APONTAMENTOS. oPaUt cl SrtcutoUa ào- niot(>iiív no &CIICL em, 4è5S. OFFERECIDO A’ JUNTA CEN- TRAL DTIYGIÈNE PUBLICA DO RlO DE JANEIRO. POR Francisco da Silva Castro Doutor em Medicina, Medico-Cirurgião, Ba- charel em Bellas- Letras, Presidente da Com- missaõ d1 Hf/g iene Publica, Ojjicial da im- perial Ordem da Roza, Cavalleiro da de Christo, Deputado â Assembléa Legislativa Provincial, Socio Correspondente da Socie- dade das Sciencias Medicas de Lisboa óp. fy. Pará. Typ. de Santos & Filhos. 1855. APONTAMENTOS ?PaUt a SfíEUboUa; ào- ne- ÇPatcl em, * OFFERECIDOS A’ JUNTA CENTRAL DHYGIÈNE PUBLICA DO RIO DE JANEIRO POR * i Francisco da Silva Castro Doutor em Medicina, Medico-Cirurgião, Bacharel em Bellas-Letras, Prezidente da Commissaõ d1 Hygiéne Publica, Official da Imperial Ordem da Roza, Cavai- leiro da de Christo, Deputado ã Assemblêa Legislati- va Provincial, Socio Correspondente da Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa $c. fyc. Pará. Typ. de Santos Filhos.—1855. Apontamentos para ã his- toria do Cholera-mor- bus no Pará em 1855. est une rcligion: son sanctuaire est la cons- cience.— I. Se hoje ainda naõ esta absolutamente extincta en- tre nós a devastadora enfermidade, que por obedecer á funesta e essencial condiçaõ de sua existência ca- minha peregrinando de povo em povo por toda a vas- tidaõ do mundo, derramando pelo seio da mizera hu- manidade o terror, a dessolaçaõ, a dor, e a morte; se o inflexível cholera, esse máo hospede, que infelizmen- te se aprouve vizitar as plagas do Amazonas neste fa- tal anno de 1855, ainda naõ quiz despedir-se com- pletamente d’entre taõ innocente povo, abandonando es- ta nossa boa terra, talvez para mais naõ voltar a ella; ao menos está de tal forma reduzida a sua lugubre ta- refa de perpassar de logar em logar, depois de haver- se embrenhado até aos mais remotos sertões no cur- to periodo de hum mez, está taõ cançado de ceifar vi- das de nossos semelhantes, muitas delias preciozas, que apenas se ouve n’hum ou n’outro dia o gemido de huma ou de outra desgraçada victiina, derrubada aos golpes de sua inexorável sentença! E pois já que nos resta mais descanço, depois de havermos soccorrido como homem, e como medico, os nossos irmãos afilictos no meio de tamanha atribula- çaõ, pondo ã sua dispoziçaõ os nossos fracos recursos intellectuaes, ensinando a huns os remedios mais pro- veitozos da Medicina para combater, e vencer o mal, curando a outros, orientando, e aconselhando o Gover- no a respeito dos meios mais profícuos para salvar huma populaçaõ inteira das garras da morte, vomitada des- apercebida mente em o nosso sõlo por hum dos maiores llagéllos, que tem perseguido o género humano; de- pois finalmente d’havermos dezempenhado em taõ cri- tica situaçaõ a nossa alta missaõ de medico, e de func- cionario publico de saúde, agora que a humanidade já respira mais desassombrada do furôr da peste, occu- par-nos-hemos de outro ponto, que o interesse da Sci- encia reclama seja discutido, e esclarecido com calma, e sem prevenções. II. O Ckolera-morbus manifestado na Província do Pa- rá em o anno de 1855 seria originado de cauzas locaes, e especiaes, ou importado? E neste ultimo cazo, por quem. e qual a sua especie? Ha dezoito annos, que exerço a clinica medica nes- ta Capital, nunca observei outras épidemias, que naõ fossem as da variola, sarampaõ, coqueluche, e ultima- mente a febre a ma relia. Outras enfermidades porém tem por costume apparecerem em grande escala em diversas épochas do anno, mas naõ debaixo de carae- ter épidemico, taes saõ as febres intermittentes de di- versos typos, as ophtalmias catharrhaes, as bronchites, as pleurites outonaes, e as febres biliosas. Esta mes- ma observaçaõ tem sido confirmada por outros práticos tanto antigos, como modernos, e contemporâneos. Naõ consta pois, que outras epidemias além daquellas por aqui grassassem, nem em remotas épochas, nem em nossos dias. Hum ou outro cazo morbido com vizos ou feições de cholera he fõra de duvida, que deverá têr si- do observado neste clima por mais de liuma vez, e por mais de hum pratico, couza que naõ admira, naõ sõ por que segundo a opiniaõ d’alguns escritores médicos ra- ro será o paiz do mundo, onde se naõ tenha notado alguns desses cazos, e isto se tem publicado naõ sõ no nosso século, mas desde a mais alta antiguidade, como por que o clima equatorial muito se presta ao de- zenvolvimento de moléstias de natureza perniciosa. A minha clinica confirma a verdade desta propoziçaõ. Consultando além disto o testemunho de observa- dores mais antigos aqui rezidentes, tanto profissionaes, como extranhos á sciencia, colho ainda aquelle mes- mo rezultado, isto he, saõ todos concordes em informar, que nunca outras epidemias, além daquellas, reinãraõ neste paiz em tempos hidos, e isto mesmo aprende- raõ elles por tradição da bocca de seus maiores. Foi também deste mesmo pensar a Commissaõ es- pecial, mandada crear nesta provincia por Avizo Im- perial de 26 de Julho de 1852 para ministrar á Com- missão Central, installada na Corte, todas as informa- ções, e documentos, que podessem esclarecer as cau- zas, que fizeraõ desenvolver a febre-ama relia nesta pro- vincia, cujo relatorio assignado pelos Senrs. Drs. Pe- reira Guimarães, Martins Pereira, e Folie Guimarães, datado de 29 de Março de 1856, se acha archivado na Secretaria da Prezidencia desta Provincia, e na dos Negocios do Império. Ainda foi desta mesma opiniaõ neste corrente an- no a Commissaõ d’Hygiéne Publica desta Provincia na relatorio, que em Janeiro dirigio ã Junta Central d’Hy- giéne Publica do Rior cujo registro existe no arciiivo da mesma Commissaõ, sendo assignado esse parecer pelo autor deste artigo, e pelos Senrs. Drs. Cantão, Pin- to, Oliveira, Malch&r, e Valle Guimarães. Se pois todos estes testemunhos provaõ a nunca existência do cholera-moí bus nesta boa terra, e naõ me- nos a de outras epidemias, que nãõ sejaõ aquellas aci- ma apontadas, como querer-se fazer acreditar o con- trario ? Como animarem-se espiritos apoucados, e pe- rigosos, a escrever em suas rapsódias para jornaes de outras províncias, que o clima da abençoada regiaõ do Amazonas he maligno, e sujeito a carneiradas annuas, e mortíferas 7 Perversidade!! Talvez as províncias do Graõ-Parã, e Amazonas, sejaõ das estrellas do Diadema Imperial as mais bri- lhantes, e fulgentes, naõ diremos só em matéria de salu- bridade, mas até a muitos outros respeitos. Naõ pro- gridiremos sobre este ponto, porque naõ he desejo nosso ferir susceptibilidades alheias. Também naõ possuem estas duas bellas províncias moléstias endemicas, exeepto as febres intermittentes, que constantemente se ofiterecem ao estudo, e ã inda- gaçaõ medica em alguns logares do interior, taes co- mo Macapá, Mazagão, Ourêm, Almeirirn, Pinhel, etc, muitas das quaes assumem o caracter pernicioso, ter- minando por via de regra fatal mente. Desde remotos tempos, em diversas épochas, e por diversos clínicos, e ainda ultimainente neste anno pela Commissaõ d’IIy- giéne Publica, tem sempre havido constância em eol- loear-se estas endemias no quadro nosologieo debaixo da cathegoria das febres intermittentes de typos vários. Até Janeiro deste anno ninguém se havia lembrado de querer lobrigar em semelhantes febres a indole, o caracter, e a natureza do cholera\ sõ hoje he que al- gum espirito irreflectido aspira ã gloria de taes preten- ções, porém debalde. A verdade brilha como o sol, e o desengano será a recompensa desse erro premeditado. III. Mas tudo pode assim têr succedido até ao despon- tar deste malfadado anno de 1855, e logo pouco de- pois por hurna extranha e imprevista oeeurrencia ha- verem-se manifestado plienomenos meteõrologicos, e géologicos, capazes de fazerem gerar, e dezenvolver re- voluções na vida humana, susceptiveis de fataes peripé- cias, e naõ inenos de mortaes catastrophes sobre a ine- vitável marcha das fancções do organismo. (Virey) Vejamos por tanto a physionomia climatérica deste novo anno; prescrutemos, se a elle prezidiraõ algumas cauzas, que por ventura explicar possaõ o transtorno do viver plácido, seguro, e prolongado do nosso povo; e entaõ saberemos se a nova epidemia, que o assolou, foi obra do clima, da estação, dos alimentos fy, e por semelhante modo dezenvolvida entre nõs, ou se foi in- troduzida em o seio da nossa população pelo vehiculo da importação. Corria regular o anno de 1855, pelo que se pode deprehender dos documentos estatistico-mortuarios dos primeiros quatro mezes do anno comparados com os correspondentes dos tres últimos annos (Nota A); e naõ menos regular pelo que toca aos phenomenos ther- momêtricos dos primeiros tres mezes deste corrente anno comparados com outros iguaes dos annos de 1845 a 1849 em falta de observações mais recentes colhi- das nos últimos tres annos (Nota B.) Devemos as importantes observações meteõrologicas daquelles cita» dos annos ao zêlo, e curiozidade do Senr. Dewey, Cônsul dos Estados-Unidos nesta capital, o qual teve a bondade de nos fornecer huina copia desse trabalho, para que com algum fundamento melhor podessemos estabelecer as relações differenciaes da temperatura athmospherica entre os ditos primeiros tres mezes, e os correspondentes daquelles annos. As observações dos tres primeiros mezes deste anno foraõ-nos igual- mente ofíerecidas por hum amigo, que hoje se acha na Europa, as quaes naõ poderaõ sêr continuadas em virtude da sua auzencia. Também naõ foraõ prosegui- das pelo Senr. Dewey as mesmas observações em os annos subsequentes ao de 1849 por diversas razões ponderosas, o que certamente muito he para sentir-se, pela grande luz que a Sciencia podia aproveitar das suas minuciosas indagações. Quanto aos dados barométricos nada podêmos affir- mar de pozitivo, por naõ termos averiguado este ponto; no entanto talvez pouco variassem dos corresponden- tes aos annos de 1846 a 1849 ( Nota C. ), cujas ob- servações devemos igualmente ao mesmo Senr. Dewey. A respeito porém das observações hygrométricas feitas pelo pluvimetro he certo, que notável diflerença se tem sentido nesta capital neste corrente anno, e mesmo no ultimo, comparativamente com os anteriores. [ Nota D ]. Poucas tem sido as chuvas cahidas nas proximidades desta cidade, e dentro delia, o que parece sêr devido ao considerável, e continuado abatimento das mattas visinhas. Naõ tem porém assim succedido pelo resto da província, por onde as chuvas tem sido muito regulares, e logares mesmo ha, como Marajó, Acarã, e em geral todo o sertão, que experi- mentarão copiosas chuvas, especialmente neste anno, a ponto de que em Junho ainda os campos de Marajó se viaõ em grande parte cobertos de cinco e seis pal- mos d’agua, que constituiaõ extensos lagos de muitas legoas. Igual acontecimento teve logar no Baixo-Ama- zonas, de fôrma que os lagos desta porção da provín- cia ainda em Junho estavaõ cheios, e pouca esperança havia de vazarem, em consequência dos continuados repiquetes d’aguas, que sempre os estavaõ alimentando. Daqui rezultou como consequência inevitável, o que por muitas vezes tem sido experimentado, a limitada pesca do pirarucu, e por tanto o receio da escacêz deste género de primeira necessidade para os habitan- tes da província. Pelo lado dos alimentos he necessário confessar, que de ha muito tem soffrido a população desta capi- tal privação, muitas vezes absoluta, d’ alguns géneros de primeira necessidade, principalmente de carne verde. No anno findo por espaço de quatro mezes no veraõ poucos foraõ os dias, em que se matou algumas rê« zes nesta cidade, supprindo-se a população de carnes salgadas, peixes seccos, ou salgados, taes como, baca- Iháo, pirarucu, tainhas &, alguns delles de péssima qualidade, sem que todavia se originasse dahi épidetnia alguma. Por mais de hurna vez em annos anteriores deo-se o mesmo facto de falta absoluta de carne verde em certas e determinadas épochas, pretendendo alguém explicar semelhante acontecimento pelo jogo d’interes- ses offendidos, que buscavaõ por este meio obrigatorio hum remedio ou reparação aos prejuízos occazionados pela lei do máximo promulgada pela Assembléa Pro- vincial, e naõ por via da mingua de producção do gado nas fazendas ruraes de creação. Apezar disso nunca se sentio na população a mais leve demonstração, nem mesmo receio, d’algum dezenvolvimento morbido, de- rivado dessas más alimentações. Se pois nem o clima desde remotas éras, nem os phenomenos meteõrologicos reconhecidos e estudados pelo thermometro, barometro, e pluvimetro, deixando de influir sensivelmente na physionomia das estações a ponto de lhes perturbar a sua marcha ordinaria, nem a alimentação, nos daõ razão effíciente, e evidente para pensarmos, que a epidemia do C/iolera-morbus podesse sêr dezenvolvida espontânea, e naluraimente entre nós, como darmos credito ãquelles que pretendem provar, que semelhante flagello he oriundo das nossas plagas? No entanto os sustentadores deste erro para expli- carem a sua opinião tem-se esforçado em apontar como cauzas do aparecimento do assolador flagello,-os extra- ordinários, e excessivos calores, impróprios da estação, o que naõ he exacto, como se põde deprehender pela comparação das taboas das observações meteõrologicas, de que temos feito menção,-em segundo logar a má ali- mentação composta quasi exclusivamente de substancias salgadas, e muitas vezes deterioradas, na maior parte do anno,-em terceiro logar as poucas chuvas, pheno- meno real quanto á capital, e completamente inexacto a respeito do interior da provinda, por onde as chuvas foraõ constantes, como he de costume em todos os annos, —e finalmente o deseceainento dos lagos em virtude da falta das chuvas, o que he inteiramente destituido de fundamento, porque tendo sido as chuvas regula- res pelo interior estavaõ os lagos cheios, como sõe acontecer todos os annos, nos primeiros seis me- zes, começando sómente a baixarem as aguas de Ju- lho por diante. Para a confirmação desta verdade appe- lâmos para o testemunho de todos os habitantes do in- terior da província. Mas concedendo mesmo que fosse exacto tudo isto, que se tem querido dar como cauzas do dezenvolvi- mento do Choler a-mor bus, perguntaremos nós agora, por onde he que deveria lêr principiado a manifes- tar-se a fatal epidemia ? Feia capital, em cujas vi- zinhanças naõ ha lagos notáveis, que tivessem podido seccar, e que fossem a origem daquella enfermidade, ou pelo sertão, por onde os lagos saõ tantos, e taõ ex- tensos, que parecem mares ? Pela capital, aonde se em hum ou em outro dia se gastaõ alimentos salgados e mal-saõs, em outros também se consomem comidas frescas, e salutares, ou pelo sertão, aonde por via de regra o geral do sustento he feito com substancias seccas, salgadas, e muitas vezes arruinadas, taes como pirarucu, peixe-boi, mapará, tainha, &, e raríssimos saõ os dias, em que se come de fresco? No entanto foi na Capital, onde a moléstia pri- meiro se mostrou, para