosamente estudadas as varias e mysteriosas fôrmas do impaludismo agudo. Relativamente á necessidade de atacar com promptidão e energia os casos de accesso pernicioso e applicar com firmeza o sulfato de quinina, abundam em abalisados conselhos ; mas, pa- recendo-me que alôm das fôrmas descriptas um novo typo cli- nico de impaludismo se denunciara na ultima epidemia, recorri a dous autores antigos, que desenvolvidamente occuparam-se com as febres nesta cidade e aos relatórios da inspectoria de hygiene, para esclarecer-me sobre o privilegiado impaludismo e o tempo em que começou a influir na nossa constituição medica, tra- balho paciente, mas necessário, cujo resultado, que resumirei, considero instructivo ou, para melhor dizer, importantíssimo. No Ensaio sobre as febres, com observações ácerca da topogra- phia, clima e demais particularidades que influem no caracter das febres do Rio de Janeiro, publicado em Lisboa em 1809, o Dr. Mello Franco diz : « No Rio de Janeiro todas as febres, que tenho visto, trazem o caracter de abatimento. » 34 Admirava-lhe que : « predominando muito no Rio de Janeiro effluvios assim humanos, como pantanosos, não fossem frequen- tes as febres contagiosas, nominadamente a typhoidéa - attri- buindo o facto a uma particularidade desta cidade »: - a abun- dancia de electricidade da atmosphera. « De novembro até abril, diz elle, ha quasi infallivelmente uma ou mais trovoadas do meio-dia até para a noite, as quaes, si não descarregam na cidade, é nas suas vizinhanças. » Pelo que se passa aos nossos olhos, parece-me acceitavel a ex- plicação do Dr. Mello Franco: ainda o anno passado, alguns dias de trovoada successiva e chuva abundante applacaram subita- mente uma epidemia feroz, e este anno, graças á suavidade da estação, a trovoadas, não diarias, mas repetidas como nunca vi, e á copiosa chuva, isto é, ao banho da atmosphera e à lavagem do solo, atravessámos tranquil lamente o verão, quasi sempre tormentoso. Já o Dr. Sigaud notava (Du climat et des maladies du Brè- sil, 1844) mudança nas pyrexias - por não apresentarem a fórma francamente periódica por elle observada durante deze- nove annos, mas principalmente a das febres algidas e larvadas, tornando-se mais frequentes as perniciosas. Resumindo suas reflexões, dizia: « Le sulfate de quinine a con- tennant réussi dans le traitement des pyréxies aigues.» No relatorio de 1863 (3 de março) o Dr. Paula Cândido, refe- rindo-se ás febres infecciosas,tea\M& « que as medidas sanitarias tendentes a attenuar e remover esta peste das cidades, se referem ao ar, ás aguas, âs moradas, aos alimentos e aos hábitos ». No obituário de 1862 figuram 496 casos de differentes especies de febres, além da febre amarella. Em um relatorio do mesmo anno o Birão de Lavradio, presi- dente interino da junta de hygiene, pensa que tudo concorre « para provar que a maior parte da nossa população, que morre annualmente, é victima da tisica pulmonar, das lesões agudas ou chronicas do apparelho digestivo e das febres infecciosas ». Até aqui nada de extraordinário, a não ser a grande frequên- cia das febres palustres, aliás notadas sempre nos relatórios an- teriores, até pelos ministros, e a transformação incipiente allu- 35 dida pelo Dr. Sigaud no caracter das mesmas febres, explicada pelo augmento da população e a complexidade dos germens pa- thologicos, desde que ás emanações palustres se reuniam pro- ductos da fermentação do despejo no mar e nas valias que cortavam a cidade em varias direcções. Vejamos o que dahi em deante occorreu. No relatorio de 1867, depois de alludir ás febres intermittentes e remit tentes, regulares, ponderou o Barão de Lavradio que havia « outras com typos diíferentes em sua marcha, acompa- nhadas de pheno menos tão ano maios que difflcil era poder classi- flcal-as »; accrescentando : « Uma observação singular saltou aos olhos de muitos práticos, e vem a ser : que em diíferentes circumstancias em que os phenomenos de periodicidade eram ma- nifestos, e tornavam indispensável o emprego dos quinados, estes, applicados com vistas de prevenir novo accesso, não sô não conse- guiam o resultado esperado, como pareciam aggravar o mal.» No periodo immediato lê-se ainda : « Nos casos em que a mo- léstia resistiu aos preparados de quina, etc.» E' a primeira vez que se encontra denunciada - e em termos explícitos - a rebeldia das febres palustres á energica acção do seu especifico ; notando-se que a referencia foi aos successos pa- thologicos do anno de 1866, o primeiro em que funcoionaram todos os esgotos da cidade. Mera coincidência ou filiação, o facto é real. Prosigamos. Em 1868 observava o ex-presidente da junta que, tendo havido 402 obitos de febres infecciosas em 1866, elevaram-se a 697 no anno seguinte, isto é, mais 295, com a circumstancia de darem- se quatro e cinco fallecimentos por dia; dizendo de novo o Barão de Lavradio : « não foi, porém, isso o que mais digno de attenção houve; o que mais reparo causou aos práticos foram as anomalias, que se notaram na marcha da moléstia e em seus caracteres symptomatologicos, idênticos aos observados em 1866». São do mesmorelatorio as seguintese interessantes informações: « Nos casos mais graves, ou se manifestavam com symptomas typhoides ou perniciosas tão violentos, que os doentes succumbiam em poucos dias 1 36 « Como quer que seja, é indubitável que na generalidade dos factos foram elles mais graves e fataes do que em 1866, e mais frequentes os exemplos continuados da fallibilidade de acção dos agentes therapeuticos empregados para vencel-os, etc.» No relatorio de 1870 ainda mais impressionado se mostrava o Barão de Lavradio com a feição das moléstias infecciosas: as pneumonias já não eram francamente inflammatorias, como ha 20 annos ; outra era a face das indicações therapeuticas,« mórmente si se dava a coincidência com o estado da prostração das forças, apparentando a fôrma typhoide.» Referindo-se ainda ao novo caracter das moléstias infecciosas, dizia o zeloso funccionario : « a observação clinica demonstra que estados bem graves teem substituido àquelles de que fallei, diffl- cultando a apreciação dos factos e inutilisando o emprego dos anti-periodicos.» No relatorio de 1871 accusa apprehensões baseadas no incre- mento annual das febres infecciosas, apezar dos melhoramentos hygienicos realizados. Investigando as causas daquelle pheno- meno pathologico, filiava-o «â obstrucção dos canos de esgoto, resultando a infecção do ar quer do interior das habitações, quer do exterior, tendo sido necessário abril-os em vários pontos». No anno de 1870, tendo ascendido a 1.117 os obitos de febre amarella, os das febres infecciosas elevaram-se a 877. Em 1871 registrava o obituário 980 fallecimentos de febres intermittentes e remittentes. « Essa progressão desde 1866, apezar dos melhoramentos hygienicos, insistia o Barão de Lavradio, é contristadora e de- monstra que novas condições pathogenicas desfavoráveis actuam na producção dessas doenças, tanto mais quanto notáveis são os symptomas graves de que se revestem, e o numero de fôrma typhoide em relação ao que acontecia nos annos passados.» Em 1872, 813 obitos de febres remittentes e climatéricas ( re- latorio de 1873). O anno de 1873 foi, no pensar do illustre hygienista, um dos mais calamitosos depois de 1830: « Ha perto de tres annos que se notam profundas alterações no nosso estado sanitario... as febres endemicas reinam com uma frequência descommunal. A compa- 37 nhia City Improvements, com as constantes excavações para fazer as desobstrucções dos encanamentos, devidas á falta de agua e a alguns defeitos de construcção, contribuiu para augmentar as fcondições de insalubridade.» Nesse anno falleceram de febre amarella 3.467 pessoas, e de ebres remittentes e intermittentes 1.676. Em 1876, de febre amarella 2.192 » » » outras febres 818 » 1877 » febre amarella 3.476 » » » outras febres 1.044 No relatorio de 1880 vê-se que, grassando as febres remitten- tes e intermittentes com maior ou menor actividade, foram mais graves e frequentes as perniciosas, sobrelevando o numero de victimas ao de qualquer das outras : De febre amarella 748 obitos De outras febres 794 » Cumpre notar : gradativamente e em lugubrc crescendo che-' gamos flnalmente em 1879 às perniciosas, pela primeira vez des- tacadas do grupo das febres infecciosas, por ter o numero de victimas excedido o das outras febres! Com o relatorio de 1880 o Barão de Lavradio terminou a sua tarefa, demittindo-se da presidência da junta de hygiene, sem que em tempo algum aífrouxasse em denunciar a crescente insalu- bridade desta cidade, manifestando delicadeza de tacto e pene- tração de espirito no exame dos factos pathologicos durante o afanoso cyclo das elevadas funcções do seu cargo, sempre desem- penhadas com inteireza de caracter e probidade profissional. E' justiça a que tem incontestável direito o Barão de Lavradio, que, além de tudo, sacrificou fortuna, posição e clinica ao bem publico. Do Dr. Souza Costa é o relatorio de 1881, comprehendendo também o anno anterior» Em 1880 morreram : de febre amarena. * 1.433 pessoas de febres infecciosas... .. 941 » 38 Especialisada a mortalidade, figuram as febres perniciosas com 555 obitos, as typhoides com 178 e as palustres simples com 208. O armo de 1881 foi relativamente benigno ; pois bem : em- quanto a febre amarella, que hoje nos serve de critério do estado sanitario, fazia 212 victimas, elevava-se a 693 o numero ias de febres palustres de vários typose fôrmas. No primeiro trimestre de 1882, cujo estado sanitario o Dr. Souza Costa reputou satisfactorio, não houve um só fallecimento por febreamarella, dando, porém, 204 por febres diversas. Conforme consta do relatoriodo Dr. Freire em 1884, falleceram no anno anterior : - de febre amarella 1.336 pessoas, de febre perniciosa 600 pessoas, de febre typhoide 160 pessoas, e de outras febres 352. Só de febre perniciosa 600 pessoas ! Em 1884, conforme o relatorio do 1885, morreram de febre amarella 579 pessoas : de febre perniciosa 413 pessoas, de febre typhoide 154, de outras febres 144. Em 1885 (relatorio do Barão de Mamoré em 1886) houve : de febre amarella 374 obitos, de febre perniciosa 562 obitos, do febre typhoide 189 obitos, febres diversas 192. Delle é também o relatorio de 1887, que traz a seguinte relação mortuaria : anno precedente : febre amarella 1.015 casos, impaludismo 1.086 casos, febre typhoide 114. ' Neste relatorio não ha discriminação das fôrmas clinicas do impaludismo e por isso não se pôde fixar o numero das victimas de febre perniciosa. O do conselheiro Costa Pereira em 1888 menciona 915 casos fataes de impaludismo e75 de febre typhoide em 1887 ; quanto á 39 febre amarella e ás fôrmas de impaludismo não ha esclareci- mento algum. O de 1889, apresentado pelo actual inspectorde hygiene pu- blica, o Dr Rocha Faria, registra a seguinte mortalidade por pyrexias durante o anno anterior : Febres estivaes 35 » perniciosas 616 » remittentes palustres . 115 » typho-malaricas 71 » typhoide 95 Typho 9 Longa foi a jornada ; eis-nos, porém, chegados ao calamitoso anno de 1889. Deixando de parte a febre amarella, cujo apparecimento pouco impressiona a população, habituada como se acha a essa moléstia, que é quasi nossa concidadã, occupar-me-hei de preferencia com as que maior gravidade imprimiram á crise epidemica do anno passado : as mortes súbitas e os accessos perniciosos. Quem primeiro incluiu as mortes súbitas no nosso quadro pa- thologico e mortuário foi o Dr. Paula Cândido no seu relatorio de 1863, com a seguinte referencia : « Nos mezes de abril a setembro e neste alguns casos de morte súbita ou dentro em poucas horas por effeito das apoplexias e congestões violentas para o cerebro, como succede em taes mezes (é meu o grypho), appareceram nesta cidade, em consequência sem duvida das mudanças atmosphericas repentinas. » Posteriormente o B irão de Lavradio em mais de um relatorio referiu-se á especie; mas dahi em deante não se tratou mais disso, até que o anno passado veiu contribuir, em não pequena escala, para augmentar o terror da população. Em fins de fevereiro começaram os jornaes a chamar a attenção para os casos desusadamente frequentes de mortes súbitas, e dahi em deante, tomando-as por thema, passaram a indicar diariamente o numero de obitos. A 7 de março, O Paiz consignava 11 fallecimentos súbitos no dia anterior, e nos dias 8 o 10 sote em cada um. 40 A causa das mortes súbitas ficou sem solução satisfactoria, apezar dos pareceres emittidos por vários profissionaes para explical-a. Entre as hypotheses a insolação foi a que teve mais adeptos, entre os quaes o distincto Dr. Sodré, que sustentou-a conven- cidamente perante a sociedade de medicina e cirurgia. Em sua opinião as mortes súbitas foram casos de febre amarella fulminante ou na maior parte devidos á insolação; e para explicar os desta especie, apoiou-se nos congeneres na índia, descriptos pelos médicos inglezes. Invocar o accesso fulminante da febre amarella como causa das mortes súbitas, é inadmissível aqui, onde tal resultado nunca se observou, mesmo em epidemias mais graves do que a do anno passado ; é, permitta-se-me a franqueza, uma hypothese gratuita. Quanto ã insolação, parece-me inacceitavel como explicação, mesmo não se negando a influencia que as altas temperaturas possam ter exercido para aggravar a situação. Nos logares onde dá-se a insolação notam-se fôrmas e gráos differentes ; ha, é certo, casos de morte súbita, como se observou nos soldados expostos directamente ao calor solar na índia, e os denominados insolação dos ceifadores ; mas nem todos são fataes ou terminam do mesmo modo, não obstante a grande accumula- ção de calor no organismo em virtude da prolongada exposição ao sol ardente. Aqui passaram-se as cousas diversamente ; nem as pessoas fallecidas subitamente estiveram expostas do mesmo modo ã pro- longada acção solar, nem houve fôrmas e grãos do pretenso coup de chaleur : a morte foi sempre instantanea, impedindo auxilio. Accresce que entre os cavouqueiros da pedreira de S. Diogo, onde trabalhavam sob a temperatura de 44°, como verifiquei, não deu-se um só caso de morte súbita; em Nictheroy, onde o calor não podia ser inferior ao desta capital, nada houve que despertasse a attenção neste sentido. Finalmente, basta examinar o quadro das observações me- teorológicas, publicado na Revista do Observatório durallte a primeira quinzena de março, tempo em que deram-se os casos 41 de morte súbita, para deixar de attribuil-os á exclusiva acção da temperatura elevada. Eis o quadro ; Março --1889 Capital Santa Cruz Cuyabá 1 (maxima).. .. 31,4 30,8 34,4 2 » .. .. 29,0 29,2 36,0 3 » 19,8 33,0 38,5 4 » 32,2 37,4 36,9 5 » 33,2 35,7 33,5 6 » .. .. 33,6 36,2 35,9 7 » 33,0 38,2 33,4 8 » .. .. 33,0 35,0 35,0 9 » 33,3 37,8 36,7 10 34,2 38,2 35,9 11 » 31,9 33,9 31,8 12 » .. .. 31,0 36,0 31,9 13 » .... 34,8 36,8 33,1 14 » . • .. 30,2 36,0 27,0 15 » .. .. 36,0 35,8 33,4 Vê-se, pois, que houve morte súbita aqui, e singularmente uo interior da cidade, sendo a temperatura absolutamente infe- rior á de Santa Cruz e Cuyabá. Em uma publicação n'O Paiz e em communicação á Sociedade de Medicina e Cirurgia desta cidade e à Academia de Sciencias do Pariz, o operoso Dr. Freire mostrou o resultado de suas ex- periências sobre a natureza toxica do vapor da agua sus- pensa na atmosphera, que lhe permittiu descobrir « grande nu- mero de spóros redondos de 3 a 4 millesimos de millimetros, formando colonias, etc. « Taes pesquizas, accrescentao Dr. Freire, induziram-mo a suspeitar que a epidemia fosse devida a principio toxico espa- lhado na atmosphera, algum corpo pertencente á serie cyanica.» Do exposto vé-se que o notável investigador não chegou a resultado definitivo, appellando para ulteriores investigações, que Deus queira nunca se realizem por falta de occasião. 42 Não possuo a estatística dos obitos attribuidos aos accessos perniciosos durante o anno passado, mas é de crer que fos- sem numerosíssimos. De algumas notas, que tomei, vê-se que houve em março: Dia 6 de febre amarella 24 obitos, de perniciosa... .27 » 7 » » » 24 » » » 45 » 8 » » » 21 » » » 73 » 9 » » » 10 » » » 71 » 10 » » » 10 » » » 49 » 12 » » » 5 » » » 40 Cumpre observar que nos dous últimos dias não figura a morta- lidade por inteiro, mas a verificada até á noite. Em summa, para melhor avaliar o estado sanitario no pri- meiro trimestre do anno passado, transcrevo o seguinte tre- cho, publicado pelo Jornal do Commercio da 17 de março : « Do dia 1 de março a 15 do mesmo mez sepultaram-se nesta cidade 1.531 cadaveres, sendo casos de febre amarella 229 e de febres perniciosas 473 ! » Do que deixo dito infere-se : Io, que, a partir de 1840, mais ou menos, as febres infeccio- sas nesta cidade começaram a mudar de caracter; 2C, desde 1866, quando funccionaram todos os esgotos da cidade, começaram a zombar do quinino, mostrando-se superiores ou indifferentes à medicação ; 3o, a contar de 1879 a febre perniciosa abandonou a conge- nere companhia, como um ramo separado do tronco, tornou-se autonoma, constituindo um typo morbido á parte com direitos individuaes na classificação nosologica e no obituário. Goza, pois, tratamento á parte : chama-so accesso perni- cioso. Motivos de sobra tinha o Barão de Lavradio para impressio- nar-se com o augmento, a gravidade e as anomalias apresenta- dos aqui pelas febres infec?iosas, cm opposição ao trabalho reali- zado para melhorar as condições hygienicas da cidade, por- que, realmente, tanto mais ganhavam estas, quanto peioravam aquellas. 