A ALBUMINO-PYMELIIRIA ou leitosas A ALBUMINO-PYMELURIA 4 0V XJm3STA.S LEITOSAS Estudo sobre sua natureza e seu tratamento mi i Dr. Domingos de Almeida Martins Costa formado em medicina pela faculdade do Rio de Janeiro, membro tituiar da Imperial Academia de Medicina, socio fundador da Socie- dade Medica do Rio de Janeiro, membro honorário do Atheneo Académico, medico da Casa de Saude de Nossa Senhora da Ajuda, etc., etc. RIO IDE JANEIRO Typographia—Académica—rua Sete de Setembro n. 73 1876 PUBLICAÇÕES DO MESMO AUCTOR Preparação de peças seccas para musêos e gabinetes anatómicos, memó- ria publicada na Imprensa Medica, anno I, ns. 1 e 2. Rio de Janeiro, 1872. Phylographia medica brazileira, estudo de matéria medica e therapeu- tica sobre algumas plantas brazileiras. Imprensa Medica, anno II, ns. 1, 2, 3 e5. Rio de Janeiro, 1873. Pyogenia ou memória sobre a genese do pus no organismo. Rio de Ja- neiro, 1874. — (ln-12°— 118 pags.) Ainhum, estudo sobre a moléstia conhecida sob esta denominação. P:o de Janeiro, 1875. (In-8°, 40 pags. com 2 gravuras.) Do valor das investigações thermomelricas no diagnostico, prognostico e tratamento das pyrexias que reinam no Rio de Janeiro', Proposições sobre atgumas cadeiras do curso medico. (These inaugural). Rio de Janeiro, 1875. (ln-8°, 80 pags., com 34 registros theriricos bthographados ) A’ Imperial Academia de Medicina DO BIO IDE JANEIRO DEDICA v <^íivío>v. ILLM. SR. DR. DOMINGOS OE ALMEIDA MARTINS COSTA. Meu joven amigo e talentoso collega. Receba os meos parabéns pelo seo novo trabalho sobre a chyluria. Louvo e aprecio muito os esforços que V. S. tem feito para que sejão elucidadas algumas das questões mais difhceis da nosologia nacional. Esta predilecção pelos assumptos que mais de perto nos interessão, é muito rara em quem começa a dar os primeiros passos na carreira medica ; tem sido quasi exclusivamente o património dos nossos velhos práticos. Fallar dos estran- geiros, citar os autores europêos, tal é o pendor irresistível de quem escreve sobre medicina no Brazil, ainda mesmo quando se trata de uma moléstia que nos é familiar e inteiramente estranha aos collegas do velho mundo. Lembro-me de um moço que, escrevendo uma these sobre febre amarella, sus- tentava uma doutrina em completa opposição com aquillo que tem demonstrado a observação dos médicos do Rio de Janeiro, nas diversas quadras epidemicas por que tem pas- sado esta cidade. Arguido por mim n’este sentido, defendeo-se o candidato citando a opinião de um professor da Faculdade de Paris, o qual tinha escripto sobre a moléstia por informa- ções obtidas de outros que a tinhão observado nas Antilhas e no Senegal. Observemos cuidadosamente os nossos doentes, aprecie- mos um por um cada symptoma que fôr apparecendo, procu- remos interpretal-os todos com o auxilio das leis que nos for- nece a physiologia pathologica ; não nos passe desapercebida a terminação natural das moléstias ; evitemos para isso per- turbal-as em sua marcha regular com meios therapeuticos intempestivos ; discriminemos o que fôr obtido com os medi- camentos do que fôr devido exclusivamente á força medica- triz da natureza ; saibamos esperar os effeitos tardios dos remedios , não introduzamos no organismo doente, e por isso mesmo em desordem, um grande numero de elementos anarchicos, que concorrão para a confusão e impeção o resta- belecimento da calma e da harmonia, indispensáveis á saude; em uma palavra, procedamos como verdadeiros médicos, com o critério e discernimento que nunca os devem aban- donar, e depois de um trabalho consciencioso teremos o di- reito de ser considerados autoridades tão valiosas'como as da Europa, mais valiosas do que ellas nas questões que perten- cerem ao nosso fôro medico especial, quasi sempre mal co- nhecidas, ou conhecidas por tradição d’aqui a duas mil léguas de distancia. A chyluria é uma moléstia própria dos climas intertro- picaes, muito frequente no Rio de Janeiro, e que merece ser estudada com particular solicitude, principalmente na parte relativa á etiologia, bem como á therapeutica. Não pense o coliega que eu censuro a denominação que escolheo de albummo-pymeluria, e que por isso emprego a de chyluria. Prefiro esta por ser mais antiga, mais conhe- cida, mais curta, mais euphonica e mais expressiva. Se nos lembrarmos que bem poucas são as moléstias conhecidas no quadro nosologico e na linguagem commum pelas lesões ana- tómicas que as caracterisão ou pelos symptomas que nunca falhão, não teremos a menor repugnância em continuar a de- nominar chyluria a desordem de secreção renal, constituída pela presença na ourina de gordura, albumina e ás vezes sangue. Todos dizem que essa moléstia é muito mais commum no sexo feminino ; estou convencido de que seja isso verdade, como regra geral: dá-se porem comigo um facto singular ; de 12 casos que tenho observado, só um era relativo a uma mulher, a qual, alem de anémica e lymphatica, amamentava uma criança de 4 mezes de idade. D’entre os outros 11 casos, destaca-se um menino de 2 annos de idade, extremamente gordo e pallido, que apresentou ourinas chylosas na termi- nação da coqueluche. Que o lymphatismo e as más condições hygienicas sejão causas predisponentes da chyluria, ninguém póde duvidar ; porem, que os individuos em condições oppostas estejão isentos do mal, como alguns pensão, não é verdade : quatro dos meos doentes, dos quaes dous são médicos, representão fielmente os typos do temperamento sanguíneo e da consti- tuição robusta. Se das causas predisponentes passarmos ás causas deter- minantes, a difficuldade do problema se torna insuperável: conjecturas, hypotheses, oriundas de cada facto isolado, e que reciprocainente se aniquilão. Na albuminúria, dizem os sectários da discrasia, ha augrnento anormal na proporção de albumina do sangue, quer seja absoluto, quer seja relativo (Gubler), ou ha uma evolução viciosa dos princípios albumi- noides e uma alteração molecular da albumina do sangue (Jaccoud). Na diabetes assucarada (glycosuria), em qualquer das seis theorias que circulão na sciencia, ha grande accres- cimo na quantidade de assucar do sangue (glycemia) e im- pregnação dos orgãos por esse principio ternário. Em lugar da proporção infinitesimal do estado physiologico, o sangue encerra uma dose ponderável de glycose, que varia muito, é verdade, mas que é constante, é infallivel. Na chyluria, a alteração qualitativa da ouriua uão póde ser explicada por uma chylemia previa, porque as analyses do sangue, pelo menos as que inspirão maior confiança, não revelárão ainda um augrnento sensível na quantidade dos princípios gordu- rosos que existem no estado normal, nem a presença de outro qualquer, procedente do estado morbido. A maneira brusca por que appàrece a moléstia, a marcha irregular que ella segue, as modificações que recebe do ge- nero de alimentação de que faz uso o doente, as mudanças que soffre a ourina conforme as horas do dia em que é secre- tada, os longos intervallos de perfeita saude que se observão, IV a influencia do clima quente e húmido no desenvolvimento da moléstia, e a reconhecida vantagem do tratamento tonico e reconstituinte, u’elle comprehendida a liydrotherapia, são de certo argumentos poderosos a favor da theoria que eu tenho sempre sustentado para explicar a chyluria, theoria que o collega defende com talento, apoiando-se em considerações physiologicas e hygienicas que não podem ser contestadas. Quem não sabe que estreitos laços unem a secreção ouri- naria á alimentação, quer no estado normal, quer no estado pathologico! Quem ignora que muitos medicamentos, de- pois de introduzidos no estomago, são eliminados no fim de algumas horas pelas ourinas, onde os reactivos chimicos os encontrão na quasi totalidade, onde ás vezes o olfacto os des- cobre de modo evidente! 0 que é a nutrição ? é uma funcção complexa, que consiste essencialmente na oxidação dos prin- cípios alimentícios, elaborados no apparelho digestivo, pro- duzida pelo oxigeno do ar atmospherieo que entra no orga- nismo pelo parenchyma pulmonar. Para que o movimento nutritivo se mantenha completo, perfeito e normal, é preciso que não haja a menor perturbação em nenhum dos dous fac- tores que para elle concorrem directamente. Sempre que a digestão for perturbada, em qualquer de seos períodos, ou que diminua na economia a proporção de oxygeno indispensável á combustão dos alimentos, quer provenha essa diminuição do ambiente que fornece o gaz, ou do apparelho que o tem de receber, a nutrição soffre, perde e ditninue, e essa perda póde chegar a um gráo tão elevado, que appareça a cachexia e o marasmo. A combinação do oxygeno, que atravessa as pa- redes dos vasos pulmonares, com os alimentos preparados e levados á economia pela absorpção, se faz no intimo dos teci- dos, em todos os pontos do organismo em que chega sangue. D’essa combinação é que resulta a substituição de uma molé- cula organica gasta e eliminada, por outra nova e perfeita. Não ha duvida que n’estas metamorphoses moleculares, que n’este trabalho de decomposição e recomposição, as leis phy- sicas e chimicas intervòm com os seos poderes immutaveis e V soberanos ; porem o que parece incontestável, é que esses poderes não se exercem despoticamente, discricionariamente, sem harmonia e sem ordem : na trama de um musculo não se deposita uma molécula ossea, e na polpa cerebral uma cellula nervosa não é substituída por uma cellula adiposa. Essa harmonia, que preside á nutrição normal, depende de leis independentes da physica e da chimica, desconhecidas em sua essencia, porem apreciadas e demonstradas por seus maravilhosos resultados. São estas as únicas que varião, que se perturbão, originando-se d’esta perturbação um vicio na nutrição. Se não conhecemos essas leis no estado normal, muito menos as poderemos conhecer quando ellas desvião-se d’esse estado, e perturbão a harmonia funceional do organismo. Se houver um vicio profundo no processo de assimilação nutritiva ; se as leis que presidem a essa assimilação se per- turbarem de modo a compromettel-a, é facil conceber que os princípios albuminoides se apresentem no sangue em con- dições contrarias á reparação dos tecidos ; que os princípios saccharinos e gordurosos não possão servir como alimentos respiratórios e thermogenicos. Inaptos para os misteres que lhes forão destinados, esses princípios se tornáo nocivos, e a natureza procura eliminal-os pelo seo principal emunctorio depurador—os rins : e é por isso que apparecem nas ourinas, constituindo & albuminúria, a. glycosuriae a chyluria. Esta theoria, chamada da hematose, me parece a mais plausível, é a que melhor se harmonisa com a observação clinica ; o collega desenvolveo-a de modo bem claro e conciso. A theoria da lymphorragia, inaugurada por um homem de notável talento—o professor Gubler, modificada por um medico brazileiro distincto—o Dr. João Silva, tem contra si a marcha da moléstia, a maneira por que termina, e os resulta- dos do pequeno numero de autopsias que se tem praticado. Todavia, cumpre confessar, a opinião do distincto collega, professor da Faculdade do Rio de Janeiro, seduz vivamente o espirito de quem conhece a influencia que entre nós exercem, VI na producção de certas moléstias visceraes, os insultos fre- quentes de lymphatite cutanea. Se em todos os casos de chy- luria não podemos admittir uma angioleucite renal; se mes- mo ella falta na grande maioria, não estamos por isso autori- sados a negal-a sempre. Quem sabe se ella não existe nos poucos doentes que se queixão de dores lombares mais ou menos intensas, de acces- sos de febre intermittente, que emmagrecem e se depauperão a olhos vistos, que não encontrão allivio em medicação al- guma, e que quasi nunca apresentão as ourinas normaes ! A theoria verminosa, que teve em Bilharz o seo primeiro defensor, e foi mais tarde sustentada por G-riesinger, na Eu- ropa, e por Wucherer, na província da Bahia, não póde servir para explicar a desordem da secreção ourinaria, nem mesmo n’aquelles casos muito raros em que o exame microscopico revela a existência de parasitas animaes no liquido excre- tado. Como muito bem diz o collega, o espirito da actualidade tem notável pendor para explicar um grande numero de mo- léstias pela presença de certos vermes em diversos pontos do organismo, e depois que o Dr. Wucherer deo como causa da oppilação os ankilostomos por elle encontrados no duodeno de alguns indivíduos que succumbirão victimas d’essa mo- léstia, entre nós sobretudo tem-se appellado sem razão para os helminthos quando a pathogenia e etiologia de qualquer affecçâo se revestem de grandes difficuldades. O collega com- batteo com fortes argumentos a theoria verminosa, bem como as outras que têm sido apresentadas na sciencia para explicar a chyluria. As mesmas trevas que cercão a etiologia e pathogenia d’essa moléstia, se encontrão na sua therapeutica. Cada pra- tico preconisa como melhor o remedio que lhe aproveitou em um ou mais casos ; todos os meios aconselhados podem apro- veitar e muitas vezes falhão. Ninguém até hoje tem contes- tado as vantagens da hydrotherapia, da medicação tónica e ferruginosa. Este accordo unanime sobre uma parte do tra- taraento é um apoio decidido que recebe a theoria da he- matose. As flores de enxofre, associadas ao sub-carbonato de ferro, e empregadas simultaneamente com os banhos de mar, conseguirão, ha bem pouco tempo, curar completamente um moço de 35 annos de idade, que soffria de chyluria por es- paço de 8 mezes. Talvez que o mal reappareça; são porem passados 4 mezes, e as ourinas do meo doente não têm apre- sentado a menor perturbação. Terminando estas linhas, que escrevi logo depois que acabei de ler a sua memória, peço ao collega que continue a trilhar a vereda por onde tem dirigido com tanto successo os seos primeiros passos, porque prestará com isso um impor- tante serviço ao nosso torrão natal, que tão pouco tem mere- cido d’aquelles que por elle mais se devião interessar. Rio, 16 de Agosto de 1876. Torres Homem. A ALBDMIN0-PYMELUR1A ou TXIRIIsrAAS LEITOSAS Estudo sobre sua natureza c seu tratamento Definição A albumino-pymeluria (1) é um morbo endemico nas regiões intertropicaes, caracterisado pela emissão intermit- tente de urinas, na maioria dos casos, brancas de opála, côr que, entretanto, póde soffrer modificações e tornar-se rosea, de café com leite ou de chocolate, sendo essas urinas, ordina- riamente, acompanhadas de coágulos de pouca consistência e aspecto variavel, formados dentro ou fóra do apparelho urinário. Etiologia Clima.