depois propagar-se pelo inte- rior, subindo rio acima até cerca de trezentas legoas, irradiando-se em todas as direcções ao longo de huma boa parte dos aííluentes do Amazonas. A sua direc- ção pelo rio abaixo em demanda da costa foi posterior ãquella marcha. Em vista destes fundamentos he para nõs fõra de duvida, que o Cholera-morbus-WAõ teve a sua ori- gem entre nõs de cauzas locaes, as quaes nunca exis- tirão senaõ na imaginação malicioza d’ alguns caracte- res susccptiveis de desvirtuarem tudo, e até mesmo a verdade das Sciencias. Sim a verdade das Scien- cias, perante quem o homem de letras conscieneiozo nunca mente, embora tenha de pronunciar a confissão ingénua do erro, em que huma vez tenha cahido. Com quanto o erro seja a partilha da humanidade, a confissão delle, e a sua emenda he a prova da san« consciência e boa fé. IV. Estudemos pois agora como o C/wler a-mor bus foi im- portado, por quem, quando, e qual a sua especie. No dia 15 de Maio ancorou no porto desta capital a galera portugueza Defensôr com carta de saúde limpa, procedente da cidade do Porto a 15 de Abril com trinta dias de viagem, trazendo a seu bordo trezentas e vinte e duas pessoas, sendo dezesseis passageiros, duzentos e oitenta e oito colonos, e dezoito da tripolaçaõ do navio. Durante a viagem dezenvolveo-se a bordo liuma doença, da qual falleceraõ trinta e seis indivíduos, sendo trinta e cinco dos colonos, e hum da tripolaçaõ, que servia de moço da Camara. A ordem por que foraõ falleeendo os ditos trinta e seis sujeitos foi a seguinte: tres em 24 de Abril, hum em 25, dois em 27, dois em 28, e hum em 29 do mesmo mez, quatro em o 1 ° de Maio, dois em o dia 2, quatro em o dia 4, cinco em o dia 5, dois a 6, tres a 7, tres a 8, dois a 10, e dois a 12 do mesmo mez de Maio ( Nota E ). Chegando ao nosso porto aquella embarcaçaõ em o dia 15 de Maio grande foi a celeuma levantada na po- pulaçaõ em razaõ de taõ lamentoza mortandade ( Nota F ), e a compaixaõ se apoderou de todas as almas bem forma- das ao ouvirem os lamentos, e as noticias, muitas delias exageradas, que corriaõ de bocca em bocca, a respeito da triste sorte daquelles desditosos colonos. Achava-me doente de febres intermittentes repeti- das, e sõ pelas 4 horas da tarde desse funesto dia tive conhecimento de semelhante occurrencia pela participa- çaõ official, que me fez o F.xm.° Senr. Vice Presidente da Província, pedindo-me informações, e providencias acerca de taõ grave succésso; e nada podendo informar a tal respeito, recorri immediatainentc sem perda de tem- po á autoridade competente, ao Provedor da Saúde do porto, para que me instruísse do que soubesse sobre este assumpto, e para isso lhe enderecei o officio original de S Ex.a, pedindo urgência (NotaG). No dia seguinte pelas 11 horas da manhã recebi a resposta do dito Pro- vedor [Nota H], pela qual se conhece, que na opinião deste facultativo haviaõ fallecido os ditos colonos de fóme, sêde, espancamento, e mãos tratos do commaudante da embarcaçaõ, e naõ de moléstia alguma de caracter ma- ligno, ou contagiozo, que na viagem apparecesse, deri- vando como corollario desta sua opinião a faculdade da livre pratica da dita embarcaçaõ, e o innnediato dezembar- que dos colonos, o que parece ter sido contrario á ex- pressa determinaçaõ do Avizo Imperial de 10 de Outubro de 1854, e medidas preventivas da mesma data relativas a quarentenas de navios, as quaes acompanháraõ o dito Avizo. Para desde logo encaminhei esta resposta ao Exm.° Governo da Provincia; e confesso, que com quanto fos- se eu hum dos muitos, que se revoltãraõ contra taõ re- quintada maldade, opezar disso custava-me a crer, que houvesse hum homem capaz de tanta crueldade, que a seu talante estivesse dando cabo dos seus semelhantes, sem que estes em taõ crescido numero se animassem a oppôr-lhe huma justa rezistencia! Por tanto revolven- do em meu espirito outras possibilidades da cauza de semelhante mortandade em taõ curta viagem, assaltava- me a lembrança do Cholera-morbus, porém a certeza da existência da carta de saúde limpa,—a noticia de que essa enfermidade naõ existia em Portugal, segundo in- formações dos jornaes desse paiz, a qual com quanto grassasse na Hespanha, ainda naõ havia feito o seu in- gresso naquelie remo,—a circunstancia de naõ ter toca- do o navio em porto algum, vindo em direitura,—a liuii- tada proporção da mortalidade succedida a bõrdo, com- parada com as mortalidades conhecidas, occasionadas pe- lo Cholcra em diversas partes do mundo, por onde aquel- le flagello tem dominado, todas essas considerações me faziaõ abandonar a idéa do Cholera. No entanto o meu espirito vacillava, e queria descobrir outros motivos, que naõ os enumerados pelo Provedor da Saúde, para expli- car razoavelmente taõ extraordinário quaõ fatal aconte- cimento. A imprensa por hum lado, as diversas authoridades publicas por outro, todos se occupavaõ desta grave ques- tão do dia, e cuidavaõ em dar largas aos seus deveres em taõ deplorável emrrgencia. O Cônsul de Sua Ma- gestade Fidelíssima nesta Capital proporcionou-me occa- ziaõ de poder dezembaraçar-me do pêzo, que me opprimia mentalmente. No dia 19 de Maio recebi do Governo da Província hum oíhcio cobrindo copia de ou- tro do dito Cônsul [ Nota I ], no qual expressa este a duvida, em que estava a respeito dos conhecimentos do facultativo, que como tal tinha embarcado abordo da di- ta galera, e pedia o obzequio de que a Commissaõ d;Hy- giéne Publica o interrogasse, a fim de verificar por suas respostas, se realmente era facultativo ou naõ; e ao mesmo tempo rogava, que a Commissaõ igualmente pro- cedesse a exame nos mantimentos de sobresalente decla- rando a qualidade, e o estado delles. A Commissaõ a tudo satisfez nos dias 21 e 23 do mesmo mez [Nota J]; e com quanto me achasse abatido, e convalescendo dos insultos de huma febre intermittente de mão caracter, que acabava de padecer, nenhuma repugnância puz em prestar-me a este serviço, e tanto mais promptamente me prestei, quanto conhecia, que era a occasiaõ de poder talvez dezembaraçar-me das duvidas, que assoberbavaõ o meu espirito a respeito da cauza, e natureza da enfermi- dade, que tinha dado logar á catastrophe do Defensor. A Commissaõ, satisfazendo em todos os pontos, ao empe- nho do Cônsul de Sua Magestade Fidelíssima, foi mais longe do que elle exigia; quiz descobrir a verdadeira cauza ou origem do mal, e chegou a acreditar como bem fun- dada, segundo a explicaçaõ que deo, a descoberta de ser o chlorureto de cobre o agente determinante d’aquella mortandade, e conseguintemente de ter sido o envenena- mento por aquelle corpo deletéreo a moléstia, que havia reinado a bórdo do Defensor. [ Nota K ] E certamente muito plausível era huma tal explicaçaõ, se se attender ao estado das caldeiras, que a Commissaõ acabava de ob- servar, as quaes eraõ de cobre naõ estanhadas e cober- tas de azinhavre, e aos accidentes morbidos, que o ci- rurgião do navio declarara ter observado nos doentes durante a viagem, sendo vomitos, diarrhéas, cólicas, es- friamento geral, sêde, olhos encovados, e prostraçaõ abso- luta, symptomas estes proprios do envenenamento pelos saes de cobre, e seus compostos. Nenhuns symptomas mais declarou elle ter observado, seguramente em razaõ da sua ignorância, os quaes podessem fazer suspeitar ser outra a natureza da moléstia. Ainda mais fazia pro- pender a Commissaõ a pensar assim, a circunstancia de ter vindo o navio de porto limpo, e de naõ constar até entaõ nesta capital, que em Portugal existisse o Choiera, cujos symptomas sendo em parte communs com os do envenenamento pelos preparados de cobre, fariaõ descon- fiar da indole da enfermidade, com quanto naõ tivesse o cirurgião feito mençaõ, por naõ saber, dos symptomas ca- racteristicos, e differenciaes do Choiera, isto he, da cya- nôse, da diarrhéa branca como agua d'arroz, e da flaci- dez da pelle, ou perda da sua contractilidade. Pouco tempo decorreo para que a Commissaõ naõ visse abalado aquelle seu juizo sobre a etiologia, e a na- tureza da enfermidade, e logo depois absolutaniente des- feito! A 26 de Maio occorreraõ nesta capital dois cazos de moléstia grave, e extranha, os quaes termináraõ fatal- mente em poucas horas, e immediatamente mais outros [Nota L], que nos fizeraõ crêr, que o diagnostico profe- rido pela Commissaõ acerca da natureza, e caracter da enfermidade, que grassou abordo da Defensor, fora mais hum erro em Medicina, hum erro porém bem disculpa- vel em vista das circunstancias já ponderadas, e de mais a mais por naõ ter a Commissaõ perante si hum doente, a quem podesse tratar, ou mesmo hum cadaver, que po- desse quando menos olhar, por que neste cazo as luzes dos membros da Commissaõ naõ permittiriaõ semelhante engano de diagnostico. No dia 26 foi para nõs fõra de toda a duvida, que a doença observada nas praças reco- lhidas ao Hospital Militar, e queentaõ fizeraõ o objectodos primeiros cazos morbidos d’aquella ordem nesta provín- cia, naõ era senaõ o Clwlera-morbus. A 2 de Junho já naõ era pequeno o numero dos ac- commettidos, e das victimas ( Nota M ); e a 11 ainda mais considerável a somma d’huns e d’outros, de forma que seria huma falta, se naõ hum crime, occultar a verdade, e naõ esclarecer o povo inexperiente, e dezapercebido, e até mesmo illudido, sobre os meios, que melhor convi- nha empregar para se premunir de taõ cruel inimigo, que o hia devastando, e que ameaçava assolar a po- pulaçaõ inteira da nossa província, da lemitrophe do Amazonas, e talvez de todo o Império. Para attingir esse fim publicámos pela imprensa hum guia-medico, aconselhando, e ensinando ao povo os meios mais fá- ceis, e seguros de se curar de semelhante doença (No- ta N.) Se para nõs nessa occaziaõ já naõ era objecto de duvida qual o caracter e natureza da enfermidade, que laõ mortiferamente hia lavrando, e cuja recrudescência se põde contar de 15 a 30 de Junho, outro tanto naõ acontecia a respeito do modo do seu apparecimento. Por algum tempo tivemos o juizo suspenso, e fizemos minuciozas indagações sobre a possibilidade de têr sido semelhante moléstia introduzida no seio da nossa po- pulaçaõ ou por hurna golêta hollandeza Dêfiance, anco- rada em o nosso porto a 25 d7Abril, e procedente de Surinarn com escala por Cayenna, colonias ambas pró- ximas do golplio do México, em cujas ilhas o cholera havia reinado no anno lindo, ou por algum navio ame- ricano, dos muitos que frequentaõ o nosso porto, ou linalmente pela galera portugueza Defensor, a cujo bor- do se haviaõ dado aquelles cazos morbidos ao princi- pio mal defiinidos, e que começavaõ agora a sêr para nos mais que suspeitos. Esse estado de perplexidade porém depressa se desvaneceo, e depois de feitas as de- vidas abstracções, podemos a final concluir naõ com aquelle grao de certeza, que d7ordinario costuma ac- companhar as mais importantes questões de Medicina, mas com huma certeza quasi mathematica, que a fon- te funesta e homicida dos habitantes da infeliz provín- cia do Graõ~Pará era a galera Defensor. V. Ouçamos o que a maioria da Commissaõ d’Hygié- ne respondeo em Agosto ao Governo da Província em soiuçaõ aos ires quesitos, que lhe foraõ dirigidos pela Junta Central de Bygiéne por intermédio do Ministério dos Negocios do Império, e comparemos os factos oc- corridos abõrdo da galera com os desta Capital, e de- pois julguemos.— l.° Quesito.— Quaes os symptomaê apresentados pela enfermidade, que affligio, e ceifou os passageiros da galera Defensor durante a viagem; e quaes os motivos prezumiveis do seu dezenvolmmento, e como se succederaõ os factos nella occorridos? Resposta. — Quanto á 1 .a parte, isto he, r/naes os symptomas aprezentados pela enfermidade, que afjligio, e ceifou os passageiros da galera, a Commissaõ naõ ten- do observado aquelles doentes, naõ pôde senaõ louvar- se na expoziçaõ, que perante ella fez o cirurgião da mesma galera acerca da moléstia, a qual coneta do § 8.° do officio, que a Commissaõ dirigio ao Presidente da Provincia em 23 de Maio do corrente anno, e ago- ra remette por copia, e he do theôr seguinte— “ Que todos os symptomas enumerados pelo cirurgião, taes como, vomitos continuados, diarrhéas, cólicas, esfriamen- to geral, sêde, olhos encovados, prostraçaõ absoluta, e a final morte quasi fulminante, confirinaõ esta opiniaõ. „ Quanto á 2.a parte—quaes os motivos prezumiveis do seu desenvolvimento, a Commissaõ naõ achando outra cauza capaz de explicar huma taõ grande mortalidade nas circunstancias ordinárias, entendeo ao principio que fora o envenenamento pelos saes de cobre, o que deo lo- gar áquella enfermidade, e para isso fundou-se nas ra- zões, que saõ indicadas no citado officio; mas hoje jul- ga que mais provavelmente naõ foi essa a cauza, antes sim a mesma que produzio a epidemia, que está reinan- do nesta Provincia, bazeando-se para assim pensar em que os symptomas descritos pelo cirurgião do navio saõ os mesmos, que com outros se observaõ nos doentes de terra. Quanto á 3.a parte do mesmo quesito—como se su.cce• deraõ os factos nella occorridos, a Commissaõ naõ tendo podido obter outros esclarecimentos a este respeito se- naõ os que lhe foraõ ministrados pelo dito cirurgião, os quaes constaõ do supra-mencionado officio, a este se refere. 2.° Quesito.— Qaaes ossymplomas mais salientes, que caracterizaõ a enfermidade, que grassa no Pará, e o modo como se dezenvulvem, e succedem ? Posposta.