43 Verdadeiro disparate ou contrasenso hygienico : quanto mais se faz, menos se consegue. Seria de certo temeridade apresentar a Capital Federal como typo hygienico, porque, para lã chegar, muito ha que percor- rer ; mas é innegavel que bastante se ha trabalhado para me- Ihorar-lhe a salubridade, com vantagem não pequena a alguns respeitos. Temos hoje uma policia sanitaria como ha annos não havia ; os cortiços continuam, mas os peiores desappareceram, e os re- stantes são vigiados; os estábulos são em geral asseiados, e o serviço de limpeza das praias é regular. Onde está, pois, esse laboratorio infernal ? Nas nossas casas e quintaes em verdade pouco asseiados ? Nas ruas, vergonhosamente calçadas, cheias de depressões, mal varridas, mal limpas, atulhadas de matéria organica, sobretudo as percorridas pelos bonds ? Acredito que todas essas infracções de uma boa hygiene e al- guns outros inconvenientes contribuirão mais ou menos para entreter a fama de insalubridade desta cidade ; mas parece-me que tudo isso reunido não explica a marcha ascendente e sin- gularíssima gravidade dis pyrexias aqui reinantes, sobretudo da febre perniciosa. Por que ? Para melhor responder careço liquidar a seguinte preliminar: Que moléstia è este accesso pernicioso ? VI No Estudo chimico sobre as febres no Rio de Janeiro o Barão de Torres Homem, seguindo a opinião geral, considerou a febre remittente simples uma moléstia palustre, divergindo da simples intermittente apenas pelo typo da marcha : remissão em vez de intermittencia. A febre remittente simples, na opinião do autor, é moléstia benigna, terminando pela cura em poucos dias, sendo combatida a tempo. Depois das primeiras dóses de sulfato de quinina, accrescenta o Barão de Torres Homem, ou a febre cessa desde logo, sem mais accesso, ou o doente é acommettido de um ou dous paroxismos intermittentes antes de restabelecer-se » ; tal é a benignidade dessa especie mórbida. Assim a considera o Dr. Martins Costa no seu livro A Mataria, nos seguintes termos: < A febre remittente simples é de ordiná- rio benigna e geralmente dura de cinco a sete dias, podendo durar ainda menos, quando convenientemente combatida desde a invasão. » Ha, porém, outra febre, a remittente palustre typhoidèa. como preferia denominal-a o Barão de Torres Homem, menos benigna e mais duradoura, accrescentando « que a forma typhoide franca de que se reveste a pyrexia'e o elemento typhico que domina todo o quadro symptomatico levam-nos a crer que, além do mias- ma palustre, actua outra causa, que não pôde ser sinão o miasma de origem animal, que produz a verdadeira febre typhoide. Da acção combinada dos dous princípios morbigenicos origi- na-se a febre remittente-paludosa-typhoidéa. » A remittente typhoide, sendo benigna, cede ao sulfato de qui- nino ; de outro modo relucta: « No segundo caso, diz o Barão de Torres Homem, apezai* do uso methodico e prolongado deste me- 46 dicamento, apezar da energia com que é administrado, os accessos vão se approximando, a febre toma o caracter continuo, e de mais a mais accentuam-se os phenomenos que caracterisam a do- thinenteria. » Finalmente, a febre remittente typhoidéa nem sempre termina pela cura : o proprio autor cita cinco casos fataes em 58 doentes da sua clinica. O Dr. Martins Costa não adopta a mesma denominação e pre- fere a de febre typho-malarica, repugnando-lhe attribuil-a a um agente unico e indivisível (typho-malarico), conforme a hypo- these do Dr. Corre, agente que seria o producto binário de uma combinação chimica de dous agentes desconhecidos. Repellindo com razão essa hypothese, por gratuita, deixa o illustrado clinico de declarar si admitte a concepção etiologica, aliás plausível, do Dr. Torres Homem, consistente na presença do miasma palustre e do miasma animal no mesmo organismo, desenvolvendo-se ambos simultaneamente. « Da acção combinada dos dous princípios morbigenicos, diz este autor, origina-se a febre remittente typhoidéa. » Com a devida venia ponderarei ao Dr. Martins Costa que não me pareceram sufficientemente claras as suas idéas a semelhante respeito, porquanto sem íixal-as bem, acceitandoou não a «asso- ciação dos dous elementos estranhos » ou a sua combinação não chimica mas clinica, e sem motivar opinião relativamente á ver- dadeira etiologia, passou a considerar as duas especies de febre typho-malarica geralmente admittidas pelos clínicos - a compli- cada e a acompanhada de estado typhoide. Insistindo na explicação etiologica de uma enfermidade com- plexa, como é a febre typho-malarica, cabe-me ponderar que ou o estado typhoide complique ou acompanhe a febre remittente, neces. ariamente obedecerá a uma causa, que outra não póde ser além do elemento typhico, constituindo um estado primitivo ini- ciado com a febre remittente, cujo processo desde logo preside, e não um estado secundário resultante de alguma transformação ou degeneração qualquer. Ora, tornando-se indispensável a presença do elemento palus- tre para explicar o caracter remittente e o elemento typhico de- 47 terminativo do estado typhoide na especie em questão, ê de con- cluir que os dous elementos encontram-se no mesmo organismo ao lado um do outro, clinicam ente associados ou combinados, col- laborando ambos para o resultado pathologico denominado - febre typho-malar ica : porque, afinal, é preciso convir que essa febre nãoé a typhoide, visto como a sua marcha é mui diversa ; também não é a simples e geuuina palustre, porque prolonga-se mais do que esta e desobedece á applicação do sulfato de quinina ; mas sim um producto intermediário, participando de algumas qualidades de cada uma das duas especies, sem ser virtualmente uma delias. A associação do elemento palustre a outros principios mórbi- dos tem sido observada por clínicos de diversos paizes. Dutrouleau, no Traité des maladies des Europcens dans lespays chauds, occupando-se da pathologia da Guyanna, asdgnala as mesmas associações nos seguintes termos : « L'influence paludêenne se fait sentir dans presque toutes les maladies autres que les endemies et leur imprime quelques fois des caractéres qu'il faut s'attacher de connaitre accrescentando (pag. 28) que: « La fièvre typhoide acquiert parfois une grande gravite, et sa combinaison ave; la fièvre endèmique (a paludosa) lui imprime le plus souvent une physionomie et une marche par- ticulières. » Referindo-se às Antilhas, diz : « La complication typhoide des maladies endémiques graves, Vètat typhoide est, au contraire, asses fréquente et três bien constatèe. » Eu poderia citar mais opiniões de autores estrangeiros em apoio da associação, combinação ou enxerto do elemento typhico no palustre e vice-versa ; mas não o faço por me parecer escu- sado, limitando-me a accrescentar que em Petropolis, onde abun- dam os elementos palustre e typhico, são frequentes no verão os casos de febre typho-malarica. Discutindo na Sociedade de Medicina e Cirurgia a epidemia do anno passado, um dos mais distinctos clínicos desta capital, o Dr. Beniciode Abreu, disse que «de toaas as epidemias de 1850 para cá nenhuma teve uma formula tão anómala como a actual, em que houve alguma cousa de particular, que não deve correr 48 sómente por conta da febre amarella, assim como não pódecorrer sómente por conta do impaludismo, porquanto o sol abrazador, a consequente secca repelle a idéa exclusiva da infecção palustre: acredita que o esgoto deve ter uma influencia extraordinária na determinação das mortes ; também crê na permanência das febres palustres hybridas (o grypho é meu). Permitta-me ainda o erudito autor d'A Malaria que eu accrescente uma consideração, e vem a ser : que o seu livro e o do Barão de Torres Homem, tratando da individualidade nosolo- gica em questão, passam em silencio uma maneira ou modalidade clinica, que, si não for a mais frequente, não é de certo rara nesta cidade. Já observei algumas vezes a fórma clinica a que alludo e em uma das minhas fllhas, da qual foi assistente o meu distincto amigo Dr. Martins Costa. A moléstia começa sem differença alguma da febre remittente simples, não exigindo, pois, differente medicação : preparado convenientemente o tubo digestivo, emprega-se o sulfato de quinina e a febre não diminue, não sendo de estranhar que isso se dê nos dous ou tres primeiros dias ; insistindo nesta medicação e em alta dóse, como ha mister, observa o clinico com surpreza a estranha reluctancia do organismo : o quinino assim empregado produz os phenomenos physiologicos peculiares, e a febre remit- tente zomba e continúa indifferente ou superior á energia do medicamento. Semelhante rebeldia indica ao medico que o caso não ê de febre remittente simples, como a principio pareceu-lhe, mas de typho-malarica, decidindo o diagnostico, ou falta de outro sym- ptoma differencial, a duração ou antes a resistência da enfer- midade ao sal de quinina. Póde prolongar-se por muitos dias a febre: em um dos meus doentes durou dezenove dias, em minha fllha dezoito, como lem- brar-se-hao seu desvelado medico. Em nenhum destes casos sobreveiu symptoma algum typhoi- déo, quer intestinal quer na pelle, guardando o processo mor- bido de principio ao flm, com pequena alteração, o typo remit- tente, e resisti tenazmente ao quinino, que só deixou de ser 49 empregado pelo meu collega e por mim quando de todo cahiu a febre. Não houve seccura de lingua, meteorismo, diarrhéa, petechias, sudaminas ou phenomenos ataxico-adynamicos, salvo a fraqueza proveniente da longa duração de um processo profundamente perturbador dos actos nutritivos. No capitulo sobre a febre remittente typhoidéa do livro do Barão de Torres Homem e no do Dr. Martins Costa sobre a ina- laria nada encontrei relativamente á fórma clinica que descrevi, manifestada em casos observados por mim com apurada attenção. A caracteristica da manifestação palustre é a periodicidade, como a do estado typhoideo a continuiaade : si os respectivos elementos etiologicos actuam no mesmo organismo produzindo a febre typho-malarica, observa-se que cada um dos processos co-relativos mantém, quanto possível, ocaracter original, isto é : a remissão por parte de um, a insistência ou prorogação por parte de outro. Tres particularidades notáveis dimanam do exposto pelo Barão de Torres Homem e o Dr. Martins Costa em suas obras, essen- cialmente praticas: Ia, maior duração da febre typho-malarica do que na remit- tente simples ; 2a, certa gravidade no primeiro caso, até causar a morte ; 3a, resistência aos saes de quinina. Cumpre ponderar que, não provindo do elemento palustre semelhante resistência, por ser contra elle potentissimo o qui- nino, e até considerado como especifico, só póde sor explicada pelo elemento typhico, contra o qual é notoria a inefficacia deste agente therapeutico. A febre perniciosa, bem entendido, a conhecida em toda a parte sob essa denominação, não é um producto exclusivo das nossas condições hygienicas, uma creação nossa, hybrida, mas apparece commummente onde existem condições palustres, po- dendo matar em horas, em um accesso, em dous ou tres, rara vez excedendo este numero, o éa mais energica expressão ou 50 a manifestação mais grave, ultima, de impaludismo agudo ; mas, si o clinico acode a tempo manejando com firmeza o quinino, não se reproduz o ataque, ou então a intoxicação, profundamente attenuada, responde com um accesso brando, insignificante : oaccesso pernicioso está subjugado. Mude ella de fôrma, disfarce-se como puder, o resultado será sempre o mesmo. Das moléstias graves ou das agudas não ha uma só em que tanto aproveitem os recursos do clinico, como a febre perniciosa : por grave que seja, cede ao effeito energico do quinino, e a vida prestes a extinguir-se resurge sob a acção providencial do mais precioso agente da therapeutici. « Raras são as moléstias, diz o Barão de Torres Homem, que como esta ostentam o valor da medicina e a importância scienti- íica do medico. Sob a influencia de um accesso pernicioso um doente se acha hoje á borda da sepultura ; depois de ter tomado alt is dóses de quinino melhora rapidamente, e amanhã está salvo.» Sendo assim aqui e em toda a parte, como explicar tantos obi- tos que ha annos se dão nesta cidade, attribuidos á febre perni- ciosa ou a accesso pernicioso ? Acaso ganhando em pratica perdem em atilamento os nossos clínicos, de modo a só conhecerem a moléstia para mencional-a no attestado de obito ? Porventura ha tantos annos só importámos sulfato de quini- na falsificado e inerte ? Não sendo discutiveis estas duas hypotheses, só ha um meio de explicar a mortalidade aqui determinada pelo accesso pernicioso: é não ser elle simplesmente palustre. Que a moléstia é febre perniciosa, tudo o affirma : com aquella invasão, comaquelles symptomas e aquella marcha não se conhe- ce na clinica outra enfermidade. Haverá incerteza ou hesitação nos casos de terminação súbita ou ao primeiro accesso, mas nunca sendo dous ou tres accessos, o que a completa e caracterisa. Si zomba da therapeutica e é tão mortal, ê que interpõe-so algum outro elemento auxiliando-a na resistência o augmentan- do-lhe a gravidade já de si extraordinária. 51 Ora, o agente que a experiencia reconhece como apto para isso podendo ser absorvido pelo organismo igualmente com o palustre, desenvolver-se ao lado deste, escoral-o contra a acção do sulfato de quinina, e aggravar-lhe o processo morbido, é o typhico, não se conheceu lo outro nestas circumstancias; logo á sua associação ou combinação com o elemento palustre deve-se attribuir o fu- nesto resultado que tão cruelmente tem pesado sobre os habitan- tes desta cidade. A febre perniciosa simples está, pois, para a febre que denomi- narei typho-perniciosa, como a remittente simples para a typho- malarica. Nesta, e porque uma das partes componentes (a remit- tente simples ) é muito benigna, o processo typho-malarico, ape- zar de mais duradouro e grave, não é muito violento, não ataca profundamente as forças radicaes do organismo, dando-lhe por isso tempo de organizar os meios de acção e reacção para resis- tir á enfermidade. Não acontece o mesmo com a febre perniciosa, por ser de si moléstia gravíssima, determinando, como diz o Dr. Martins Costa, « brusca ruptura das synergias funccionaes », ou atacando profundissimamente as forças radicaes do organismo, que só se reergueriam por eíTeito do quinino ; mas, nulliíicado pela pre- sença do elemento typhico, toda resistência ó impossível, sendo certa a morte com mais ou menos promptidão conforme o grào da dupla intoxicação do organismo. Não affirmarei que todos os casos de morte súbita, que aqui houve o anno passado, obedeçam á mesma causa ; mas que em grande parte dependeram da corrupção da atmosphera é crença minha. Haverá symptomas differenciaes entre a febre typho-perniciosa e a perniciosa-palustre ? Não conheço nenhum : o processo é tão rápido que não dá tempo à manifestação de symptomas typhoidéos, que aliás tem occa- sião própria : o que notei e todos observaram, a julgar pelas pu- blicações e referencias feitas nas associações scientiflcas, foi que, sendo múltiplas as fôrmas clinicas da perniciosa palustre, a typho perniciosa manifestou-se sob uma unica fôrma-a ardente. Fosse apenas um accesso, fossem dous ou tres, era elevadís- simo o gráo thermometrico, principalmente no primeiro caso. 52 Em noticia relativa aos accessos perniciosos aqui reinantes disse LaSemaine Mèdicale de 24 de abril de 1889 ; Mais nous avons des bonnes raisons de croire que ces pretendues attaques pernicieuses ne sont autre chose que la fèvrc jaune á forme anormale. Puro engano, proprio de quem escreve de longe, e não tem pratica de lidar com a febre amarella, a qual tem, como as mo- léstias infecciosas, anomalias symptomaticas conhecidas em toda aparte, mas sem paridade alguma com osphenomenos aqui obser- vados o anno passado, ede quem ignora que as lamentáveis oc- currencias aqui havidas na ultima epidemia não constituem facto isolado, mas o prolongamento de um estado antigo, como demonstrei, estado aggravado denunciando o nosso habitual des- prezo pela hygiene publica, porque - diga-se francamente - até aqui o governo fazia espalhafato, agitava-se, perdia a cabeça nas crises epidemicas, e atirava-se aos braços das autoridades sanita- rias que, pela falta de execução de medidas radicaes, tantas vezes reclamadas, tornavam-se o ludibrio das epidemias ; passada a tempestade, o governo enjoava-se, aborrecia-se das impertinen- tes exigências hygienicas, por mais que o avisassem da necessi- dade de providenciar e do perigo da nossa situação hygienica. E' desnecessário indagar a origem do elemento palustre, um dos factores da febre typho-perniciosa, por saber-se que esta ci- dade assenta em grande parte sobre pantanos entulhados com terra impura, e que ainda os ha em vários pontos, concorrendo para mantel-os a humidade do sub-solo alastrado por perenne len- çol do agua pouco abaixo da superfície. Resta averiguar onde se elabora o factor-o elemento typhico -ou perguntar como o Dr. Freire na-Communicação dirigida a O Paiz, publicada a 16 de março...« Donde se origina esse prin- cipio ? Quanto a mim, diz elle, da decomposição dos detrictos or- ganizados, môrmente de natureza animal, tão abundantes nesta cidade, no interior das habitações, nas ruas, nas praças nas praias e sobretudo nos esgotos.» Referindo-me a algumas destas causas, comprometti-me a de- monstrar que reunidas não explicavam o péssimo estado hygie- 53 nico do anno passado : passo a fazol-o, examinando-as na ordem em que as collocou o distincto collega. Interior das habitações. - Ha com certeza casas pouco asseiadas, sobretudo tendo porão ; o bafio do ar impuro exhalado pelas aberturas de arejamento denuncia o desasseio e a impr evidenco dos moradores, que são os principaes prejudicados : os porões auxiliam de algum modo a insalubridade, não ha negál-o. O mesmo dá-se com os cortiços. Penso diversamente do conselheiro Nuno de Andrade, que os considera mais temidos do que temíveis, porque, constituindo ponto de partida da febre amarella, como por vezes terii acon- tecido, caracterisam más condições hygienicas ; mas, vigiados, como são, e visitados regularmente pelas autoridades sanitarias, prestam menor contingente á insalubridade. As más condições internas das casas e cortiços, apezar de prejudiciaes á hygiene publica, não explicam os phenomenos pathologicos do anno passado. Ruas.