— De todas as causas constantemente invocadas pelos diversos práticos nacionaes ou estrangeiros que sobre a albumino-pymeluria têm escripto, parece-nos que a principal senão a unica, que, talvez, se possa chamar determinante, ê o clima : todas as outras sendo consideradas predisponentes, (1) Synonymos.—Urinas leitosas, Urinas chylosas, Urinas caseosas, Uri- nas lymphosas, Urinas gordurosas (P. Rego), Urinas butyraceas (Felix Mar- tins), Urinas albumino-gordurosas, Diabetes leitosa, Diabetes chylosa, Dia- betes albuminosa (Jobiin), Chyluria, Pymeluria endemica dos paizes quentes /Bouchardat), Polyuria caseosa (Àlibert), Pyuria lactea, Hematúria intertro- pical (Sigaud), Hematúria chylosa, Lymphuria, Galacturia, Sangue de plasma lactescente nas urinas (Robin), Lymphorrliagia do apparelho uro-poyetico (Gubler), etc. Nota.— Adoptamos o' nome de albumino-pymeluria, que foi pela pri- meira vez empregado pelo Dr. Pereira Guimarães (These de doutoramento), porque este nome exprime melhor a natureza da moléstia que estudamos, do que o de chyluria pelo qual é ella geralmente conhecida. 2 pois só em raríssimos casos, e excepcionalmente, produzirão por si sós a moléstia. Com effeito, é sabido que o clima, e sobretudo o clima quente e húmido, exerce uma notável in- fluencia sobre a nutrição e a hematose. A atonia dos orgãos gastro-iutestinaes, a exiguidade das secreções glandulares, assim como da exhalaçào pulmonar, acarretam alterações funccionaes para os orgãos heinato-poyeticos, de onde resulta uma sanguinificação insufficiente para exercer a serie de transformações de que é normal mente encarregado o fluido sanguíneo. Junte-se a isso o accumulo de acido carbonico e o excesso de agua,que não sendo eliminados pelas exhalações pulmonar e cutanea permanecem no sangue, e teremos na acção do clima quente e húmido elementos mais do que suf- íicieutes para explicar a pathogenese d’esta aífecção (1). Erysipelas e lymphatites. — Os Drs. J. C. Soares de Meirelles e V. De Simoni (2) notaram que as erysipelas, assim como as angioleucites do Rio de Janeiro acompanham as mais das vezes a albumino-pymeluria, e a nossa observação tem verificado o asserto desses distinctos práticos. Cumpre, pois, saber si as erysipelas e angioleucites serão causa ou effeito da albumino-pymeluria. « E’ hoje facto adquirido para a sciencia, escrevia em 1858 o Dr. Ferreira Pinto (3), a frequência da crysipela nas hydropisias e no edema, e Rayer verificou que ellaé muito maior nos casos da moléstia de Bright, do que nos que provêm de aífecções do centro circulatório, o que é, segundo elle, de- (1) 0 Sr. Dr. Pinheiro Guimarães, na «Gazeta Medica do Uio de Janeiro» n. 9, de Io de Maio de 1863, censura o presidente da Imperial Academia de Medicina por ter chamado a albumino-pymeluria de affecção, e define esta palavra conforme os princípios da escola de Montpellier. Nós, porém, que nada temos a vér com essa escola, continuaremos, com o distincto professor de Pathologia Geral de nossa Faculdade, Dr. Dias da Cruz, a considerar as palavras — moléstia, rnorbo, ajfecção, enfermidade e doença, como syno- nymos. , , (2) «Revista Medica Fluminense». Vol. II, n. I, Abril de 1836, pag. 10. (3) Dr. Antonio Ferreira Pinto. «Algumas palavras sobre a albuminúria» These de concurso). Pag. 23. Rio de Janeiro—185S. 3 vido á disposição phlogistica que acompanha a nephrite albu- minosa chronica. » De sorte que na opinião de Rayer a ery- sipela é effeito e não causa desse periodo adiantado da moléstia de Bright. N’uma monographia importante e cheia de actualidade, que, em 1874, publicou em Pariz, o Dr. J. Renaut, sob o modesto titulo de Contribution â Vétude anatomique et clinique de Verysipèle et des cedèmes de la peau (1), encontrámos o seguinte sobre as relações da erysipela com os edemas da pelle : « O estudo anatomico das lesões produzidas na pelle pela erysipela e pelo edema conduz, naturalmente, a approximar estas duas affecções. O papel preponderante da dermite, a parte considerável tomada pelo systema lymphatico nas duas evoluções mórbidas, estabelece entre ellas grandes analogias, e tem-se visto que, da mesma sorte que a erysipela chronica, o edema prolongado da pelle conduz a uma fórma de ele- phantiasis. » « Esses dous estados tão vizinhos se transformara facil- mente um no outro. E’ isso que se observa em um certo nu- mero de indivíduos, que, em virtude de sua constituição, estão ao mesmo tempo dispostos a engurgitamentos edema- tosos da pelle e aos insultos erysipelatosos. Em taes doentes, dous casos podem-se apresentar. Um primeiro insulto de ery- sipela apparece e deixa em seguida um edema permanente, ou então a pelle, que se torna edematosa, é séde de erysipelas que têm tendencia a reproduzir-se muitas vezes ou mesmo a tomar um caracter de alguma sorte periodico. » , Ora, está hoje verificado, que as hydropisias geraes ou locaes, quer sejam devidas a lesões adiantadas do centro cir- culatório, compressões vasculares, alterações organicas de certas vísceras, moléstias hematoxicas, etc., quer mesmo as hydropisias denominadas a frigore, acarretam consecutiva- mente uma alteração na crase do sangue, si é que esta já não existe; a nutrição geral ou parcial difficulta-se, e um estado (1) «2e partie, pags. 41 et 42. 4 francamente dyscrasico ou caclietico é a consfequencia lógica de toda a hydropisia prolongada. Pois bem, o enfraqueci- mento do fluido sanguíneo indica o predomínio do systema lymphatico e das moléstias que lhe são próprias. Por outro lado, sabe-se também que, em geral, os indi- víduos affectados de albumino-pymeluria são de tempera- mento lymphatico e de constituição fraca, apezar do appa- rente aspecto de robustez, simulado pela presença de grande massa de tecido adiposo; ora, esses individuos, da mesma sorte que os hydropicos, estão muito predispostos para o apparecimento das erysipelas e das lymphangites, e para isso basta, muitas vezes, a mais insignificante causa. O que até certo ponto parece confirmar esta nossa opinião é que, na maioria dos casos, as erysipelas e lymphangites poem-se em campo depois da alteração das urinas (Observ. II, III), isto é, quando a dyscrasia torna-se mais pronunciada. Entretanto, práticos distinctos desta côrte têm-nos rela- tado casos em que a moléstia ora vem acompanhada de lym- phangites, ora vem precedida por ella de dias, mezes e mesmo de.annos, e muitas outras vezes as lymphangites e erysipelas faltam absolutamente (Gbserv. I, IY). 0 que devemos concluir de tudo isso? Como os factos a que nos referimos têm sido observados no Rio de Janeiro, vamos em poucas palavras expòr o que nos parece mais ra- zoável. As condições telluricas e climatologicas da cidade do Rio de Janeiro, sua excessiva humidade, junto ás variações brus- cas de temperatura, têm, de ha longos annos, tornado endé- micas as angioleucites conhecidas vulgarmente sob o nome de erysipelas brancas. Já em 1798, respondendo a um programma proposto pelo senado da camara desta cidade, escrevia o Dr. Antonio Joaquim de Medeiros (1): « As erysipelas, a ninguém, nem mesmo aos recem-nas- (I) «Annaes de Medicina Braziliense.» Vol. II, n. 7, Dezembro de 1846, pag. 146. 5 eidos, como eu tenho observado, poupam. Raríssimas são as pessoas desta cidade, que não soíFrain insultos erysipelatosos, e por isso os naturaes do paiz já não reputam enfermidade a erysipela. Curam-se com os seus remedios domésticos, sem o auxilio da arte ; tão vulgar se tem feito esta moléstia. » Depois de ter ceifado muitas vidas e inutilisado muitos organismos, a lymphangite, segundo diz o Sr. barão do La- vradio (1), « diminuio consideravelmente entre 1830 e 1845, a ponto de suppor-se ter desapparecido ; porém, sendo indis- pensável levantar-se o leito das ruas por causa do nivela- mento da cidade o das calçadas, e ficando em muitas o terra- plano das casas abaixo do seu nivel, o que augmentava so- bremodo a humidade, causa poderosa de sua manifestação, começou ella a reapparecer com mais frequência. » Hoje são bem conhecidas as nossas ly mphangites, que em certas épocas alFectam o ciracter pernicioso e são causa frequente de morte. Pela discussão havida na antiga Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em Agosto de 1835, chega-se ao conheci- mento de que n’esse tempo, e é provável que muito antes, já era considerada moléstia commum nesta cidade a albutnino- pymeluria. Pois bem, sendo, segundo julgamos, a albuinino- pymeluria moléstia de fundo dyscrasico, e que encontra sua principal causa nas condições tellu ricas e clitnatologicas de uma localidade, é racional suppor que, si dous indivíduos habitarem um local, como por exemplo o Rio de Janeiro, onde as causas promotoras da albumino-pymeluria e das lymphangites são permanentes, seja aífectado primeiro de qualquer das moléstias aquelle cujo organismo estiver mais depauperado. Sabe-se que das duas entidades mórbidas em questão as lymphangites exigem menos condições para o seu appareci- mento, e d’ahi sua maior frequência ; mas sabe-se também que o indivíduo aífectado de albumino-pymeluria offerece (1) «Ilelatorio do presidente da Junta Central de llygiene publica»—1870, pag.27. 6 magnificas condições para o desenvolvimento das lymphan- gites, o que, entre nós, se effectua ordinariamente. Em conclusão diremos que. no nosso modo de entender, as erysipelas e lymphangites acompanham a albumino-pyme- luria, não em virtude de propriedades especificas, porém sim porque encontram no depauperamento, produzido por esta moléstia, terreno preparado para sua evolução. Gravidez e estado puerperal.— O Dr. J. Pereira Gui- marães em sua these inaugural (1) diz o seguinte : « 0 estado de gravidez parece também favorecer o appa- recimento da albumino-pymeluria ; temos noticia de factos de mulheres atacadas por esta moléstia durante o estado puer- peral. Estes factos referidos pelos Srs. Drs. Yalladáo, Bou- chardat e outros não são os primeiros que foram observados, o que se prova perfeitamente com o seguinte trecho extrahido de Sauvages (Nosographia methodica) : « Laurentius nonnullas vidit puerperas plurimam lactis copiam per uterum et vesicam ex- crevisse. » O facto referido pelo Dr. Valladão (Barão de Petropolis) diz respeito a uma preta gravida em quem a moléstia princi- piou no 5o mez e terminou depois do parto sem remedio al- gum (2). Nós também conhecemos uma senhora, esposa de um distincto medico d’esta Côrte, que no 5o mez de gravidez fòra atacada de albumino-pymeluria que resistio tenazmente a uma acertada e prudente medicação, para desapparecer prompta e espontaneamente logo depois do parto e nunca mais se repetir. Em uma doente do Dr. Silva Lima (3) a ma- nifestação da albumino-pymeluria coincidia com o estado de gravidez. Temperamento. Constituição. — O temperamento lym- (1) l’ag. 28. Rio de Janeiro—1864. (2) « Revista Medica Fluminense», n. 1, de Abril de 1836. Vol IÍ, pag. 7. ' (3) « A hematúria ciiylosa ou gordurosa», memória pelo Dr. Julio Cre- vaux, medico da marinha franceza, annotada pelo Dr. Silva Lima. («Revista Medica », anno II, n. 16. Rio de Janeiro, 30 de Setembro de 1875, pag. 243). 