—Os symptomas, que mais geralmente se observaõ, e a ordem, com que se dezenvulvem, e suc- cedem saõ—enfraquecimento nas pernas, e braços, aba- timento geral, prostração, dor de cabeça, escurecimen- to da vista, delíquio, esfriamento nas maõs e pés, nau- seas, ancias, e ás vezes vomitos, sensaçaõ de pêzo sobre o épigastrio, suõr frio e copiozo, bocca secca e amargo- sa, lingua branca mas limpa, ou coberta de hum enduto esbranquiçado, sêde, febre pouca intensa, e branda dôr no estomago. Outras vezes nota- se alguns ou muitos destes symptomas, porém mais pronunciados e accom- panhados de borborygmos no ventre, caimbras nas per- nas, nos pés ou nas maõs, as quaes se exacerbaõ com os movimentos que faz o doente, sensaçaõ de pêzo, ou en- taõ dôr forte nos rins, dôr intensa no estomago, pulso frequente porém pequeno e depressivel, grande ancieda- de, e considerável oppressaõ no épigastrio. Outras vezes reconhecem-se estes symptomas enu- merados, e sobrevêm repentinamente vomitos biliosos ou mucosos mais ou menos abundantes, sendo ao principio das matérias ingeridas, e logo aecompanhados, ou pou- co depois seguidos, e muitas vezes precedidos de diar- rhéa mais ou menos considerável, no eomêço de maté- rias fecaes, e ao depois de hum liquido aquoso, seroso- amarellado, ã imitaçaõ de caldo de canna, ou mucoso, bilioso, ou mesmo sanguinolento, e naõ poucas vezes branco semelhante á agua d’arroz mais ou menos expês- sa, anoréxia, e maior sêde. Outras vezes finalmente as dejecções alvinas saõ extremamente abundantes, o ventre fica seilado, a phy- sionomia decomposta, os olhos encovados, languidos e ternos, a sclerotica embaciada, os olhos semi-abertos, e revirados para cima, dureza d’ouvido, a pélle do ros- to ( especialmente á roda dos olhos ), e das maõs lívidas, mõrmente nos brancos e mamelucos, frio glacial, extre- midades dos dedos das maõs, e pés engelhadas, como se estivessem mergulhadas n’agua fria por muito tempo, unhas rôxas, calôr ardente no épigastrio, de sorte que o doente diz têr hum fogo, que o queima por dentro, extrema anciedade, inquietaçaõ, e dezassocêgo taes que o doente naõ conserva a mesma poziçaõ cinco minutos, e ao mesmo tempo dá gritos agudos, e compassados, e suspira de quando em quando, suor abundantíssimo, frio, e viscozo, voz sumida e fraca, urinas raras, escassas, e ãs vezes completamente supprimidas, lingua violacea, fria, e espalmada, hálito frio e de hum cheiro sui-gene- ris, pulso pequeno, filiforme, e ás vezes sumido, sêde devoradora, e grande dezejo de bebidas geladas, câim- bras fortissimas, amiudadas, e em grande numero de musculos, e taes que fariaõ o doente lançar-se fóra do leito, se não fosse sustido por outras pessoas, perda da contractilidade da pélle a ponto de se lhe fazer huma prega em fôrma de beliscão e não voltar ao seu primi- tivo estado, e por ultimo quasi sempre a morte. Nes- te periodo he mui frequente dezapparecerem os vómi- tos, e algumas vezes também a diarrhéa. As faculda- des intellectuaes se conservâo inalteráveis até ao ultimo suspiro do doente. Quando porém a terminação não he fatal, sobre- vêm huma reacção, que sendo moderada restitue ao seu estado normal as funcções alteradas, mas algumas vezes he tão forte, que produz congestões cerebraes, das quaes vem a succumbir o doente. Estes differentes grupos de syinptomas constituem por assim dizer outros tantos períodos da moléstia, os quaes se suceedem pela ordem, por que estão descritos; mas nem sempre a enfermidade os percorre todos, ora para no primeiro, ora no secundo; outras vezes passa por todos elles, sendo a tranziçaõ successiva do primei- ro ao ultimo em algumas lioras somente; e muitas ve- zes o individuo he atacado fulminantemente, de sorte que perde a falia, e os sentidos, ou então soffre liorri- veis convulsões. Como se sabe, em liuma épidemia, seja qual fôr a sua natureza, saõ tantas, e taõ diversas as maneiras, por que saõ atacados os indivíduos, que he quasi im- possível mencionalas todas. He justamente o que a- contece com a que tem reinado entre nós; muitas ve- zes a moléstia naõ passa do primeiro periodo, outras vezes aprezenta-se logo com os symptomas do segundo, e outras notaõ-se symptomas do primeiro periodo con- fundidos com os do segundo e terceiro. Nem a edade, nem o sexo e muito menos o tempe- ramento tem buiria influencia notável no apparecimen- to, e marcha da enfermidade; outro tanto porém se naõ póde dizer das côres, por que saõ os indios, e os pretos, os que mais tem soffrido, e entre os quaes avulta mais a mortalidade, sobretudo em relaçaõ ã classe branca. 3.° Quesito.— Quaes osrezultados fornecidos pelas in- vestigações nécroscopicas nu cazo de se terem estas feito 1 Resposta.—Naõ tendo a Commissaõ procedido a au- topsia alguma cadavérica pelos muitos affazeres clínicos, os quaes pouco tempo deixavaõ aos seus membros para disso se occuparem, sob pena de abandonarem os do- entes, apenas póde ella remetter a que foi feita pelo Prezidente desta Commissaõ, cujos rezultados saõ os se- guintes.—(o). Habito externo. Rigidez cadavérica muito dezen- volvida, côr cyanica no rosto, maõs, e ventre, o resto da pélle porém pallido, olhos encovados, abdómen aba- tido, e tenso. Abdómen Os intestinos delgados, e o colon em toda a sua extensaõ, vistos exteriormente, offereciaõ hu- ma congestão extraordinária, as suas veias e artérias es- tavaõ de tal fôrma cheias de sangue duro, e denegrido, que pareciaõ injectadas artificialmente para algum estu- do anatomico, igual congestão no figado, pancreas, e mais orgaõs contidos no baixo—ventre; a mucosa do tubo intestinal appresentava huma côr arroxada uniforme em toda a sua extensaõ, e os seus folliculos engorgitados, e entumecidos, reprezentavaõ huma erupçaõ rnilliar; a mucosa gastrica rosada; a injecçaõ dos vazos submuco- sos muito pronunciada; os intestinos grossos continhaõ algum liquido brancacento, e de hum cheiro particular, os delgados só tinhaõ alguns gazes, o figado incizado em varias direcções mostrava a mesma congestão no seu parenchyma; o baço muito duro. Thorax. Os pulmões, e o coração lividos, e com grande accumulação de sangue em coágulos, particular- mente nos ventrículos. Cabeça. Grande congestão nos vazos do cerebro, e suas membranas, nenhum amoHecimento. Naõ pô‘ de sêr observada a espinal medulla. Naõ se proporci- onou ao dito facultativo occasiaõ alguma mais para pro* ceder a outras necropsias. A minoria da Com missão, não convindo na descrip- ção ou resposta dada ao 2.° quesito, assim como a res- (o) Autopsia feita a 19 de Junho, cinco horas depois da morte de João de Carvalho, portuguez, colono, de 50 annos. peito da 2 a parte do l.° quesito, appresentou o seu pa- recer em separado. [ Nota O ]. A’ vista da exposição daquelle complicado cortejo de symptomas fácil será comprehender qual a denomi- nação nosologica, que deverá caber a semelhante épide- mia, trabalho este, que a Commissão não quiz tomar sobre si por lhe não tér sido recommendado nos ditos quesitos, com quanto já ella anteriormente tivesse ex- pressado a sua opinião em oíficio dirigido á Presidência da Província [ Nota P ], no qual a maioria da Com- missão capitulou a moléstia dominante Ckolera-morbus épidemico, e a minoria Chulera-murbus-spoiadico. VI. Grande foi o incremento, que a epidemia tomou em todo o mez de Junho já nesta capital, já estendendo- se pelos seus arrabaldes e freguezias circumvizinhas, e já linalmente assaltando os municípios do interior da província por diversas direcções ( Nota Q, ). Por toda parte ceifava muitas vidas, nMnms logares mais deza- piedadamente, como foraõ Santarém, Óbidos, Cametã, e Chaves, e n’outros mais ou menos compassivamen- te, como foraõ Vigia, Breves, Melgaço, Soure, Monsa- rás, Baiaõ. &. ( Nota K ) No entanto também logares houveraõ, por onde o flagello, atacando quasi toda a po- pulaçaõ, se quiz mostrar favoravel, e benigno, poupan- do as vidas, e naõ fazendo liuma só victima, taes foraõ Cintra, Vizeu, e Bragança nesta pro\ incia, e as villas de Serpa, Bella da Imperatriz, freguezía do Andirã, e cidade da Barra do Rio Negro na província lemitrophe do Amazonas. Finalmente logares mais felizes do que estes ain- da houveraõ, por que naõ consta até esta data, que nel- les penetrasse a épidemia, taes saõ Macapá, Mazag&o, e alguns outros povoados de menor importância. To- davia raros foraõ os ângulos da província, por onde o mortífero inimigo não passasse com mais ou menos fú- ria, e não deixasse os rastos ou vestígios da sua incom- inoda, e lutuoza hospedagem!! Até fins de Julho ha- via o mal avassallado quasi toda a região florescente do magestoso Amazonas. Bem poucos erão os rios tribu- tários do soberbo rio-mar, bem poucos os sitios, roças, aldeias, freguezias, villas, ou cidades situadas em suas margens, que não experimentassem os horrores da no- va e extranha calamidade nunca vista em tão formozas plagas ! Por toda parte reinava o terror, o pranto, a dor, a morte, a saudade, em fim o incalculável prejuízo ! Sim, o incalculável prejuízo, que não será reparado talvez dentro de vinte annos!! ( S ). Nesta capital porem começava a declinar o rigôr da enfermidade com algumas oscillações desde os pri- meiros dias do dito mez de Julho, e na entrada d’Agos- to era já bem sensível a sua declinação, e ainda mais sensível em fins deste ultimo mez ( Nota T ). Em Se- tembro raros erão os cazos morbidos, ainda que termi- nando quasi sempre fatalmente, como sõe acontecer em todas as epidemias. No mez d’Outubro quando todas as esperanças se volviaõpara bem depressa vêr extinguir-se a fatal en- fermidade, he quando inesperadamente, e sem explica- ção plauzivel, se observou, que o mal começava a re- crudescer, e essa recrudescência maior incremento to- mava do meiado do dito mez em diante, de fórma que tendo-se contado apenas 44 victimas em Agosto, 35 em Setembro, em Outubro tivemos de lastimar a perda de 118 vidas! Será acazo condição desta épidemia aggra- var-se ella ao quinto mez de sua existência em quai- quer parte, aonde se apraz de reinar ? Igual phenome- no jã se notou em Vienna em 1831, em Paris em 1832, em Lisboa em 1833, e naõ sei se em algum logar mais. Hoje porém ao escrevermos estes apontamentos podêmos aventurar a feliz noticia, de que a epidemia parece estar extincta por todo o interior da província, e quasi extincta nesta capital. Dizemos quasi extincta, por que ainda hum ou outro cazo se observa n’hum ou n’outro dia, restando- nos a lizongeira esperança de cêdo também vermo--la aqui completamente extincta. Na força da moléstia, isto lie, em Junho, e Julho, observou-se que huma êpizootia, manifestamente destrui- dora, affectava os peixes d’ alguns dos nossos rios: via- se as margens do Anapú, e Tocantins, as praias da cos- ta oriental da ilha de Marajó, juncadas de peixes mor- tos em huma abundancia tal, que cauzava espanto. Examinadas as entranhas desses peixes, achavaõ-se es- tas denegridas, e amollecidas. VII. Se reunirmos áquelles symptomas oecorridos abor- do e em terra as circunstancias da marcha da doença no navio e nesta capital, isto he, os seus primeiros pas- sos occultos, os quaes só muito depois do seu dezenvol- vimento he que poderão ser conhecidos, e sabidos de mui- ta gente, nenhum escrupulo haverá em admittir-se a importação pela galera Defensor. Quando esta galera dezaferrou do Porto com colo- nos, não reinava naquella cidade, he verdade, o Chole- ra-morbus; já existia porém essa moléstia em terras de Portugal, entre outras Valença do Minho, Pêzo-da-Re- goa, Carvalhos, S. João da Pesqueira, Póvoa de Varzim, e mesmo n’alguns Jogares acima do Douro, como poste- riormente aqui se soube pelos jornaes com a chegada doutros navios dali procedentes, logares donde vieraõ, ou por onde passãraõ alguns desses colonos para a Com- panhia de Navegação e Commercio do Amazonas. He mesmo certo, que o encarregado do engajamento dos co- lonos para a dita Companhia, tem por costume não os conservar dentro da cidade, mas sim fora delia, em quan- to os navios naõ largaõ para o seu destino, e alguns destes vieraõ das immediações dos logares, que sõ ago- ra se tem sabido, já eraõ infeccionados. He por tanto mais que provável, que o germen da epidemia, fosse conduzido dezapercebidamente d’alguma dessas terras para bordo da galera, que ahi se dezenvol- vesse, e que até nõs chegasse, sem que da sua existên- cia désse fé algum homem da Arte. Sim, algum ho- mem da Arte, por que esse, que vinha abordo, e que se dizia cirurgião, ignorava os mais triviaes conhecimentos da pequena cirurgia, quanto mais os arcanos da alta medicina! E tanto mais merece attenção este nosso pensar, quanto sabemos, que abordo da embarcação foi recebido hum colono doente, cuja enfermidade não sen- do então diagnosticada, bem podia têr sido o fóco, de donde dimanassem os nossos males futuros ( Nota U). Se se ajuntar a isto a certeza, de que entre as pri- meiras victimas do Cholera se contaõ sete pretos, escra- vos do Exm.° Senr. Baraõ d’Arary, que por ordern de seu senhor vinhaõ da ilha de Cutijuba em hum bate- lão com pedra, lenha, e outros objectos para esta ca- pital, e que por desdita deiles atracáraõ ã galera no dia 14 de Maio, quando ella estava ancorada abaixo da fortaleza da barra, e lá foraõ vender lenha, e peixe, dos quaes pretos seis succumbiraõ huns após outros dentro de poucos dias, huns na dita ilha, e outros na caza de seu senhor nesta capital, para onde eraõ conduzidos do- entes, e ahi pouco duravaõ (*); se se ajuntar ainda que abordo da corveta a vapôr Paraense foi onde o Cholera primeiro começou a demonstrar a sua mã indule, e que isto sõ teve logar depois que para lá foraõ engajados como foguistas dois dos referidos colonos vindos na De- fensor; que o mesmo aconteceo no Batalhaõ 11.° de Caçadores de linha, em virtude de estarem os soldados desse Corpo do Exercito de guarnição no Arsenal de Marinha, quando para lá foraõ no dia 18 de Maio vinte dos mesmos colonos, engajados pelo Governo para a fa- brica do corte de madeiras no Acará, os quaes antes de seguirem para o seu destino pernoitáraõ por duas noites no dito Arsenal, e ahi traváraõ relações, com os soldados, e fizeraõ trocas de roupas, e outros objectos; e finalmente que foi em Óbidos, a duzentas legoas de distancia desta capital, onde a epidemia primeiro se os- tentou no interior da província, a 10 de Junho, poucos dias depois deterem lã chegado cento e oitenta dos mes- mos colonos, que para a li haviaõ embarcado no vapor Tapajós a 18 de Maio por ordem do Governo, crêmos, que nenhum escrupulo, repetimos, haverá em adrnittir- se como real, e verdadeira a importação do Cholera pe- la galera Defensor. VII. Dezejariamos dar toda a expansaõ a estes apon- tamentos históricos com aquella plenitude, e perfeição, (*) Foraõ alguns dos proprios escravos, que reveláraõ esta noticia a seu senhor, o qual a tem referido a muita gente. O primeiro de nome Malaquias, falleceo a 27 de Maio, os outros Joaquim, José, Fernando, Manoel, e José Capió, foraõ successi- vamente fallecendo, escapando apenas hum de nome Raymimdo. que reclamaõ objectos desta cathegoria; faltaõ-nos po- rém os meios, e por isso naõ iremos taõ longe quanto seria mister para satisfaçaõ da Sciencia. Publicaremos no entanto o que havemos colligido, e estudado no meio da negra tempestade, que estallou medonha sobre o nos- so paiz. A. marcha da enfermidade foi a que já acima des- crevemos. Quando o ataque era leve, o doente resta- belecia-se perfeitamente em poucos dias, que em geral naõ excediaõ de oito. Se porém o ataque era formal, e o cholera confirmado, grande era o perigo dos doentes, e não poucos succumbiraó dentro de vinte e quatro ho- ras, não tendo sido raros os cazos dos que falleceraõ em oito a dez horas; mas por via de regra a morte sobre- vinha no fim de doze a dezesseis horas depois da inva- zão bem pronunciada da moléstia. Se o periodo da re- acção apparecia, e esta se caracterizava moderada e fran- ca, o termo médio da duração deste estado morbido era de tres dias, e na grande maioria dos cazos o doente es- capava, tendo sido raros os que falleceraõ nesta occa- zião. A convalescença entaõ era demorada, e deman- dava sérios cuidados, afim de que se não realizassem as recahidas, quasi sempre fataes por via do abuzo das comidas. Tivemos hutna doente neste estado, que haven- do sofifrido hum ataque dos mais genuínos, bem caracte- rizado, e sendo considerada livre de perigo ao sétimo dia da reacçaõ, recahio ao nono dia da enfermidade, e fal- leceo ao decimo quarto, sem que fosse possível fazer suspender a considerável diarrhéa, que a aniquilava de dia para dia.