- Sim, ha nellas detrictos orgânicos ; são mal varridas, e occupando grande extensão incontestavelmente influirão sobre as condições sanitarias ; mas naquella occasião, seccos éomo se achavam, os detrictos não poderiam ter fermentado, tornaírdo-se por isso completamente innoxios. Os quintaes, aliás excluidos da relação do Dr. Freiíe, e a que já tive occasião de referir-me, são muitas vezes um deposito de immundicias, póde-se, porém, applicar-lhes o que em relação aos detrictos das ruas acabo de dizer. Em todo o caso, aqui não se pratica o mesmo que em Campinas onde lança-se diaria- mente, como observei, as aguas servidas e os restos de cozinha nos quintaes para o sustento dos corvos: no hotel onde estive reuniam-se pela manhã alguns desses animaes para o habittiál repasto. Alli ha, pois, renovação diaria de matéria organica e agua para entreter a humidade, determinando assim a reproducção de germens pathologicos. Aqui, em abono da verdade, tal não succede. Praças e praias.- As praças e praias não inspiram receio. Vejo-as limpas, e não posso atinar em que se baseou o Dr. Freire 54 para incluil-as entre as principaes causas da insalubridade desta cidade. Esgotos.- Quanto aos esgotos, só ha uma opinião manifestada uniformemente nas conversas particulares, na imprensa, nas discussões scientiíicas da Academia Nacional de Medicina, da Sociedade de Medicina e Cirurgia e nos dous congressos médicos e cirúrgicos aqui realizados. E' convicção geral que os esgotos não preenchem o fim, em virtude de defeitos insanáveis na mã qualidade do material da construcção, no modo de reparar os desarranjos, na insufflciencia dos collectores subsidiários e sua desproporção com a abundancia da matéria excrementicia ac- cumulada. Como já tive occasião de dizer, o Dr. Vieira Souto no exame que fez o anno passado nos esgotos e que a Gazeta de Noticias publicou « encontrou nas peiores condições o collector do Io dis- tricto - o que vae da praça da Constituição ao arsenal de marinha-; no collector geral, que acompanha a praia de Botafogo, havia estagnado liquido preto e infecto ; o collector da rua do Lavradio tinha o conteúdo estagnado, etc.» Visto isso, será necessário procurar outra causa para explicar o profundo envenenamento atmospherico durante o verão pas- sado ? Quem, passando mesmo em bond, não sentia o máo cheiro desprendido de um respiradouro á rua do Cattete e de outro á rua do Passeio ? Quem, transitando pelos passeios, não era incommodado pelas exhalações dos canos de communicação entre as latrinas e o collector subsidiário ? E as emanações dos outros respiradouros, ou antes exhala- douros ? E as que se desprendiam das latrinas para o interior das casas, e do solo, em virtude da capillaridade, para o ar que respirávamos ? Por occasião de discutir-se no ultimo Congresso Medico-Ci- rurgico a prophylaxia da febre amarella, o conselheiro Nuno de Andrade indicou a coincidência da diffusão da febre amarella entre nós à proporção que se vae estendendo pela cidade a rêde 55 dos esgotos, citando o bairro de Santa Therezacomo uma espeeie de Sanatorio para a população desta cidade antes de lá chegar a canalisação dos esgotos. Verdade é que a Tijuca, considerada também immune e até invocada pelo Dr. Paula Cândido como prova em contrario do contagio da febre amarella, perdeu essa regalia, não obstante a falta de esgotos. Vamos, porém, ao essencial. O conselheiro Nuno de Andrade, combatendo a lavagem dos esgotos com grande abundancia de agua, exprime-se nos seguintes termos: «A constituição dos tubos, tal qual é, frágil e inconsistente, não poderia resistir a um grande volume de agua ; isso daria em resultado o au- gmento da tensão e, conseguintemente, a inutilisação de todos os tubos, que estalariam em diversos pontos da cidade, vindo o seu conteúdo impregnar o sôlo, convertendo o Rio de Janeiro em uma cloaca. » « O orador verificou que è grande a quantidade de ratos que teem como habitação os canos de esgotos, onde existem buracos (o grypho è meu)e lacunas, pelas quaes transitam esses animaes.» Eis, em resumo, a descripção dos esgotos da capital dos Es- tados Unidos do Brazil feita em plena sessão da importantíssima Sociedade Medica, por uma das primeiras autoridades sanitarias ! Esburacados os tubos, não fallando nos outros defeitos apon- tados pelo illustre funccionario, como impedir a infiltração do solo, mesmo não havendo grande quantidade de agua em cir- culação nos canos de esgotos ? Demais, emquanto a prolongada falta de chuvas o a elevada temperatura esterilisavam completamente as substancias organi- zadas existentes na superfície do solo, difficultavam o regular funccionamento dos esgotos com a accumulação de matérias ani- maes, determinan lo a fermentação e exhalações em tamanha es- cala, que é incomprehensivel a sua neutralidade nas combina- ções etiologicas e operações mórbidas aqui effectuadas o anno passado. Eis porque afflrmei que, mesmo reunidos os outros fócos de in- salubridade que aqui existem, não explicariam os complexos es- tados pathologicos manifestados naquelle verão. 56 Que os esgotos nesta «idade constituíam o vehiculo da febre amarella, não affirmarei, por ignorar qual o terreno apropriado e o inhospito para a cultura do respectivo microbio, sem com- tudo negar-lhes intervenção no desenvolvimento e gravidade desta epidemia - como foco de infecção preexistente. Consideral-os neutros, sendo, como foram, enorme deposito de matéria animal em decomposição; divorcial-os das alterações dadas nas manifestações palustres successivamente aggravadas desde a iniciação daquelle serviço ; e deixar de consideral-os origem do factor typhico, que de combinação com o palustre produziram o estado morbido complexo que, sob a denominação de accesso pernicioso, tantas victimas fez na calamitosa quadra epidemica do anno passado, chegando a exceder o numero dos da própria febre amarella, é o que não poderia fazer porque equivaleria considerar puro o que é notoriamente impuro, phan- tasiar fócos de infecção typhica em outros pontos, havendo sob o solo e em nossa casa um tremendo fóco nos esgotos do Rio de Janeiro para envenenar a atmosphera. Febre perniciosa palustre não foi a que reinou epidemica- mente o anno passado; não podia sel-o : certamente foi uma febre de accessos, denunciando a presença do elemento vegetal, mas de accessos perniciosos complexos, em que figurava outro elemento- o typhico- profusamente derramado no ar que respirávamos, devendo-se attribuir a esse elemento a indiffe- rença ou superioridade da moléstia aos recursos therapeuticos, e a singular mortandade de outro modo inexplicável em uma cidade onde os clínicos conhecem as manifestações palustres e sabem manejar os meios ou o principal meio de combatel-as victoriosamente. Este accesso pernicioso não é, pois, o commum, o palustre; mas, em vista do exposto, o excepcional e actualmente priva- tivo desta cidade : o accesso typho-pernicioso. VII Causa estranheza que os governos transactos, testemunhando a insalubridade desta capital na manifestação intensiva e exten- siva das epidemias annuaes, repercutindo desfavoravelmente aos nossos créditos e interesses no estrangeiro em noticias proposi- taes ou não das nossas condições hygienicas, e informados do péssimo estado dos esgotos, constantemente denunciado pelas au- toridades sanitarias, se descuidassem por tanto tempo de mandar examinal-os rigorosamente para calcular-se a influencia deste poderoso elemento de saneamento sobre a salubridade publica. Custa a comprehender a indifferença, a imprevidência ou a irreflexão neste assumpto melindroso-a mortalidade publica- e de gravíssimas consequências economico-sociaes, salvo expli- cando a reproducção de tantos desacertos como o Dr. Hilário de Gouvêa no discurso que proferiu o anno passado, na sessão inau- gural do Congresso Medico-Cirurgico. Depois de descrever as patacoadas mais que reproduzidas a pro- posito das crises epidemicas, observou o illustrado presidente do Congresso que « os nossos governos de todos os partidos nunca tomaram a serio o saneamento do Rio de Janeiro, e muito menos do resto do império ». Sendo assim, como parece indubitável, faltando apenas quem o tivesse dito á queima-roupa, resalta o motivo por que succedem- se os annos, continuando os habitantes desta cidade a soffrer as consequências da falta de seriedade dos governos ante tanto damno, tantas afflicções, tantas mortes. Por aqui se arranjasse cada um como pudesse : serra acima estava Petropolis, refugio de alguns covardes e doce estação dos afortunados. 58 Aqui - agonia e luto ; lá - flores, festas, alegrias, como si fosse consolo soffrer o morrerão lado dos que riem-se. Discorrendo no Instituto Polytechnico Brazileiro, ha quatro annos, sobre o saneamento desta cidade, disse o Sr. Dr. Paula Freitas que « não podia deixar de insistir com a mais plena con- vicção na imperiosa necessidade de se realizarem, com maxima urgência, as obras completas de drenagem. « Custe oque custar, accrescentou o distincto engenheiro, é im- prescindivelcombater este formidável inimigo que corroe a nossa existência - a humidade, etc. » ; collocando em segundo plano os esgotos entro « as operações que não podem deixar de ser atten- didas, comquanto se reduzam a melhorar o que já existe ». Nos esgotos reconhece os seguintes defeitos : « Em primeiro logar, as galerias não só recebem as matérias fecaes das casas e os restos das cozinhas, como também as aguas das chuvas e as substancias que estas acarretam ; em segundo logar as galerias e principalmente os conductos ou ramificações não são totalmente estanques ; em terceiro logar, a lavagem ê muito incompleta, ou em certos casos inteiramente nulla ; e por fim a ventilação das galerias não é feita como urge.» Relativamente ao material da construcção, poroso e frágil, ao estado das juncturas, ás dimensões dos collectores subsidiários e outros defeitos que, a existirem, inutilisariam os esgotos, o Dr. Paula Freitas nada articulou. O conselheiro Dr. Nuno de Andrade, respondendo na 3a sessão do Congresso de Medicina e Cirurgia ao Dr. Manoel Victorino, que acreditava que o enxugo do solo melhoraria muito a cidade do Rio de Janeiro com relação á inalaria, ao passo que, sob o ponto de vista da febre amarella, em nada influiria, confessou-se « decidido enthusiasta do enxugo do solo por todos os processos razoaveis », accrescentando « ser de opinião que o solo conserva o germen pathologico, e que se deve procurar impedir a vida do microbio, tornando-o inhospito ». São, pois, duas opiniões, do Dr. Paula Freitas e conselheiro 59 Nuno, concordes na preferencia da drenagem a qualquer outro meio para o saneamento da cidade. Sem autoridade para emittir opinião sobre este difflcil proble- ma de hygiene publica, e ainda menos contestar os conceitos dos abalisados profissionaes, limito-me a perguntar: em que funda- ram esta aflirmativa tão categórica ? Prescindindo das ponderações do Dr. Paula Freitas, menos competente no assumpto, por ser engenheiro e não hygienista, desejaria saber quaes as indagações feitas pelo conselheiro Nuno de Andrade em ordem a'determinar o habitat do germen da febre amarella, e que factos o autorizam a attribuir á influencia tel- lurica as rotações epidemicas dessa enfermidade. Não será empyrismo propor deflnitivamente, como fez na ses- são do conselho superior de saude publica de 4 de fevereiro, a drenagem do solo, medida dispendiosissima, para o determinado fim de extinguir a febre amarella, sem a demonstração da sua indeclinável necessidade ? Na sessão do Congresso de Medicina e Cirurgia disse o conse- lheiro Nuno de Andrade « ser de opiniiío que o solo conserva o germen pathogenico ». Opinião ou hypothese ? Si opinião, em que a basêa ? Si hypothese, comoaffirma? Não é de estranhar a minha pergunta, aliás fundada na ex- periencia de bacteriologistas da melhor nota. O professor Flúgge, que não é de todo contrario ás idéas de Pettenkoffer, diz o seguinte : « La diffèrence essentielle, entre Vhypothèse et 1'opinion que nous devons avoir sur la biologie dei bacteriens pathogènes et sur leur altitude dans le sol, reside par consèquent dans le fait que nous ne trouvons dans la terre aucun facteur devant necessairement ( o autor grypha este adverbio ) agir sur les bacteries pour les rendre propres à provoquer une infe- cti on.» Em outro periodo diz :« Nous devons soumettre nos appréciations precedentes sur le dèveloppement des maladies infectieuses et espe. çialement celles relatives d l'influence que le sol exerce sur les ba- clèries pathogènes à la revision et d la critique.» 60 Sobre o mesmo assumpto pondera : « On peut seulement former des suppositions sur les rapports intimes qui peuvent exister entre le terrain et les maladies contagieuses.» Póde-se, pojs, presumir que o solo conserve o germen ; è mesmo crivei que assim o seja, mas certo não é. Concedendo-se, porém, que seja, quaes as razões para afflrmar a influencia do lençol subterrâneo sobre a evolução do germen ? Será com a theoria de Pettenkoffer ? Sem dizel-o com franqueza, limitou-se o conselheiro Nuno de Andrade a consideral-a « obscura nos detalhes » ; não sei si com razão, visto não parecer ser este o lado fraco, sim a falta de ex- plicação sufflciente das circumstancias epidemiologicas das duas moléstias que lhe deram origem: o cflolera e a febre typhoide. O mesmo professor Fliigge não concede-lhe fóros de theoria, limitando-a a simples hypothese, conforme vê-se da citação ha pouco feita e melhor ainda nestas palavras : « Quoi qu'il en soit, la manière de Jvoir de Pettenkoffer ne peut ètre considerèe que comme une hypothèse.» O professor Arnould, na primeira edição da sua obra de hygiene, concordando que a formula de Pettenkoffer exprime um facto geral e real, accrescenta que é inacceitavel comp unica e de appli- cação universal, repetindo este conceito na ultima edição. Com effeito, segundo alli diz o professor Arnould, a lei formu- lada por Pettenkoffer tem soffrido alterações que indicam a sua imperfeição e insufflciencia para explicar as circumstancias em que se desenvolveram epidemicamente as duas enfermidades. As oscillações do lençol subterrâneo, consideradas a principio como a condição mais importante para as manifestações epide- micas, já desmereceram aos olhos dos discípulos, segundo pondera Arnould, do proprio mestre, dando logar á theoria localista, em que o essencial é o estado do solo, além de outro requisito apre- sentado pelos mesmos discípulos - a igualdade das propriedades do solo . Estes retoques, como é obvio, enfraquecem a concepção de Pet- tenkoffer, reduzindo consideravelmente o valor que lhe attri- buiram alguns dos seus apologistas. Sem necessidade de ir tão longe pedir lições, observa-se que em 61 algumas capitaes de Estados com as mesmas condições topogra- phicas desta cidade, como o Recife, Fortaleza, S. Luiz do Ma- ranhão e Belém, isto é, pouco acima do nivel do mar que as margina em parte, assentadas igualmente em planícies de terreno poroso, cujo lençol subterrâneo e pouco profundo deve participar das mesmas oscillações, a febre amarella limita-se annualmente a casos isolados, como evidenciam os dados estatísticos colhidos por mim dos relatórios presidenciaes em um decennio, durante o qual houve nesta cidade gravíssimas epidemias. Eil-os: De 1879 a J889 : Recife - 36 casos e 18 obitos em 1880 ; 20 » em 1883 e alguns em 1889. Maranhão - 13 casos em 1887. Pará - Alguns casos no porto em 1880 e 34 obitos em 1888. Foi só o que houve. Phenomeno mais notável, que não tem merecido a devida im- portância, e aliás digno de estudo e reflexão, éa immunldade relativa do norte do Brazil em relação à febre amarella, sendo as condições hygienicas peiores do que aqui, e não havendo serviço de qualidade alguma adequado às epidemias e medidas quaren- tenarias contra a importação de germens que esta capital expede annualmente da sua bem provida sementeira. No Pará, por exemplo, muito deixa a desejar o serviço de es- gotos e da limpeza publica. « O asseio das ruas e praças, disse no relatorio de 1885 o illus- trado Dr. Carlos Augusto de Carvalho, é quasi nenhum. Si as chuvas lavam uma parte da cidade, a que está calçada, concorrem também para a decomposição do lixo que se agglomera nas ruas da parte da cidade ainda não melhorada.» O inspector de hygiene do Pará refere-se (relatorio do coronel Cardoso Júnior, em 1888) « ás péssimas condições hygienicas em que se acha a capital.» AHi, pois, onde reunem-se todas as condições reputadas pro- picias â evolução dos germens, deveria a febre amarella causa- grandes estragos annualmente. Calor e humidade, cortiços, falta de irrigação das ruas, des- 62 asseio das praças, casas e quintaes, lixo, mãos esgotos de matérias excrementicias, tudo, emflm, que é considerado capaz de pro- mover a evolução dos germens pathogenicos, prejudicando a sa- lubridade publica, accumula-se no Recife, Maranhão, Pará, e, mesmo assim, a febre amarella não firma domicilio alli. Aqui, onde tem-se trabalhadomais pela hygiene, é o contrario: succedem-se as epidemias, algumas gravíssimas dessa enfer- midade ! A conclusão é que attribuimos as crises epidemicas da febre amarella nesta capital a causas que não parecem verdadeiras, porque, existindo as mesmas talvez com maior intensidade em outras cidades e não faltando o germen da epidemia, esta não se desenvolve, ou si alguma vez isso