7 phatico é o mais predisposto para o apparecimento da albu- mino-pymeluria. De entre 18 doentes do Dr. Silva Lima (1), havia apenas 1 de temperamento sanguineo, sendo todos os outros lymphaticos. Temos vistojá 6 doentes d’esta moléstia, eram todos lymphaticos. Entretanto diz o Dr. Pereira Guima- rães (2) que o temperamento nervoso é o mais predisposto, e acredita « que, em geral, quando a moléstia atacar o tempe- ramento lymphaticoe o sanguineo, deve ser principalmente quando elles forem misturados com o nervoso. » Os indivíduos de constituição fraca, mais do que os outros, estão sujeitos aos insultos morbidos; e a corpuleucia que muitos affectam nem sempre é signal de uma forte con- stituição. Sexo. — As estatísticas demonstram que a albumino- pymeluria é muito mais frequente nas mulheres do que nos homens. Edade.— Segundo a observação da maioria dos práticos brasileiros, resulta que a albumino-pymeluria é moléstia própria da edade adulta. Na Ilha de França e Bourbon, onde a hematúria ataca de preferencia a iufancia, a albumino- pymeluria apparece na edade da puberdade e parece ser um resultado da transformação da hematúria endemica. Em sua these inaugural, apresentada á Faculdade de Medicina do Rio le Janeiro, em 1853, diz o Dr. C. B. de Noronha Gon- zaga (3), baseado nas observações do Dr. Guilherme Lee, clinico da cidade de S. João d’El-Rei, que na província de Minas Geraes «esta moléstia é muito mais frequente na ve- lhice e raras vezes se encontra nos outros períodos da vida. a Observações posteriores não têm confirmado esta as- serção. (1) Xota á memória de Crevaux.— «Revista Medica», anno II, n. 12, pag. 184. (2) Tliese inaugural, pag. 27. (3) « Crinas leitosas ou chylosas que se observam com frequência no Rio de Janeiro », pag 4. Rio de Janeiro—1833. 8 Raças.— Todas as raças estão sujeitas a esta affecção desde que se submettera ás causas productoras. Herança. — Alguns factos citados pelos auctores fazem suppôr que a albumino-pymeluria póde-se transmittir por herança. Esses factos são assim resumidos 11a memória do Dr. Julio Crevaux (1): « Cassieu tratou de um mancebo, cuja mãesoffria da mesma affecção. Rayer encontrou urinas chy- losas em uma criança, cujo pae era hemato-chyiurico. O Dr. Almeida Couto cita um caso similhanto. Pelo que nos diz respeito, affirmou-nos uma senhora que conhecia nas Antilhas uma familia na qual a mãe e 4 meninas padeciam da mesma doença. » Em uma nota addicionada a esta parte do trabalho do Dr. Crevaux, diz o Dr. Silva Lima haver pae e filho, entre seus doentes que soffrem de albumino-pymeluria, princi- piando a moléstia em ambos aos 17 annos. « Ha outros dous, continua elle, que são irmãos e affirmam que seus paes não soffreram de urinas chylosas, porém que um primo soffre da mesma affecção. » 0 doente que deu assumpto á observação II, annexa a este trabalho, offerece um caso de hereditariedade d’esta mo- léstia. Estações. — No verão os aibumino-pymeluricos soffrem mais do que no inverno. No doente do Dr. Crevaux a mo- léstia desapparecia cada anuo durante o inverno e voltava no principio da estação quente. Causas diversas. — Os auctores ainda consideram como podendo occasionar o apparecimento da albumino-pymelu- ria (quando se reúnem outras condições, taes como o clima, temperamento, etc.), a ingestão de substancias gordurosas e feculentas ; as marchas forçadas, produzindo cansaço e fra- queza muscular; os resfriamentos ou suppressões súbitas de (I) Memória citada.—« Revista Medica », anno II, n. 12, pag. 184. Rio de Janeiro —1875, 9 transpiração ; as paixões deprimentes ; as moléstias longas e debilitantes ; a existência de vermes nematoides no appare- lho orinario ; etc. Tratando da pathogenia nós daremos a nossa opinião sobre algumas d’essas suppostas causas, que sendo apoiadas por nomes de auctores cujas opiniões estamos acostumados a acatar, devem merecer de nossa parte parti- cular estudo. Symptomatologia Ein geral, o appareeimento da albumino-pymeluria é brusco, surprehende o indivíduo no goso da rnais perfeita saude, sem que para isso estivesse prevenido por qualquer phenomeno morbido. Outras vezes, e isto se observa mais raramente, nota-se ant^s,—difficuldade nas digestões intes- tinaes, com desenvolvimento de gazes ; diarrhéa serosa pas- sageira, sem causa apreciável ; sêde insaciável algumas horas depois do jantar, qualquer que seja a especie de ali- mento de que faça uso ; dôres lombares e peso na região renal, etc. ; seu estado geral, porém, é bom e elle attribue esses ligeiros incommodos á qualidade da alimentação. Observando a primeira emissão de urina leitosa, o indi- víduo, que isso não espera, espanta-se, amedronta-se, e julga-se affectado de uma moléstia muito grave, que dentro em pouco lhe arrebatará a vida. A prostração moral succede a esse estado de terror, si não está presente o medico ou pessoa que conheça a moléstia, e lhe faça sentir a sem razão de seu modo de pensar, e expli- que-lhe a benignidade do morbo. A urina emittida a primeira vez, é, ordinariamente, heinato-chylurica, isto é, além da gordura que lhe presta a côr branca e da albumina, contém sangue. A emissão faz- se sem dôr, sem ardor ou prurido na urethra, exactamente como no estado normal. Deixando em repouso em algum vaso a substancia emittida, fórma-se pelo resfriamento um 10 coagulo branco ou roseo que sobrenada em um liquido mais ou menos da côr da urina normal. Nota-se, algumas vezes, no fundo do vaso uma camada avermelhada que é constituída por sangue. 0 coagulo é, ás vezes, pequeno, duro, tendo os bordos voltados para cima e sobrenadando no liquido, outras vezes toma a fórma do vaso que o contém, é molle e collocado eutre os dedos desfaz-se, deixando um residuo filamentoso. « Outras vezes, porém, diz o Dr. Souza Lima (1), a urina fórma um só coalho, de consistência que varia desde a de uma geléa até a de um queijo molle. Quando as urinas coagulam dentro da bexiga, a sua expulsão se torna difficil e dolorosa em todos os gráus ; ha dvsuria, ischuria e strangu- ria. Si expontaneamente ou por meios cirúrgicos ellas podem ser lançadas ao exterior, observa-se em muitos casos porções de coalho, que também variam de tamanho, desde o de um grão de feijão até o de uma noz, e chegam mesmo a tal ponto de organisação, que simulam hydatides, e especial- mente os vermes cysticercos (Irabert). » Essa perturbação na urina, uma vez estabelecida, não contiuúa indefinidamente e sem interrupção, porém fre- quentes vezes nota-se dias em que, sem causa apreciável para o doente, a urina apresenta a côr e espessura natural, para tomar depois a côr leitosa com maior ou menor inter- vallo. Algumas vezes ella torna-se normal logo que o indi- víduo se conserva por algum tempo na posição horisontal, adquirindo sua côr mórbida apenas elle se põe de pé ou faz exercício. Em geral, as urinas se apresentam mais frequentemente leitosas depois de uma copiosa refeição ; são menos alteradas durante a noute e pela manhã. O Dr. Souza Lima diz (1) que as urinas dos albumino- pymeluricos conservam o seu cheiro e sabor proprios, e são alcalinas no momento de sua emissão. (1) These inaugural, pag. 17. Rio de Janeiro -1864. 11 Não estamos, sobre a alcalinidade da urina, de accordo com o illustrado medico e aceitamos como mais razoavel a explicação do Dr. João Silva. « Pela analyse chi mica, diz elle (1), reconhece-se que a urina é, em geral, acida no momento de sua emissão, e, quan- do alcalina, deve esta propriedade a grande quantidade de phosphato ammoniaco-magnesiano 'Priestley). » O Dr. Noronhi Gonzaga affirma (2) que depois da copula a urina parece tornar-se mais natural. A. quantidade de urina emittida em 24 horas, só por excepção póde-se achar augmentada. Durante o mesmo dia, a urina dos albumino-pymelu- ricos póde ser limpida, leitosa, côr de café com leite e san- guinolenta. Marcha e complicações A albutnino-pymeluria apresenta em sua marcha um ca- rácter essencialmente intermittente. Ora, como no doente do Dr. Crevaux, apparece todos os annos pelo verão e desapparece pelo inverno, ora, como no caso do Dr. Cypriano (observ. I), o doente julga-se bom, de- pois de um soffrimento de mezes, mas a moléstia volta no fim de dez annos. Essa intermittencia é pois caprichosa, e não se sujeita a uma periodicidade regular. As complicações que podem surgir no decurso morbido da albumino-pymeluria e por ellas provocadas, são as hemor- rhagias, occasionadas pelas rupturas dos vasos sanguineos do apparelho urinário, durante o esforço empregado pelos doentes para a expulsão de coágulos formados na bexiga ; a nephrite catarrhal e mesmo a parenchymatosa ; as congestões renaes; grandes perturbações nas funcções assimiladoras e nu- (1) Dr. João José da Silva.—«Da Chyluria.» Tliese de concurso para a cadeira de patliologia interna, pag. 39. Rio de Janeiro—1875. (2) Tliese inaugural, pag. 5. 12 tritivas, predispondo assim o organismo para a manifestação da tuberculose pulmonar (observ. II). « Apezar de ser, diz o Dr. Pereira Guimarães (1), a albu- mino-pymeluria compatível com o exercício regular das func- ções, ha comtudo observações de doentes que foram atacados de um emmagrecimento considerável, inappetencia, de py- rosis, etc.; e este estado de soffriraento chegou a ponto de terminar os dias de alguns pela producção de uma anemia e mesmo de anazarca. » Duração e terminação A duração da albumino-pymeluria, moléstia que não tem um cyclo definido, é muito variavel. Casos ha, porém não muito frequentes, em que sua evo- lução se termina em dias, outros em annos, e outros final- mente em que ella dura emquanto o indivíduo existe. Ver- dade seja, que n’estes últimos casos as interinittencias são mais dilatadas. Sua terminação é também variavel. A’s vezes, resistindo a uma medicação perfeitamente bem indicada, como acon- teceu á senhora de um distincto medico desta côrte, que em outro logar já citámos, a moléstia termina pela cura, sem tratamento algum e nunca mais se reproduz; outras vezes a simples mudança de localidade produz o mesmo resultado. Ora, cedendo ao effeito medicamentoso, ella desapparece ; ora, durando longo tempo, determina um estado anémico, infiltrações ou manifestação da tuberculose. Diagnostico diferencial Para distinguir a albumino-pymeluria de qualquer outra affecção, não é, de certo, preciso grande trabalho, nem muito tempo. A côr especial que apresenta a urina e a existência de albumina e gordura firmam o diagnostico. Entretanto para que nenhuma duvida possa pairar no animo do clinico, (1) These inaugural, pag. 9. 13 nós vamos, em traços geraes, posto que nos pareça desneces- sário, depois do quadro symptomatologico exposto, mostrar a differença que existe entre ella e as outras manifestações mór- bidas do apparelho urinário. Hematúria.— A. hematúria, quando não está ligada a uma lesão do apparelho genito-urínario, á hemophilin, a um estado cachetico ou dyscrasico especial, como acontece com a febre biliosa dos paizes quentes, também chamada febre biliosa hematurica, com a febre amarella ou com a purpura hemorrlia- gica, é, segundo suppomos, uma das manifestações do estado raorbido que produz a albumino-pymeluria, e toma então o nome de hematúria intertropical ou hematúria endemica. Eis como explicamos sua pathogenese: Não podendo por outros meios o organismo desfazer-se do excesso de agua e acido carbonico que contém o sangue, recorre á diurése, e dahi a turgencia vascular dos rins ; essa turgencia exagerada de um orgão n’um individuo em que a nutrição imperfeita tem acarretado uma atonia geral, traz como consequência o relaxamento c as paredes vasculares e a exsudação sanguinea íein logar pelos póros ou oriíicios exis- tentes nas paredes dos capillares (1). Porém, quando este facto não se dá, e a hematúria está ligada a uma lesão organica do apparelho genito-urinario, é preciso distinguil-a da hema- túria essencial. Para servir de base a essa distincção, trans- crevemos de um autor notável a parte em que elle trata da proveniência do sangue existente na urina. « O sangue, diz Beale (2), póde provir de todas as partes (1) Precisamos observar que só com prebendemos esta turgencia vascu- lar, com a continuação da acção nervosa sobre os vasos sanguíneos dos rins, porque si essa deixasse de existir, a turgencia vascular, é verdade, que attin- giria o máximo, haveria mesmo congestão franca; mas a secreção urinaria cessaria, e teríamos « anuria » e não « hematúria ». Claude Bernard (Liq. de 1'organ. tom. 11, pag. 159) diz : « Pode-se impedir a secreção urinaria de eflectuar-se ; basta, para isso, cortar os nervos dos rins.» (2) « De 1’Urine, des dépots urinaires et des calculs » par Lionel S. Beale, traduit de 1’anglais par Ollivier et Bergeron,—pags. 422 et 423— Paris, 1865. 