— De grande interesse seria para a Sciencia saber- se ao certo quantas foraõ as pessoas acommet.tidas, e quantas as que falleceraõ: não possuímos porém os dados estatísticos precizos para prelieneher taõ ardua tarefa. Calculamos no entanto, que desta capital fo- raõ atacados os dois terços da sua populaçaõ, orçada aproximativamente em vinte e huma mil almas, e por tanto em quatorze mil o numero dos affectados da en- fermidade. Destes falleceraõ, segundo consta dos assen- tos do cemiterio, desde 26 de Maio até ao fim de Ou- tubro 867 pessoas, cuja proporção corresponde a 6 por cento em relaçaõ aos affectados. [Nota V.] Pouco nos he permittido informar nestas duas importan- tes questões sobre o que ha acontecido pelo interior da pro- víncia; referir-nos-hemos ao mappa organizado na Secretaria do Governo, no qual se rezolve em paite estes dois pontos es- tatísticos. (Nota W.) Se de futuro alcançarmos outros documen- tos, que melhor, e mais completamente possaõ esclarecer es- tas duas questões, cuidaremos em dar-lhes publicidade. No entanto diremos desde já, que em Santarém a pro- porção entre os affectados e os fallecidos he computada em 34 e meio por cento, em Óbidos em 29, em Cametá em 23 e meio, e em Beja em 21; logares, aonde a epidemia maiores es- tragos fez. N’outros pontos porém, como Collares, Guamá, Sal- vaterra, Guajará, Igarapé-mêrim, e Chaves, a mortalidade foi menor, e regulou entre 10 e 16 por cento em relaçaõ aos affec- tados. Outros logares também houveraõ, em que a proporção foi de 2, 4, e 6 por cento; e finalmente outros, como Bragança, Yizeu, &c., em que nenhuma mortalidade houve, com quan- to por lá também reinasse a moléstia. IX. Os meios therapeuticos, empregados para combater esta epidemia, constaõ dos relatórios juntos sob as notas N, e X, salvo alguns outros, cuja noticia naõ chegou ao nosso conhe- cimento <£*c. Desses meios uzados, os que mais aproveitáraõ foraõ os sudoríficos, os cahnantes, os anodynos, merecendo par- ticular mençaõ o elixir parêgorico americano, e o elixir de Voronéje, cujas formulas publicámos (**), e a sangria geral logo na invazaô da doença. O elixir parêgorico americano he hum precioso medica- mento, quer seja applicado no periodo dos prodrômos do cho- lera, quer na cholerina simples, quer mesmo no cholera adian- tado ou confirmado. JNo primeiro e segundo cazo aproveita constantemente. Não vi hum só doente desses dois primeiros grãos, sendo acudido logo, em quem naõ produzisse salutar efieito este remedio. No ultimo grão porém nem sempre se alcançou bom rezultado. Tivemos occazião de reconhecer os seus beneficos rezul- tados em 541 doentes, sendo 145 brancos, 28 tapuios, e 368 (**) Elixir parêgorico americano. R. Opio bruto. .... duas oitavas. Açafraõ. . . Acido benzoico. aã tres ” Oleo essencial daniz. . . trinta e seis grãos. Álcool ammoniacal . . . huma libra. Filtre depois de oito dias de digestaõ. Elixir de Voronéje. R. Álcool de 35.°—sete libras. Chlorureto d'ammoniaco . . huma oitava. Nitrato depotassa. Pimenta negra. . aã S7 grãos. O - - - J Agua real \ onça. Vinagre de 3. ° . . . . huma e meia libra. Oleo de naphta. .... meia oitava. Oleo commum. .... meia onça. It. dhortelã-pimenta . . . sete oitavas. Tomaõ-se o nitro, a pimenta, e o ammoniaco, e lançaõ- se sobre o vinagre; passando huma hora addiciona-se-lhe o álcool, deixa-se em maceraçaõ por espaço de 48 horas, filtra-se, e junta-se-lhe agua real (agua d1 Inglaterra), e tomando o oleo d'hortelã-pimenta, azeite, e oleo de naphta conjunctamen- te se lhe mixturaõ, ficando em repouzo por 12 horas, no fim das quaes se filtra. pretos e de cores a quem soccôrremos nesta capital, e d’ava- liar o seu effeito n’hum sem numero d’outros do interior da província, que deverão a sua vida a este excedente medica- mento. De toda parte o pedião com instancia, e recommenda- ção, tecendo-lhe grandes louvores. Explicámos o favorável re- zultado deste mixto pharmaceutico pela acção do ammonia- co, que entra na sua compozição, por quanto assemelhando- se os eífeitos do cholera aos dos venenos animaes, ingeridos na economia viva, e sendo o ammoniaco hum dos melhores an- ti-septicos, com toda a confiança acreditámos, que por via del- le devia sêr combatido efficazrnente o viras do cholera. Quanto á sangria geral diremos apenas, que a sua van- tagem, e felizes rezultadus, he hoje hum facto incontestável: e deixaremos ao cuidado dos povos, e da imprensa periódica das províncias do Graõ-Pará, e Amazonas, cujas paginas tem sido cobertas de hossânas e agradecimentos continuados e repe- tidos consagrados a taõ salutar medicaçaõ, proclamarem os benefícios alcançados por esse heroico meio therapeutico. Povoações houveraõ, e mesmo huma província inteira, que deveraõ a sua salvaçaõ a esse recurso medico. Na província do Amazonas poucos foraõ os doentes, que deixáraõ de sêr sangrados nessa tremenda crise, e muitos sãos também pro- curáraõ esse soccôrro como meio preventivo, ou prezervativo, livrando-se grande parte destes por semelhante fórma do acom- mettimento da moléstia. (Nota Y.) Nessa província naõ hou- ve hum só cazo de morte, proveniente da epidemia, com quan- to grande fosse o numero dos affectados, o que se pôde attri- buir ao effeito daquelle meio curativo (Nota Z); e nesta mui- tos foraõ os logares, por onde se observou igual acontecimen- to. Em geral por todo o interior fez-se largo uzo da sangria a ponto de chegar a abuzo, excepto em Cametá, aonde ten- do-se manifestado o cholera a 12 de Junho naõ nos consta, que se empregasse semelhante meio, seguramente por naõ se haver tido alli conhecimento dos conselhos therapeuticos, da- dos a 17 de Junho em o n. ° 501 do jornal Treze de Maio, os quaes foraõ publicados em fórma de Boletim dias depois por ordem do Governo, e sómente distribuídos pela popula- çaõ de 20 do mesmo mez em diante. Alguns espíritos mal-intencionados quizcraõ enxergar na- quella publicação o motivo do terror, que reinou em Came- tá, e delle derivar a cauza da grande mortalidade alli occor- rida, quando he publico, que só depois da hida do fallecido Dr. Angelo Custodio Corrêa áquella Cidade a 22 de Junho he que lá se teve noticia do dito Boletim, e a esse tempo já era espantozo o estrago occazionado pela epidemia naõ só na cidade, como pelos districtos de fóra. E quando este facto naõ bastasse para desmascarar esses despreziveis detractores, e mesmo fosse certo, que antes do dezenvolvimento da epi- demia já alli houvesse chegado essa publicaçaõ, verdadeiro balsamo derramado em taõ apuradas circunstancias pelo in- terior do nosso sertaõ, absolutamente baldo de facultativos, perguntaremos nós, não deveria ter succedido em Cametá o mesmo que por tantos outros logares, por onde aquelle escri- to proporcionou incalculáveis benefícios á humanidade em vir- tude da pratica, que ensinava, e da confiança, que diffundia nos ânimos desses povos, destituídos dos conhecimentos mais trivíaes da medicina, quanto mais de outros que demandaõ instrucção hum pouco elevada ? Certamente que sim. Os ho- mens dezapaixonados, e sensatos nos faraó justiça. Na nossa clinica empregámos a sangria em muitos do- entes, sendo quasi sempre corôada de feliz rezultado, e raras vezes sem proveito em cazos já dezesperados, succedendo-se a morte pouco depois. Humas vezes o sangue estava com- pletamente coagulado, naõ corria apezar de todas as diligencias, e o fim era sempre fatal; outras, e naõ poucas, o sangue cor- ria lentamente, e semi-coagulado ao principio, mais liquido logo depois, e na repetição da sangria já perfeitamente liqui- do, e entaõ os doentes escapavaõ; outras finalmente, quando a sangria era empregada de prompto, em cazos dos capitula- dos fulminantes, o sangue corria com dezembaraço, e até mes- mo custava a vedar apezar de bem apertada que estivesse a ligadura. Alguns outros médicos, e cirurgiões, também lançáraõ maõ desse recurso, e sempre com extraordinária vantagem; outros porém houveraõ, que o proscreverão absolutamente. l)e 541 doentes, que tratámos, valendo-nos constantemente dos mes- mos meios, isto he, daquelles que foraõ acconselhados em o nosso Boletim, perdemos trinta e tres, cuja proporção he de seis por cento, proporçap epi nossa humilde opiniaõ muito vantajoza e lizongeira. X. Os medicamentos, que geralmente foraõ empregados poi toda esta província, e na do Amazonas, saõ os que. constaõ da Nota (gq ), havendo sido distribuídos por toda parte com profuzaõ por ordem do Governo a expensas do Thezouro. Naõ houve freguezia, villa, ou cidade, colonia, povoado, ou al- deia, por mais insignificante que fosse, que naõ merecesse a contemplação da lembrança do Governo em semelhante parti- lha. E o mesmo aeonteceo a respeito da distribuição d’outros soccórros públicos, taes como roupas, galinhas, carne, farinha, bolaxa, assucar, e dinheiro para acudir á pobreza. Os redi- tos da fazenda publica tanto geral, como provincial, foraõ pos- tos em contribuição, para esse fim emminentemente humani- tário, com maõ larga e generoza, porém com discrição, e eco- nomia. Poucos foraõ os facultativos, de quem o Governo poude dispor para serem empregados nos logares de maior calami- dade, e afflicção: e tanto destes, como daquelles a quem não coube taõ honroza commissão, nenhum houve, que recuzasse prehencher a tarefa, que lhe era destinada, nenhum fugio do logar do perigo, nenhum abandonou o seu semelhante no leito da dôr, nenhum temeo a morte por via do risco, que poderia correr, nenhum dezamparou o posto honrozo, que lhe estava confiado/ Todos se esforçarão quanto poderão, huns mais, outros menos, e alguns mesmo houverão, que praticarão es- forços quasi sobrehumanos ! ! ! Se á nobre classe medica al- guma vez coube a gloria de haver satisfeito religioza, e so- beranamente a sua alta, e divina missão, foi certamente nes- ta critica situação, nesta terra, e neste fatal anno. Compartilháraõ desta gloria os pharmaceuticos, tanto da capital, como de Cametá e Santarém, os quaes naõ se poupá- raõ a fadigas, conservando abertas as suas boticas dia e noi- te por espaço de dois mezes, e soccorrendo por todos os mo- dos ao seu alcance os infelizes doentes. He também merecedor de elogios o clero paraense pela dedicaçaõ, com que ao ouvir o reclamo do bom Pastor acudio ás suas ovelhas consternadas, e pelas consolações da Religião, que soube despender aos enfermos no meio das suas attribu- lações. Honra lhe seja feita. Não posso furtar me ao dever de fazer patente o zêlo, e a diligencia, que dezenvolveo, e o extraordinário trabalho, que voluntariamente supportou o Inspector da Thezouraria de Fa- zenda, por occazião da remessa dos medicamentos ou ambu- lancias para os diversos pontos da província. Foi incansável esse empregado dia e noite neste serviço, já distribuindo os medicamentos por classes proporcionalmente segundo a força das populações, para onde erão destinados, jã procurando por- tadores promptos e seguros para essas muitas localidades, e já finalmente ajudando o boticário fornecedor a empacotar e acondicionar os proprios medicamentos, só com o fim de acti- var o expediente desse serviço. Finalmente o Governo da Província he digno de since- ros elogios pelo interesse, e disvélos, que liberalizou para melhorar a sorte do povo, que lhe fôra confiado. O nome do Vice-Presidente Angelo Custodio Corrêa, victima da épidemia e do destino, será sempre lembrado com saudade, e admira- çaõ pelo muito bem, que fez á humanidade, e especialmen- te á classe pobre, e em geral pelas sabias providencias, que deo a fim de remediar os horrores da fome, que nos amea- çava. Os nomes dos seus successores Joaõ Maria de Moraes, e Miguel Antonio Pinto Guimarães, passarão á posteridade, co- bertos das bênçãos de seus comprovincianos pelas acertadas medidas, que souberão adoptar a fim de minorar os soffri- mentos da humanidade, que gemia. Pará 15 de Novembro de 1855. HTOTA A. Cemiterio da Soledade. 185o—Janeiro. Masculinos Femininos 31 De differentes doenças 73 27 De lebre amarella 5 10 De cholera o 12 80" Maiores. Masculinos Femininos Menores. Fevereiro. Maiores, Masculinos Femininos 26 De differentes doenças 37 18 De febre amarella 3 10 De cholera 0 6 60 Menores. Masculinos Femininos Março. Maiores Masculinos Femininos 29 De differentes doenças 60 23 De febre amarella 8 6 De cholera 0 8 68 Masculinos Femininos Menores Abril. Maiores. Masculinos Femininos 29 De differentes doenças 66 11 De febre amarella 18 De cholera 0 13 7S Masculinos Femininos Menores Janeiro. Masculinos Femininos 15 De differentes doenças 51 15 15 10 Maiores, Menores Masculinos Femininos Fevereiro. 9 De differentes doenças 50 15 21 5 Maiores Masculinos Femininos Masculinos Femininos Men res Março. 22 De differentes doenças fi(4 15 De febre amarella i 17 15 07 Maiores Masculinos Femininos Menores Masculinos Femininos Arril. Masculinos Femininos 18 De dilférenles doeueas .'>6 21 De febre aiviarella 1 12 6 o7 Maiores Masculinos Femininos Menores 1853 Janeiro. Maiores. Masculinos Femininos 16 De differentes doenças 49 16 De febre amarella 1 12 7 60 Masculinos Femininos Menores i Fevereiro. Maiores. Masculinos Femininos 11 De differentes doenças 66 15 12 17 Masculinos Femininos Menores Março. Maiores Masculinos Femininos £2 De differentes doenças 72 12 De felwe amarella i 26 14 76 Menores Masculinos Femininos Abril. Maiores. Masculinos Femininos 16 l)e differentes doenças 66 19 De febre amarella f 16 10 m Mencres J Masculinos | Femininos i 852. Janeiro. Masculinos Femininos 15 De differentes doenças 36 12 De Variola 1 7 De febre amarella 7 39 Maiores Menores Masculinos Femininos Fevereiro. Masculinos Femininos 13 De differentes doenças 36 41 De Variola 2 8 De febre amarella 1 7 39 Maiores. Masculinos Femininos Menores' Março. lo De differentes doenças 37 12 Dc Variola N 13 r> *3 Maiores Masculinos Femininos [ Masculinos f Femininos Menores Abril. 20 I)e differentes doenças 47 12 De Variola 3 9 De febre amarella 3 12 53 Maiores Masculinos Femininos Menores Masculinos Femininos Nota—E Certifico em observância do despacho retro, que revendo o diário náutico feito abordo da Galera Por- tugueza ” Defensor Capitão Rafael Antonio Pereira Caídas em viagem do Porto para esta Cidade n’elle a folhas cinco verso no dia vinte e quatro de Abril e nono de viagem no lugar das novidades consta o seguinte.—Durante esta singradura falleceraõ tres cri- anças passageiras; a saber, Joaõ de quatorze mezes, filho de Joaõ de Araújo e sua mulher; Maria de quinze mezes, filha de José Teixeira Balão e mulher, am- bas por haver seccado o peito ãs mãys; e Anna filha de Manoel dos Santos Neves, dois annos de idade, de bichas:—Sendo estes os primeiros fallecidos.