se dá, não se reproduz, como aqui. Tratando-se de sanear esta capital, seria utilíssimo estudar a fundo o phenomeno para descobrir a causa, de modo a não cor- rer-se o risco de realizar infructiferamente medidas hygienícas onerosissimas para a extincção da febre amarella, poupando-nos o desgosto de mais um mallogro, como o dos esgotos e da empreza Gabrielli. Que causa será essa ? Entendo, como já disse, que o phenomeno a que alludo merece profunda investigação. A julgar per summa capita, parece influir para isso o melhor arejamento das cidades do litoral, graças á constância dos ventos aliseos e á brisa franca e fresca de todas as tardes e noites. Vem a proposito o seguinte trecho do boletim da sessão de 5 de fevereiro de 1878, publicado no Annuaire de la Sociètè de Mètèoro- logie de France: « A posição geographica da cidade do Recife preserva-a em grande parte da influencia das moléstias endé- micas . « Situada em uma ponta extrema do continente americano e copiosamente lavada pelos ventos aliseos, soffre a acção do miasma palustre apenas algumas horas da noite, quando sopra o terral. « A exposição benefica a correntes aereas, que não atravessam o continente, colloca a cidade em condições de salubridade verda- 63 deiramente notáveis, considerado o desasseio de certos bairros, a orientação irracional de algumas ruas e a proximidade de ex- tensos pantanos.» Si as condições da circulação aerea naquella cidade neutralizam ou minoram a influencia deleteria dos pantanos, é de concluir que se dê o mesmo em relação aos germens da febre amarella. Sendo assim, comprehende-se a importância das medidas a realizar para o maior arejamento das ruas e casas. E' uma in- vestigação que a prudência aconselha, e não deve ser desprezada por aquelles a quem incumbe zelar a salubridade publica e acon- selhar providencias efflcazes. Voltando á lei de Pettenkoífer, vem ao caso mencionar a cidade de Campinas, onde a febre amarella reproduziu-se este anno, independentemente de qualquer influencia do lençol tel- lurico, alli profundo. Aqui mesmo, depois de successivas epidemias dessa cruel mo- léstia, sobre o mesmo soloe apezar das osciIlações d'agua, houve, sem fallar no anno de 1854, que passou incólume, um intervallo de seis annos (1863-1869) : então poucos ou raros casos se deram. Não exprimirá isso que a lei de Pettenkoffer carece aqui de confirmação completa ? Sendo assim, parece temeridade fundar em base incerta uma opinião, para definitivamente aconselhar ou acceitar uma provi- dencia onerosissima como a da drenagem do solo desta cidade. Por emquanto penso como o Dr. Manoel Victorino que seme- lhante processo aproveitaria quanto á malaria, por ser notorio que o solo desta cidade é um enorme viveiro do germen mala- rico ; mas para a extincção da febre amarella não creio na utilidade da medida. Este flagello sõ desapparecerá com um systema completo de saneamento, cooperando para isso a população com o asseio das casas e quintaes. Não sendo possivel realizal-o, mude-se então a capital para local habitavel, poupando-nos os desastres que muito deporiam 64 contra a nossa sciencia e ainda mais contra o nosso critério, de realizar projectos sem attingir o fim principal. Quanto aos recursos accessorios congregados pelo inspector de hygiene, acredito que pouco aproveitarão no caso de epide- mia : sendo benigna nada adiantarão ; quando grave, creio, sem parecer-me ousadia afflrmal-o, que o seu effeito será problemá- tico, porque não conseguirão obstar-lhe o incremento, domar- lhe o impeto ou diminuir-lhe a intensidade, desde que contra nós se conspirarem os elementos meteorologicos. No ultimo verão deram bom resultado ; não chegou a haver epidemia de febre amarella. Isto faz-me lembrar o que em 1885 li no relatorio do conse- lheiro Franco de Sá. Referindo-se áfebreamarella, o ex-ministro observou que «o presidente da junta de hygiene julgava que o seu processo de inoculação de culturas attenuadas de microbios muito concorreu para evitar a propagação do mal no anno precedente ». Com effeito em seu relatorio disse o Dr. Freire o seguinte : « No concernente á febre amarella, crente, como estou, na im- munidade conferida pelo microbio attenuado desta moléstia, con- segui vaccinar com culturas grande numero de nacionaes e es- trangeiros, e tive o prazer de limitar em grande parte os estragos, como mostram os dados estatísticos ; e estou certo teria circumscripto inteiramente a moléstia, conforme tem acontecido este anno mesmo, si tivesse vaccinado um numero muito mais considerável de indivíduos.» As inoculações preventivas continuaram o anno passado, acom- panhadas até por uma commissão de distinctos profissionaes por parte da Sociedade de Medicina e Cirurgia, e o resultado foi o que todos sabem : formidável epidemia de febre amarella. O hospital de S. Sebastião, instituído por iniciativa do digno nspector de hygiene, pouco aproveitará como medida de isola- mento ; unico, afastado e collocado em um extremo da cidade, não evitará, além do mais, que continuem a ser tratados em domicilio outros doentes em maior ou menor numero, conforme a extensão da epidemia ; como hospital clinico não corresponderá ao seu flm, em virtude da localisação infeliz, e só á custa de 65 muitas vidas poderá alli permanecer, servindo de exemplo o que se deu no verão passado, em que, não grassando epidemicamente a febre amarei la e não podendo ser graves os casos sporadicos, attenta a pouca intensidade da infecção, os obitos attingiram em um dos mezes, segundo informações fidedignas, a 40 % dos casos com a circumstancia importantíssima de serem frequentemente atacados de lymphatite perniciosa e serias manifestações palustres os convalescentes de febre amarella, de modo que, si venciam a primitiva enfermidade, não escapavam da adquirida no hospital. Repito: efflcaz isolamento não haverá ; pensar o contrario, seria o mesmo que occultar o rosto com as mãos, pensando enco- brir todo o corpo. Ponderar-se-ha que as desinfecções farão o resto, mas infun- dadamente, porque a sua eflicacia depende de um pessoal nume- roso e habilitado, e é o que não temos. « A pratica das desinfecções, diz o professor Flugge, depende de nm pessoal dextro, cuja organização deve ser tão importante em cada cidade, como a dos proprios apparelhos da desinfecção.» Falta-nos um pessoal nestas condições, e por isso a desinfecção não inspirará confiança. Não careço indicar casas onde falleceram doentes de febre amarella e que não foram desinfectadas; asseguro, porém, que da rua de S. Clemente vieram o anno passado para a casa de saude de Nossa Senhora da Ajuda pessoas que haviam adoecido em casas pouco antes desinfectadas. LTm dia appareceu um desinfectador na mesma casa de saude, por ter encontrado no obituário o nome de um dos doentes alli recolhidos; e, ponderando-lhe o enfermeiro que a casa tinha bem organizado o serviço de desinfecção, replicou-lhe o desinfe- ctador: « isto è por formalidade ». Demais, si basta um só caso de moléstia infecto-contagiosa para contaminar uma localidade, qual o proveito das desinfe- cções, conhecidos aqui, como são, os subterfúgios empregados para frustral-as? Não é só isso ; faltas ainda mais graves se commettem durante as epidemias: na penúltima da febre amarella uma pessoa do meu conhecimento viu, no quintal de uma casa vizinha occupada 66 havia pouco tempo por uma familia desconhecida, uma criada despejar um vaso que trazia ; observando pouco depois o mesmo facto, e desconfiando da côr do conteúdo, perguntou si havia pessoa doente, respondendo-lhe a criada que a ama estava muito mal de febre amarella. Effectivamente poucas horas depois con- stava na vizinhança a morte da pessoa, cujos vomitos tinham sido despejados no quintal. Sei que as desinfecções são actualmente empregadas para mo- derar as epidemias e que aproveitarão em certas condições ; e por isso não são de desprezar os serviços do inspector de hygiene neste sentido ; noto, porém, que confia de mais na proficuidade deste meio sem attender ás circumstancias que podem invalidal-o, expondo-nos a novos desastres em épocas epidemicas. Prova desta confiança exaggerada encontra-se na recente cir- cular aos delegados de hygiene ordenando a desinfecção da casa, moveis, roupa, etc., dos fallecidos de tuberculose. Custa a crer que o digno inspector de hygiene confie devéras em semelhante recurso, e que dos meios de obstar o desenvolvi- mento desta enfermidade escolhesse o mais duvidoso, extempo- râneo e vexatorio. Ha mezes houve na Academia de Medicina de Pariz largo de- bate sobre a prophylaxia da tuberculose entre clínicos da maior nomeada, empenhados em prevenir a propagação deste mal, que lá, como aqui, causa annualmente considerável estrago. Quem acompanhou a discussão deveria ter notado o accordo das opiniões sobre a causa principal de transmissão da tuber- culose e do maior perigo a remover, que é o escarro do tuber- culoso. Afflrmou então o professor Cornil que não havia discordância relativamente à influencia do catarrho tuberculoso - reputado pelo professor Germain Sée e outros como o unico inimigo a combater . A commissão organizadora das instrucções prophylaticas con- tra a tuberculose e os eminentes clínicos que debateram a especie reconheceram que todo o trabalho preventivo deveria cifrar-se em evitar a deseccação do catarrho tuberculoso. 67 Eis o parecer afinal adoptado pela Academia de Medicina de Pariz na sessão de 28 de janeiro deste anno: « A tuberculose è unia affecção parasitaria e contagiosa. O microbio, agente do contagio, reside principalmente na ma- téria pulverisada resultante do escarro deseccado dos tisicos e do pús das ulceras tuberculosas. O meio seguro de evitar o contagio consiste em destruir com agua fervendo ou fogo o escarro e o pús antes da deseccação. Encontra-se também o parasita algumas vezes no leite das vaccas tuberculosas; é, pois, prudente usar de leite sómente de- pois de fervido, sobretudo para a alimentação das crianças. A academia pede a attenção das autoridades para o perigo causado pelos tuberculosos ás collectividades a cargo delias, como os lycêos, os quartéis, as grandes estações e officinas do Estado.» Em vista do exposto o que vale a desinfecção post mortem ? Ou o enfermo expectora em escarradeira com agua e por isso é inútil desinfectar por nada haver que esterilisar, ou escarra em qualquer logar, como quasi sempre acontece, e neste caso a desinfecção deverá começar desde o principio da expectoração, continuando durante a vida do doente, por mezes ou annos, o que seria irrealizável. As providencias decretadas pelo Dr. Rocha Faria são, pois, as menos importantes de todas. Do mesmo modo procedeu o rei de Nápoles em 1782, como re- fere o professor Germain Sêe em um dos discursos proferidos na Academia, sendo essas providencias também adoptadas em Por- tugal. O decreto respectivo ordenava, sob pena de desterro, galés e multa, a renovação do soalho dos aposentos, sendo também queimadas as portas e janellas e até a roupa dos doentes, etc. « No reino de Nápoles, diz o mesmo professor, foi o decreto executado rigorosamente até 1848. Qual a consequência ? Incal- culável mal e resultado negativo. Não houve medico napolitano ou portuguez que notasse diminuição na tisica. » Peza-me dizer principalmente a um funccionario tão bem in- tencionado como o inspector de hygiene: si as medidas prophy- lacticas continuarem a desenvolver-se neste tom, a hygiene 68 tornar-se-ha em pouco tempo uma verdadeira epidemia nesta capital. A íllustração e o critério do preclaro funccionario garantir- nos-hão, assim o creio, medidas menos vexatórias e mais uteis coútra a propagação da tuberculose. VIII Parece-nos inquestionável a influencia prejudicial dos esgotos nesta cidade sobre a salubridade publica, visto constituirem pelo seu estado um dos mais poderosos e temíveis fócos de envenena- mento atmospherico. Effectivamente a drenagem do solo muito diminuiria a humi- dade ; mas em. que aproveitaria aos esgotos continuando com a extravasação de líquidos pelo encanamento e mantendo a humi- dade sufflciente para fomentar as fermentações ? Parecerá que havendo abundancia de agua, o que felizmente não tardará^ conseguir-se-hia a lavagem regular dos encana- mentos e a remoção do perigo. Indubitavelmente assim succederia si o unico defeito fosse a insufficiencia de agua; mas, continuando os outros e também gra- ves, como poderá melhorar o serviço ? Para corrigir os máos esgotos, supprimindo destarte um pe- rigo perenne para a hygiene publica, sô ha um meio : tel-os bons. Palliativos ou remendos não resolvem a questão. Em assumpto tão importante a menor irregularidade deveria provocar providencias immediatas, sendo imperdoável qualquer hesitação em vista da probabilidade ou certeza que ha de graves defeitos. A revisão dos esgotos públicos é, pois, da maior urgência ; para isso deverá o Sr. ministro do interior começar nomeando proflssionaes da maior confiança e resolução, que a cavalleiro de condescendências ou hesitações eífectuem esse serviço. Exame rigoroso, completo... Depois de obtido o resultado, o digno ministro procederá con- forme a sua consciência e o dever. 70 Ao primeiro aspecto parecerão escusadas estas reflexões em vista da nova phase da questão, affecta como foi pelo digno mi- nistro do interior á intendência municipal, que actualmente, se- gundo consta, estuda os meios de realizal-a consoante ao interesse publico. Penso, porém, diversamente. l.° Para fixar um plano que melhor aproveite á saude publica, é imprescindivel conhecer precisamente o estado dos diversos serviços, cabendo o primeiro logar aos esgotos, como base de todos os outros. 2.° Para determinar a preferencia na execução consultando a importância e principalmente a urgência das medidas, visto tratar-se de um plano que só se ultimará com muito tempo de serviço, cumpre primeiro discriminar, para sem detença empre- hender as que tenderem a eliminar os elementos immediatamente nocivos á vida, caso em que se acham os máos esgotos. 3.° Si por qualquer circumstancia for ainda adiado o projecto de saneamento, prover-se-ha, ao menos, uma necessidade ur- gente, acautelando a vida dos habitantes da capital contra as graves moléstias infecciosas que os perseguem na estação cal- mosa, por meio, embora isoladamente, do melhoramento ou da re- novação dos esgotos públicos. Em falta do melhor, procure-se, ao menos, ter o necessário. Continuar o sacrifício de vidas só por não se poder effectuar a um tempo todo o trabalho para o saneamento completo, não me parece razoavel nem humanitário. Aos que tomarem-me por exaggerado, figurando a hypothese de adiamento, referirei um pequeno caso: O anno passado, no periodo ascensional da febre amarella, o conselheiro Ferreira Vianna, então ministro, convocou para 4 de fevereiro uma sessão do conselho superior de saude publica, e no discurso inaugural, declarou : « que a situação do governo era afflictiva, pezando-lhe dizer que entre nós tudo se fazia por explosão, nunca pela prevenção ; que, imprevidente por indole, era deplorável o estado do serviço sanitario ; no meio do clamor da população, era seu desejo fazer tudo que estivesse ao al- cance do governo ; que não pretendia sómente dar satisfação á 71 anciedade do momento, mas queria assegurar o futuro desta ca- pital com a adopção de medidas de caracter permanente », termi- nando por apresentar, entre as mais importantes, a drenagem. Os profissionaes Drs. Vieira Souto e Roxo não acharam o as- sumpto sufflcientemente elucidado, significando talvez que, em vista da gravidade da situação hygienica, não conviria a provi- dencia proposta (drenagem) como a primeira a realizar, e que a melhor seria não proceder de afogadilho, mórmente tratando-se de um serviço onerosissimo aos cofres públicos. O conselheiro Nuno de Andrade, usando da palavra, mostrou a excellencia do estudo do engenheiro Revy, cujos trabalhos con- siderou acima de todo elogio, pela perfeição e conhecimento exacto do sub-solo da cidade, terminando por estas palavras : « Si lhe fosse licito, diria até que deveriam ser adoptados sem hesitação. » O Dr. Rocha Faria, cedendo ao collega a precedencia em uma questão que mais de perto o affectava pela natureza do seu cargo, limitou-se a applaudir « os trabalhos do Sr. Revy, perfei- tamente orientados e exequíveis ». Cumpre notar que, sendo o assumpto de hygiene publica, nenhuma das duas autoridades sanitarias proferiu palavra sobre a preferencia e a indispensabilidade da medida, limitando-se ambas - o que parece singular - a demonstrar a dous profissio- naes - os Drs. Vieira Souto e Roxo - a excellencia de um tra- balho de engenharia. O conselheiro Ferreira Vianna rematou dizendo que « não lhe faltando firmeza para prevenir os males que affligem a população, estava disposto a assumir perante as camaras a responsabilidade dos actos que praticasse, e que, si o credito não fosse sufificiente, não hesitaria em pedir outro ». Convencionada ou votada a primazia e a urgência da medida, abriu-se immediatamente o credito, destinando-se á drenagem do sub-solo a quantia de 3.000:000$000. Depois de tanto açodamento era de esperar o começo das obras no dia seguinte. Pois não foi o que succedeu, apezar de nada faltar ; o resul- tado foi outro : ficou o ministro com o seu enthusiasmo ; ficaram 72 os dignos inspectores de hygiene publica com a sua convicção ; no erário publico devem estar os 3.000:000$ ; mas nem um palmo de terra revolveu-se para a drenagem superficial e muito menos para a profunda. Tudo como dantes,verificando-se mais uma vez o provérbios que - infallivel na vida sò a morte . Longe de mim applicar el cuento ás intenções do Sr. ministro do interior, de cuja sinceridade não tenho razão para duvidar. Referindo-o, quero apenas mostrar