14 da mucosa urinaria, e, na mulher, o sangue misturado com a urina, póde provir do utero e da vagina. Eucoutra-se sempre na urina das mulheres por occasião da menstruação. 0 sangue póde vir do rim e ser devido a uma nephrite aguda recente, ou a uma affecção renal chronica, trazendo a con- gestão e a ruptura dos vasos do glomérulo. A hematúria póde ainda ser devida á diathese hemophilica. « Quando os globulos estão envoltos nos cylindros fibri- nosos, póde-se afhrmar que a ruptura se tem feito na porção cortical do tecido secretor dos rins; então a urina é, a maior parte das vezes, acida, e por conseguinte, a matéria córante do sangue é pardacenta e communica esta côr á urina. « No caso em que se suspeita a existência de uma affecção chronica dos rins, é um bom signal não achar albumina depois da desapparição dos globulos sanguíneos. Si, ao con- trario, a albumina persiste, é um signal que ella não provém sómente do serum do sangue extravasado, mas depende de uma lesão renal chronica. « A hematúria póde ser devida a um calculo renal (então ella quasi não dura mais de um ou dous dias), ou a um cal- culo vesical. Nos casos de um tumor fungoso do rim ou da bexiga, ha,muitas vezes, abundantes hemorrhagias que podem exgotar o doente. A hematúria póde ser igualmente devida a uma moléstia da bexiga ou da próstata. Hemorrhagias es- senciaes podem também fazer-se pela mucosa vesical, assim como pela mucosa nasal, a dos bronchios, do estomago, etc. Entretanto as hematúrias abundantes são tantas vezes o pri- meiro signal do cancro da bexiga, que o medico deve sempre suspeitar esta terrivel moléstia e reservar seu prognostico. « Eu já vi pequenas quantidades de sangue excretadas dia por dia por um homem são, logo depois da micção. Pa- recia que o esforço de expulsão das ultimas gottas de urina, tinha produzido a ruptura de alguns capillares para a parte membranosa da urethra ou mesmo para o collo da bexiga (1). (I) Tivemos ha poucos dias um doente que, achando-se em via de resta- belecimento de uma urethrite especiiica so ffria, depois da emissão da urina, 15 A hemorrhagia parava no fim de um certo tempo sem inter- venção de nenhuma sorte de tratamento. « Não se deve esquecer tão pouco a possibilidade de uma hematúria causada por entosoarios situados sobre tal ou tal ponto do apparelho urinário. » Analysemos cada uma d’essas causas em particular. Si se suspeita, na mulher, que o sangue da urina provem do utero ou da vagina, o meio mais effieaz e rápido para che- gar ao conhecimento deste facto, é a extracção da urina por intermédio de uma algalia levada á bexiga. A urina será limpida no caso affirmativo, e o exame directo do apparelho genital patenteará sua procedência. A nephrite parenchymatosa aguda, forma rara que, se- gundo a maioria dos autores, só apparece depois de resfria- mentos, febres eruptivas, traumatismos, etc., apresenta a hematúria no numero de seus symptomas, mas para distiu- guil-a ua que se desenvolve no decurso da albumino-pyme- luria, basta sómente saber,que esta é uma moléstia apyretica e sem consequências immediatas, e que a nephrite parenchy- matosa aguda vem acompanhada de calefrios, febres, dôres lombares, vomitos e alguns dias depois de anasarca. As aíiecções clirouicas dos rins, caracterisadas especial- mente pelas quatro variedades mórbidas que constituem o Syndromo clinico de Bnght, ainda quando são acompanha- das de hematúria, apresentam um quadro symptomatologico tal, que não póde ser confundido com o da albumino-pvme- luria. A diathese hemophilica, hemophilia, hemorrhaphilia, ó uma dyscrasia congenial, que se traduz por grande tendencia a perdas sanguíneas espontâneas muito abundantes. E’ uma moléstia,a maior parte das vezes, hereditária, manifestando-se, principalmente, na primeira ou segunda infancia,suspeitarei quo sc fazia sem incommodo, uma dôr urente no canal da urethra e algumas g0!tas de sangue eram expellidas. Achámos interessante este caso, porque a urina ennttida era perfeitamente normal e sem estria alguma sanguínea, e só depois de finda a micção apparecia o sangue. 16 pela outis fina o delicada dos indivíduos que delia se acham affectados, pela disposição supercial e apparente dos vasos sanguíneos, pelos cabellos louros, olhos azues, etc.; porem, só verificada pela abundancia da hemorrhagia,quando a mais leve causa traumatica actúa sobre o indivíduo. Sua confusão com a albumiuo-pymeluria será muito difficil. No caso da existência de calculo renal, si a hematúria chega a manifestar-se, não só, como diz Beale, dura apenas um ou dous dias, como também deve apresentar-se o com- plexo symptomatico especial conhecido pelo nome de cólica nephretica. 0 calculo da bexiga quasi nunca produz verdadeira he- matúria, e ainda quando appareça sangue na urina, os outros symptomas, taes como—a frequente vontade de urinar, a in- terrupção brusca do jacto da urina no momento de sua emis- são, as ferroadas (picotement) que os doentes sentem na extre- midade do penis, e sobretudo a exploração directa da bexiga por meio de uma sonda metallica, firmam o diagnostico. Os tumores fungosos, cancerosos e os tubérculos dos rins ou da bexiga são raros e de difficil diagnostico, mas a exis- tência dadiatbese cancerosa ou tuberculosa já localisada em outros apparelhos orgânicos, e a cachexia, coincidindo com accessos hematuricos ; a existência, revelada pelo exa;ne mi- croscópico, na urina não sanguinolenta, de globalos sanguí- neos, leucocytos, ej ithelium e, as vezes, pus : são dados bastante preciosos para o diagnostico differencial. O fungus da bexiga, propriamente dito, que apresenta uma superfície desigual, rugosa e bosselada, será reconhecido por meio do catheterismo praticado com uma sonda metallica. Os entosoarios que se diz ter encontrado na urina do homem, e aos quaes se refere Beale, são—echinococos prove- nientes de kistos hydaticos dos rins, o diplosoma crenata (Farre), o dactijlius aculeatus (Drake), o distomum hematobium (Bilharz), etc., mas a possibilidade de poderem elles produzir a hema- túria, é ainda problemática, como problemática é sua exis- tência. 17 Polyuria. — E’ a polyuria uma affecção caracterisada, especialmente, pela emissão repetida de grande quantidade de urina transparente e de pequeno peso especifico, e acompa- nhada sempre por uma sède intensa. Conhece geralmente por causa uma lesão primitiva dos rins, ou a influencia de al- gumas nevroses, taes como a hysteria, etc. Yimol-a desenvol- ver-se em um moço, estudante de medicina, depois de repetidos excessos venereos, não alterando, entretanto, o seu apparente estado de saude. A polyuria não se póde confundir com a albumino-py- meluria por nenhum de seus caracteres, e si a incluímos no diagnostico differencial d’esta moléstia, foi unicamente para não dissonar de alguns auctores que assim têm praticado, não sabemos com que fundamento. Pyuria.— A ptjuria ou urinas purulentas está ordinaria- mente ligada a alguma inflammação aguda ou chronica que tem sua sede no apparelho genito-urinario. Os phenomenos inflammatorios locaes, acarretando commummente, em prin- cipio, uma repercussão geral sobre todo o organismo, e apre- sentando depois symptomas peculiares, seriam sufficientes para distinguil-a da albumino-pymeluria ; mas acontece que nem sempre o clinico póde observar o principio das moléstias, a anamuése é insufficiente, e na ausência de symptomas pa- thoguomonicos seu espirito vascilla ; é n’esses casos que o exame directo da urina illumina o campo do diagnostico. A urina purulenta deixada em repouso deposita no fundo do vaso um residuo que é constituído pelo pús, e o liquido torna-se ligeiramente turvo; não ha coagulo como na albu- mino-pymeluria. Um meio facílimo de reconher-se si o deposito é puru- lento, é agital-o com uma parte igual de solução de potassa ; formar-se-ha uma especie de massa gelatinosa, densa, trans- lúcida, que ficará mais ou menos adherente ao vaso onde se proceder â operação. Trata-se depois de verificar a presença da albumina existente no serum do pús, decantando a urina e 18 tratando-a pelo acido azotico ou pelo calor. « A. acção parti- cular do liquor de potassa, associada ao estado albuminoso da urina, diz Golding Bird (1), constitue a melhor reacção para a determinação do pús. » O exame microscopico pres- tará também serviços reaes. Urinas jumentosas.— « Este nome, diz o Dr. Pereira Guimarães (2), é dado a uma especie de urinas, de côr esbran- quiçada e de reacção alcalina, que sobrexem algumas vezes no decurso de uma nephrne e em outras moléstias, e até mesmo, segundo alguns, no estado mais perfeito de saude, quando damos um pisseio affadigante logo depois de uma refeição copiosa (Requiu). » Estas urinas, também'chamadas por alguns sedimentosas, apresentam a côr esbranquiçada que as caracterisa, em virtude da grande quantidade de uratos, phosphato de cal, phosphato ammoniaco magnesiano que contém ; a simples acção do calor é bastante para fazer désapparecer essa coloração, e tor- nal-as transparentes. Não contém gordura e nem albumina. A Glycosuria ou diabete* saccharina e a albuminúria pro- priamente dieta, acreditamos não se poder confundir coma albumino-pymeluria, e por isso julgamos desnecessário occu- parmo-nos com ellas, tratando do diagnostico diíTerencial d’esta ultima affecção. Prognostico A. albumino-pymeluria não apresenta geralmente gravi- dade alguma. Indivíduos ha que solf -em seus insultos mór- bidos durante toda a vida sem que se manifeste alteração alguma em seu estado geral, vindo depois a succumbir vi- ctimas de afFecções que nenhuma relação tèm com ella. Outros, porém, de constituição mais fraca, sentem de dia em (1) «De 1’urme et dcs dépots urinaires,» traduit et annoté par le Dr. 0’Rorke. Paris, 1861, pag. 387. (2) These inaugural, pag. 11. 19 dia perturbações nutritivas, toruam-se marasmaticos, des- envolve-se a tuberculose, e a morte vem terminar esta scena de desolação. Esta terminação é, felizmeute, rara, e, 11a maio- ria dos casos, póde fazer-se da albumino-pytneluria um pro- gnostico favoravel, apezar da resistência e tenacidade que ella costuma oppor aos meios therapeuticos empregados para debellal-a. Anatomia pathologica A anatomia pathologica da albumino-pymeluria tem sido até agora mui pouoo estudada,e acreditamos que por duas razões : a primeira, porque raras vezes suecurnbem os doentes aos progressos d’essa enfermidade, e a segunda, porque, in- felizmente, entre nós e nos logares em que ella se costuma manifestar, ha desidia do corpo medico e opposição do povo a que as necropsias sejam praticadas. Entretanto, com o pouco que se tem conseguido fazer, vamos apresentar as alterações que commammente a acom- panham. Apartando-nos da praxe até aqui seguida pelos auctores que d’este assumpto se tèm occupado, trataremos não só das lesões anatomo-pathologicas encontradas jmt-mortem, como também do estudo da alteração do sangue e da urina verifi- cados em vida ; porque entendemos que o estudo da anatomia pathologica não deve ser feito sómente sobre o cadaver, que, muitas vezes, se conserva mudo ante nossas interrogações, mas também sobre o vivo. Não que queiramos, como faziam Herophilo e Eraristrato dessecando vivos os criminosos que obtinham dos reis (1), que se mutilem ou martyrisem os doentes, mas que analysem com o auxilio do microscopio e da chimica—o sangue, assim como a urina e outras secreções uaturaes, porque só por este modo poder-se-ha chegar a conhecer a alteração organica n’essas moléstias ainda hoje chamadas sine-materia. Não sa- (1) \ide— Corn. Celsi— «De Medicina», liber primus, proe fatio. 20 bemos nós, porventura, que*modificações profundas se podem rapidamente produzir em certos orgãos, durante algumas mo- léstias, e também rapidamente desapparecer A metamor- pbose gordurosa do figado na febre amarella é d*isso uma prova, pois sendo uma lesão grave e profunda desapparece rapidamente, como mostram as autopsias praticadas em ca- dáveres de indivíduos que por qualquer causa succumbem durante a convalescença. Seguindo, pois, este programma, daremos conta—Io, do resultado das necropsias ; 2o, das ana- lyses feitas em vida. Os casos de necropsias conhecidos na seiencia são per- tencentes ás clinicas dos Drs. De-Simom, Priestley, Prout e Isaacs. D’elles se infere não se haver encontrado alteração ca. daverica notável, a não ser aquellas que, ou são peculiares a profunda deficiência de nutrição, taes como o amollecimento e degenerescencia gordurosa do coração, fígado, rins, etc., ou a moléstias intercurrentes — como a tuberculose e o mal de Bright. A albumino-pymeluria, só por si, não apresenta, nas autopsias, lesões macroscópicas apreciáveis. Sangue.