—Que no mesmo diário a folhas quatorze verso no dia doze de Maio e vinte e sete de viagem consta o seguinte: — Falleceu durante esta singradura Maria Dias, mulher do passageiro Joaõ Antonio de Moraes, natural de Santo Thirso, de trinta annos de idade.—Falleceu mais Joaõ Teixeira cazado com Maria de Carvalho, natural de Amarante, de trinta e oito annos.—Sendo este o ultimo obito havido abordo. Que do mesmo diário consta que o Navio sahio da Cidade do Porto no dia quinze de Abril, e deu fundo no porto desta Cidade no dia quinze de Maio, tudo de mil oitocentos cinco- enta e cinco. Que o total dos fallecidos foi 36, sen- do 35 passageiros e um moço do Navio: A saber: 3 em vinte e quatro, 1 em vinte e cinco, dois 2 em vinte e sete, 2 em vinte e oito, 1 em vinte e nove de Abril, 4 em primeiro, 2 em dois, 4 em quatro, 5 em cinco, 2 em seis, 3 em sete, 3 em oito, 2 em dez, e 2 em doze de Maio. Ao referido Diário me reporto. Em fé do que fiz passar a presente que vai pur mim assignada e Sellada com o Real Sello das Armas do Consulado da Nação Portugueza no Pará aos 30 dias do mez de Junho de 1855.—Felix José Pereira Ser- zedello, Vice Cônsul.—Estavaõ as Armas do Consulado da Nação Portugueza no Parã.—Grátis.—Sello.—N.° 45—320 —Pg. tresentose vinte réis.—Pará 6 de Agosto de 1855.—Souza.—Navegantes. Nota F. Illm.0 Senr.—Levo ao conhecimento de V. S.a, para chegar ao do Governo da Província, que indo agora mesmo o Guarda- Vlõr d’esta Alfandega visitar a Ga- lera Porlugueza—Defensor—,que acaba de entrar do Porto com colonos, refere que naõ poude realisar a visita por achar-se a mesma impedida pela Provedoria da Saúde, e que aproximando-se a ella o escaler do Guarda-Mõr correo ás amuradas grande numero de colo- nos clamando voz em grita contra o Capitão que os ma- tara de fome e mãos tratos durante o curso da viagem, do que resultou o perecimento de trinta e tantos; asseve- rando o mesmo Guarda-Mõr que de facto lhe pare- ceraõ estenuados e opprimidos de mizeria. Este facto abominável, que tanto pode concorrer para dificultar a emigração para esta Província, naõ pode ficar impune, e por isso julgo dever leva-lo ao conhecimento da authoridade superior, communicando-o a V. S.a Deos Guarde a V. S.a Alfandega do Para 15 de Maio de 1855.—lllm.° Senr. Manoel Kodrigues de Almeida Pinto, Digno Inspector da Thesouraria de Fasenda.—O Inspector—Fábio Alexandrino de Carva- lho Reis. O Inspector da Thesouraria de Fasenda da Pro- víncia communica ao Senr. Dr. Inspector da Alfandega, que o seo officio de hontem a respeito dos colonos que vieraõ no Navio Portuguez Defensor foi na mesma data remettido por copia ao Exm.° Senr. Vice-Presi- dente da Província, rogando-se que houvesse de o to- mar em consideração. Thesouraria de Fasenda do Pará 16 de Maio de 1855.—Manoel Rodrigues de Al- meida Pinto. Nota—G. Copia.—Illm.° Senr. Neste momento acabo de re- ceber do Exm.° Senr. Presidente da Província o oíli- cio junto, e copia de outro do Inspector da Alfandega; e cumprindo quanto antes responder sobre a matéria delles, os encaminho por isso ãs mãos de V. S.a para que me informe sobre o que souber a respeito, e me indique as providencias que convirá tomar em semelhante emer- gencia. Deos Guarde a V. S.a Pará 15 de Maio de 1855.—Ulm.° Senr. Dr. Camillo José do Valle Gui- marães, Provedor da Saúde do Porto.—Dr. Francisco da Silva Castro, Presidente da Commissaõ de Hygiéne Publica. Nota—H. Copia.—Illm.° Senr. Respondendo ao officio de V. S.a datado de hontem, que acompanhou outro do Exm.° Senr. Presidente da Província para que eu informe a respeito da Galera Portugueza Defensor, entrada hon- tem da Cidade do Porto, tenho a significar a V. S.a, que tendo-me dado parte o Secretario desta Reparti- ção de ter impedido o mesmo Navio, em razão de ha- verem fallecido trinta e cinco Colonos, fui immedia- tamente examinar a referida Galera, e reconheci na realidade, que estes infelizes naõ falleceraõ de moléstia alguma de caracter maligno, ou contagioso, que na via- gem apareces.se, mas sim morreraõ á fome, á sede, e espancados pelo Capitão, que além de dar-lhes péssimo alimento, ainda chegou a tanto a malvadeza deste Ca- pitão, que esse mesmo pouco e péssimo que dava, era cozinhado com agua salgada. A’ vista do deplorável estado em que achei estes passageiros cobertos de mi- zeria, desembaraçei a dita Galera, dando-lhe neste porto a livre pratica. E’ o que me cabe responder a V. S.a Provedo- ria da Saúde Publica do Pará 16 de Maio de 1855. 111 m.° Senr. Dr Francisco da Silva Castro, Presidente da Commissão de Hygiéne Publica. Dr. Camillo José do Valle Guimarães, Provedor da Saúde do Porto. Nota— I. Remetto a V. Mc. o incluso officio por copia do Cônsul de S. M. Fidelíssima, a fim de que a Commis- saõ de Hy giéne Publica satisfaça as requisições que no mesmo faz o dito Cônsul, com quem se deverá enten- der a respeito. Ueos Guaide a V. Mc. Palacio do Go- verno da Província do Pará 19 de Maio de 1855.— Angelo Custodio Corrêa.— Senr. Presidente da Commis- saô de ii y giéne Publica. Nota— J. Illm.° e Exm.° Senr.—Tendo aqui aportado no dia 15 do corrente procedente da Cidade do Porto a Ga- lera Portugueza denominada Defensor condusindo muito aproximadamente o numero de 300 passageiros, acon- tece terem failecido durante a viagem, pelo que até agora se tem podido verificar, 36 d’elles, e interrogado o Cirurgião sobre as causas da moléstia que deo lugar a tamanha mortandade, informa que foi resultado de diarrhéas: E apesar de que o facultativo apresente um diploma legal, tenho entrado em duvida que elle seja o mesmo indivíduo a quem se refere o diploma, isto por queixas e ditos de alguns dos mesmos passageiros: Em vista disto pretendo dever a V. Ex.a o obséquio de que a Junta de Hygiéne Publica o interrogue, a fim de verificar por suas respostas se será o proprio de que trata o diploma, e do resultado esclarecer-me com uma exposição por escrito da dita Junta. Se V. Ex3 se dignar acceder ao meo pedido, espero tenha a bondade de indicar-me o dia, hora, e local aonde o devo fazer comparecer. Também se torna necessário que a mes- ma Junta de Hygiéne Publica proceda a um exame nos mantimentos de sobresalente do dito Navio para declarar a qualidade e estado delles, e do que encon- trar ministrar-me o resultado d’esse exame, para o que V. Ex.a terá a bondade de dar as convenientes ordens e indicar-me a occasiaõ em que isso põde ter lugar. Keitéro a V. Ex.a os protestos de minha estima e con- sideração. Deos Guarde a V. Ex.a Consulado da Na- çaõ Portugueza no Pará 18 de Maio de 1855 — Illm.° e Exm.° Senr. Dr. Angelo Custodio Corrêa, Vice Pre- sidente da Provincia.— Fernando José da Silva, Cônsul. Conforme— Manoel Roque Jorge Ribeiro, servindo in- terinamente de Secretario do Governo. Nota—K. Ulm.° e Exm° Senr.— A Commissaõ d’Hygiéne Publica em resposta ao oílicio de V. Ex.a de 19 do corrente, cobrindo outro por copia do Cônsul de S. M. Fidelíssima nesta Provincia, tendente á grave questaõ da mortandade occorrida em viagem abordo da galera portugueza “ Defensor” aqui aportada no dia 15, pro- cedente da cidade do Porto com cerca de trezentos emigrantes, alli engajados pela Companhia de Navega- çaõ e Commercio do Amasonas por conta do Governo Imperial, tem a honra de ponderar, que promptamente satisfez ã ordem de V. Ex a, expedida em aquelle seu dito oíficio, embora essa especie naõ tivesse sido pre- vista pelo Decreto de 29 de Setembro de 1851, que regula as attribuições das Repartições de Saúde Publi- ca do Império, naõ sõ por estar capacitada, que era do dever seu concorrer, quanto possível lòsse, com os meios ao seu alcance para o esclarecimento, e indagaçaõ da verdade de huma questaõ taõ transcendente, a qual se por hum lado fére os sagrados interesses da humani- dade, por outro naõ menos affecta os do progresso do paiz, como por que a urbanidade, e delicadeza do men- cionado Cônsul, pedindo o favor da coadjuvaçaõ desta Commissaõ, aconselhavaõ, que sem mais reflexões se lhe sahisse ao encontro com hum auxilio erticaz, e di- gno de homens, que exercem a Medicina como hum verdadeiro Sacerdócio. No dia 21 portanto celebrou esta Commissaõ hu- ma Sessaõ extraordinária com o fim unico de aquila- tar os conhecimentos profissionaes do sujeito, que se apresenta como Cirurgião do dito navio, o qual presen- te estava acompanhado do Vice-Consul Portuguez e do Piloto da embarcaçaõ; e depois de reconhecer legal o diploma, de que elle he portador, expedido em 2.a via em 1836 pela Senhora D. Maria 2.a, de Saudoza Memória, e assignado pelo Cirurgiaõ-Mõr do Reino de Portugal, Antonio Joaquim Farto, isto em virtude de haver o dito sujeito perdido na Costa d'Afiica o seu primeiro diploma passado em 1824, em cujo anno fez os seus exames no Hospital de Guimarães, passou a Commissaõ a conferir a assignatura do impetrante com outra, que nessa mesma occaziaõ fez, a qual foi julga- da semelhante, naõ se responsabilizando todavia a Com- missaõ pela identidade da pessoa, por que naõ a co- nhece. Em seguida dirigio-lhe a Commissaõ varias per- guntas sobre alguns pontos mui comezinhos da pequena Cirurgia, todas mui simples, e proporcionadas ao grão provável da sua instrueçaõ, e comprehensaõ. Nesta argumentaçaõ demonstrou o dito sujeito, que mui pou- cos, ou quasi nenhuns, conhecimentos possíie da scien- cia, que diz professar. A- vista pois das respostas absurdas, da ignorân- cia, e d?alguns esclarecimentos ministrados pelo pro- prio sujeito no acto do pequeno exame, a que foi sub- mettido, concluio a Commissaõ com todo o fundamento, que o Cirurgião da galera portugueza “ Defensor ” de nome Manoel Teixeira de Macedo, naõ lie mais do que hum fraquíssimo Cirurgião d’aldeia, sem outras habili- tações além daquellas que pela pratica costumaõ ad- quirir nos hospitaes os indivíduos, que servem de en- fermeiros, naõ havendo elle frequentado curso algum regular da Arte de Curar. Hpntem transportou-se a Commissaõ em compa- nhia do Vice-Consul Portuguez abordo da dita galera com o proposito de apreciar a qualidade, e o estado dos mantimentos de sobresalente, e as cauzas prová- veis, ou mesmo reaes, daquella catastrophe, o que cons- tiifie a segunda parte do otíicio do Cônsul de S. M. Fidelíssima, dirigido a V. Ex.a A Commissaõ depois de hum accurado, e escrupulozo exame pôde alcançar as seguintes provas.— I .a Que a agua, a carne de moura, as sardinhas, os feijões, e os biscoutos saõ de boa qualidade, e con- servaõ-se em bom estado. 2. a Que a bolaxa he de péssima qualidade, fa- bricada em grande parte com setneas, achando-se al- gum tanto deteriorada, e azêda, parecendo ser de torna viagem. 3. a Que o bacalhão he bastante inferior, e começa a dar indícios de putrefaçaõ. 4. a Que o serviço da cozinha, isto he, as caldei- ras em numero de tres, em que se preparava a comi- da dos ditos emigrantes, saõ de cobre, naõ estanhadas, mui sujas e velhas, e completamente cobertas de azinha- vre ou verdete de cobre, e outros saes do mesmo metal. 5. a Que a estes saes de cobre, decompostos pelo hydrochlorato de soda ou sal da cozinha, contido em grande abundancia nas sardinhas, bacalhão, carne sal- gada, e na agua do mar, corri que estas comidas por via de regra eraõ cozinhadas, segundo afiirmaõ os mes- mos emigrantes, se deve attribuir a principal cauza, senaõ a unica, da enfermidade dezenvolvida entre aquei- les infelizes. 6. a Que naõ pouco haviaõ de auxiliar a manifes- taçaõ de semelhante doença as comidas mal-sans, e mal-preparadas. 7. a Que a dita enfermidade naõ foi outra couza mais do que o envenenamento pelo chlorureto de co- bre, o qual foi geral em todos quantos participáraõ das comidas feitas em aquellas fatídicas caldeiras, havendo apenas escapado da eminencia do mal os que faziaõ seu rancho em separado em pequenas marmitas de fo- lha de ferro. 8. a Que todos os symptomas enumerados pelo cirurgião, taes como, vomitos continuados, diarrhéas, cólicas, esfriamento geral, sêde, olhos encovados, pros- tração absoluta, e a final morte quasi fulminante, con- firmaõ esta opiniaõ. 9. a Que a circunstancia de haver-se manifestado esta doença, logo que se começou a empregar as refe- ridas caldeiras, isto he, ao 8.° dia da viagem, abonaõ ainda esta mesma opiniaõ. 10. a Que até esse dia nenhum outro incommo- do, além dos enjoos, flagellou a esses pobres infelizes, Í)or que até essa época era a comida preparada em íuma enorme panella de folha de fiandres, a qual ao depois se dessoldou em mais de hum ponto do seu fundo, e por isso foi abandonada. ll.a Que as tres primeiras victimas (tres crian- ças de menos de dois annos) sacrificadas ao 9.° dia da viagem pelo criminozo indifferentismo, e indisculpavel negligencia das authoridades portuguezas do logar ou porto, de donde dezaferrou a embarcaçaõ, e naõ me- nos pela avareza do dono do navio, e desmazêlo do commandante da embarcaçaõ; e mais outras duas (tam- bém de menor idade), igualmente sacrificadas pelos mesmos motivos ao decimo dia da viagem, todas com symptomas de envenenamento, fazem ainda acreditar como bem fundada aquella opiniaõ. 12.a Finalmente que a dita moléstia nenhum ca- rácter ofierecia, por donde podesse ser capitulada de épidemico—contagiosa. He quanto a Commissaõ conseguio colligir para bem poder orientar a V. Bx.a sobre taõ extraordinário facto, digno de lamentar-se ! A Commissaõ lastima semelhante acontecimento, e fica fazendo votos, para que este triste exemplo da incúria dos homens possa ao menos para o futuro servir de estimulo áquelles que estaõ encarregados da sorte dos povos a melhor velar e providenciar pela segurança de suas vidas. Deos Guarde a V. Ex.a Sala das Sessões da Com- missaõ dTIygiéne Publica do Graõ-Pará 23 de Maio de 1855.— lílm.° e Exm.° Senr. Dr. Angelo Cuslodio Corrêa— Vice-Presidente da Província.— Dr. Francisco da Silva Castro—Presidente.—Dr. José Ferreira Canta õ- Secretario.— Dr. Augusto Thiago Finto — Dr. Camillo José do Valle Guimarães— Provedor da Satide do Porto, Nota—L. Illm.° e Exm.° Senr. Pelos dois N.os do Treze de Maio, que a Com- missaõ junto envia, verá V. Ex.a o que ha occorrido sobre a grave questaõ da galera portugueza Defensor, aqui aportada no dia 15 do coírente, sómente pelo que toca ao lado sanitario. Até ao dia 25 achava-se collocada essa questaõ importante, quanto ao diagnostico, no mesmo ponto, que referem os documentus impressos no dito jornal, isto sem que restasse alguma duvida ao espirito pres- crutador. Acontece porém que no dia 26 dois soldados do 11.° de Caçadores de Linha cahissem atacados re- pentinamente de huma enfermidade com todos os symp- tomas do Cholera-morbus, os quaes falleceraõ em pou- cas horas; que durante essa noite, e dia seguinte adoe- cessem mais duas praças do mesmo Batalhaõ, das quaes também huma foi victima, havendo ficado promp- ta a outra; que na marinha de guerra apparecessem sete cazos idênticos, dos quaes tres foraõ fataes, dois saõ esperançozos, e outros dois ainda duvidozos; que na clinica particular cinco cazos semelhantes em pes- soas escravas ou da classe baixa se tenhaõ manifesta- do, e todos mortaes dentro de oito a doze horas; e para desde logo ficou vacillante o juizo medico proferido so- bre o caracter e natureza da moléstia experimentada abordo da galera “ Defensor Em vista pois de taõ extranho suecésso a Com- missaõ d’Hygiéne Publica, acompanhada d’alguns fa- cultativos militares, e do Medico Consultante dos Hos- pitaes Regimentaes, deo-se pressa em dirigir-se ao Hospital Militar por convite do Ulm.