que impossível não é mai um adiamento das medidas liygienicas reclamadas para o sanea- mento desta cidade, e justificar com isso a minha proposta de re- visão dos esgotos, para evitar as scenas lutuosas do anno passado. Relativamente ao saneamento da capital, confesso-me adversa- rio das medidas parciaes. Faltando-nos em todos os ramos da hygiene um serviço efílcaz para a garantia da vida, é razoavel adoptar desde já e fazer executar um plano geral, harmonico, amplo, de medidas hy- gienicas, satisfazendo as urgências do presente e consultando os reclamos do futuro. A fazer-se o sacrifício, seja completo; antes para mais do que para menos; em pequeno estojo não cabe joia grande. Demais, o que hoje parecerá excessivo mesmo, póde amanhã ser mesquinho: tudo presagia o engrandecimento progressivo desta terra. Si abri excepção, propondo para quanto antes, e primeiro que tudo, a revisão dos esgotos, foi em attenção á urgente necessi- dade de poupar vidas, e considerando que sem a reforma deste serviço não haverá saneamento possível. Pôde-se arrazar morros, rasgar ruas, abrir avenidas, propor- cionar habitações convenientes ás classes operarias, arborisar a cidade, dar-lhe agua a desperdiçar, dotal-a com os mais modernos aperfeiçoamentos, fazel-a a mais bella cidade do mundo, etc., e não se romperá o circulo vicioso das más condições hygienicas, emquanto forem máos os esgotos. Não pretendendo discutir projectos de saneamento, animo-me a indicar, como indispensáveis no que se adoptar, a circulação das 73 aguas do canal do Mangue e a remoção dos actuaes cemitérios para local apropriado. Collocados no interior da cidade, constituem grande perigo para os viventes: seria requintada imprudência conserval-os. Dã-se aqui um facto digno de especial menção: nos logares pantanosos, em cujo caso esteve a principio esta cidade, começam os habitantes pagando pesadíssimo tributo de saude e vidas ; com o correr do tempo, com as edificações e mediante o auxilio da agricultura melhoram, como é sabido, as condições sanitarias, resultando allivio do tributo, até tornar-se suave ; aqui deu-se o contrario, em vez de melhorar, peiorámos : o tributo de vidas, apezar de periodico, continúa a ser onerosissimo, as epidemias succedem-se cada vez mais graves, denunciando circumstancias extraordinárias que nos desabonam o bom-senso, a previdência o os sentimentos humanitários. Do mesmo modo, mas em outros termos, pronuncia-se o Dr. Duclaux na obra Le Microbe et la Maladie, dizendo : « Evitemos comprovar e sentir a verdade desta definição cruel, que resume este livro : as moléstias epidemicas são a consequência da igno- rância e a punição da inércia dos povos e dos indivíduos.» Dê o illustre ministro do interior resolutamente o primeiro passo: quebre o encanto das medidas hygienicas e conseguirá abrandar quanto possível os rigores da morte supprimindo as causas que constituem esta capital um fóco quasi perenne de epi- demias e uma ameaça terrível de diffusão por todo o paiz. Será uma compensação tardia, mas, em qualquer tempo, jus- tíssima e humanitaria. Não creia, porém, o governo da Republica que, realizando o grande desideratwn do saneamento da cidade, tenha cumprido a sua missão quanto â hygiene publica. A' fé que não: por assignalado que seja o serviço prestado á população, constituindo-a em divida de inolvidável reconheci- mento, fica reservado ao patriotismo do governo da Republica outra missão tão elevada como essa, mas muito mais ampla, para garantia do futuro de nossa nacionalidade -: revigorar a Raça Brasileira, moral e physicamente abatida. DA (APITAI FEDERAL Em relação ao saneamento d'esta cidade não sor- prende que pouco divirjam os projectos até aqui apre- sentados, porque, não havendo serviço completo ou ramo que funccione satisfactoriamente, forçoso tem sido incor- porar-lhes todos os meios aconselhados em hygiene pu- blica. A começar pelas medidas geraes, fundamentaes, do saneamento de qualquer localidade até a ultima de hy- giene individual, póde-se sem exageração affirmar que está tudo por fazer, não havendo uma só que attinja cabalmente o fim, a que se destina. O abastecimento de agua defticientissimo; a rêde de esgotos subterrâneos imperfeita; a ventilação das ruas insuficiente; o calçamento máo; a irrigação apenas simulada ; a remoção e o destino do lixo péssimos; os cemitérios intra-muros; a arborisação descurada ; a der- rubada das mattas inexorável; a construcção das casas defeituosa; os porões infectos; as casas e quintaes des- asseiados ; tudo, emfim, incompleto, imperfeito, inade- quado, evidenciando a desidia do poder publico e o atraso da população. O documento mais triste e fiel do estado da hygiene publica nesta capital caracterisa-se no obituário durante o inverno e o verão ; sendo a estação benigna, branda a A. M. TOMO VIII 66 ANNAES DA temperatura,9s ruas eos encanamentos lavados pelas des- cargas pluviaes, a mortalidade reduz-se a uma porcenta- gem consoladora : a 12 de Novembro ( cumpre consignar o facto) o obituário registrou aqui 17 casos. Subindo a temperatura e principalmente havendo escassez de chuvas, tudo muda, faltando medidas hygie- nicas capazes de, pelo menos, minorar o desfavor do céo, o deleixo da salubridade publica, o menosprezo da vida de nossos semelhantes. A febre amarella, outras febres de vários typos, o accesso pernicioso sempre suspenso sobre as nossas cabe- ças ; tudo, emfim, que exprime poderosa elaboração de germens infectuosos, pathogenicos, no sólo polluto e em outros fócos, vergonhosos laboratorios de nossas fra- quezas e misérias, emerge e diffunde-se, pondo em relevo o indifferentismo, a imprevidência, a fria deshumani- dade. Não; nós não temos coração, ou temo-lo empeder- nido ! Não nos transportamos em pensamento ao interior de tantas familias victimadas successivelmente, inexora- velmente,e entregues á viuvez, á orphandadee á penúria. As epidemias se repetem em cadencia prevista, temos certeza de que de tres em tres verões haverá epi- demia devastadora, o que não significa que sejam saudá- veis os verões intermédios, e apezar disso vivemos im perturbáveis ante as scenas de desespero e luto. Da permanência da febre amarella durante tantos annos-quantos males para o nosso paiz ! Daqui os germens têm-se irradiado para outros Estados reproduzindo a epidemia; ultrapassando o litto- ral, invadiram o interior onde já constituiram focos parciaes, como no Rio de Janeiro, Minas e S. Paulo, que por bastantes annos resistiram, mas por ultimo cederam 67 ACADEMIA DE MEDICINA ás repetidas contaminações resultantes das relações com esta capital e a cidade de Santos. Apezar do nosso clima não ser classificado entre os mais salubres, a não ser a febre amarella, não se crearia, nem se manteria a fama de insalubridade, con- ferida no estrangeiro ao Brazil. Finalmente, das successivas epidemias tem-se feito arma de descrédito a nosso respeito. Entretanto, donde provém a culpa ? Dos argentinos, explorando as más condições hy- gienicas desta capital em beneficio do incremento de seu paiz, não nos devemos queixar, porque a exploração, que tanto nos revolta, assenta em facto real. Culpados somos nós que, em vez de nos indi- gnarmos contra o procedimento dos nossos bons risinhos e leaes amigos, deveríamos inutilizar-lhes a arma nas mãos, preoccupando-nos seriamente da situação hygie- nica da cidade, e não continuar a tirar da insalubridade publica e das crises epidemicas pretexto para favores individuaes, em detrimento do nosso credito, e do bem estar dos estrangeiros que nos procuram, assim como dos nossos compatriotas. / Procedendo acertadamente, firmaríamos perante as nações civilisadas a nossa capacidade para realizar me- didas de vulto, e a comprehensão dos deveres patrióticos e humanitários. Menos espalhafato e mais obras : menos queixumes e mais acções, deveria ser a nossa divisa. Se procedessemos com mais reflexão e firmeza, con- penetrados de ser a hygiene a maior collaboradora da ci- vilisação de um povo e o seu melhor guia, não andariamos ás apalpadellas, á mercê dos acontecimentos e das justas censuras derivadas da nossa impassibilidade ante as 68 ANNAES DA scenas profundamente tristes, desoladoras, reproduzidas frequentemente n'esta capital. Nenhum povo de certo se acreditará perante o mundopor actos de debilidade e imprevidência. O nosso conceito dependerá, como é natural, dos nossos actos. Criteriosos, patrióticos e humanitários não pode- remos ser por mera condescendência de estranhos. Não podemos nem devemos esperar que julguem de nós melhor do que realmente somos. Da nossa situação hygienica não são sómente res- ponsáveis os governos que temos tido ; grande parte dessa responsabilidade cabe também á população pelo desasseio das casas e o deleixo da hygiene individual. Aos nossos ministros nunca fizeram móssa, peza me dizel-o, salvo honrosas e raras excepções, os males resul- tantes da notoria insalubridade do Rio de Janeiro. Por milagre parece que vai realizar-se uma medida de grande alcance para enfraquecer os paroxismos epi- demicos da febre amarella: refiro-me á internação dos immigrantes. Na sessão desta Academia, celebrada a 21 de Maio do anno passado, um dos mais distinctos collegas, o Dr. Souza Lima, lendo a bnena-dlcha da reunião de hy- gienistas e engenheiros effectuada dois dias antes em uma das secretarias do governo, quando declarou que < talvez fosse tardia a deliberação da Academia em relação a medidas que se devem tomar sobre o sanea- mento da cidade-depois da ultima reunião de hygienis- tas e engenheiros », tentou ao menos salvar a internação dos immigrantes, unico meio de subtrahir combustível ao incêndio. Desde então o Dr. Souza Lima não cessou de br ter-se pela ideia até vel-a victoriosa, graças á autoridade ACADEMIA DE MEDICINA 69 e convicção com que sustentou-a na ultima sessão do Conselho superior de Hygíene o digno presidente desta Academia. Effectivamente, o ministrado interior já ordenou o desembarque dos immigrantes na Ilha Grande para serem internados por Sepitiba, evitando a contaminação neste porto e no de Santos. Seja-me, porém, permittido dizer que esta provi- dencia sensata se completaria se o digno ministro, indif- ferente á eloquência do interesse particular, se infor- masse de pessoas competentes e desinteressadas rela- tivamente ao trajecto mais favoravel á internação. 0 desacordo começa quando se trata de julgar da im- portância e precedencia das medidas a executar para o saneamento da capital. Entendem uns que de todas a mais importante e ur- gente é o enxugo do sólo. por estar a cidade assentada em terreno pantanoso, aterrado com matéria polluta, ser pouco profundo o nível do lençol tellurico, além de suas oscillações alternantes, factores poderosos da repullu- lação dos germens que infeccionam a atmospliera na es- tação quente. Sanear o sólo. considerado receptaculo e laboratorio das producções microbianas, eis, no seu pensar, a condi- cional do restabelecimento da salubridade publica. Opinam outros que, funccionando sob os nossos pês uma rêde de tubos imperfeitos por onde o mephitismo se distribue na atmosphera das ruas e no interior dos domi- cílios.não haverá saneamento possível sem a conveniente 70 ANNAES DA reparação ou substituição do encanamento, admit. tindo com Fraycinet que « emquanto fôr incompleto (e ainda peior-imperfeito) o serviço do esgoto, sel-o-ha igualmente o saneamento, não ficando a questão resol- vida, mas simplesmente adiada. » Para a elucidação do assumpto, que é importantis- simo, principiarei pela opinião do primeiro grupo. Vivemos sobre um pantano abafado, ponderam os sectários do enxugo do sólo ; o aterro com que foi con- struido o sólo da cidade era lixo, abundante em matérias vegetaes e animaes ; além disso, sendo o nivel da cidade pouco superior ao do mar, é pouco profundo o lençol da agua subterrâneo, prestando, nas suas oscillações, ás ma- térias impuras um dos elementos de desaggregação, e aos germens pathogenicos, abundantíssimos no sub-solo, um dos factores essenciaes á reproducção-a humidade. Dahi o cortejo das modalidades do paludismo e das epidemias estivaes da febre amarella. Passo a examinar um por um os fundamentos da al- ludida opinião. O primeiro é o pantano abafado. A semelhante respeito disse o Sr. Revy no relatorio de 28 de Julho de 1887 : « Suppõe-se geralmente que a cidade está edificada sobre um pantano e que a super- ficie deste pantano foi gradualmente elevada pelo de- posito de terra de entulho até o nivel actual das ruas. Se esta hypothese é verdadeira quanto a certos pontos da cidade situados na planície, não é, indubitavelmente, quanto a outros situados na mesma planície. » Infere-se, pois, que é exagerada a affirmativa de estar a cidade edificada sobre um pantano. Demais, em toda a parte um dos recursos conecidos e empregados para extinguir o pantano é aterral-o ; aqui, em vista da allegação, succede o contrario; entulhados os ACADEMIA DE MEDICINA 71 sitios pantanosos, nada aproveitou, ao que parece, o aterro: o pantano continua... abafado. Outra providencia é impedir a estagnação das aguas; que não estão paradas sob os nossos pés, demonstrou o mesmo Sr. Revy do modo seguinte: « Por meio de extensas observações foi resolvida a importante questão que a agua subterrânea da cidade velha deriva seu supprimento dos morros adjacentes, e como collorario desta questão ca- pital recebem outras a sua solução, nomeadamente que a agua subterrânea não pôde estar parada. » Referindo-se a « correntes regulares no subsolo por dentro de uma camada permeável, as quaes possuem di- recção, forças e suas linhas de despejos para o mar», mostra em seguida que, com effeito « as aguas dividem-se no campo da Acclamação em duas correntes independentes e oppostas, descendo uma para o cães do Pharoux, o da Alfandega e o dos Mineiros, e a outra para o canal do Mangue. » Da constância, pois, das correntes aquosas que co- meçando nos morros acabam no mar, dever-se-hia antes concluir que as camadas do solo em contacto com as mesmas correntes seriam lavadas por ellas e assim ex- purgadas de matérias organicas putresciveis, - capazes de produzir o envenenamento palustre. Pois não é assim que as cousas se passam, segundo a alludida opinião, porque não obstante as incessantes correntes de agua subterrânea continua o pantano abafado. O segundo fundamento é : aterro com que foi con- struído o sólo compõe-se de lixo, abundante em matérias vegetaes e animaes. Apreciarei detidamente esta razão, a cada passo in- vocada, da insalubridade do sub-sólo da cidade. Não sei se a natureza formou algum corpo sem vida, 72 ANNAES DA desde a mais simples e rudimentar até a mais elevada e complexa. . # O animal vive, o vegetal vive, e o awmd (peço perdão da heresia) parece também viver. O pó que o vento levanta e espalha, cellula de um organismo vivo, naturalmente levará comsigo o principio da vida. O granito, por exemplo, enorme massa mineral, ap- parentemente inerte, não parece ser o resultado da casual superposição de camadas de substancias inorgânicas : aquella uniformidade da textura e côr, a cohesão e rigeza estão indicando que alli houve mais algum preparo, um trabalho de assimilação: ora. a assimilação é acto vital. A.' formação do granito, dir-me-hão, presidiram sim- plesmente affinidades chimicas. Seja assim ; o nome não muda a essencia; a assi- milação que se opera no interior dos nossos organismos, representando uma das partes do acto nutritivo, funda- mental da vida ou a própria vida-conforme a opinião de um hygienista distincto, o que é senão o resultado, como succede no granito, de affinidades chimicas? Outro exemplo, o crystal: haverá corpo mineral, a não ser o diamante ou o carvão de pedra, que melhor ex- prima a previa e escolhida combinação dos elementos constitutivos ? Alli houve por farça selecção, depuração, transfor- mações, longo preparo de assimilação. O pó de que é formado é por sua natureza opaco, emquanto o crystal compõe-se de um tecido transparente, limpido. Póde-se, em consciência, negar intelligencia artistica a esse corpo mineral ? Quem seria capaz de formal-o tão perfeitamente como elle a si proprio se formou? A limpidez, os prismas, a ACADEMIA DE MEDICINA 73 perfeitíssima lisura, pódem ser obra do acaso ? Simples aggregação, automatica, de partículas inorgânicas? Não póde ser. No crystal é evidente o resultado da assimilação, acto vital. Seja como fôr, á terra é que não se póde negar a faculdade de viver. Se os corpos inorgânicos não gosam de vida alguma, de um viver a seu modo, é forçoso reconhecer que a terra representa a transição entre aquelles e os corpos orgâ- nicos . A Urra, com eífeito, vive : ella respira, e, á nossa imitação, aspira o ar e exhala acido carbonico ; apode- rando-se do oxygenio e pondo-o em contacto com as sub- stancias organicas, oxida-as, como dá-se no interior do organismo humano, de modo a realisar, tal como nós. o duplo acto da assimilação e desassimilação. Nem o homem, que representa o mais elevado grão da perfeição da vida, adquiriria a faculdade vital, se ema- nasse de um corpo morto, porque só a vida reproduz a vida. Berço da vida, a terra é igualmente o fim da morte. Recebendo em seu seio o cadaver, a terra remata as operações a que então o submette, resuscitando-o nos elementos componentes, que ella restitue á vida: sob as camadas da terra, sob esse manto que occulta a podridão, a própria morte é provisória. Das incessantes operações eifectuadas na terra a oxydação das matérias organicas é uma das mais conhe- cidas ; decompondo-as, dando-lhes outra feição, outra fórma, restituindo-as á actividade natural, á circulação eterna da matéria, a terra se expurga ao mesmo tempo, se desinfecta, se purifica, produzindo-se o que Soyka qualifica de saneamento espontâneo da