—0 estado do sangue n’esta affecção tem sido di- versamente apreciado. Uns, como Guibourt, que analysou o sangue do doente do Dr. Caffe, diz tel-o encontrado sobrecar- regado de gordura, com augmento de albumina e diminuição de fibrina. Hoppe Seyler encontrou-o também gorduroso, porem com diminuição dos princípios albuminoides. Outros., como Rayer, Bence Jones, Crevaux e Silva Lima acharam-no normal. O Dr. T. R. Lewis (1), na índia, diz ter descoberto, no sangue dos albumino-pymeluricos, vermes, que também fo- ram observados na urina, e que elle denominou filaria sangui* nis hominis, e que, segundo pensam os Drs. Crevaux, que vio os desenhos d’esses vermes, e Silva Lima, que vio no labora- torio do professor Aitken, no Hospital Nettley {Southampton), 1) «Lond. Medic. Record», n. 1. pag. 5, Janeiro de 1873—artigo do Dr. Spencer Cobbold. 21 as reparações remettiias da índia pelo Dr. Lewis, são inui semelhantes e talvez idênticos aos encontrados 11a urina dos albumino-pymeluricos pelo Dr. Wuclierer, na Bahia (1). En- tretanto, observações feitas, pelo Dr. Silva Lima (na Bahiay, e por nós em tres doentes cujo sangue analysámos ao micros- copio, não têm confirmado no Brazil a descoberta de Lewis. O Dr. Silva Araújo, joven e illustrado medico da cidade de S. Salvador da Bahia, auctor de um interessante trabalho que com o titulo de —Memória sobre a filariose, ou a moléstia produzida por uma nova especiede parasita cutâneo, — foi publi- cada em fins do anno passado, u’aquella cidade, em uma re- cente carta que dirigi.o ao Dr. Moncorvo, e que u’esta côrte foi estampada no Globo, diz que a Filaria dermathemica (nome que deu ao parasita por elle descoberto nas papulas cutaneas) é o mesmo verme descoberto pelo Dr. Wucherer 11a urina dos al- bumiuo-pymeluricos, e portanto, segundo 0 pensar dos Drs. Crevauxe Silva Lima, a Filaria sanguinis hominis de Lewis. Apesar do muito que consideramos o talento e as habilitações do distincto medico bahiano, entendemos que sua asserção precisa ainda acurado estudo e observação, antes de ser acceita. Pela nossa parte podemos accrescentar que, nas analyses microscópicas que tivemos occasião de fazer sobre o sangue de tres individuos atfectados de albumino-pymeluria, não só, como já deixámos dito, não encontrámos jUarias, como tam- bém o sangue sempre pareceu-nos normal, isto é, em relação com o estado los indivíduos. Uiíina.—A urina dos albumino-pymeluricos é de aspecto variavel. Ordinariamente a primeira emissão, quando se ma- nifesta a moléstia, é hemato-albumino-pyinelurica. (I) « Memória sobre a hematúria chylosa ou gordurosa dos paizes quen- tes» pelo l)r. J. Crevaux, com prefacio, annotações e commentarios pelo Dr. J. F. da Silva Lima, pag. 36. Bahia. 1876. 22 0 Dr. Silva Lima diz (1) não conhecer « caso algum em que as urinas se apresentassem puramente leitosas desde os primeiros dias da invasão da moléstia », opinião que é contra- riada pelo Dr. João José da Silva quando afíirma (2) que « em muitos casos as urinas chylosas apparecem como moléstia pri- mitiva, independente de qualquer hemorrhagia das vias uri- narias, como varias vezes teve occasião de observar. » Não entraremos na apreciação d’essas opiniões porque faltam-nos factos de observação pessoal para aprecial-as devidamente, bastando-nos, entretanto, por agora, estabelecer que, no de- curso da moléstia, a urina póde-se apresentar—rosea, côr de café com leite, leitosa, sanguinolenta e normal. Analysemos estes diversos estados. A urina rosea e côr de café com leite deve sua coloração á presença de sangue, e maior ou menor quantidade de gor- dura. Tratando d’essa ultima especie de urina, diz o Dr. João Silva (3), que em um caso, por elle observado, não havia san- gue, porem sim acido urico em pó amorpho suspenso no li- quido pela substancia albuminosa. Factos d’esta ordem acre- ditamos raros. A côr leitosa é devida á presença de gordura, já em gra- nulações excessivamente pequenas, já em substancia, como em um caso tivemos occasião de encontrar; n’este ultimo es- tado a côr leitosa é pouco pronunciada. A urina sanguinolenta parece algumas vezes devida a verdadeira hemorrhagia. O resultado das investigações microscópicas feitas sobre a urina dos albumino-pvmeluricos é assim descripto na ex- cellente these inauguraljdo Dr. Julio Crevaux. (1) « Sotas, commentarios e additamentos » á memória do Dr. Julio Crevaux. Sota B, pag. 7.- Bahia, 1876. (2) « Da Chyluria », These de concurso, pag. 9. Rio de Janeiro, 1875. (3) These citada, pags. 37 e 38. 23 « 0 exame do liquido, diz elle, nos dá, com um augmento de 350 diâmetros : « l.° Globulos vermelhos do sangm.— Em todas as urinas albumino-gordurosas que nós temos feito examinar pelo Sr. Coquerel, medico de Ia classe da marinha, vê-se globulos san- guineos, posto que, muitas vezes, o aspecto exterior não indi- casse a presença de sangue (Cassien). Trata-se de verdadeiro sangue e não de uma simples coloração sanguinolenta prove- niente da dissolução dos corpúsculos sanguíneos, semelhante á que se encontra em certos casos de febres graves, de intoxi- cação, etc., e que Yogel chama hematinuria. « Aqui encon- tra-se os globulos sanguíneos intactos. >> (W ucherer.) M. Gluber affirma : «que o deposito vermelho é quasi unica- mente formado pelos globulos hematicos, perfeitamente veri- ficáveis pela sua coloração, mas diflferindo, sob muitos pontos, dos uipsmos elementos examinados no sangue, no estado normal. Esses globulos hematicos, espheroi iaes, têm geral- mente um diâmetro visivelmente inferior ao dos corpúsculos sanguineos aos quaes nós os comparamos ; alguns não pare- cem ter rnais de 1,200 de millimetros ; muitos tètn um as- pecto irregular (framboisé), mas a maior parte apresenta uma superfície lisa e regularmente espherica ; seu contorno é cla- ramente limitado por um friso assombreado intenso ; só por excepção percebe-se vagamente uma segunda linha circular concêntrica, indicio da excavação dos discos sanguineos nor- maes. (*) «2.° Globulos brancos.— « A urina contém muitos corpús- culos brancos, parecendo ser leucocytos (Wucherer.) » «Entre os globulos hematicos, distingue-se globulos brancos, mais volumosos, arnalogos aos do sangue (Gluber).» « 3.° Granulações pulcerulentus em grande quantidade. — Todos os auctores são unanimes em reconhecer que a côr branca das urinas de aspecto chyloso é devida, o maior nu- (*) Comptes-rendues des séances et meinorires de la Société de Biologie, 2C de Ia deuxiéme série, aané 1851, pag. 98, 99 et 100. 24 mero de vezes, a granulações muito tenues, pulverulentas, de natureza gordurosa. Essas moléculas são solúveis no ether, a dissolução não tem lugar instantaneamente, o que faz suppor, a muito auctores, que ellas são cercadas de uma delgada ca- mada de albumina. #4.° Globulos oleosos.— Nós temos dito que a gordura achava-se principalmente sob a forma de grânulos pulveru- lentos ; temos, entretanto, encontrado algumas vezes globulos oleosos na urina examinada ao sahir do canal da urethra. Elles são caracterisados pela inconstância de seu volume, e, sobretudo,pela sua forte refrangencia. Uns são um pouco mais volumosos que as granulações moleculares, outros têm quasi o diâmetro dos globulos do sangue, e distinguem-se d’estes por sua fórma espherica e seu aspecto mais brilhante. « 5.° Moldes e cellulas.— A. urina dos hematuricos contém uma innumeravel quantidade de cyltndros fibrinosos seme- lhantes a aquelles que se observa em muitas aífecções dos rins, mas nos casos da nossa moléstia elles são quasi transpa- rentes, e de tal modo descorados, que é difficil distinguil-os. Quando a urina é muito leitosa, se os reconhece melhor por seu aspecto de tubos vasios, transparentes, de fórma alongada, onde faltam moléculas gordurosas. Rarameute são granulosos, e não nos ocorre tel-os visto contendo corpúsculos sanguíneos, ou levando, adherentes á sua superfície, cellulas epitheliaes dos tubos uriniferos (Wueherer). As cellulas epitheliaes que sé encontram isoladas, e, por vezes, em grupo, provêm de todas as partes das vias urina- rias, dos cálices, dos urethéres, da bexiga, etc. (Wueherer). « Cassien accusa também a existência de cylindros hyalinos, brilhautes e esbranquiçados, que elle suppõe for- mados pela fibrina coagulada e modelada nos tubos arini- feros. Como Wueherer, nós encontramos um grande numero de cellulas epitheliaes; algumas, prismáticas, contendo um ou muitos núcleos. Ellas são completamente idênticas as cellulas dos rins representadas por Beale. « 6o Crystaes de phosphalos amoniaco-magnesianos.— Estes 25 crystaes encontram-se sobretudo quando as urinas são fétidas ; elles nadam n’uma pellicula que se forina na super- fície do liquido. A massa que os engloba contem, muitas veses, pequenos corpos informes, amarellos, verdes e azues, são, algumas vezes, visíveis a olho nú. Os phosphatos apresentam-se, por vezes, sob a forma de areia (petits gra- viers).» Helminthos. — Affirmara, muitos observadores notáveis, a existência de vermes na urina dos albumino-pymeluricos. Aquelles que até hoje se tem encontrados são : 1. 0 Distomum hematobium (Bilharz) ou Bilharzia hcema- tobii (Cobbold) descoberto por Bilharz, no Egypto, e estudado successivamente por Griesinger, John Harley, Leuckart, etc.. 2. Embrgões de um nematoide desconhecido, provavel- mente pertencente a familia dos strongilidas (Leuckart), des- coberto, noBrazil, por Wucherer, em 1866 (Agosto), nos Esta- dos-Unidos por Saliysbury, em 1868 : em Guadelupe pelo Dr. Crevaux, ern 1870 ; na índia pelo Dr. Lewis, em 1871 ; em 1872 pelo Dr. Cobbold, etc. Entre nós, depois de Wuche- rer, outros observadores, taes como os Drs. Silva Lima, Hilário de Gouvèa, etc., dizem ter encontrado esse parasita na urina dos albumino-pymeluricos. Nas analyses que temos emprehendido nunca deparou-se-nos occasião de vel-os. 3. Ovos de um nematoide ainda, também, desconhecido, porém differente dos já citados, encontrados na Bahia, em Maio de 1866, pelo Dr. Wucherer, em um doente da clinica do Dr. J. Paterson (1;, e verificados, em 1867, pelo Dr. Leu- ckart (2). Extractaremos para as paginas de nosso trabalho a des- cripção desses parasitas, que poderá servir de guia a aquelles que, no nosso paiz, quizerem illucidar este ponto interessan- tíssimo de pathologia intertropical. (1) «Gazeta Medica da Bahia»— Vol. 4o, pag. 40. (2) Vide « Hematúria endemica dos paizes quentes». These de Concurso do Dr. J. L. de Almeida Couto, pag. 7. —Bahia, 1872. 26 a Anatomia do bilharzia, descripta por sen descobridor, por Kunkeinmeister e especialmente por Leuckarl (1). Sem entrar em minuciosos detalhes anatómicos, existem, comtudo, differen- tes pontos que pedem consideração. « Examinando em primeiro lugar o macho, nota-se, a primeira vista, a forma de uma grossa sanguesuga, devida á posição do sugador oral, cujo disco é collocado quasi no mesmo plano do acetabulo ventral. A superficie do corpo é lisa nesta região ; porém immediatainente abaixo do sugador ventral a epiderme tem um aspecto verrugoso, que continua até a ponta da cauda. « 0 pharynge é, apparentemente, desprovido de alguma bolsa especial e não ha bolbo oesophagiano: o tubo bifurca-se acima do sugador ventral, e estas divisões, encaminhando-se para a região da cauda, reunem-se em linha central. « A mesma cousa se dá 11a femea : o ponto de união tendo logar muito mais acima, 110 corpo, e produzindo um caual central longo, tortuoso, largo e retorcido, o qual conti- nua até perto da ponta da cauda onde termina em sacco. « Os testículos apresentam-se como lobos distinctos, ou pequenos orgãos ovaes que são, provavelmente, ligados a um par de canaes diiferentes, abrindo-se exteruamente em um só, e sahindo abaixo do sugador ventral. Não ha prova cabral da existeucia de bolsa seminal nem de orgão intromiltente [pénis). « Na femea, as glandulas vitelligenicas são situadas sobre ambos os lados da bolsa intestinal central, emquanto que 0 ovário, de fórma de ovo, encontra-se 110 ponto em que se unem as divisões intestinaes. De sua margem posterior um dueto germinativo sahe e une-se com os duetos das glandulas vitel- ligenicas, as quaes, formando um oviducto, continuam para diante com um só canal uterino até a altura da abertura va- ginal, que é directamente abaixo do labio do sugador ventral. Segundo Bilharz, o systema aquífero é representado por dous delgados canaes, que unem-se para formar um curto sacco (I) Dr. J. L. de Almeida douto.