° Senr Comman- dante das Armas a fim de observar escrupulozamente os doentes alli existentes, afTectados deste mal; e o re- zultado da observaçaõ, e discussão foi que a doença recem-apparecida parecia segundo os symptomas o cho- lera-morbus—sporadieo com caracter grave. Se este terrivel flagello será realmente sporadieo, como já em annos anteriores tem sido aqui observado nas épocas da passagem do veraõ para o inverno, e vice-versa, ao qual alguns facultativos tem capitulado de “ cholerina ”, ou se épidemico-asiatico, só o futuro he quem nos po- derá esclarecer. Neste ultimo cazo naõ póde por em quanto a Commissaõ affirmar se a importaçaõ seria feita por aquella galera, no cazo de ter havido erro no juizo formado pela Commissaõ sobre a moléstia que reinou abordo durante a viagem, ou se por algum ou- tro navio, dos muitos que frequentaõ o nosso porto procedentes dos Estados-Unidos, ou se por huma golêta hollandeza, ha pouco aqui entrada de Surinam, a qual, segundo consta, costumava navegar para alguns logares das pequenas Antilhas, por onde em o arme lindo gras- sou aquella devastadora peste. Deve a Commissaõ acrescentar, que os colonos vindos na galera Defensor, dezembarcaraõ para a caza, que a Companhia de Navegaçaõ e Commercio do Ama- zonas tem destinado para aquelle fim; que tem estado em constante contacto com muitos outros que cá esta- vaõ; que nem hum, tanto dos recem-chegados, como dos antigos, tem adoecido de semelhante moléstia; que no quartel do Corpo de Policia Provincial, que demora paredes-meias com a dita caza, naõ se ha dezenvolvi- do nem hum cazo semelhante; que no bairro, aonde moraõ os colonos, (a Campina), e no da Santíssima Trindade, naõ tem apparecido luim sõ cazo; que no 3.° Batalhaõ d’Artilharia a pé naõ se tem offerecido cazo algum destes; que abordo das embarcações mercantes nem hum tem havido; finalmente que estes cazos mór- bidos somente tem sido observados n’huma extremidade da Capital, no bairro da Sé. Inclina-se a Commissaõ a pensar, que esta enfer- midade naõ passará de Cholerina hum pouco grave; no entanto faz a Commissaõ esta communicaçaõ a V. Ex.a para seu conhecimento. Deos Guarde a V. Ex.a Sala da Commissaõ d Hy- giéne Publica do Graõ-Pará 30 de Maio de 1855.— Illm.° e Exm.° Serir. Dr. Francisco de Paula Cai.dido, Presidente da Junta Central de Hygiéne Publica do Rio de Janeiro.—- Dr. Castro— Presidente.— Dr. Cantaõ — Secretario.— Dr. Oliveira—vencido quanto ao diagnos- tico de cholerina.— Dr. Molcher—Commissario Vacci- nador.— Dr. Camillo— Pi\> vedor da Saúde, Nota—M. Il!m.° e Exm* Senr. Como depois que a Commissaõ d’Hygiéne Publica desta Provinda teve a honra de endereçar á Junta Central o seu officio de 30 do passado, se proporciona esta occaziaõ de dar a V. Ex.a mais algumas informa- ções acerca da nova moléstia aqui reinante, julguei de- ver aproveita-la para este fnn. Alguns cazos mais do Cholera-sporadico appareceraõ até ao dia de hontem, naõ havendo excedido porém todos os observados des- de 20 do passado até hontem de 25 ou 26 tanto nos hospitaes como na clinica particular. Dezesseis desses foraõ fataes. Hoje nenhum cazo por ora se manifestou; e hontem apenas se deraõ tres, dos quaes dois foraõ mortaes em sete horas. Na próxima barca relatarei a V. Ex.a algumas cir- cumstancias mais, assim como o que de novo occorrer. L)eos Guarde a V. Ex.a Pará 2 de Junho (ás 4 horas da tarde) de 1855 — Ulm.° e Exm.° Senr. Dr. Francisco de Paula Cândido.— Dr. Francisco da Silva Castro. Nota—N. Senhor Hedactor. Sendo pratica nos paizes civilisados publicarem os Médicos, ou as Corporações Medicas, em épocas épi- demicas boletins, pelos quaes se patenteie ao publico as phases das doenças reinantes, e os tratamentos, que mais tem aproveitado, consultei a semelhante respeito alguns dos meus collegas; e como encontrasse entre elíes acordo, e apoio a favôr desta boa pratica, co- meçarei por dar o exemplo, publicando o resultado do que tenho colhido na minha clinica na actual quadra épidemica do Ckolera-morbus, infelizmente desenvolvido nesta capital desde os últimos dias do mez ultima- mente findo. V. muito me obzequiará, se se dignar inserir no seu acreditado jornal estas minhas breves considerações, pelo que me confessarei grato. Para 11 de Junho de 1855. Dr. Francisco da Silva Castro, BOLETIM. Duas palavras sobre a\ epidemia reinante, I Q,ue era o Cholera-morbus a enfermidade por mim, e por outros médicos, observada no Hospital Militar desta Capital a 28 de Maio deste anno em quatro doentes ali recolhidos desde o dia antecedente, praças hunsdo Ba- talhão 11.° de Caçadores, e outros da Corveta a va- por Paraense, naõ restava a menor duvida. E assim o participei na qualidade de Presidente da Commissão d?Hy£Íéne Publica desta Provincia, e a mesma Com- missão, ã Junta Central d’Hygiéne Publica do Rio de Janeiro. Se pois aquelle terrível flagello seria spora- dico, ou épidemico, sõ o tempo, e a observação me- dica, o poderiaõ demonstrar. As minhas apprehensões porém á vista dJalguns phenomenos morbidos nJaquelle momento apanhados á cabeceira dos infelizes doentes, que faziaõ objecto do nosso estudo, comparados com os symptomas outr’ora por mim observados na Europa em 1834 em indivíduos atacados de igual moléstia, fo- raõ desde logo sinistras. Na minha humilde opiniaõ, entaõ reservada, mas bem interpretada por algumas phrases isoladas por alguns dos meus collegas, a do- ença, que dava motivo ãquella discussão, trazia o cu- nho, e o typo original do devastador Cholera, que tantos povos tem assolado em sua peregrinação pela Asia, Europa, e America. No entanto pedia o bom senso, que fosse prudente na apreciaçaõ daquelles factos; que naõ revelasse, nem proferisse, senaõ com madureza, e muito conselho, o juizo aziago, que sobre elles a ex- periência, e a pratica me obrigavaõ a formar. E assim procedi. A minha opiniaõ d7entaõ foi, que a moléstia, que acabava de se manifestar a meus olhos, naõ era por em quanto mais do que o Cholera-sporadico; e con- fiava na Divina Providencia, que mais adiante naõ pas- saria. Infelizmente fui illudido na minha enganadora confiança, e o mal tem depois disso tomado incremento, passando no curto praso de quinze dias de caza em caza, fazendo naõ poucas vietimas, mostrando em muitas occasiões a sua horrenda catadura, como se estivesse nas margens do Ganges, donde he oriundo. II. Os primeiros casos observados tiveraõ logar no dia 26 de Maio, manifestados em duas praças do Ba- talhão 11.° de Caçadores, as quaes succumbiraõ den- tro de poucas horas. A estes succederaõ-se outros, também praças do mes- mo Batalhão, e da Corveta a vapôr Paraense, dos quaes até boje ( 11 do corrente ) 20 tem sido vietimas, sendo 7 do Batalhão, e 13 da Corveta. A totalidade dos ata- cados monta a 52, sendo 20 do Batalhão, e 32 da Corveta. No 3.° Batalhão d’Artilheria a pé naõ tem occorrido facto algum de semelhante doença. No Corpo de Policia Provincial apenas tem ha- vido dois cazos, e esses mui favoráveis. No Hospital da Caridade tem sido admittidos onze doentes desta especie sendo nove índios dns canoas de commercio interno, e dois pretos escravos da Santa Gaza; estes curãraõ-se ambos, e daquelles morrerão quatro. Na Cadeia Publica naõ me consta, que se tenha reconhe- cido casso algum desta doença; e o mesmo tem sucre- dido abordo das embarcações mercantes surtas no porto. Nos colonos da Companhia de Navegação do Amazonas aqui rezidentes tem apparecido somente dois factos, ambos bem graves, hum no dia 8, e outro a 1L do corrente em sujeitos gallegos, os quaes escapãraõ do perigo, que os ameaçou muito de perto. Na clinica particular a enfermidade nos primeiros dias da sua invazão começou por demonstrar-se somente no bairro da Sé por cazos mui disseminados, quasi todos fataes; hoje desgraçadamente está desenvolvida por todos os bairros da Capital, pelos seus arrebaldes, pelas ilhas fronteiras, e por algumas freguesias próximas; e segundo se diz pelos municípios de Igarapé-mêrim, e Soure. Pelos meus cálculos prezumo, que tem sido affectadas cêrca de mil pessoas na Capital nestes últimos quinze dias. A classe baixa da sociedade, particularmente os tapuios ou indios, os pretos, e os que participaõ do cru- zamento destas duas especies do genéro humano, saõ os que tem sido menos poupados, e he nestas raças, es- pecialmente na primeira, em quem a moléstia maiores estragos tem produzido, manifestando-se com todos os symptomas bem pronunciados do cholera-asiatico, e de- cidindo da vida fatalmente em poucas horas. Hum ou outro destes pobres infelizes, com quem por acazo ou por fortuna o mal tem sido menos rigorozo, escapa de longe em longe á mortífera sanha do terrível fla- gello. Entre os pretos saõ os escravos os que mais tem padecido, mõrmente aquelles, cuja alimentação por via de regra he pouca, e má; que abuzaõ em alto gráo das bebidas espirituosas; que andaõ mal agazalhados de roupa; que vivem em habitações húmidas, e im- mundas, verdadeiras possilgas; e a final, quando doen- tes, para maior desgraça sua, recebem hum tratamento tardio, e pouco desvellado de seus deshumanos Senho- res ! Na raça branca, ou caucasica a doença pronun- cia-se em geral sob o caracter de ckolerina mui benigna. Nos mulatos, mamelucos, e nas demais raças crusadas, ainda a doença he benigna, porém sempre alguma gra* vidade se descortina atravéz dos symptomas patentes, que faz reclamar muita attenção, e sérios cuidados da parte dos assistentes. III. O systhema de tratamento therapeutico, que tenho adoptado he o seguinte.— Se o doente olferece os symptomas de enfraque- cimento nas pernas, abatimento geral, prostração, dôr de cabeça, escurecimento da vista, deliquio, a que o povo chama arvoamento da cabeça, esfriamento nas maõs, e pés, nauseas, ancias, ás vezes vomitos, suõr frio, e copioso, boca secca e amargosa, sêde, ligeira febre, e branda dôr no épigastrio ou estomago ( C/w- lerina leve ), basta tomar tres ou quatro golles de ca- chaça com puehirí ralado, ou sem elle, logo depois huma boa chávena de infuzão de macella, ou de tilia, losna, salva, ou ainda melhor de grelo de larangeira com tres ou quatro colheres de coagnac, anisêta, genebra, ou cachaça fõrte, e fazer algumas fricções seccas na boca do estomago com huma escova, ou baeta. A’quelle estado succede o apparecimento do calor geral, somno- lencia, transpiração morna; paraõ as nauseas, ancias, vo- rnitos, e a dôr do estomago; sõ fica a cephalalgia, ou dor de cabeça, a seccura, ou mesmo sêde, e o abati- mento e fraqueza em todo o corpo. O doente reco- lhe-se ã cama, agazalha-se bem com cobertores, e logo depois ordeno o uzo deste calmante. íl.e ãã onças duas. Agua destillada de canella— It de hortelã pimenta— It de llores de larangeira Elixir parégorico americano—oitava meia. X.tí dVther sulphurico—onça hutna. J.e M.e Para tomar 2 a 3 colheradas de hora em hora augmentando depois este espaço de tempo. Applico ãs vezes alguns sinapismos nos membros inferiores para moderar as dôres de cabeça; permitto a agua com assucar ein pequenas porções, e prohibo absolutamente a comida, e até mesmo os caldos por 24 a 48 horas. Algumas vezes neste espaço de tempo prescrevo o uzo da mixtura salina simples feita em cozimento de gramma e cevada adoçada com xarope dJ althéa, ou laranjadas tépidas. Por ultimo dou hum laxante, se ha embaraço gástrico, e quasi sempre pretiro a limonada solutiva da Pharmacopéa Geral. Co- meça depois a convalescença, e o doente entra de novo no seu regimen habitual, mas sempre com muita cau- tella e rezerva, a fim de evitar a repetição da mo- léstia, que de ordinário he fatal, Se aquelles mesmos symptomas se apresentaõ mais pronunciados, e obstinados, acompanhados de maior esfriamento, com algumas pequenas caimbras nas per- nas, pêzo nos lombos ou rins, dôr ou caimbra forte no épigastrio ou estomago, e mais febre ( cholerina grave ), neste cazo faço as mesmas applicações acima indicadas, e acrescento as fricções com escova por todo corpo seccas, ou com álcool camphorado, hum sinapis- mo pequeno na boca do estomago, repetido, se a caimbra do diaphragma, ou dôr na boca do estomago naõ cede com a appíieação do primeiro; e se esta dôr persiste, apezar de todos estes meios empregados, mando entaõ fazer hutua sangria de 8 a 10 onças no braço. A doença declina, e por tanto passo logo ao uzo da mixtura salina simples, do laxante etc, e o doente se restabelece. Se estes mesmos symptomas apparecem porém exagerados, com grandes caimbras, diarrhéa, ou vómi- tos abundantes de hum liquido semelhante á aguadãirróz ventre sellado, physionomia decomposta, olhos encova- dos, pelle lívida, frio glacial, suor abundantíssimo, voz sumida, e urinas supprimidas ( cholera confirmado ), con- vêm applicar-se este ultimo tratamento com mais energia, e assiduidade, devendo-se muito em tempo, isto é, logo no começo lançar mão da sangria, e naõ esperar-se, que o periodo algido, ou do esfriamento, se adiante, e prolongue, porque nesse cazo, esta medica- ção he inútil, e sem proveito. Se a diarrhéa continua receito o clyster seguinte. R. Cozimento concentrado de gomma-arabica—Li- bra huma. Laudano liquido de Sydenham—Oitava huma. J.e e Md.e Para dividir em dois clysteres com o intervallo de tres horas d’hum ao outro. Com este tratamento ener- gicamente administrado tenho salvado alguns dos ata- cados do Cliolera-asiatico confirmado. Quando a diarrhéa naõ cede ao clyster, nesse cazo também emprego internamente pela boca o seguinte. R.e Cozimento de gomma arabia.— Lib. huma. Laudano liquido de Sydenham.