terra; por isso A. M. TOMO Vtll 74 ANNAES DA Arnould considera-o le grand et peut-être Vuniversel épu- rateur. Assim é por toda a parte, menos, ao que parece, aqui, a julgar pela opinião dos que carregam á conta da conta- minação do subsolo desta cidade os males que affligem a população : aqui o subsolo permanece inerte, parado, morto, e as matérias organicas estacionam eternamente, constituindo fóco perenne de elaborações attentatorias da salubridade publica. Assim, os corpos orgânicos que de envolta com o aterro entraram na formação do sólo da capital, ainda ahi estão e estarão para sempre. Relativamente ao estado ameaçador do subsolo vem a proposito citar o seguinte trecho do relatorio do Barão de Lavradio, apresentado ao governo em 1866: «Ninguém acreditará e entretanto é uma verdade o facto que vou referir, e vem a ser que a cidade do Rio de Janeiro não tem soffrido abalos profundos em seu estado sanitario, apezar do revolvimento de todas as ruas e praças pelas obras da nova companhia de esgotos, e das escavações profundas que se fizeram por toda a parte. Tantas circumstancias graves reunidas eram suffi cientes por dar origem a epidemias pestilenciaes mais ou menos graves; entretanto uma só não houve que viesse justificar os receios dos homens dascienciae da população sensata, que, vendo esses elementos de peste espalhados por toda a parte, conjecturavam a possibilidade de qual- quer epidemia infectuosa a todo o momento.» O facto exprime o estado do subsolo, cumprindo notar que o presidente da extincta Junta de Hygiene referia-se a uma occasião em que os aterros eram menos antigos : ha 26 annos passados. Então, do revolvimento do sub-sólo não resultou ACADEMIA DE MEDICINA 75 perigo para a salubridade publica apezar do lixo ; hoje se não se sanear o sólo, ai ! de todos nós. Chego ao ultimo fundamento da opinião dos que en- tendem que sem o saneamento do solo, de preferencia a tudo,estaremos perdidos : o lençol tellurico e as suas oscil- lações alternantes. Não careço recordar os argumentos ad terrorem pro- duzidos ultimamente para impor a drenagem profunda, nem as promessas ou a segui ança da extincção da febre amarella mediante o enxugo do sólo. Enthusiasta da medida, o Dr. José Felix, quando intendente de hygiene, elaborou sobre a conhecida pro- posta dos Drs. Hilário e Lima e Castro um parecer, que julgou conveniente instruir com a cópia do quadro apre- sentado per Soyka ao Congresso Internacional de Hygiene, reunido em Genebra em 1882, representando as curvas oscillatorias do lençol d'agua no sub-sólo de Munich. Ante aquelle quadro entendia o referido funccionario que todos pasmariam contemplando idênticos successos no sub-sólo desta capital. Passando-se as cousas por aquella forma em Munich, também se passariam na capital do Brazil ! Muito se tem dito e escripto relativamente á peri- gosa influencia exercida sobre a salubridade publica pelo lençol d'agua subterrâneo. Ainda ha pouco um dos médicos mais circumspectos desta cidade, o Dr. Aureliano Portugal, em um commu- nicado á Gazeta de Noticias de 9 de Novembro, pronun- ciou-se nos seguintes termos : « Baseado mesmo em factos aqui observados acceito inteiramente a theoria de Petten- kofer, e acredito que sem o saneamento do sólo pela drenagem, a terrivel moléstia (a febre amarella) não abandonará as nossas plagas. » 76 ANNAES BA Pena é que o provecto collega, cuja opinião robuste - cida pelos estudos demographicos tem grande peso, não. tornasse igualmente conhecidos os factos de sua obser- vação, porque ha outros que não parecem suffragar a theoria que o collega inteiramente acceita. Antes de proseguir, observarei que a theoria de Pet- tenkofer, que se pretende applicar ás condições do sub" solo desta cidade e ás occurrencias epidemicas, está pas- sando por modificações. O Dr. Arnould pondera a respeito que « os discípulos da escola Munich e o proprio mestre, na grande obra sobre L' état actuel dela question du cholera, tratam de modernisar a doutrina formulada ha mais de 30 annos, e de algum modo attenuar a expressão primitiva ; attenlendo-se menos ás oscillações do lençol tellurico e mais ás condições do sólo, entre as quaes figura um gráo pronunciado de humidade. » O mesmo autor accrescenta : «Apezardas concessões a etiologia do cholera, depois da descoberta do bacillo de Koch, rompe diariamente o circulo em que Pettenkofer o encerrava. Cada vez affirma-se mais a transmissão directa sem intermédio do sólo,pelo ar e principalmente pela agua.» Aqui, ao Contrario, os sectários dessa theoria man- tem-se dedicados á formula primitiva, mesmo sabendo-se que o germen dá febre amarella conserva-se e reproduz-se fóra da terra, no porão de um navio ou no interior dos domicílios, e que não ha necessidade de lençol tellurico superficial, nem de suas oscillações, para que se crie e se mantenha o fóco dessa epidemia ; servindo de exemplo o arrabalde de Santa Thereza, um dos logares mais fla- gelados nestes últimos annos pela febre amarella, e ainda no ultimo verão. Ainda assim continúa-se a sustentar que no sólo da cidade reside aquelle germen, e que as epidemias são o producto da elaboração do sub-sólo por força das oscillações do lençol d'agua subterrâneo. ACADEMIA DE MEDICINA 77 Um dos mais esforçados defensores do projecto Hi- lário e Lima Castro, em artigo publicado na Gazeta de Noticias, avançou a seguinte proposição : « Entretanto é do conhecimento banal dos clínicos, e mesmo da população desta capital que, logo depois de um ou dous dias de chuva, recrudesce a epidemia de intensidade. Que quer isso exprimir ? Claramente que a humidade favorece a producção e a disseminação desse quid. .. . Parece, pois, que é ahi no subsolo que devemos concentrar nossa at- tenção buscando no seu esconderijo o inimigo e inutili- sando-o. » Com isto pretendia o articulista assegurar que da subida d'agua com a chuva e da subsequente humidade das camadas do subsolo resultavam mais intensa infecção da atmosphera e parallela aggravação da epidemia. Semelhante afflrmativa, seja-me permittido dizer, nãoé exacta : o que a experiencia mostra é que a pouca chuva activa a epidemia, e que esta só abranda depois de profusa chuva e consequente refrigeração da atmosphera. Em apoio da minha opinião invocarei a experiencia de um dos clínicos que mais estudaram a febre amarella, o Barão de Torres Homem ; eis o que diz a semelhante respeito no livro - Estado clinico sobre as febres no Rio de Ja- neiro : « Se depois de dias muito quentes apparece uma pequena chuva insufficiente para baixar a temperatura, os casos de febre amarella augmentam de numero e os in- divíduos são atacados com mais violência. Se depois, de grande calor sobre vem chuvas torrenciaes, a febre ama- rella diminue sensivelmente de frequência e gravidade. » Estabelecidas as relações entre esses factos, que são communs, e o movimento do lençol tellurico, chega-se ao seguinte resultado : quando chove pouco e o lençol tellu- rico pouco se move, a febre amarella incrementa ; cho- vendo muito e sendo mais pronunciadas as alternativas 78 ANNAES DA da agua subterrânea, ao contrario do que succederia se nos fosse applicavel a tlieoria de Pettenkofer, a moléstia diminue sensivelmente de frequência e gravidade. Cumpre aprofundar este ponto, que é capital. A febre amarella é moléstia da estação quente, e para comprovai-o não careço citar autores ; carecerei, sim. para demonstrar que a elevada temperatura, alliada á sêcca, realisa a condição mais favoravel ás explosões epidemicas da enfermidade. Foi isso o que notou Dutrouleau nas Antilhas, le- vando-o a declarar que « é muitas vezes depois e durante uma grande sêcca que o flagello faz maiores estragos. » Facto idêntico afflrma Leon Collin quando diz que « a sêcca secunda a acção do calor : a epidemia de Cadiz em 1800 foi precedida de 3 mezes de sêcca excepcio- nal. » O Barão de Lavradio, attribuindo nos seus relatórios papel preponderante ao verão sêcco na aggravação da febre amarella, menciona a epidemia de 1850 « que foi precedida, diz elle, de profundas perturbações meteoro- lógicas predominando uma sêcca excessiva » . O Barão de Torres Homem também reconhecia a perigosa influencia da falta de chuvas no verão, recor- dando « as modificações desfavoráveis da hygiene da capital depois que desappareceram as trovoadas de todas as tardes aqui habituaes antes de 1850. » Assim, pois, não é chovendo regularmente no verão, isto é, quando após um ou mais dias de chuva em que o lençol d'agua forçosamente sobe, succedem 8, 10 ou 15 dias limpidos, em que o mesmo necessariamente desce, resultando as oscillações alternantes, que é mais doentio o verão e mais flagelladôra a febre amarella; ao con- trario, havendo sêcca, durante a qual menos varia de uivei o lençol tellurico, por manter-se no plano inferior, ACADEMIA DE MEDICINA 79 exagera-se a infecção, ostentando-se mais grave a febre amarella e declarando-se outras pyrexias. Esta interpretação está de completo accôrdo e é plena- mente confirmada pelas experiencias aqui realizadas pelo Sr. Revy, como passo a mostrar, recorrendo ao relatorio, já por mim citado, de 28 de Julho, no qual estão consi- gnadas as observações sobre o movimento do lençol tellu- rico nos seguintes termos: «Começando a chover, o liquido contido nos poços eleva-se simultaneamente e quasi immediatamente. Cessando a chuva, o mesmo liquido começa imme- diatamente a descer, sendo a descida lenta e continuando por dias e semanas.» Assim, nos verões em que ha chuvas, não diarias como outr'ora, mas regulares, com intervallo de poucos dias, o lençol tellurico descreverá repetidas oscillações, subindo immediatamente com as descargas d'agua plu- vial, e descendo immediatamente á medida da interrupção da chuva. Ora, os verões em que isso se dá, são os mais bené- ficos, os mais saudaveis, os mais felizes, para os habi- tantes desta capital. No actual verão o que observa-se? Um ou dous dias de chuva profusa seguidos de 10 ou 15 dias de sol, condições favorabilíssimas, a vigorar entre nós o prin- cipio de Pettenkofer, á reproducção de germens e á con- taminação da atmosphera ; graças, porém, á regular lava- gem da cidade e ao asseio dahi resultante, unicamente a isso, conserva-se ainda inerte o germen da febre ama- rella, porque os factores calor e humidade ou as oscilla- ções do lençol tellurico não têm faltado. A epidemia virá, não só porque o germen não se mostrou enfraquecido, conforme se infere da ultima crise epidemica, como principalmente por acharem-se na cidade 80 annaes DA pessoas nimiamente susceptiveis á influencia do mesmo germen. Estrangeiros continuam a vir e a ficar, e ainda ha poucos dias desembarcou bom numero de portuguezes não acclimados, o que agora não é de admirar considerado que o mesmo se tem dado em pleno paroxismo epidemico. Não fosse isso, houvesse máximo cuidado em isolar os primeiros enfermos e desinfectar os domicílios, e a febre amarella, do modo como vai correndo a estação, reduzir-se-hia este anuo a casos sporadicos, constituindo talvez o ponto de partida para a èxtincção do flagello nesta cidade, sustentadas seguidamente as mesmas pro- videncias durante alguns verões e realisadas outras de caracter geral. Tentaremos, mesmo assim, aproveitara opportuni- dade ? Deus o queira. Para maior confirmação do modo como encaro o assumpto, ouçamos ainda as observaçces do Sr. Revy quando, ao contrario, ha sêca, ou, para servir-me das suas próprias palavras, quando « no fim de uma sêca de algumas semanas, estabelecido o equilíbrio entre o sup- primento e a descarga, todos os poços descem á posição mais baixa. » Neste caso o resultado é bem diverso, conforme a seguinte descripção: « Já tive occasião de declarra, escreve o mesmo engenheiro, que as mencionadas linhas de contornos se referem a uma época em que a agua sub- terrânea desce quasi ao nivel mais baixo, o que succede depois de alguns dias de tempo enxuto. Estas linhas ndicam a posição dos uiveis, quando se estabelece o equi- líbrio entre o supprimento e a descarga, sendo esse tempo, (o grypho é meu) em que o nivel d'agua permanece mais ou menos estacionário dentro dos poços, mudando apenas alguns millimetros por dia. » ACADEMIA DE MEDICINA 81 Vé-se, pois, que não chovendo durante algumas se- manas, o nivel d'agua não varia no plano inferior que occupa, ou, conforme os termos do Sr. Revy, permanece mais ou menos estacionário dentro dos poços, mudando apenas alguns millimetros por dia; cessam, portapto, as oscillações, das quaes resultavam o supprimento da humi- dade do subsolo. Pois bem; quando tal succede, e o nivel d'agua não oscilla, e ao contrario estaciona na posição mais baixa, durante a sêcca, é que o verão torna-se doentio, como o de 1889 e o ultimo, desenvolvendo-se, não a febre ama- rella sómente, mas diversas entidades mórbidas de cará- cter profundamente infectuoso: febres remittentes bi- liosas, febre typhoide, febre-typho-malarica, e o celebre e ainda mal estudado e conhecido accesso pernicioso. Em summa, nos verões regados, em que necessaria- mente oscillará o lençol d'agua subterrâneo, a salubridade publica é menos compromettida; nos verões sêccos em que o nivel d'agua conserva-se quieto, não póde ser mais calamitosa a situação da capital. Os adeptos do enxugo do sólo invocam em seu favor o desapparecimento da febre amarella nesta cidade du- rante alguns annos, de 1862 a 1869, attribuindo-o ao assentamento dos canos da City Improvements e á se- quente fixação do nivel d'agua subterrâneo. O argumento é falso, como passo a mostrar. Depois de vários paroxismos epidemicos, a partir de 1850, o germen da febre amarella começou a enfraquecer, fazendo desde então pequeno numero de victimas. O conselheiro José Ildefonso de Souza Ramos ^Visconde de Jaguary), em seu relatorio de 1862, expri- mio-se a respeito nos seguintes termos: « A febre ama- rella, que já se considerava endemica neste porto, deixou A. M. TOMO VIII 82 ANNAES DA de manifestar-se no fim do verão de 1860 e até hoje não reappareceu. » Todavia o Dr. Paula Cândido menciona 247 victimas em 1861, numero aliás insufflciente para constituir epi- demia. Em 1862 houve apenas em Janeiro 1 caso, em Feve- reiro, 2; em Abril, 2; e mais nada ; e<m 1883 houve 5 obitos, sendo 3 em Janeiro, 1 em Fevereiro e 1 em Março. Desde então, isto é, desde 1861 ou mais rigorosa- mente 1862 póde-se considerar extincta a febre amarella epidemica, reduzida, como se vio, a menos de meia duzia de casos, desapparecendo completamente até 1869 quando reappareceu com a importação do novo germen. Ora, em Julho de 1862 começaram as escavações do sólo para o assentamento dos canos, terminando as obras em Fevereiro de 1864, quando começaram a funccionar os esgotos, não em toda a área da cidade, mas em um só districto, o 3". Vê-se, pois, que tres annos antes de começarem as escavações para os esgotos em um districto, era evidente o declínio da febre amarella, a tal ponto que no verão que precedeu o inicio das obras da city só houve 5 casos da enfermidade; não se podendo, portanto, attribnir o desapparecimento á causa posterior. Pelo contrario; com o mesmo lençol tellurico e suas oscillações, e o mesmo subsolo, ou peior por serem menos antigas as impurezas, o germen da febre amarella definhou e desappareceu, como vimos, ao cabo de 11 annos, apezar das profundas escavações (circumstancia valiosissima a assignalar) que se fizeram no sólo da cidade. Importado novamente o germen em 1869, não mais deixou-nos ha 23 annos, não obstante o beneficio que se presume ter resultado da fixação do nivel do lençol tellurico ACADEMIA DE MEDICINA 83 pelo encanamento da City Improvements, e do que se ha feito para melhorar a salubridade publica. Comparadas as condições hygienicas da capital du- rante os dous períodos de febre amarella, bem pesadas as circumstancias, verificar-se-ha que de mais só ha no segundo, o actual, em que o germen encontrou elementos de vitaliciedade e resistência, o serviço dos esgotos públicos. Attribuir ao sub>olo a conservação e reproducção do germen da febre amarella sempre pareceu-me idéa desacertada, attendendo ás condições topographicas e hygienicas das capitaes dos estados do Norte, nas quaes existe incontestavelmente o mesmo germen, e onde a febre amarella não assume a gravidade, nem reina desas- sombradamente como aqui. Para o nosso paiz não devemos procurar exemplos no estrangeiro; é forçar de mais a analogia attribuindo-se ao subsolo desta cidade, quanto á febre amarella, o papel do subsolo de Munich quanto á febre typhoide. Nem tanta imitação. Estudemos antes a nossa historia hygienica, obser- vemos attentamente o que se passa entre nós : assim marcharemos com mais critério e segurança, e maior pro- veito colheremos das lições da experiencia. Ha sem duvida proveito em saber o que dá-se no estrangeiro; a experiencia em qualquer parte é sempre o melhor conselheiro; cerrar, porém, os olhos ao que se passa entre nós,para só ver o occorrido em outros paizes, não parece sensato. O que observa-se no Brazil ? Ouçamos relativamente á especie a opinião insus- peita de um medico distinctissimo. « Em relação' ás províncias, ponderou o Dr. Ma- noel Victorino no 2o congresso de Medicina e Cirurgia, 84 ANNAES DA posso dizer que esta moléstia (a febre amarella), não existe em localidades que estão relativamente a condi- ções de asseio e condições hygienicas em muito peior situação que o Rio de Janeiro.Na capital da Bahia a febre amarella não é endemica. O mesmo se dá no Pará e em outras províncias do norte, ao passo que no Rio de Ja- neiro, apezar de todos os recursos empregados, a febre amarella continua a grassar e com ella outras epidemias». Em um dos artigos que publiquei em 1890 no Jornal do Commercio disse : « Phenomeno mais notável, que não tem merecido a devida