—Tliese citada, pags. 16 c 17. 27 tubular de expulsão, anterior ao ponto central das caudas, onde particularmente existe um foramen caudale aberto. « Ovos. Os ovulos do Bilbarzia têm sido muito cuidado- samente estudados, e são alguma cousa peculiares. Em pri- meiro logar elles variam na fórma, sendo usualmente mais ou menos periformes ou muito agudos no polo posterior ; assu- mem, porém, algumas vezes, uma fórma oblonga, em cujo caso são dotados de uma especie de apophyse, collocada late- ralmente, um pouco anterior á extremidade posterior. Entre as duas fôrmas typicas, outras pequenas variantes podem existir, porém, em todo caso, emquanto os ovos se acham no canal uterino, o polo posterior, ou, era outras palavras, a ex- tremidade do ovo opposta a aquella provida de um operculo, é dirigida para a extremidade caudal do corpo da mãe. Seu tamanho é também variavel, apresentando uma extensão lon- gitudinal de 11200 de pollegada e de largura 1{550. « Bilharz, porém, vio embryões escapando-se por uma fenda lateral, perto do pollo anterior da casca. Emquanto os ovulos não têm sahido, os embryões desenvolvem-se em di- miuutos animaleulos ciliados, e logo após sua sahida mani- festam movimentos vitaes. Muitos embryões ciliados foram encontrados por Griesinger, livres nos intestinos de corpos humanos. Segundo Bilharz e Leuckart, medem os embryões 1|227 de comprimento e 1|676 de largura. São extremamente delicados e transparentes, as mais das vezes contêm em seu interior uma quantidade de globulos sarcoides, íinos e alta- mente refrangentes. Na extremidade anterior, que é mais ou menos pontuda, Bilharz observou uma massa corpuscular, periforme e dupla, que, provavelmente, representa os rudi- mentos de uma bolsa digestiva no subsequente periodo da formação larval. » Descripção do nematoide descoberto por Wucherer. — A. minu- ciosa descripção que transcrevemos da memória do Dr. Julio 28 Crevaux (1), 4 devida á paciente investigação do Dr. Corre que vio e examinou este parasita. « O animal é incolor e transparente : desenha-se na la- mina por sombras que resultam da sua fórma cylindrica ; o seu comprimento é de 200 a 265 millesimos de millimetro ; a largura é de 6a 7 millesimos de millimetro. « A cabeça, um tanto obtusa em sua extremidade, ora n< s pareceu em continuidade perfeita com o resto do corpo, ora separada por uma ligeira constricção. Nem o Dr. Wucherer, nem o Dr. Crevaux mencionam estreitura cervical ; mas o ultimo d’estes médicos, em um dos indivíduos que representa na sua memória, figura uma especie de pescoço resultante da attenuação gradual do corpo até a tumescencia cephalica. Não podemos distinguir nenhuma especie de orgãos ; notamos apenas a existência de granulações no interior do corpo, gra- nulações agrupadas para o centro e formando como um ras- tilho longitudinal, que simula, á primeira vista, um canal estendido da cabeça até a cauda. « O corpo apresenta um diâmetro quasi egual, porem susceptivel de augmentar momentaneamente em sua parte anterior, pela propulsão do liquido contido, quando o animal muda de logar. Na parte posterior diminue progressivamente até se confundir com a cauda. Esta é mui afilada, curva e conserva a direcção do eixo do corpo. <í O animal move-se empurrando para os lados os glóbu- los sanguíneos que o cercam, por movimentos energicos de torsão, impellindo de traz para diante, e depois de diante para traz a massa liquida que o distende, por movimentos de contracção. » Ovos DE UM NEMATOIDE DESCONHECIDO. — Foi Leuckart, O primeiro que aventou a idéa de serem os ovos encontrados por Wucherer na urina dos albumino-pymeluricos, pertencentes a um outro nematoide, que não aqueile que havia sido desoo- (1) «Memória sobre a hematúria chylosa ou gordurosa»—já citada pag. 15 e 16.—Bahia, 1876. 29 berto por este notável observador. Funda-se o illustrado hel- minthologista allemão, para assim aflirmar, na falta de rela- ção existente entre o volume dos ovulos e o dos embryões encontrados. Para melhor apreciar-se sua opinião extrahil-a-hemos da carta que, com data de 28 de Agosto de 1867, dirigioelle ao Dr. Wucherer, onde também descreve esses ovulos. «—Porém me está parecendo, diz elle (1), que as vias urinarias dos seus hematuricos, hospedam ainda segundo parasita. Pelo menos eu encontrei ovos, que devem provir de outro nema- loide, também desconhecido. São muito pequenos, Ij30 de millimetro ; pelo que não posso crer que tenham relação al- guma com os embryões, de lj3 de millimetro. A casca, que é côr de castanha e figura achatada em um de seus polos, ca- racterisam sufficientemente estes ovos. » Si estes ovos são pertencentes a uma nova especie de nematoide, ainda não encontrada, como suppõe Leuckart, ou si ao parasita descoberto \ or Wucherer, como a principio suppoz este observador, é facto que ainda hcje não está verificado. Entretanto, o Dr. Silva Lima, nos Commentarios á me- mória do Dr. Crevaux (2), traz á tela da discussão, para com- provar esta segunda hypothese, a descoberta que, em 1870, fez Spencer Cobbold, que, em uma doente de albumino-py- meluria, encontrou esses ovulos e vio d’elles sahir vermes com a mesma apparencia dos descr ptos pelo Dr. Wucherer. Analyse chimica.— Diversas são as analyses chimicas feitas sobre as urinas dos albumino-pymeluricos, mas nós transcreveremos, apenas, as que Beale teve occasião de rea- lisar sobre a urina de urna doente do Dr. Cubitt (3). A urina analysada,que foi emitt da pela doente no mesmo dia, apresentava, entretanto, aspecto differente. A analys e (1) Dr. Almeida Couto.— Tliese citada, p<'ig. 7. (2) Memória citada, pag. 37. (3) « De 1’urine», par L. Beale, traducção citada—pag. 318 e 319. 30 primeira foi effectuada sobre urina francamente leitosa, e a segunda sobre urina apenas ligeiramente turva. ANALYSE 1* « Esta urina continha em iOOO partes: Agoa 947,4 Matéria solida 52,6 Uréa 7,73 Albumina 13,00 Matéria extractiva e acido urico 11,66 Matéria graxa insolúvel no álcool, mas so- lúvel no ether 9,20 i Matéria graxa insolúvel no álcool quente. . 2,70 > 13,9 Matéria graxa solúvel no álcool quente . . 2,00^ Sulphatos alcalinos e’chloruretos .... 1,65 Phosphatos 4,66 ÀNALYSE 2* « 1000 partes continham: Agoa 978,8 Matéria solida 21,2 Uréa 6,95 Acido urico 0,15 Matéria extractiva 7,31 Matérias graxas 0 Sulphatos alcalinos e chloruretos .... 5,34 Phosphatos alcalinos 1,45^ Phosphatos terrosos 0,151 Pathogenia Um dos pontos mais importantes desta affecção especial é, incontestavelmente, a sua pathogenese, sobre a qual, ainda hoje, não são accordes os médicos. 0 estudo que vamos em- prehender abrangerá as differentes theorias até aqui susten- 31 tadas, as quaes serão por nós analvsadas ; tratando, em se- guida, de justificar aquella que julgamos mais consentânea com o estado actual da sciencia. § I THEORIA IDO LEITE Chamar-se, no estado actual dos conhecimentos médicos, leitosa a urina albumino-pymelurica, é unicamente dizer que ella apresenta a côr e o aspecto exterior do leite. Não se pen- sava, porém, assim antigamente, e a palavra urina leitosa foi utilisada, porque suppunha-se que o leite era expellido com a urina. Sauvages (1), tratando d’este assumpto, assim expressa-se em sua Nosographia methodica, publicada em 1763 : « Est lactis vel chylosse materise effluxus. Nicolaus Flo- rentinus vidit juvenem qui quotidiè sine ullo incommodo mingebat lactis quantitatem medii urinalis proeter urinam multam. » Haller, era seus Elementos de Phgsiologia (2), affirma que o leite mesmo [et lacipsum), póde atravessar os duetos uriniferos, e ser expellido com a urina, depois de alguma moléstia grave* Alibert, Berzelius e Burdach foram, também, sectários da origem lactea da urina albumino-pymelurica. Hoje, porém, esti doutrina está por terra, e por diversas razões:— Io, porque é sabido que a albumino-pymeluria» apezar de apparecer com mais frequência no sexo feminino, attaca indifferentemente o homem e a mulher ; 2o, porque, pelas analyses, tem-se reconhecido n’essas urinas, não só a au- sência dos elementos figurados do leite, assim como da butyrina ou seus derivados (ácidos caprico, oaprylico, caproico e buty- rico), e da caseina, o que se evidencia pela nulla influencia que sobre ellas exerce o acido acético; 3o, porque, na urina (t) Citado pelo Dr. P. Guimarães.— These inaugural, pag. 2. (2) « Primai linete Physiologi® ». - Alb. Ilaller, pag. 458. Lausaunce—1771* 32 albumino-pymelurica, não foi, ainda, encontrado o assucar de leite, pelo menos em relação á quantidade existente no pro- ductoda secreção mamaria ; 4o, finalmente, porque, si tal hy- pothese fosse real, não podendo o leite ser expellido pela urina, sem que fosse levado aos rins pelo sangue, unioa via de communicação possivel, segue-se que sua presença n’esse ultimo liquido deveria necessariamente ser demonstrada pela analyse, o que nunca se verificou. Liga-se a esta tfieoria, a denominação de caseosas, appli- cada ás urinas em questão, e isto pela falsa supposiçãoem que estavam alguns, da existência de caseína n’esse liquido morbido. , 0 pharmaceutico francez Blanc, estabelecido, em 1835, n’esta Côrte, examinando as urinas de doentes pertencentes á clinica do Dr. Meirelles (1),— « achou que ellas continham uma matéria caseosa. » Berzelius, que nunca examinou urinas albumino-pymelur cas, porém d’ellas falia por infor- mação, diz que « o coalho tinha a propriedade do caseum. » Nos nossos dias, entretanto, as analyses mais minuciosas não têm conseguido achar caseína n’essas urinas. Por outro lado conhece-se que afóra o leite « não se sabe ainda com certeza, diz Frey (2), si a caseina existe nos outros liq uidos do organismo. Sua presença no sangue, não está completamente demonstrada. » Uma das razões em que se baseam alguns experimen- tadores para affirmar a existência da caseina nas urinas albu- mino-pymeluricas, é a separação de pelliculas sob a acçâo do calor, mas essa razão restará sem valor algum, desde que souber-se que « as soluções albuminosas muito alcalinas coagulam de uma maneira analoga (Frey.) » Bouchardat demonstrou que a albumina e a caseina, sob o ponto de vista chimico, tinham a mesma composição molle- (1) «Revista Medica Fluminense».— Vol. 2o, pag. 11.— Rio de Janeiro, 1836. (2) Frey.— « Traité dllistologie et d’Histochimie » — trad. par Spillmann, pag. 19.- Paris, 1871. 33 cular e desviavam com a mesma intensidade para a esquerda a luz polarisada (P. Guimarães). Ora, sendo, como se vè, muito possivel, na analyse, uma confusão entre a caseina e a albumina, para que insistir na existência d’aquella, quando não só fallecem os seus caracteres microscopicos (envoltorio dos globulos do leite), sua reacção caracteristica (coagulação em flocos, pelo acido acético), como também as principaes substancias que costumam acompanhal-a no leite? Fica- remos aqui, porque esta theoria já foi julgada pela sciencia moderna. § II THEORIA IDO CHYLO « As observações do Dr. Cárter (•) apoiara fortemente, diz Beale (1), a theoria segundo a qual o chylo penetra directa- mente em certas partes dos canaes urinários. Em tres casos, que elle relatou, havia accuraulo de chylo nos lymphaticos. No primeiro, o chylo era derramado, de tempos a tempos, pela superfície cutanea, sem que a urina fosse modificada. A abertura do vaso lymphatico por onde se escapava o chylo estava situada algumas pollegadas abaixo do ligamento de Poupart e deixava recolher-se, algumas vezes, uma pinta (2) d’essa substancia por dia. No segundo caso, havia escoa- mento de chylo para o exterior e a urina era frequentemente chylosa. O terceiro caso era de urinas chylosas sem corri- mento exterior. Estes factos provam a existência de um estado de dilatação dos vasos lymphaticos. Esta dilatação se esten- dia evidentemente até ao canal thoraxico, de modo a deixar passar o chylo d’esse vaso aos lymphaticos. No caso de uma tal alteração, o canal estaria tão distendido, que as valvulas tornar-se-hiam insufficientes. » (') « Med.-chirurg. Trans.,» vol. XLV, 1862. (1) Lionel S. Beale,—Obra citada, pag. 324. (2) A pinta era uma medida antiga, equivalente a 0,!itr. 931. 