—Scrop. hum. X.e d’althéa. —Onça huma. J.e M.e Para tomar em 4 partes iguaes de 3 em 3 horas. Se o ataque do Cholera é fulminante, e o doente cahe redondamente no chão sem falia, e sõ faz eontor- sões, provocadas pelas caimbras, deve-se logo e logo sangrar largamente no braço, e depois procede-se como no ultimo cazo acima figurado. IV. Nestes últimos quinze dias tenho acudido com es- tes soccõrros da Medicina a 237 pessoas atacadas deste mal, sendo 13 brancas, 3 tapuios, e todos os outros pretos, ou mulatos, mamelucos, e doutras cores prove- nientes de raças cruzadas. Dos brancos falleceu hum, a mulher do Senr. Joaquim Pedro Gonçalves Campos, a qual já me íoi entregue no periodo algido muito adi- antado, havendo antes estado encarregada aos cuida- dos do Senr. Dr. Bulhões; os mais curaraõ-se. Destes doentes brancos dois foraõ sangrados, hum no braço esquerdo, e outro em ambos os braços; hum he por- tuguez, contra-mestre do vapor Cametá, outro hespa- nhol, colono da Companhia do Amazonas; este no pe- riodo algido muito adiantado, e sem esperanças de vi- da, aquelle no principio do mesmo periodo. Dos ta- puios dois falleceraõ dentro de Ui horas, o outro es- capou, havendo sido sangrado no braço esquerdo logo no momento do ataque, que foi fulminante, tirando-se- lhe dez onças de sangue; he aprendiz de marcineiro do Allemaõ Rosimundo. Dos pretos apenas perdi hum doente, escrava do Senr, Domingos José Dias, a qual também foi sangrada no periodo algido, dando muita esperança de salvar-se, mas a final succumbio em con- sequência de estar muito arruinada pelo abuzo immo- derado das bebidas espirituozas. Dos pardos tres es- tiveraõ em grande perigo, e foraõ sangrados no começo do periodo algido; dois escaparaõ, sendo huma escrava do Senr. José Antonio dos Santos, outra liberta, mu- lher do mestre carapina Jeronimo Corrêa, a terceira naõ foi taõ feliz, falleceo em oito horas no meio de horríveis soflfrimentos, era livre, cozinheira do Senr. Joaõ Marques dos Santos. Consta-me que se tem salvado alguns outros do- entes atacados formalmente, fazendo-se-lhe a applicação da sangria, já por conselhos de facultativos, já por lem- brança dos proprios doentes ou de seus enfermeiros. He opiniaõ minha, que nos tapuios, e nos mes- tiços, que parecerem tapuios, nada se perde em os fa- zer sangrar immediatamente que se reconhecer, que a moléstia os tem atacado, ainda mesmo que levemente seja. V. Tenho notado que a actual doença ataca de pre- fereneia os tapuios, comquanto eu apenas tenha tra- tado tres indivíduos desta raça, depois os pretos, os mestiços de qualquer género de cruzamento das raças, e por ultimo os brancos. Ella naõ escolhe sexos, nem idades, acommette a todos sem distineção; ceifa deza- piedadamente aquelles que estaõ deteriorados pelos abu- zos das bebidas alcoólicas, e os que padecem molés- tias chronicas das vísceras ou entranhas do baixo-ventre. Nas mulheres faz accelerar a menstruação, 11’algumas tem provocado o aborto, e o parto prematuro. Do dia 6 do corrente em diante he que a molés- tia tomou maior desenvolvimento, estendendo suas me- lancólicas azas por todos os ângulos da capital; de 8 para 9 foi grande o numero dos atacados, e nessa noite aconteceo afléctar quasi todos os moradores do lado Occidental da Praça Pedro 2.°, vulgo Largo da Polvora, ao passo que os do lado oriental nada experimentarão. Também tenho observado, que de noite succede ma- nifestar-se maior numero de cazos do que de dia. VI. Em outro artigo demonstrarei a estatística da mor- talidade occasionacía até hoje (II) por esta terrível enfermidade, e tratarei também de esclarecer este im- portante ponto—se a moléstia fn importada, e por quem, ou se foi dezenvolvida espontaneamente no proprio paiz tfOTA O. Yolo em separado dos Doutores José da Gama Malclier c Camillo José do Yatle Guimarães, em resposta aos quezitos apresentados pelo Pre- zidenlc da Junta dllygiéne Publica, « Apresentamos voto em separado, porque divergimos completamente da opinião, que foi sustentada pelos nossos illustres Collegas, e os motivos, que justificam este nos- so procedimento, são os seguintes: « Quanto ao l.° quczito. Acceitamos a primeira e ultima parte do parecer, e não a segunda, porque enten- demos, que os motivos prováveis, que produzirão a mo- léstia, forão os comestíveis, de que fizerão uzo os colo- nos, que erão de péssima qualidade, já dando indícios de putrefação e preparados em caldeiras de cobre, muito sujas e velhas, e não estanhadas, além do máo tratamento, que sem duvida receberão, quando enfermos, do negligente, perverso e avarento capitão do navio. « Quanto ao 2.° quezito. Discordamos porque os sym- ptomas, apresentados pelos nossos illustres collegas, como os caracteristicos da enfermidade, que grassa nesta provín- cia, parecem antes extrahidos d’algum traetado sobre cho- lera-morbus-asiatico, do que colhidos á cabeceira dos en- fermos acommettidos pela epidemia, que nós tem ílagella- do: os que por nós forão observados, vamos referir. « Nos indivíduos de temperamento sanguíneo e ple- thoricos, e que se alimenlão de substancias muito repara- doras—molleza e indisposição para movimentos, perda do apetite, sede, calor, algumas vezes pezo, menos vezes dôr no epigastrio, lingua limpa, em alguns ligeirarnente rubra nos bordos e na ponta, e branca no centro, pulso cheio, frequente, sempre depressivel, pelle quente e untuosa, ver- melhidão pronunciada da face, e pomôlos, olhos rubros e ás vezes injectados, cephalalgia, tonteiras, somno diminuí- do, e pouco reparador, abatimento do corpo, ligeiro arre- fecimento nas extremidades, quer superiores quer inferiores, ourinas avermelhadas. « Nos de temperamento bilioso, nos pardos, ou na- quelles dados a bebidas espirituosas—epigastrio quente, do- loroso, tenso e ás vezes com dores intoleráveis, lingua ru- bra nos bordos e na ponta, ás vezes coberta de saburra a- marella, outras vezes muito vermelha em toda sua super- fície, repugnância para os alimentos, muita sêde, nauseas, cólicas e borborygmos pelos intestinos, vomilos biliosos, amarellos, verdes, ou côr de agoa de anil, seguidos pou- cas vezes de evacuações alvinas, porque muitos sollViam preguiça de ventre, pulso pequeno, concentrado, frequente» mas sempre cedendo á compressão do dedo, que o apalpa, face apresentando mancha ligeiramente azulada ao redor das palpebras inferiores, das alias do nariz, e dos lábios, ce- phalalgia super-orhitaria intensa, dores vagas, ou mesmo caimbras pelos braços, dedos, e pernas, delirio fugaz, c muitas vezes delíquios repetidos, insomnia, ourinas espessas, avermelhadas e diminuídas, e não poucas vezes sympto- mas typhoicos com lingua secca e fuliginosa. Estes sym- ptomas, os enunciados no primeiro e segundo periodos, e- ram sempre apresentados pelas pessoas pertencentes á clas- se branca e mesmo parda, e que lambem s’encontravam nos enfermos de vida regular da classe preta, ainda mes- mo escravos, quando bem tratados pelos seus senhores. Naquelles de vida desregrada, ou que por falta do meios se nutrem exclusivamente de péssima carne salgada, bacalháo, pirarucu ardido: dores agudas e intoleráveis no epigastrio, propagando-se algumas vezes a toda a região ab- dominal, outras vezes a dôr é apenas sensivel, nauzeas, e evacuações alvinas abundantes, succedendo-se a miudo, ás primeiras naturaes seguem-se outras de substancias mal di- giridas, amarelladas, verdes, sanguinolentas, denegridas, o por fim apresentam o aspecto de caldo de canna e nunca de caldo ralo de arroz, sahindo por jactos, com cheiro intolerável, eructações, gazes circulando pelo ventre, mui- tas vezes uma sêde insaciável, desejo ardente de bebidas geladas, palpitações do coração dezordenadas, pulso algu- ma cousa acelerado, umas vezes no seo rhytmo natural, outras vezes pequeno, depressivel, concentrado, irregular, in* termittente, calor diminuindo sensivelmente na periplieria do corpo, especialmente nas extremidades, lábios, nariz, o- relhas, menos no epigastrio, abdómen, e parte anterior da caixa thoracica, que se conservam quentes, ás vezes até depois da morte, respiração curta, e aflicliva, soluços, fa- ce ao principio animada, depois decomposta, palida e co- berta de um suor frio, abundante, cahindo em bagas, olhos ligeiramente encovados, humedecidos, nunca voltados para cima, de sorte que a porção inferior da sclerotica occupe o lugar da cornea transparente, occultando-se esta sob a palpebra superior, pelle fria, conservando a sua côr na- tural, apenas lívida e apresentando pregas semelhantes ás que adquire, quando mergulhada em agoa fria por muito tempo, anciedade extrema, prostração considerável, caimbras dolorosas, ás vezes horrivelmente dolorozas nos musculos abdominaes, communicadas aos membros superiores ou in- feriores, lingua arrocheada, dor de cabeça, ou muito inten- sa, ou quazi nulla, a intelligencia conserva-se inalterável, o pulso desaparece completamente nas artérias radiaes, a vóz torna-se rouca, ou extingue-se completamente e o en- fermo expira: se assim não succede a reacção faz-se regu- larmente, sem que, quasi sempre, appareçam os sympto- mas da gastro-entcrite, da pneumonia, do pleuriz, da me- ningite e da encephalite, outras vezes dominão os sympto- mas typhoicos e adynamicos, acompanhados de hemorrhagia labial, lingual, ou bocal, e de vomitos negros, emfim o en- fermo, quasi escapo do cholera, vê-se de novo a braços com a febre amarella; esta terminação da enfermidade é a mais commum nos collonos de proxinio chegados. Terminando a enumeração dos symptomas, que carac- terisão a epidemia reinante julgamos do nosso dever acres- centar, que elles não podem pertencer senão á especie no- sographica—cbolera-morbus-sporadico, commum, europeo, ou bilioso—descripto com esses títulos por diversos au- tores, e entre elles Geoffroy, Chauffar e Copland, e de ne. nhum modo ao—cholera-morbus-asiatico—cnjos symptomas palhognomonicos não pcrmittem confundi-lo com outra qual- quer enfermidade. Para maior esclarescimenlo apresenta- mos os principaes: na epidemia reinante predominam os symptomas inflamatórios, no cholera asiatico os nervosos; naquella os vomitos e dejecçõcs alvinas são manifestamen- te biliosas, neste são serosas; naquella prevalece a ancie- dade, neste o collapso; na primeira dores violentas de ven- tre, no segundo sensação de ardor queimante no abdómen; na primeira caimbras nos musculos abdominaes communi- cadas ás extremidades, no segundo caimbras das extremi- dades, que cbegão poucas vezes aos musculos abdominaes; linalmente naquella, assim que se evacua a bilis, cessa a moléstia, naquelle, assim que apparece a bilis, a moléstia principia apenas a ceder. Além disto a moléstia, hoje reinante, não é nova en- tre nós. O Padre Antonio Vieira, em uma das suas cartas, dirigidas ao Governo Portuguez, pedindo médicos para esta província, falia de vomitos e diarrhéas, com do- res agudíssimas, atacando grande numero de pessoas. O distincto medico, hoje fallecido, Dr. Antonio Correia de Lacerda, em 1827 teve occasião de observar muitos casos delia, não só no hospital militar, então entregue aos seos cuidados, como na sua clinica particular, e foi tal a sua apprehensão na presença de semelhante occurrencia que não trepidou em cominunical-a á camara municipal, para que tomasse as precisas providencias; no anuo de 1835 tor- nou a apparecer, e foi ainda observada pelo mesmo dis- tincto medico, que continuou a denominal-a—cholera-mor- bus;—fez alguns estragos, e entre as victimas contão-se o iíluslre paraense José de Araújo Roso, um seo sobrinho, mais quatro escravos do mesmo, e D. Libania, mulher de Domingos Antonio Antunes; no anno de 1847 manifestou- se de novo, e então com maior intensidade; e na entrada do inverno de 1849 reapareceo, appresentando os symp- tomas seguintes: febre precedida de calafrios, vomitos mu- cosos, ou biliosos, dores no estomago e ventre, lingua es- branquiçada, prisão de ventre em uns, dysenteria em ou- tros, dôres arthriticas, e erupção da pelle: na primeira ca- sa, em que apparcceo, forão atacados ao mesmo tempo e de noite 9 pessoas; no anno de 1855 fez succumbir em poucas horas e em estado completamenle algido um escravo pedreiro do fallecido Francisco Antonio de Miran- da, estando a trabalhar com perfeita saude em casa do Dr. Ambrosio Leitão da Cunha; em desembro de 1854 forão por nós visitados cinco escravos de Manoel Yictorio, den- tre oito, que lhe adoecerão em Igarapémery, porque tres já erão fallccidos; a moléstia que os atacou, era em tu- do semelhante á epidemia hoje reinante; dos cinco mor- rerão Ires; nos piimeiros dias do mez de maio do corren- te anno succumbirão da mesma enfermidade dous escra- vos do barão de Jaguarary, e escapou outro de Arch Camp- bell: dirão, sem duvida, que nos annos anteriores a enfer- midade mostrou-se benignamente, em relação á actualida- de, cujos estragos são extraordinários, e dos quaes tem participado diversas localidades da província; para seme- lhante resultado também deram-se causas extraordinárias, como: a falta das chuvas quotidianas, o excessivo calor pro- veniente do verão permanente, que soffremos desde os dous últimos meses do anno passado, a falta absoluta e repen- tina da carne verde, e por isso o uso exclusivo de carne salgada, do bacalháo, do pirarucu em péssimo estado, como foi referido pelo exame feito nas tabernas pelos fiscaes da cainara municipal e pelos empregados policiaes, além dos pantanos que circundam a nossa capital, principal origem dos nossos males. Do que acabámos de expender concluímos, que nao foi a galera Defensor a importadora do ílagello, que tem dizimado a nossa população, e porque custa a comprehen- der, que fosse ella somente a escolhida para trazel-o, quan- do muitos outros navios, procedentes do mesmo porto, não infeccionado, e que partirão na mesma occasião, a não le- varão para as províncias para onde se encaminharão. Dr. José da Gama Malcher. Dr. Camillo José do Yalle Guimarães. STOTA P. Illm. e Exm. Senr.—Em resposta ao oflicio de V. Ex. datado de 28 do cadente mez esta Commissão tem a pon- derar a V. Ex., que a epidemia reinante se acha actu- almente no seo gráo de recrudescência, havendo sido len- to o seo progrésso nos primeiros dias do seo desenvol- vimento a datar de 26 do mez passado, tornando-se ao de- pois geral por toda esta Capital, seos arrabaldes, Fre- guesias circumvisinhas, e alguns Municipios do interior, co- mo Vigia, Soure, Salvaterra, Caxoeira, Baião, Cametá e 0- bidos. Quauto ao Juizo que a Commissão forma da natu- reza da moléstia lie, que he o Cliolera-morhus-epidemico. A Commissão não póde ao certo dizer o numero das pes- soas até hoje atacadas, porém calcula, que mais da me- tade da população desta Capital já tem sido aíTectada. So- bre a mortalidade a Commissão se reserva para breve- mente informar a V. Ex. com exaclidão á vista dos do- cumentos extrahidos do Cemiterio. Deos Guarde a V. Ex. Sala das Sessões da Commissão d’Hygiéne Publica do Grani Pará 30 de Junho de 1853. Illm. e Exm. Senr. Dr. João Maria de Moraes, D. Vice Presidente da Província.—Dr. Francisco da Silva Castro, Presidente.—Dr. José Ferrei- ra Cantão, Secretario.—Dr. Camillo José do Va/le Gui- marães, vencido quanto á especie, por que creio que he sporadico.—Dr. João Manoel de Oliveira. MOTA Q. 111 m. e Exm. Senr.