importância e aliás digno de estudo e reflexão, é a immunidade relativa do norte do Brazil, sendo as condições hygienicas peiores do que aqui. Observa-se que em algumas capitaes dos Estados com as mesmas condições topographicas desta cidade, como o Recife, Fortaleza, S. Luiz do Maranhão e Belem, isto é, pouco acima do nivel do mar, assentadas igualmente em planícies de terreno poroso, cujo lençol tellurico pouco profundo deve participar das mesmas oscillações, a febie amarella limita-se annualmente a casos isolados ». Não nos illudamos: seja qual fôr o gráo de veraci- dade quanto á influencia do lençol d'agua de Municb sobre as epidemias de febre typhoide, não queiramos á fina força attribuir ao desta cidade igual participação e responsabilidade nas epidemias de febre amarella, porque se o mal realmente residisse no subsolo daqui, não ha- veria razão que isentasse o das capitaes dos Estados do norte, relativamente a este em peiores condições hy- gienicas . De mais, ainda hoje não está determinado qual seja o papel do subsolo na conservação e na reproducção dos germens pathogenicos. Na sessão do mesmo Congresso de Medicina e Ci- rurgia o digno presidente desta Academia, traduzindo a 85 ACADEMIA DE MEDICINA opinião própria e a de outros bactereologistas, manifestou que « o sólo não multiplica o germen ; só serve para con- serval-o, e apenas o propaga no sentido da disseminação ». O professor Arnould pronuncia-se do seguinte modo : « Accusar o sólo de multiplicar ou conservar com muita exactidão os germens pathogenicos é caminhar para uma hygiene desesperadora. Os germens difficilmente vivem á certa profundidade, recuperando ahi funcçÔes banaes, de nitrificação: em con- tacto com o lençol tellurico não ha germen de especie alguma. » Em vista disso, exclama o autor : Que de faits im- portants et rassurants / No Congresso Internacional de Hygiene, reunido em Pariz, em 1889, os Drs. G-rancher e Rochard, formu- lando a pergunta- Podem os germens pathogenicos viver no sólo, ahi multiplicar-se ou pelo menos conservar-se para novamente infeccionar o homem? -respondem assim: « Importantíssima é a solução do problema : comecemos confessando estar pouco adiantada a sciencia quanto á sorte dos germens pathogenicos incorporados ao sólo » . Nem de proposito: sob o titulo - «As aguas de esgoto de Pariz, - o Jornal do Commercio de 24 de Novembro ultimo occupa-se do projecto de lei passado na Gamara dos Deputados de França sobre o aproveitamento das matérias fecaes e aguas servidas, que de ora em diante deixam de ser lançadas ao Sena. O projecto foi defen- dido pelo Dr. Proust, de cujo discurso o Jornal deu alguns excerptos. Resumindo em tres condições a questão do sanea- mento das cidades - agua pura, expedição rapida dos detrictos da vida domestica e da industria, e restituição da fertilidade á terra, o Dr. Proust occupa-se do systema da «purificação pelo sólo», ponderando a respeito o 86 ANNAES DA seguinte: « Osystema de purificação pelo sólo,diz elle, dá resultados maravilhosos. Realisaram-se experiencias que consistiam em fazer passar os venenos atravez da areia; a 60 centímetros de profundidade já não se encontram vestígios do veneno». Depois de referir-se á luta travada entre os mi- cróbios saprogenicos e os pathogenicos, da qual resulta a victoria dos primeiros por serem mais fortes, accrescenta o Dr. Proust: «A terra que é o receptaculo dos mi- cróbios é também o cemiterio delles». Em vista do exposto, sustentar que a primeira me- dida reclamada pelo saneamento desta cidade é o enxugo do sólo, importa correr atraz de uma aventura ou prepa- rar mais um insuccesso. Duas causas têm concorrido poderosamente para a insalubridade publica : a edificação de casas mal arejadas, e ainda mais a derribada das mattas. Em uma cidade mal ventilada, como esta, dever-se- hia attender na construcção das casas á necessidade de arejal-as o melhor possivel. Nada ha que mais favoreça a reproducção dos ger- mens morbidos e concorra para a infecção dos organismos do que a quietação do ar : aqui, além do defficiente are- jamento, ha as aggravantes da accumulação dos morado- res e do desasseio dos domicílios. Nas capitaes dos Estados do norte, sendo peiores, como é notorio, as condições hygienicas do que aqui, tudo leva a crer que a febre amarella a pouco reduz-se graças ás correntes alisias impedindo a accumulação dos ger- mens da cruel enfermidade. Superabundam os elementos ACADEMIA DE MEDICINA 87 de reproducção ou cultura, mas a brisa constante dilue os germens e transporta-os para longe dos centros habi- tados. Não ha outra causa a que plausivelmente se attribua a immunidade dos nortistas ante a infecção amaril. Fosse conveniente o plano das casas aqui construídas, maxime as pequenas, no sentido do arejamento, e o ger- men da febre amarella não encontraria por esse lado elementos de concentração e vigor. Quanto a devastação das mattas é evidente, em vista dos factos, a cooperação para a insalubridade d'esta cidade, podendo-se mesmo affirmar ser essa a mais pode- rosa de todas as causas. Se attendessemos aos factos hygienicos aqui occor- ridos, a arvore seria para nós objecto de um culto: derribar uma arvore seria crime de lesa-humanidade. Emquanto permaneceu a basta vegetação que cir- cumdava e protegia a capital, não houve fóco de infecção que podesse vingar e contaminar os habitantes. Ineomparavelmente peiores do que agora eram as condições hygienicas naquelle tempo ; pois bem : nem ás valias a céo aberto e immundas, os despejos nas praias, o desasseio das praças, ruas, casas, o calor e a humidade, o lençol telhirico e suas alternativas, puderam superar a acção da lavagem da atmosphera e do sólo pelas chuvas diarias, attrahidas pela pujante vegetação da cidade. Tão notável era então a salubridade publica apezar das péssimas condições hygienicas da cidade que o Dr. Mello Franco, accentuando em 1809 o facto, não calou a sorpreza que lhe causava : « Predominando muito no Rio de Janeiro, disse elle, effluvios assim humanos como pantanosos, admira não fossem mais frequentes as febres contagiosas,nomeadamente a typhoide. De Novem- bro a Abril ha aqui infallivelmente uma ou duas trovoadas 88 annaes da do meio-dia para a noite, as quaes, se não descarregam na cidade, é nas suas visinhanças.» O autor explicava o phenomeno pela benefica influen- cia da electricidade. Quanto a vegetação ouçamos uma autoridade insus- peita : «Em parte alguma, diz o Dr. Julio Rochard no artigo Climat do Nouveau Dictionnaire, vi arvores tão bonitas, florestas tão imponentes, como nas immediações do Rio de Janeiro; no mundo não conheço cousa tão mages- tosa como aquella bahia, sobre cujas bordas estende-se a grande e bella cidade com a população maior de 300,000 habitantes » E' triste confessal-o: a maior parte da soberba vegetação que cobria os morros, bellas arvores de madei- ras preciosas. têm desapparecido a golpe de machado, reduzidas á lenha e carvão. As reclamações contra este vandalismo têm sido incessantes, já das autoridades sanitarias, já da imprensa diaria, já de particulares, mas tudo em pura perda, tudo em vão. Paula Cândido só faltou, permitta-se-me a expressão, pedir de joelhos que se sobrestasse a desvastação das mattas, e se restaurasse a vegetação dos morros visinhos. Neste sentido dirigio ao governo verdadeiras sup- plicas em nome dos mais caros interesses da população e do futuro da capital, demonstrando com a força do seu grande talento e da dedicação á causa publica a funcção providencial das arvores, a necessidade de sua conser- vação neste clima, e os perigos que resultariam do seu desapparecimento. Os ministros repetiam nos relatórios as reclamações de Paula Cândido, e nada mais faziam. ACADEMIA DE MEDICINA 89 « Por ora, e desgraçadamente, dizia elle no rela- tório de 1854, a mão do homem (referindo-se á derribada das mattas) se tem empenhado só, e estupidamente, em destruil-os (os princípios que enriquecem a terra). Se o governo não intervier para pôr termo a este escandalo, á esta prova vergonhosa do deleixo e ignorância dos prin- cípios mais triviaes dos conhecimentos uteis, a magestosa vegetação ha de desapparecer, as aguas hão de escassear, perder-se-hão talvez, e a maldição da posteridade nos aguardará inexorável ! Se nos vastos taboleiros, continha Paula Cândido, hoje inúteis fócos de febres intermittentes. se elevar vigorosa vegetação ; se a adopção de conveniente sys- tema agrícola reproduzir a fecundidade e a riqueza pelas aridas e inúteis planícies devastadas pela ignorância dos primeiros agricultores; o desequilíbrio da temperatura desapparecerá e com elle a regularidade dos ventos - terral e viração- ; por estes será a atmosphera da cidade lavada duas vezes por dia, e a salubridade primitiva do Rio de Janeiro, tomando-se as outras providencias, reapparecerá em todo o seu esplendor. O que ha de impossível, termina elle, o que ha de difficil que obste a estes melhoramentos ? » A resposta á interrogação com que o primeiro pre- sidente da extincta Junta de Hygiene fecha a sua huma- nitaria reclamação, foi o silencio, a maior indiíferença ! Reapparecerá a salubridade primitiva do Rio de Janeiro! disse o Dr. Paula Cândido. Mas, que somos nós, o que temos feito ? Emquanto nos outros paizes a tendencia humana é preparar o bem estar e, a prosperidade, principalmente combatendo os elementos de insalubridade, aqui succede o contrario : desapparece a salubridade primitiva ! O certo é que a devastação das mattas continha e A. M. TOMO VIII 90 ANNAES DA continuará, contribuindo para cada vez mais escassearem as chuvas, serem mais intensos os verões e mais insalubre tornar-se a capital. Grupos de italianos andam por essa baixada além negociando as mattas para derribai-as e convertel-as em combustível ; não ha dia em que os machados não tra- balhem, em que se interrompa a devastação. Quem conhece o alcance hygienico da funcção das arvores, principalmente no clima quente, póde prever o que será daqui a alguns annos o clima desta cidade quando os machados cansarem, ou não houver mais arvore a derribar. Enfraquecida como se acha a attracção das nuvens depois de rarefeita a vegetação da planície, o resultado é deterem-se as nuvens no cimo das serras circumvisinhas onde no verão continúa a chover quasi todas as tardes, emquanto o sol fustiga a baixada. Temos a chuva cahida das nuvens que, impellidas pelo vento, atravessam a atmosphera da cidade, ou quando é demasiada a rarefação do ar ; mas as abun- dantes chuvas de outro tempo, quando eram diarias ou quasi as trovoadas, derivadas da meteorologia local, ou antes attrahidas pela possante vegetação, essas desap- pareceram, e com ellas a notoria, a primitiva salubridade do Rio de Janeiro. Fosse possível restabelecel-a, e certamente a febre amarella desappareceria para sempre e com ella outras febres infectuosas, contra as quaes têm sido baldados todos os esforços das autoridades sanitarias. Exemplo do poder prophylatico das chuvas offerece ainda Petropolis, onde o germen da febre amarella não pôde vingar, apezar da communicação diaria com esta cidade, da nenhuma cautela e dos casos, como succedeu 91 ACADEMIA DE MEDICINA no ultimo verão, de febre amarella que lá manifestaram-se em pessoas aqui contaminadas. Não obstante essas provocações o germen não conse- guiu ainda reproduzir-se em Petropolis ; não ha, com eifeito, exemplo de ter a moléstia passado do doente a um habitante dalli. Nem a altitude, nem a temperatura, nem as medidas prophylaticas, quasi nullas, nem as condições hygienicas daquella cidade, as quaes ao contrario muito deixam a desejar, conferem a Petropolis aquella immunidade inque- brantável, absoluta ; a sua salvaguarda até aqui contra a infecção é a vegetação, cuja permanência é causa de não se ter alterado a meteorologia local, como desgraçada- mente alterou-se nesta cidade, depois da derribada das mattas. Não se acautele a Intendência protegendo por meio de medidas adequadas e rigorosas a magnifica vegetação que protege aquella parte da serra, e Petropolis será tão victímada pela febre amarella, quanto tem sido a capital doBrazil. Para melhorar a ventilação da cidade e o arejamento das casas seria preciso um poder quasi sobrehumano; não ha Haussemanns brazileiros; quando muito se concede o alargamento de alguma rua sem conformidade a um plano geral de transformação racional e proveitosa, para satis- fazer o interesse ou a cobiça particular. Pensar em arborisar a cidade, recompor a vegetação dos morros visinhos, e impedir a derribada das mattas, é utopia ou loucura. Faltam-nos homens capazes dessa comprehensão e desse esforço: o descortino desse horisonte não parece ser para a geração actual. Nós, brazileiros, somos impacientes e egoistas ; inca- pazes por nossa soffreguidão de iniciar melhoramento que 92 ANNAES DA só produza resultado ao cabo de alguns annos, nosso ideal é o applauso immediato dos coevos ; não pensamos em tra- balhar para os vindouros, em emprehender melhoramento que não possamos gozar. A não ser assim, quem vier que se conforme com as circumstancias. Subsistindo, pois, essas poderosas causas de insalu- bridade, só ha a appellar para a policia sanitaria e outras medidas prophylaticas aconselhadas pela sciencia. A' proporção que perdemos os recursos naturaes, cresce a necessidade da execução de meios artificiaes. Felizmente já se vai organisando entre nós a policia sanitaria e vencendo os preconceitos populares : alguns delegados da Inspectoria de Hygiene Publica desempe- nham-se louvavelmente dos penosos deveres profissionaes procedendo á rigorosa tiscalisação em tudo quanto inte- ressa á hygiene publica. Por esse lado ha muito a fazer, e longe eu iria se tivesse de entrar em detalhes. As medidas prophylaticas resumem-se na rigorosa desinfecção do domicilio onde se der caso de moléstia transmissivel e principalmente na vigilância para desco- brir e isolar os primeiros casos. Remover affectados de febre amarella para o hospital de isolamento quando o obituário registra alguns casos diariamente, póde ser o que quizerem, menos medida pro- phylatica contra o desenvolvimento da epidemia. Concluindo esta parte, direi que para a extincção da febre amarella aqui endemica, nas actuaes circumstancias concorrerão poderosamente a internação dos immigrantes, se fôr tomada a serio, a policia sanitaria e as medidas prophylaticas que referi. 93 ACADEMIA DE MEDICINA Além da febre amarella reinam aqui duas moléstias que merecem-nos a mais seria attenção : a tuberculose e a febre perniciosa. Da primeira não occupar-me-hei, visto figurarem na ordem do dia nesta Academia a prophylaxia e o trata- mento dessa enfermidade, a que succumbem annualmente na capital para cima de duas mil pessoas. Resta-me elucidar a questão do accesso pernicioso, que, começando sorrateiramente, corre parelhas com a febre amarella, com a differença de que aquelle, depois de assumir as proporções de moléstia epidemica durante o verão, continúa a ameaçar mesmo durante o inverno a nossa vida : não ha, com effeito, obituário que não registre um ou mais casos de febre ou accesso pernicioso. Agora mesmo, sendo raros os casos de febre ama- rella, observa-se que vão augmentando os de febre per- niciosa. O que é.afinal a febre perniciosa aqui reinante? E' de origem palustre, como a de outras localidades ? Impossível. A febre perniciosa vulgar, geralmente conhecida, representa o grão mais agudo da intoxicação palustre nos logares onde ha fócos de paludismo, e a menor resis- tência organica. Ahi, sendo forçosamente variaveis as modalidades palustres, observam-se casos correspon- dentes a intoxicação intermédia, estabelecendo-se uma proporção entre estes e o accesso pernicioso. A este respeito o Dr. Bard, na obra-Des accidents pemicieux d'origine palustre, pondera que os autores são accordes em reconhecer que quanto mais proximo das regiões tropicaes tanto mais frequentes são os accessos perniciosos, acrescentando que « emquanto Collin, du- rante a occupação de Roma, e os médicos militares, na Algeria, observavam no exercito francez um caso de 94 ANNAES DA febre perniciosa por 20 ou 25 de intermittentes simples, mais considerável era a proporção na Conchinchina, assignalando os médicos da marinha ingleza um obito em 14 casos de febre em Bengala, 1 em 8 na Jamaica, e 1 em 2 nas estações da costa Occidental da África ». Aqui, na capital do Brazil, não exagerarei dizendo que não ha porcentagem alguma, nem mesmo a admittida nas estações da costa Occidental da África, entre os casos de febre perniciosa e os de intermittentes simples, porque estes quasi desappareceram, imperando só aquelles no quadro pathologico. A simples quotidiana, a palustre terçã, dupla terçã, etc., já nenhum clinico verifica nos enfermos con- fiados aos seus cuidados na área urbana da capital. O paludismo está falsificado, como tudo mais: a simples, a genuina, a classica intermittente desappa- receu de todo, cedendo o logar a uma entidade mórbida, peculiar á pathologia do Rio de Janeiro, porque só aqui encontra-se « a malaria, sob caracter epidemico, reves- tindo-se de gravíssima violência no modo brutal com que agora acommette indistinctamente a população, e mos- trando-se no maior numero dos casos superior ou indif- ferente aos recursos therapeuticos », conforme expri- mio-se o Dr. Rocha Faria, em 1889, quando exercia o logar de Inspector de hygiene publica. Haverá quem dê noticia de malaria igual em outros paizes, por intensos que sejam os focos do palu- dismo ? Por mim confesso : não conheço cousa que com isto se pareça. Digo-o com a pratica adquirida, por ter durante alguns annos exercido a clinica em uma cidade onde por vezes o paludismo reinou epidemicamente, cabendo-me «ntão observar casos da maior gravidade. ACADEMIA DE MEDICINA 95 Nenhum clinico teve nem terá certamente a pre- tenção de salvar todos os seus enfermos de febre perniciosa; mas entre alguns insuccessos, inevitáveis em enfermidade tão grave, e a hecatombe de 1889, bem como a do anno passado, devidas á indifferença aos recursos therapeuticos na maioria dos casos, vai tal distatícia, tão sorprendente diversidade, quo o espirito, de conjectura em conjectura, pára ante a idéa de ser a febre perniciosa daqui se não sempre, ásmaisdas vezes de origem diversa da palustre, não só porque nada explica a extraordinária frequência dos casos,e menos ainda o insuccesso da medicação pelo quinino. Nem mesmo em outros tempos, quando pela presença de pantanos, que aliás desappareceram. abundavam casos graves de paludismo, vio-se jamais cousa que se pa- recesse com o que os clínicos desta capital observam de tempos á esta parte. A primeira menção de casos de febre perniciosa, po- sitivamente originaria de fóco não paludoso, encontra-se no relatorio do Barão do Lavradio, de 1869, conforme consta do seguinte trecho : « Tão notáveis eram os effeitos desta valia (a que ia do Largo da Carioca á Prainha, p„4a rua de Uruguayana) e tão prejudiciaes aos habitantes visinhos que em 1842, tratando-se de limpal-a. e tirando-se sem cautela prévia varias lages da cobertura, começavam logo na visinhança casos fataes de febres perniciosas, de modo que a autori- dade julgou acertado repor as cousas no estado em que es- tavam, e sustar a limpeza. » Note-se que essa valia e as outras então existentes, servindo de despejo publico, não continham matérias ve- getaes, que podessem provocar infecção palustre, mas sim matérias excrementiciaes que,contaminando a atmos- phera visinha, produziam, segundo refere o Barão do La- vradio, casos fataes de febre perniciosa. 