34 0 Dr. João José da Silva (1) coramenta, apenas, esta tbeoria com o seguinte trecho ; « Mas essa passagem directa do chylo para os rins só se póde conceber a favor de anoma- lias anatómicas inadmissíveis, » Não parece, á primeira vista, que se trate aqui, como se acaba de vèr, de anomalias anatómicas, porém sim de um estado morbido produzindo a dilatação dos vasos lympha- ticos e do canal thoraxico, a ponto de originar o refluxo do chylo, e uma circulação retrograda d’este liquido pelos lymphaticos. Entretanto, ocommentario do Dr. Silva parece- nos j usto. Comprehende-se, que o systema lymphatico composto de vasos extremamente delgados, que originam-se nos vacuolos do tecido conjunctivo da profundidade e da superfície dos orgãos; tendo uma direcçâo centrípeta; e apresentando, de distancia em distancia, plexos ganglionares collocados sobre seu trajecto; possuindo valvulas poderosas; e uma dispo- sição irregularissima, as vezes, quasi em zig-zag, outras em duplas curvas ; não possuindo uma circulação propriamente dieta, porém, antes, fazendo-se no seu interior, no estado normal, um transporte, extremamente lento, da lympha da peripheria para o centro ; c.miprehende-se, repetimos, que não é possivel, a menos que não se queira fazer tabula raza de tudo quanto a sciencia moderna tem estabelecido, acre- ditar que possa haver uma circulação de retorno, quando, segundo diz Bouisson (2), nem verdadeira circulação existe no estado physiologico. A physiologia e a pathologia não são scieucias antago- nistas, porém complementares uma da outra ; a moléstia não é nma entidade nova que se venha aninhar no seio do orga- nismo, mas sim um desvio, uma perturbação na marcha regular das funeções, pela lesão de algum orgão ou presença de corpos estranhos (miasmas, parasitas, substancias toxi- (1) Tliese citada, pag. 50. (2) F. Bouisson. «Dela lymphe et deses allerations morbides», pag. 45 Montpellier, 1845. 35 cas, etc.) que actnam alterando os solidosou os tiqoidos. mas nunca creando fu noções que não existem no estado hygido. E, parece-nos muito claro que, a passagem do ehylo, do canal thoraxico para os lymphatieos dos rins, em quantidade capaz de produzir minas ehylosas, só se poderia elFeotuar com as seguintes condições : 1°, dilatação tal dos vasos lympbaticos, que elles podessem obter o quadrupulo, ou talvez mais, de sua capacidade normal e illudir assim o obice que apptoem as valvulas; 2°, aniquilamento da acção dos plextts ganglio- nares; 3o, existência, no reservatório snb-hmbar ou Cisterna de Pecquet, e no canal thoraxico, de uma camada muscular vigo- rosa, dotada de força coutractil como o coração, para que podesse impellir o ehylo; 4o, disposição inversa do valvulas intactas do canal thoraxico, na altura da 3a ou 4a vertebra dorsal, porque de outra maneira, o ehylo escapar-se>-hia para o systema veuoso, visto encontrar por esto canal urna passa- gem facil e natural, sein o empecilho que as curvas lhe oppo- riam para chegar aos rins. Por esta exposição observe-se os absurdos inqualificáveis a qu© nos levaria a adopçào da theoria de Cárter* §111 THEORIA IDOS IIELIVrXINrXIlOS O espirito humano1 sempre propenso a admissão de novi- dades, tem conseguido, a semelhança do que se dá nos hábi- tos da vida social, estabelecer verdadeiras modas até nas sciencias mais serias, como por exemplo a medicina, onde se joga a cada momento com a vida de nossos semelhantes. Certos medicamentos ou< algumas theorias, appaiecem, têm seu periodo de estado, de brilhantismo e aceitação: no fim de um espaço de tempo mais ou mortos duradouro são substoi- dos. por outros, que vèm, a seu tuirno, ter o mesmo destino. E’ o que se dá com a tlieona parasitaria. Depois de ter feito epocha, de ter sectários decididos, foi retirada da circu- lação para ceder a outras suas regalias. Hoje, porém, graças 36 aos trabalhos microscopicos, ainda rudimentares ; graças a essa soffreguidão, caracteristica de nosso século, de tirar con- clusões e fazer illações de factos ainda não bem observados ; graças, sobretudo, á falta de uma reflectida comparação entre causas e effeitos, volta de novo á tona do movimento scien- tifico esta theoria e parece querer tudo avassalar. A albumino-pymeluria não podia escapar a onda, e foi arrastada no seu turbilhão. Foi Bilharz, como já deixamos dicto, o primeiro que, procurando, pelas autopsias, conhecer a natureza da hema- túria do Egypto, encontrou o parasita que d’elle recebeu a de- nominação de distomum hematobium, descoberta que foi depois confirmada por Griesinger, Harley, etc. Wucherer, na Bahia, diligenciando observar na urina dos albumino-pymeluricos, d’aquella cidade, o distomum he- matobium, vio frustrada sua bôa vontade; mas, em compensa- ção, deparou, a 4 de Agosto de 1866, com um outro verme , ainda não classificado, mas que, segundo Leuckart, parece pertencer á familia dos Strongilidas. Na existência do distomum hematobium na urina dos hema- turicos do Egypto, Cabo da Bôa Esperança, etc , e na do ver- me descoberto por Wucherer, na dos do Brazil, Estados-Uni- dos, funda-se a theoria parasitaria da albumino-pymeluria. Tomaremos ao Dr. Almeida Couto, sectário enthusiasta e decidido d’esta theoria, a sua conclusão sobre a natureza da moléstia que nos oucupa. Depois de fazer o historico da descoberta dos helminthos em diversos paizes e por vários observadores, exclama elle triumphante (1) : « Do que acabamos de dizer é evidente, que, a hematúria endemica dos paizes tropicaes, é determinada pela presença de vermes, conforme attestam as descobertas de Bilharz no Egypto, de Harley na Mauricia, Bourbon, etc., e de Wu- cherer no Brazil. Apoiando-nos, pois, no juizo de Cárter, de Bombaim, em relação á presença do chylo na urina dos he- (1) These citada, pag. 13 e 14. 37 maturicos, acoitamos como provável a opinião de Guy e John Harley, ampliadores do vade-mecum de Hooper, os quaos en- tendem, que a coincidência da hematúria com a chyluria, é devida ao corroer dos vermes ; e, em nossa opinião, a penetra- ção d’elles, de suas larvas ou ovulou também, entre as fibras, que estabelece communicação, ou antes, mistura do conteúdo dos vasos lymphaticos e sanguíneos. » Esta é, mais ou menos, a opinião sustentada por todos os helrainthologistas. Vejamos agora, á luz de uma critica desprevenida, o valor d’esta theoria, que estudaremos por partes. l.° Encontra-se sempre helminthos em todos os casos de albu_ mino-pymeluria ? Não queremos, de nenhuma scrte, negar a existência dos helminthos na urina dos indivíduos affectados de albumino- pymeluria, posto que, si quizessemos, poderíamos apresentar casos de vermes em cuja realidade, durante um certo espaço de tempo, acreditou-se, e que hcje nega-se. Tftes são : o Diplosoma crenata, que em outro logar já citámos, cuja ana- tomia foi muito bem descripta pelo Dr. Arthur Farre, e cujo desenho encontra-se no livro de Beale {De Vurine, pag. 331), e que, actualmente, por uns é posto em duvida, e por outros classificado entre os entes de razão ; o dactylius aculeatus, de Drake e Curling, o qual, depois que foi descoberto, em uma menina de 5 annos, por aquelles investigadores, nunca mais foi encontrado, e hoje já ninguém crò na sua existência, etc. Nós, porém, argumentamos lealmente; estudando as ques- tões, somos guiados pela aspiração de instruir-nos, e não de fazer alarde de íllustração; encararemos, pois, a doutrina tal qual tem sido apresentada por seus sectários, que são notáveis observadores. Ao quisito apresentado, respcndemos negativamente, e passamos a expor as razões em que nos baseamos. Sobre 368 cadaveres, á cuja r.utopsia e exame procedeu, Griesinger só encontrou o distomum hematobium em 117 (Silva Lima). Na summula dos treze casos de hematúria tropical da. 38 clinica do Dr. Silya Lima, que acompanha & Theso do Dr Almeida Couto, duas vezes não se poude encontrar vermes nas urinas, são as observações sob us. 11 e 13. 0 Dr. Al- meida Couto em sete casos, de clinica própria, relatados em sua These, só uma vez não encontrou vermes. Ackerman (citado pelo Dr. João Silva) nunca descobrio vermes nas urinas que examinou. 0 Dr. João Silva (1) nunca os encontrou também, a despeito de numerosas inves- tigações. 0 Dr. Julio de Moura disse-nos nãotel-os observado ainda, em nenhum caso. Apezar do affan com que procu- ramos os vermes, já só, já em companhia do illustrado Dr João Silva, nunca se nos deparou occasião de vel-os. Pelo que nos diz respeito, é natural que se attribua á deficieneia de observação o resultado a que chegámos, mas não acredi- tamos que se possa dizer o mesmo de Ackerman, João Silva e Julio de Moura; e como os factos de Grriesinger, Silva Lima e Almeida Couto, podem servir para termo de comparação, nós concluiremos, considerando isentos de vermes os casos su- jeitos á analyse d’aquelles observadores. Uma illaçào forçada emana d’esta conclusão, é a se- guinte : desde que ha casos de albumiho-pymcluria sem a com- cumittancia de helminthos, é evidente que não se póde imputar a esses parasitas a causa da moléstia. 2.° Existem sempre os mesmos vermes nos casos de albumino- pymeluria? A resposta a esta interrogação encontra-se na exposição que fizemos da theoria. Ahi vô-se, que Bilharz encontrou o distomum hematobium no Egypto, etc., e Wueherer verificou que no Brazil elle não existia, mas descobrio um outro nematoide que vem digna- mente substituil-o. Cobbold encontrou, em uma doente, ovulos do Úilharia h',matobia conjunctamente com os do para- sita de Wueherer (Silva Lima). E’, pois, muito claro—Io, que conforme as localidades, tem-se encontrado ora um, ora outro (1) These citada; j>ag. 29. 39 desses parasitas; 2*, que elles podem apparecer conjuncta- rnente no mesmo individuo. Resta, agora, saber, si esses animalculos tèm os mesmos iustinctos ou hábitos idênticos, si podem produzir lesões iguaes, etc. O estudo comparativo de um e de outro, sob este ponto de vista, não nos consta, que se tenha feito; portanto acha- mos extemporânea a conclusão que se quer tirar, de sua exis- tência na urina, para a producção da albumino-pymeluria. 3 o Tem-se encontrado os helxninthos antes da manifestação da moléstia ? Entre todos os casos que a sciencia registra, nada existe a este respeito; e, apenas, em um, relatado pelo Dr. Lewis, foram encontrados vermes coincidindo com elephantiasis do escroto, sem que, entretanto, houvesse albumino-pymeluria. Deu assumpto a esta observação, um doente admittido ao Hospital Geral Presidencial (Calcuttá) (1). O exame do Dr. Lewis, que foi feito sobre liquido extrahido pela punc- tura da parte hypertrophiada, revelou a existência de filarias, que, segundo pensam os Drs. Crevaux e Silva Lima, são idênticas aos parasitas descobertos por Wucherer. N’este caso, pois, os parasitas não precediam o apparecimento da albu- mino-pymeluria, mas existiam independente 1’ella, e sem determinal-a. E’ um facto que depõe contra a natureza ver- minosa. Mas, na hypothese, mesmo, de se haver verificado a exis- tência de helminthos precedendo a manifestação da moléstia, não acreditamos que fosse de bom pensar, concluir logo, pela natureza verminosa d’esta; porque, é geralmente sabido, que muitos parasitas se podem demonstrar, residindo no orga- nismo em perfeito estado physiologico, sem determinar lesão alguma. Os animaes inferiores, mesmo, não estão isentos de alo- jarem parasitas, sem que, entretanto, revelem nenhuma espe- U; Vide— Comroentarios á memória de Crevaux-pelo Dr. Silva Lima, (>ao • D. 40 cie de soífrimento. Gurlt (1), por exemplo, patenteou a exis- tência do distomum cuneatum no oviducto do pavão, e do distomum ovatum, no da gallinha, etc. Os cestrides, em geral, residem, no estado de larvas, nos intestinos delgados dos cavallos, bois, etc. Assim pois, é nossa opinião, que, para se poder asseverar a natureza verminosa da albumino-pymeluria, seria preciso, não só demonstrar a existeucia de helminthos precedendo a irrupção da moléstia, como também, por meio de experiên- cias em animaes, que eram esses helminthos capazes de pro- duzil-a. Porém, como nada disso se tem demonstrado, e, ao contrario, haja-se observado casos de albumino-pymeluria sem a coexistência de vermes, e, em um caso, a presença de vermes sem albumino-pymeluria, concluiremos, que, no estado actual da sciencia, a theoria helminthologica não póde ser aceita, por falta de bases solidas sobre que repouse. § iv THEORIA JDA. LYMPHORRHAQIA A theoria de que nos vamos occupar, e que tem hoje muitos propugnadores, é conhecida na sciencia desde 1858, epocha em que Gubler apresentou-a, pela primeira vez. Acha-se assim exposta na These de concurso (2) do Dr. João Silva, um de seus extrenuos partidários : « Gubler, diz elle, é de opinião que as urinas chylosas são dependentes de uma lymphorréa do apparelho uro-poyetico: elle basêa sua maneira de vèr : « l.° Na analogia dos elementos anormaes d’essas urinas com os da lympha. « 2.° Na frequência das moléstias do systema lympha- tico nos paizes intertropicaes, onde reina aquella aífecção. (1) Vide— «Parasites des organes sexuels feraelles, de 1’homme et de quelques animaux», par le Dr. D. Haussinann, traduit par lc Dr. Wather, pag. 38. Paris, 1875. (2) Pag. 51 e 52. 41 « 3.