—Satisfazendo á promessa, que íiz a Y. Ex. em o meu officio de 2 do corrente, tenho o desgosto de lhe dar a doloroza noticia, de que infelizmen- te a moléstia, que começou a apparecer em fins do mez passado nesta capital sob o caracter de Cholera-sporadi- co, tem assumido nestes últimos quinze dias grande de- senvolvimento, e offerecido todos os symptomas, marcha, e indole do Cholera-épidemieo ou asiatico. Alguma coriza mais poderia acrescentar ao que tenho escrito em hum ar- tigo publicado pela imprensa debaixo do titulo—Duas pa- lavras sobre a épidemia reinante, o qual tenho a honra de enviar a V. Ex., porém não me sobra tempo para tanto, e peço a V. Ex. me desculpe. A publicação pela impren- sa deste pequeno artigo teve por fim accompanhar a Sci- ência, e orientar o povo do interior da Província, por on- de não ha Médicos, nem Cirurgiões, sobre o modo, e meios de se curar de tão funesto mal, mórmente quando esto flagello vai lavrando pelos rios acima desta vasta e des- ditoza Província. Com as mesmas vistas teve igual publi- cação hum outro artigo traduzido da gazeta medica franceza— Santé Universelle—, o qual também enderéço a V. Ex. Desta noticia, ou instrucções sobre o cholera man- dou o Exm. Senr. Presidente da Província extrahir 800 exemplares para serem disiribuidos pelos parochos, profes- sores, delegados, e sub-delegados de policia do interior. Devo acrescentar, que o Exm. Senr. Presidente da Provincia tem sido incançavel em dar providencias promp- tas, energicas, e salutares para melhorar a sorte da nos- sa população. Pelos jornaes juntos conhecerá V. Ex. quaes as medidas, que se hão tomado, e os soccôrros que se hão proporcionado, pelo que o Governo se lia tornado merece- dor de elogios, e digno da admiração publica. A classe pobre da sociedade he sobre quem o mesmo Governo mais disvéllos tem dispendido. A mortalidade desde 26 do passado mez, occasionada por este flagello monta a pessoas até hontem, dia em que se sepultáraõ vinte cadaveres, quasi todas victimas desta doença. Agora mesmo acabo de ser informado pelo Exm. Senr. Presidente da Provincia, que o mal se ha manifestado no município da Vigia, onde já tem feito alguns estragos. Deos Guarde a V. Ex. Pará 15 de Junho de 1855. —Mm. e Exm. Senr. Dr. Francisco de Paula Cândido, Presidente da Junta Central d’Hygiéne Publica do Rio de Janeiro.—Dr. Francisco da Silva Castro, Presidente da Commissão d’Hygiéne Publica desta Provincia. Officios quasi semelhantes forão dirigidos aos Presi- dentes das Commissões d’Hygiéne Publica de Maranhão, Pernambuco, e Bahia. lllm. e Exm. Senr.—Depois do meu oííicio de 13 do corrente, que tive a honra de endereçar a V. Ex., tem con- tinuado a grassar espantozamenle nesta capital o terrivel a- çoute do Céo, o Cholera, que desgraçadamenle nos veio as- solar. Os bairros todos desta cidade, os seus arrabaldes, os estabelecimentos públicos e particulares, as freguezias circumvizinhas, as fazendas ruraes de quasi lodos os rios mais proximos, tudo tem sido invadido pela funesta doen- ça. Os municípios da Vigia, Soure, Salvaterra, Cachoeira, Baião, e Camutá não menos tem sido poupados pela epi- demia. E o que mais he, a duzentas léguas pouco mai* ou menos desta capital, na margem septentrional do Ama- zonas, na cidade de Óbidos, arrebentou o mal no dia 1 i do corrente com hum caracter assustador, ficando incólu- mes por em quanto, e permitta Deos que para sempre, muitos logares, freguesias, e villas intermédias, por onde passão os vapores da Companhia de Navegação do Ama- sonas, outros tantos pontos descaia d’aquelles barcos. Es- te pulo tão longiquo dado pela mortifera enfermidade, e revestido daquella circumstancia, não he cousa nova nos annaes da sciencia; muitos factos desta ordem relatão os autores, que tem tratado ex 'professo deste género de mo- léstia. Por toda a parte tem ella ceifado muitas vidas. Na capital tem regulado a mortalidade diaria nestes últimos quinze dias entre vinte e 29 pessoas, quando o termo mé- dio em tempos ordinários era de tres, podendo agora as- segurar-se, que tres quartas partes correm por conta da épidemia reinante. Nas districlos de fora da capital tem sido considerável o numero das victimas, devido isso a tres causas—4.a á maior parte da população desses loga- res sêr composta de tapuios, gente, sobre quem a doen- ça reinante mais impressão tem feito, 2.a á ignorância qua- si absoluta em alguns dos logares aífectados a respeito da maneira, e meios de se poder qualquer libertar do furor, e violência do mal, 5.a ao abuso da diéta, tão indispen- sável nesta moléstia, persuadindo-se a maior parte dos infelizes doentes, que morrem, se não comerem. Não se pdde pois calcular, nem mesmo aproximadamente o tama- nho do estrago, em razão de que os enterramentos são por ahi feitos por via de regra fora dos logares destina- dos para semelhantes actos, e sem conhecimento da auto- ridade publica competente. Os silios, roças, ilhas, as mar- gens dos rios, e igarapés ou ribeiros são outros tantos ce- mitérios, por onde se entrega á terra os últimos despo- jos dos nossos irmaõs. Nos municípios acima menciona- dos tem igualmenle sido grande o prejuízo das vidas, e pelas mesmas razões não se pode avaliar a extensão da mor- talidade, acrescendo que nessas localidades não ha por ora delegados da Saude Publica, que possão informar a Cominissão d’Hygiéne dos succéssos rnais notáveis, e dig- nos de commemoração. Em Óbidos, até ás ultimas noticias trazidas pelo va- por Tapajós, liavião succumbido sete pessoas, todas escra- vas, domiciliadas na cidade: na colonia nenhum caso ha- via ainda occorrido. Parece fóra de duvida, que foi o di- to vapor o importador do mal para alli, por que só foi dias depois da chegada delle áquelle porto, que se obser- váraõ os primeiros casos, acontecendo ainda mais que a bórdo falleceraõ em viagem deis indivíduos. Para toda a parte tem o Exm. Senr. Vice-Presiden- te da Provincia feito remessas de medicamentos; e ins- trucções sobre a maneira de se tratar aquclla doença. Do artigo—Duas palavras sobre a epidemia reinante,—que já tive a honra de enviar a Y. Ex. mandou o Exm. Go- verno da Provincia extrahir oitocentos exemplares para se- rem distribuídos pelos parochos, professores, delegados, e subdelegados de policia do interior da Provincia; e cabe- me a satisfação de participar a V. Ex., que apezar de los- eamente escrito assim mesmo tem servido aquelle arti- go de muito soccórro á população dos nossos logarejos, aldêas, villas, cidades, e fasendas do interior, por onde não ha hum só Medico, ou Cirurgião, que podesse ensinar os meios curativos contra tão fatal enfermidade. A conlirma- çaõ desta verdade cu a lenho de Soure, c Salvaterra, de donde se me diz, que o apparecimento alli do Jornal— Treze dc Maio—com aquelle dito artigo fóra de grande vantagem para salvar muitas vidas. Pelo meu lado, como Presidente da Commi-ssão dTIygiéne Publica desta Pro- vincia, tenho sido solicito a bem da humanidade em au- xiliar o Governo; e posso assegurar a V. Ex. que em tu- do tem o Exm. Senr. Vice-Presidente annuido ás minhas propostas, como V. Ex. poderá verificar pelos documentos juntos. Além destas muitas outras providencias tem sido to- madas pelo mesmo Governo com o fim de abastecer a ca- pital de carnes verdes, e farinhas; por quanto he eviden- te que em frente de tão devastador mal recuaõ os âni- mos mais acoroçôados, e por semelhante razaõ todos fu- giráõ de procurar o nosso mercado, ainda mesmo 11a cer- teza dos mais seguros, e lucrativos interesses: daqui como inevitável consequência a fome, a qual se ainda naõ se faz sentir, e talvez mesmo naõ chegaremos a sentil-a em virtude das aceitadas medidas adoptadas pelo Governo, nem por isso deixamos de experimentar a excacez de tudo quanto he objecto alimentício, particularmenle do que he mais procurado na actual quadra, como seja carne, gali*- nhas &c. &c. A época da recrudescência do mal parece ter come- çado a 15 do corrente, e desde então grande tem sido 0 numero dos atacados por todos os pontos da capital. Cal- culo terem sido já aífectadas seis a sete mil pessoas, is- to he, hum terço da população. Muitos cazos repentinos, e gravíssimos tem sido observados nesta quinzena. Indi- víduos houveraõ, que foraõ vistos de manhã na rua no seu estado habitual de saúde, e de tarde já hiaõ cami- nho do cemiterio; outros deitavaõ-se á noute bons, e ama- nheciaõ moribundos, e dahi a pouco expiravaõ; outros eraõ fortemente atacados com todos os symptomas exagerados da épidemia, e logo após eraõ complicados por hemoptyses, ou proctorrhagias mortaes. Canoas do commercio interno tem havido, que haõ ficado com hum sò indivíduo da sua tri- polação; lá existe huma nesta triste circunstancia atraca- da ao porte da villa dos Breves- As canoas chamadas dos mineiros, isto he, as que navegão entre Goyaz e esta Provincia, trazendo pelo Tocantins cargas de couros, tem sido desapiedadamente ceifadas em suas tripolações; algu- mas no seu regresso foraõ obrigadas a encostar-se ás margens do rio, amarrando-se ao matto para ahi espera- rem algum soccôrro; no município de Baião existem duas canoas neste lastimoso estado, huma completamente sem gente. Exm. Senr. não pense que este doloroso quadro se- ja alguma ficçaõ, pelo contrario he a pura realidade; e se necessário fôr citarei os nomes das infelizes victimas. De- os se amercie de nós ! Também tem sido desde aquelle dia, que avultou mais a mortalidade. Na próxima barca enviarei a V. Ex. o mappa da mortalidade occasionada nesta capita! pela epi- demia reinante em todo o mez de Junho. A classe bai- xa da sociedade, e desta os indios ou tapuios, e os pre- tos, continua a sêr o alvo principal do assustador llagel- lo. Na classe media, c na mais elevada, poucos tem sido por ora os casos observados, e nesta por via de regra lie sempre benigno o mal. Naõ finalizarei este meu oíficio traçado muito apres- sa ao o.° dia da invazão de huma ligeira Cholerina, que apezar de toda a sua benignidade nem por isso deixou de me abater consideravelmente as forças, sem patentear a Y. Ex. o resultado da minha clinica na actual epidemia. Tenho tratado desde o começo do desenvolvimento desta fatal enfermidade ate hoje 566 doentes pelo systlie- ma, de que já dei conta ao publico em o artigo—Duas palavras sobre a épidemia reinante—, e do qual V. Ex. tem noticia. Eraõ 80 brancos, 19 tapuios, e 267 pretos ou mestiços. Dos brancos falleceraõ sete, sendo huma mu- lher e seis homens; estes últimos eraõ colonos da Com- panhia de Navegaçaõ do Amasonas, os quaes succumbi- raõ pela fôrma seguinte, hum de Cholera em recahida, tres de Cholera simples e franca, hum de Cholera superveni- ente ao 4.° dia de febre amarella, e hum de Cholera su- perveniente á convalescença de febre biliosa gravissima. Dos tapuios quatro perecerão no periodo algido muito a- diantado, dos pretos dois, e dos mestiços outros dois. Ao todo quinze pessoas. Tenho obtido excedente proveito do emprego de eli- xir parégorico americano, e o mesmo tem acontecido a todos quantos delle tem feito uzo. À sua vantagem he incontestável, e taõ reconhecida, que de Camutá oíficiáraõ ao Governo, pedindo com instancia a remessa do dito é- lixir e recommendando-o como hum remedio miraculoso, com o favôr do qual hião conseguindo alli salvar a vida a muita gente; e o Governo immediatamente ordenou, que se satisfizesse semelhante reclamaçaõ. O cozimento de go- rna-arahica com laudano liquido de Sydenham ( Scrop. hum ) para uzo interno tem sido hum medicamento preciozo con- tra as diarrhéas. O sinapismo demorado por meia hora e mais no é- pigastrio tem produzido optimos benefícios para combater as dores do estomago, e os vornitos. A sangria no bra- ço tem sido salutar logo no principio da doença, nos ca- zos fulminantes, e n’outros, que sem o serem, se mostrá- raõ todavia accompanhados dalguma gravidade. Quinze, vezes tenho lançado mão delia, cinco em ca- sos d ataques fulminantes, em que os sujeitos, ficando sem falia, sô experimentavaõ horríveis caimbras; quatro destes foraõ salvos, sendo dois tapuios, e dois brancos, dos quaes hum era colono da Companhia de Navegação do' Amaso- nas, por nome José Pereira: o quinto falleceo, era hum a preta, escrava, de 50 annos, que ha muito soffria de car- cinoma no eólio do utero, sendo o ataque complicado de abundante hemoptyse, durou sete horas. Quatro vezes no periodo algido, sendo hum preto, dois mestiços, e hum branco; este sem esperança de vida, colono da Compa- nhia, de nome Marianno ( o barbeiro ), escapou; os outros falleeeraõ. E finalmente seis vezes em casos graves, e complicados quasi sempre de hysteria; destes curáraõ-se cinco, e falleceo hum por motivo de recahida da moléstia, estando já livre de perigo, era colono da Companhia, cha- inava-se Romão Pastorice. Apezar de toda esta vantagem do emprego da sangria, medicação muito aconselhada nestes cazos pelos mestres da Sciencia desde tempos os mais remotos, e especialmen- te depois de 1832 pelos hábeis práticos Broussais, Roche, Sanson, Bouillaud, Boisseau, Labat, Foy, Sandras, Del- pech, e muitos outros, que tem tratado didaticamente des- te género de enfermidade, como V. Ex. perfeitamente sabe, tem no entanto este precioso meio curativo soffrido hu- ma encarniçada opposiçaõ da parte dos charlatães, dos ho- moeopathas, d’atguns ignorantes d’entre o povo, que pre- sumindo saber alguma couza, até de Medicina, por lasti- ma e vergonha delles nada sabem, mesmo das couzas mais comezinhas, e o que mais he, d’algum Medico, que, naõ sei porque motivo, entendeo em sua sabedoria, que deve- ria desacreditar a sangria contra o Cholera. O povo fascinado destas pregações, e dominado ainda pela lembrança dos tristes effeilos da sangria na febre ama- rella, recuza-se a acceitar o beneficio, quando se lhe ofíe- rece; e já per duas vezes tenho passado pelo dissabor de vêr impugnada a minha prescripção, huma delias por insinuação de Medico, segundo fui informado. No entan- to naõ esfriarei á vista de laes dificuldades; hei de con- tinuar a aconselliar este meio curativo sempre que o jul- gar indicado, embora o rejeitem por ignorância. Nunca so- brecarregarei a minha consciência com escrúpulos nascidos de foucas con lescendeneias, ou de inaptidaõ. Outros Médicos desta Capital tem pela mesma forma na aclualidade feito applicação da sangria com excellentes resultados; a esses também tem apparecido os mesmos em- baraços, e difficuldades, que a mim, porém saõ dotados de coragem, e as vaõ vencendo. O tempo lia de curar este grave erro; verdade lie, que talvez hum pouco tarde, quando algumas vidas já tenhaõ sido sacrificadas á mise- rável preocupaçaõ, e á ignorância.— Terminarei estes esclarescimentos oíficiaes, participan- do a V. Ex., que as embarcações, que vaõ largando des- te porto para paizes estrangeiros, tem hido munidas de car- tas de saúde passadas pelo Provedor da Saúde do Porto com a seguinte nota—existe por causa da estação do tem- po bastante calorosa o Gholera-sporadico com caracter gra- ve.—He hum paradoxo em Medicina o que aquelle empre- gado nosso collega enuncia; por quanto não sei como se possa dizer, que huma doença he sporadica, quando ella tem aífectado largamente, e em grande escala ao mesmo tempo huma boa parle da populaçaõ naõ só da capital, como do resto da Província; este predicado assignaõ os escriplores médicos como cunho indeclinável de huma épi-