96 ANNAES DA Depois disto encontra-se no relatorio do Barão do Lavradio de 1867 a menção de « outras febres com typos difterentes em sua marcha, acompanhadas de phenomenos tão anomalos que difficil era poder classifical-as. » Não esqueçamos a circumstancia de começarem a servir os esgotos do 3°. districto em Fevereiro de 1864 e de funccionarem todos em Julho de 1866. Proseguindo na exposição, peço a attenção da Aca- demia para os seguintes trechos do mesmo relatorio de 1867, referentes a factos clinicos aqui occorridos depois do funccionamento dos esgotos públicos. « Uma observação singular, diz o Barão do Lavradio saltou aos olhos de muitos práticos, e vem a ser: que em differentes circumstancias em que os phenomenos de pe- riodicidade eram manifestos, e tornavam indispensável o emprego dos quinados, estes applicados com vistas de prevenir novo accesso não só não conseguiam o resultado desejado, como pareciam aggravar o mal. » Em outro periodo allude aos « casos em que a mo- léstia resistio aos preparados de quina. » No seguinte relatorio (1868) o Barão do Lavradio, impressionado pelo inopinado incremento das febres in- fectuosas, pondera que « não foi, porém, isso o que mais digno de attenção houve,o que mais reparo causou, accen- túa elle, aos práticos,foram as anomalias, que se notaram na marcha da moléstia e em seus caracteres symptomatolo- gicos, idênticos aos observados em 1866. Nos casos graves, continua, ou se manifestavam com sypmtomas typhoides ou perniciosos tão violentos, que os doentes succumbiam em poucos dias. » Desde então até o verão passado a febre perniciosa passou a figurar no obituário desta cidade de modo real- mente extraordinário e impressionador. ACADEMIA DE MEDICINA 97 Vê, pois, a Academia que a « epidemia malarica, que aqui despertou,conforme as expressões do Dr. Rocha Faria, revestindo-se de gravíssima violência no modo brutal com que acommetteu a população e mostrando-se no maior numero de casos superior ou indifferente aos recursos tlierapeuticos », vem de longa data, que confun- de-se com a do funccionamento dos esgotos nos tres dis- trictos em que foi dividida a cidade. Nenhum de nós esqueceu, de certo, as lutuosas scenos de 1889, quando os accessos perniciosos multi- plicavam-se por toda a parte,sendo de notar que não appa- reciam nos suburbios onde ha pantanos, mas no centro mais populoso onde só existe o infindo pantano • abafado. Nessa occasião, por maior que fosse a boa vontada dos adeptos de enxugo do sólo, foi total o eclipse da theoria de Pettenkofer, porque, não sendo de crer que jamais houvesse menor oscillação do lençol tellurico, e que o nivel se mantivesse mais firme na sua posição infima, em virtude da prolongadissima sêcca, do que em 1889, a infecção da atmosphera da cidade não podia ser mais intensa, mais profunda e grave do que nesse verão. « O mez de Março proximo findo (1889) começou de modo assustador, diz o Boletim do observatorio. A temperatura excessivamente alta ea ausência de chuvas fazião prever o desenvolvimento da epidemia, que já flagellava a população desta cidade. A chuva tão dese- jada só appareceu na segunda década, periodo esse em que a temperatura baixou consideravelmente.» Relacionemos com esse movimento meteorologico os factos clinicos que aqui se deram na mesma occasião. A. M. TOMO VIII 98 ANNAES DA Com a febre amarella rivalisava, excedendo-a mesmo, o accesso pernicioso: houve em : 188!) casos de febre amare Ha febre perniciosa Janeiro 355 189 Fevereiro 498 223 Março 345 559 Vê-se, pois, que em Março, descendo um pouco o obituário da febre amarella, que registrou 345 casos, o da febre perniciosa elevou-se a 559. E' interesantissimo o movimento da febre perniciosa em Março de 1889, e por isso dou-o em detalhe: Houve nos dias : 1 17 obitos 2 7 » 3 15 4 17 » 5 11 » 6 27 » 7 • 42 » 8 73 » 9 71 » 10 57 » 11 50 » 12 • 29 » 13 25 » 14 23 » 15 •... 15 » 16 28 » 17 11 obitos 18 14 » 19 3 » 20 1 21 2 » 22 2 23 2 » 24 1 25 2 » 26 1 » 27 1 » 28 1 » 29 2 30 5 » 31 3 » ACADEMIA DE MEDICINA 99 As chuvas, convém notar, começadas a 16 do mez, accentuaram-se a 17 : sommados os casos durante a pri- meira quinzena, antes das chuvas, e os segundos depois destas, verifica-se o seguinte resultado : na 1 • quinzena 480 casos na 2a » 79 » Considerando-se que o verão de 1889 íoi secco, como não se dava ha muitos annos, e que os pequenos pân- tanos existentes nas immediações da cidade, não podendo resistir á intensissima evaporação, estariam inertes, como explicar a infecção profundíssima da atmosphera urbana nesse mez? Qual o laboratorio que multiplicou de actividade para enlutar a cidade e causar as horrorosas scenas de Março de 1889,quando os focos communs de insalubridade deveriam estar esgotados? Reflectindo-se bem, examinando-se detidamente tudo quanto podia concorrer para aggravar até aquelle ponto a insalubridade publica, chega-se por exclusão ao seguinte resultado : esse laboratorio infernal só podia ser os esgotos públicos, unico foco que adquiriria revigor com a falta de chuvas, demorando no encanamento maté- rias putrefactas e despejando na atmosphera das ruas e no interior dos domicílios os elementos da intoxicação pútrida. Foi o que penetrou na consciência publica: ante o espectro da morte os olhares em vão procuravam des- cobrir a fonte de tantos males : a attenção, afinal, de- teve-se nesses encanamentos tantas vezes denunciados, e sempre negligenciados, julgando haver descoberto o si- nistro laboratorio da calamidade publica. 100 ANNAES DA Foi geral o clamor. A imprensa formulou a accusação em termos explícitos e em multíplices artigos. Entre as opiniões externadas destacarei a do digno presidente desta Academia. O Sr. Dr. Lacerda, depois de referir-se, para ex- plicar as mortes repentinas, ás suas experiencias e ás do Dr. Couty, durante os verões de 1882 e 1883, por meio das quaes verificaram, sob a influencia de temperaturas superiores a 30°, hypotensão arterial, menor resistência do systema nervoso e tendencia ao collapso, denunciou os esgotos públicos como o principal responsável da insa- lubridade em artigo publicado a 14 de Março de 1889 n'O Paiz em vários trechos, que passo a transcrever: « Quanto as perniciosas, disse, é bem possível que a causa originaria esteja nas emanações toxicas do subsolo e com especialidade nos esgotos. O agente toxico, exhalado da bocca dos esgotos, sob a natureza gazosa ou outra, penetra no organismo e ac- cende a febre. Quanto ao systema dos esgotos, que está sem duvida alguma representando papel inportante entre os factores das nossas desgraças, porque não se tenta, já e já, qualquer providencia que promova a lavagem delles pelas aguas do mar? » O Sr. Dr. Lacerda repelliu a supposição de serem taes accessos perniciosos de natureza malarica, e, obser- vando que ás mais das vezes havia exagerada hyper- thermia sob a fôrma de accesso pernicioso, interroga: « só a intoxicação malarica tem o privilegio de produzir um estado assim caracterisado ; ou porventura, outras condições, estranhas aquella origem, podem contribuir para o mesmo resultado ? » Infelizmente os graves acontecimentos do verão de 1889, mais ou menos reproduzidos no verão passado, não 101 ACADEMIA DE MEDICINA mereceram a devida attenção, provocando investigações que elucidassem o assumpto : até o presente nenhuma autopsia, nenhuma pesquiza. Continuando na minha exposição, lembrarei algumas considerações do professor Jaccoud relativamente á morte pela febre typhoide, applicaveis ao caso. Depois de dizer que « a intensidade dos primeiros symptomas, é sufficiente para determinar a morte,» o pro- fessor Jaccoud accrescenta que « n'estas circumstancias o facto dominante, fundamental, a chave do phenomeno e que explica a morte rapida é a colossal elevação da tem- peratura, tanto mais perigosa quanto o excessivo calor da tarde é apenas interrompido por insignificantes ou nullas remissões. Em algumas epidemias insiste o professor Jaccoud, observa-se mais frequentemente essa marcha quasi ful- minante, certamente dependente da intensidade do enve- nenamento e das condições individuaes. O verdadeiro signal, continua o mesmo professor, dessa variedade sempre mortal não é a desordem das funcções cerebro-espinhaes, nem a desproporção entre os accidentes cerebraes e os phenomenos abdominaes; o verdadeiro critério é fornecido pela marcha insólita da febre - que attinge rapidamente a grãos elevados » Descrevendo as fôrmas clinicas da febre typhoide, diz o professor Jaccoud que « a verdadeira fôrma ataxica é primitiva, e não é somente constituída por graves des- ordens nervosas, mas também por excessiva temperatura ». A descripção indubitavelmente applica-se a uma parte dos phenomenos pathologicos aqui observados em 1889, indicando igualmente a intensidade do envenena- mento : de mais, só houve nesta cidade a fôrma clinica que, além da hyperthermia. caracterisava-se pela marcha nem sempre continua, mas por accessos, um, dons e ás 102 ANNAES DA vezes tres, de origem pútrida, superiores ou indifterentes aos recursos therapeuticos. Resaltava então a principal causa de tantas des- graças, mas parece que não queriam vel-a. Razão teve o Barão do Lavradio (nosso emerita collega, encarnação do zelo e probidade, cuja memória mereceu desta Academia na ultima sessão justo preito de admiração e saudade), batendo-se contra os esgotos pú- blicos, denunciando os defeitos da sua construcção e va- cticinando que «os esgotos desta cidade, em logar de contribuírem para o seu asseio e sanidade como devia ser, concorriam para resultado diverso ». Ainda na ultima sessão do Conselho Superior de Saude Publica, celebrada em 1 de Agosto do corrente anno, a opinião geral voltou-se contra os esgotos. O Dr. Cruz, cuja morte prematura todos lamenta- mos, pediu na qualidade de Presidente da Inspectoria de Hygiene que « se mandasse proceder á revisão de toda a actual rêde de esgoto, serviço que também reputava de grande importância e de immediata execução. » O Dr. Belford Roxo, inspector de obras publicas, con- siderou necessário, entr'outras medidas que apontou para o saneamento da capital,um systema completo de esgotos. O Dr. D. José da Silveira declara-se de accôrdocom o Dr. Cruz. ODr. Barata Ribeiro, referindo-se ao « detestável sys- tema de esgotos » - como qualifica-o, attribue « ás casas e principalmente á nossa péssima rêde de esgotos as causas primordiaes da mortandade n'esta cidade e propõe que o governo, antes de qualquer medida, mande sustar quaesquer obras que estejam sendo feitas pela Companhia City Improvements, até que mediante inquérito scienti- fico, sério e rigoroso, se estabeleça o melhor systema de esgotos a adoptar. » ACADEMIA DE MEDICINA 103 0 Dr. Lacerda « pede também a attenção para os es- gotos, cujos canos devem ser rigorosamente lavados e desinfectados, emquanto não fôr possivel substituir este systema por outro melhor. » Em vista das opiniões emittidas pelos membros do Conselho Superior de Saude Publica foi approvada, além de outras conclusões, a referente « á revisão dos esgo- tos. » Outra não foi a minha conclusão quando, após as re- flexões que publiquei em 1890 no Jornal do Commercio, assim exprimi-me : « Póde-se arrazar morros, rasgar ruas, abrir avenidas, proporcionar habitações convenien- tes ás classes operarias, arborisar a cidade, dar-lhe agua a desperdiçar, dotal-a com os mais modernos aperfeiçoa- mentos, fazel-a a mais bella cidade do mundo, etc., e não se romperá o circulo vicioso das más condições hygie- nicas, emquanto forem máos os esgotos. » Como se não pesasse imputação má, os esgotos con- tinuam aífrontando tudo. Apezar das repetidas insistên- cias das autoridades sanitarias, de médicos, engenheiros, do Conselho Superior de Hygiene, na imprensa, no Con- gresso de Medicina e Cirurgia e nesta Academia, sempre interessada pela salubridade publica, não se tratou ainda de investigar ou verificar o estado actual do encanamento e o gráo de saturação das camadas circumvisinhas do subsolo, quando mais não fosse, ao menos em satisfação da mais elementar prudência, Invioláveis esgotos ! Fraycinet, cuja opinião ainda hoje é geralmente aca- tada, considera condições fundamentaes do saneamento de uma cidade : 1 ,a O abundante supprimento de agua ; 2.a A conveniente canalísação subterrânea para os líquidos impuros e para as matérias que possam 104 ANNAES DA ser arrastadas pelas aguas, levando-as para longe dos logares habitados. 3.a A purificação desses líquidos antes de serem lançados aos rios, não só para evitar a sua con- taminação, e também para restituir aos terrenos elementos fertilisantes. Ainda ha pouco, como vimos na Gamara dos Depu- tados da França sahiram vencedoras essas idéas. Aqui é flagrante a infracção das medidas primor- diaes, fundamentaes, do saneamento de uma cidade, maxime populosa e com os defeitos topographicos desta capital : não temos supprimento de agua sufficiente para os diversos misteres da vida individual e collectiva ; pos- suímos uma rêde de esgotos que deixam filtrar matérias excrementiciaes ; finalmente, os esgotos descarregam o mais perto possível, na própria bahia e na pittoresca praia de Botafogo. « Os esgotos, pondera mesmo autor, são perigosos quando as paredes deixam filtrar líquidos impuros que inficionem o solo ». Assim são os d'esta cidade : construídos, como é notorio, com material de má qualidade ; esburacados ; com as junturas desguarnecidas ; sem declive sufficiente-, mal ventilados e lavados ; contaminan o subbsolo dei- xando passar matéria polluta. No inicio dos trabalhos da City Improvements pô- de-se impunemente revolver o subsolo de toda á area da cidade, em 1862 el864; a salubridade publica nada soffreu: actualmentc seria rematada imprudência ten- tal-o sem as mais severas cautelas de desinfecção, inficio- nado como está o sólo. Para se avaliar o perigo, a que refere-se Fraycinet, proveniente da actual canalisação basta recorrer ao obituá- rio nos verões seccos, quando as matérias fecaes, por ACADEMIA DE MEDICINA 105 insufficiente impulsão e circulando mal, demoram-se aqui e alli, no encanamento. Desse perigo temos tido a mais dolorosa experiencia desde que começaram a funccionar os esgotos dos tres dis- trictos até o presente, com a aggravante, que, cumpre assignalar, de ser cada vez mais precaria a salubridade publica, mais arriscada a vida dos habitantes ; as epide- mias de 1889 e do anno passado, principalmente estas, denunciam, com effeito, a existência de um foco de infec- çâo perigosissimo e excepcioaal. Estivesse a cidade entre pantanos, e não seria tão flagellada por moléstias infectuosas. Enxugar o sólo ! Sim, o sólo, não lia negal-o, está inficionado, mas o meio de saneal-o não é a drenagem, porque pelos tubos dos esgotos continuará a transitar liquido sufficiente para entreter a humidade do subsolo ; o meio racional é bem diverso ; é supprimir a causa efticiente da contami- nação . Tudo o mais é illusorio, inefficaz, e, por mais que se faça, esta cidade continuará insalubre, como até aqui, errando-se o alvo ou recuando-se timidamente ante as difficuldades de semelhante empreza. As epidemias reapparecerão infalliveis : não sendo, de febre amarella, serão de febres de vários outros typos principalmente o accesso pernicioso. Terminadas as epidemias, será novamente consultado o Conselho Superior de Hygiene... Vou terminar. Se não são muito superficiaes as minhas observações ; se não é de todo errónea a interpretação dos factos clíni- cos aqui occorridos, relacionados com as condições meteo- rológicas ; se não são falsos os princípios proclamados A. M. TOMO VIII 106 ANNAES DA ACADEMIA DE MEDICINA pela sciencia, deveremos inevitavelmente reconhecer que a primeira medida hygienica a attender para o sanea- mento desta capital, depois do conveniente supprimento de agua potável, é a revisão, a reparação ou reforma dos actuaes encanamentos dos esgotos públicos e sua des- carga bem longe da cidade, fóra da barra, directamente no Oceano. Dr. José Lourenço.