® No facto de serem os paizes em que se observam as urinas chylosas, também aquelles, em que parece se produ- zir as dilatações das redes lymphaticas externas. « Eis como elle sustenta esta sua theoria : « A urina, dir-se-ka, offerece antes o aspecto do chylo do que o da lympha. « Eu não nego que, em geral, a lympha humana seja menos opaca, mas farei notar que, no caso de lymphorrhagia cutanea estudado por nós, os liquidos dos vasos brancos offe- reciam justamente uma grande opacidade ; deu-se o mesmo em um outro exemplo observado por Brown-Sequard, na America. Somos, pois, levado a crer, que, nas regiões-tropi- caes, a lympha toma esse caracter, nos indivíduos affectados de varices lymphaticas, em uma palavra ella acha-se também alterada. « Quanto á hematúria, ella seria, apenas, uma fórma particular da lymphorrhagia, e não representaria uma verda- dadeira exhalação de sangue pelos vasos venosos ou arteriaes do apparelho urinário. « Poder se-hia explicar a apparencia sanguinolenta da urina, ou pela presença de uma lympha mais carregada de globulos hematicos, ou pela coagulação de substancias solidas d’essa lympha, as quaes sendo coaguladas e depositadas no fundo da bexiga, no intervallo das micções, não seriam ex- pellidas senão em certas occasiões, por causa de uma contrac- ção mais duradoura e de uma exoneração mais completa da bexiga. (Comptes rendues des sceances et memoires de la Societé de Biologie, tom. 3°, de la 2® serie, 1858, pag. 98). » Esta theoria já teve resposta cathegorica no trabalho ma- gistral dos professores Spring, Yanlair e Masius (1), é a se- seguinte : « A urina chylosa, dizem elles, encerra elementos morphologicos que não offerece a lympha, e não apresenta sempre aquelles que dever-se-hia, constantemente, ahi en- (1) « Symptomatologie ou traité des accidents morbides », par A. Spring, C. Vanlair et V. Masius, tom. II, pag. 881. Paris, 1875. 42 contrar, si a alteração da urina fosse uma verdadeira lym— phuria. Por outro lado, até aqui, ninguém conseguio, ainda, verificar a existência d’essas varices. » O illustrado Sr. Dr. João José da Silva aceita a lymphor- rhagia como causa ímmediata da albumino-pymeluria «dis- crepando de Gluber no tocante ao que tem de geral a explica- ção por elle dada da apparencia sanguinolenta da urina ; mas essa lymphorrhagia lhe parece devida ou a uma atonia dos lymphaticos dos rins, ou, e mais commummente, a uma lym- phangite chronica e hypertrophia ganglionar. » (1) Mas o propno Dr. Silva encarrega-se, em parte, de destruir a dou- trina que sustenta, apresentando contra si a anatomia patho- logica, que em outro logar invoca (pag. 56). Deixando de parte as autopsias praticadas pelos Drs. De- Simoni e Priestley, em que parece haver complicação de mal de Bright, vejamos as que se seguem. Diz o illustre me- dico (2). « 0 Dr. Prout, em 1831, apresentou a seus discípulos os rins de uma criança de 18 mezes, qne soíFrera de chyluria, morrendo do uma enterite superveniente, estavam perfeita- mente normaes. « 0 Dr. Isaacs teve occasião de dissecar o cadaver de um marinheiro, que durante a vida sofifrera de chyluria, e mor- rera de uma tuberculose generalisada : os rins continham alguns nodulos tuberculosos em estado de amollecimento : quanto ao mais acharam-se perfeitamente normaes. » Ora, si houvesse vestígios de uma lymphatite chronica ou hypertrophia ganglionar, acredita-se que podesse escapar a observação esclarecida de Prout e Isaacs ? E entretanto, esses notáveis indagadores conservam-se silenciosos sobre um ponto tão importante. Sabe-se ainda mais que os médicos inglezes da índia, posto que admittindo causa diversa (helminthos), são mais ou (]) Tiiese citada—pag. 52. (2) Idem—pag. 31. 43 menos, proselytos d’esta theoria. Tratando d’este ponto assim expressa-se o Dr. Silva Lima : « Esta opinião, diz elle (1), a respeito do modo por que se misturam com a urina os mate- riaes extranlios a esta secreção na hematúria chylosa, isto é, chegaudo as vias urinarias por meio de rupturas vascular, é, geralmente, admittida pelos auctores inglezes modernos, embora nenhum d'elles tenhn podido provar peia autopsia o facto de semelhante lesão dos vasos lymphaticos ou sanguíneos, ao menos no homem, apezar de se terem feito autopsias com o fim de buscar a procedência desses materiaes, e dos entozoarios que os acom- panham. Ainda aqui a anatomia pathologica é contraria a theoria, como foi, também, no tão citado caso de Roberts, em que a autopsia nada revelou de anormal. Consideremos, porem, por um momento, a possibilidade da existência de uma lyraphorrhagia verificada pela necrop- sia. Ainda assim, dizemos, a albumino-pymeluria não será por ella convenientemente explicada. E’ o que passamos a demonstrar. A lyraphorrhagia ou lymphorrhéa ou fistula lymphatica é ordinariamente uma lesão chronica, e o corrimento de lympha é, muitas vezes, continuo. Schreger relata o exemplo de um indivíduo, que por occasião de uma sangria da sa- phena teve um vaso lymphatico feri io, e a lympha se escoava continuamente pelo ferimento ; Van-Swieten e Haller obser- varam que depois da lesão dos lymphatiços da dobra do braço, por occasião da sangria, esse flui io corria com per- sistência ; Mui! er observou, na clinica cirúrgica do professor Wutzer, em Bonn, um moço com uma ferida, no dorso do pé, que offerecia um corrimento constante de lympha ; etc. (2). Sabe-se, também, que fistulas lymphaticas, uma vez curadas, não se reproduzem, salvo, um estado de completa alteração desse systeina vascular, o que não nos consta que se tenha (1) « Commentarios » a memória de Crevaux—pag. 2i. (2) Bouisson —« De ia lymphe »— pag. 10, 11 e 00. 44 observado, ou então um novo ferimento, porque é bem conhe- cido que são lesões d’este genero que, de ordinário, occasio- nam essas fistulas. Si compararmos, agora, esses dados, com o que acontece na albumino-pymeluria, veremos, que apezar de ser também uma moléstia chronica, nãoofferece caso de urinas constante- mente leitosas ; que durante o mesmo accesso, a urina pode-se apresentar, 2, 3, 4 e mais dias, perfeitamente normal, que é uma moléstia essencialmente intermittente, apresentando pe- ríodos de repouso mais ou menos longos, chegando, mesmo, a completar 10 annos, para depois manifestar-se de novo. Em nada d’isso achamos semelhança com as fistulas lympha- ticas. Ainda mais. Considerando como verdadeira a theoria sustentada pelo Dr. João Silva, como explicar-se-hia essa in- termittencia, ora de urinas albumino-gordurosas, ora de uri- nas puramente sanguinolentas ? Sabe-se que nos casos de albumino-pymeluria (Observa- çõesl, II, III, IV), a urina ora manifesta-se, n’um periodo, sob a fórma hematurica genuina (hematúria interlropicaD, ora apresenta a côr leitosa com suas diversas modalidades. A lymphorrhagia poderia explicar este phenomeno mor- bido ? Parece-nos que não, porque se fosse a lymphorrhagia ou lymphorrhéa a causa da moléstia, a urina deveria possuir sempre os caracteres da lympha gordurosa, seria opalina. Comprehendendo todo o valor d’esta objecção contra a theoria que adopta, o illustrado Sr. Dr. João Silva trata desde logo, e antes de entrarem questão, de pol-a fora de combate negando a identidade da hematúria e da albumino-pymelu- ria. Assim, diz elle (1) : « E’ certo, que o sangue póde appa- recer nas urinas chylosas, quer no principio, quer em epochas adiantadas da moléstia', mas isto é um accidente de curta, duração, e a moléstia prosegue a sua marcha, apresentando-se as urinas completamente isentas de sangue. » Mas, os factos, (1) Theoria citada, pag. 44. 45 de períodos hematurieos alternando com outros em que as urinas são alburaino-gordurosas, destroem esta exposição, e as nossas observações são provas do que aflirmamos. Maior desenvolvimento poderíamos dar a esta discussão, porem, como suppomos que as razões expostas são mais que suíRcientes para fazer rejeitar a theoria em questão, e para não avolumar este trabalho, terrainal-a-hemos aqui. § V THEORIA IDA ALTERAÇÃO HIETCTAL Os Drs. Golding Bird e Bence Jones (1) suppoem a albu- mino-pymeluria ligada a urna alteração da estructura dos rins. Este ultimo auctor expõe sua opinião nas seguintes con- clusões : - . « l.° A matéria gordurosa que dá á urina o aspecto lei- toso, apparece depois da absorpção dochylo, mas a albumina, a fibrina, o sangue e os saes alcalinos, ahi se encontram, mesmo quando o doente não se tem alimentado, e, conseguin- temente, sem que haja chylo formado. « 2.* Durante o somno, a albumina desapparece da urina, e não reapparece antes de um exereicio corporal sufficiente. Pouco tempo depois do levantar, a urina se gelatinisa pelo re- pouso, mas ella não contem gordura. « 3.» Este estado da urina não depende da presença de um excesso de gordura no sangue, como prova a analyse. « 4.° A séde da moléstia consiste, provavelmente, em alguma ligeira alteração na estructura dos rins, pela qual, quando a circulação atravez dos orgãos torna-se mais activa, um ou muitos dos constituintes do sangue exsudam dos ca- pillares e se escapam pela urina. » Esta theoria não resiste a uma analyse, porque nada tem de positivo. De que genero será essa alteração da estructura dos rins ? (1) Golding Bird—« De l’urine », citada, pag. 440 e 446. 46 Si se trata de uma alteração organica (de estructura) que deve ser permanente, porque será a manifestação mórbida, para a urina, caprichosa, incoherente, e sobretudo de marcha tão irregular ? Nada d’isso se nos indica ; aqui, tudo é vago e indeter- minado. Podemos ligara esta theoria, a opinião do Dr. Waters (1), que considera a albumino-pymeluria, como dependendo sim- plesmente de um estado de relaxamento dos capillares re- naes, deixando atravessar, como si atravez de um filtro, a fibrina, a albumina, a gordura e os globulos sanguíneos. A ser real, esse relaxamento não poderia existir senão momen- taneamente, porque, com differença de horas, o indivíduo affectado expelle, no mesmo dia, urina albumino-gordurosa e normal. § VI THEORIA DA ENNERVAÇÃO 0 Dr. De-Simoni considera a albumino-pymeluria «como uma aíFecção nervosa dos orgãos urinários, a qual perverte a secreção que lhes é própria. » (2) O Dr. Maia tem-na como resultado de uma perversão da sensibilidade dos rins (3). O illustrado Dr. Barão do Lavradio (P. Rego) elassiftca-a, como uma aberração nutritiva, por uma aífecção especial do systema nervoso (4). Enunciada, como tem sido, a theoria que concede ao sys- tema nervoso o ponto de partida da albumino-pymeluria, é toda hypothetica, e não tem factos de observação em que se apoie. (1) Beale—« De l'urine ». citada, pag. 327. (2) «Revista Medica Fluminense», Vol. II, pag. 4. (3) Idem—pag. 9. (4j «Annaes Brazilienses de Medicina»—Abril de 1863. 47 § VII THEORIA ID.A. HEMATOSE SoíFrendo contínuos e repetidos embates dos sectários das outras doutrinas, tem esta theoria atravessado os annos, e é a que, até hoje, tem merecido maior numero de adhesões. Procedendo seu estudo daremos, em primeiro logar, conta re- sumida das opiniões de alguns auctores que a sustentam, emittindo em seguida o nosso modo de pensar. « A causa próxima d’esta affecção, diz Prout (1), parece depender, em parte, dos orgãos assimiladores e, em parte, dos rins ; o chylo, em virtude de algum desarranjo no processo de assimilação, não vai para o sangue convenientemente pre- parado, e, por conseguinte, não sendo util aos futuros mis- teres da economia, é, segundo uma lei organica, lançado fóra atravezdos rins ; estes orgãos, porem, em vez de decompol-o ou reduzil-o a um estado crystallino, como succede em con- dições normaes, permittein que elle passe inalterado atravez de sua espessura. » 0 Dr. Barão de Petropolis (Yalladão) acredita que « a mo- léstia é devida a um vicio de hematose, em virtude do qual os elementos do chylo não se transformam completamente no sangue (2). » Rayer ligava a albumino-pymeluria a uma alteração do sangue, por sobrecarga de gordura, que tinha de ser eliminada pelo emunctorio renal. Eggel (3) « independentemente de lesão dos capillares re- naes, faz intervir para a producção da moléstia uma crase particular do sangue [eram chylosa) occasionada por uma elaboração insufficiente dos alimentos que resulta do ardor do clima. Examinando de perto o serum de um chylurico, (1) Citado pelo Dr. J. S. — Tliese— pag. 48. (2) Vide—These do Dr. João Silva—pag. 48. (3) Vide — « Symptomatologie ou traité des accidentcs morbides'», par Spring, Vanlair et Masius, pag. 882—tom. II. Paris, 1875. 48 Eggel tem-no, com effeito achado, mais rico em granulações moleculares, do que o sangue dos indivíduos sãos. » Bouchardat expressa-se da seguinte fórma (1). Quando a somma dos alimentos de calorificação absorvidos ou produ- zidos no organismo é muito considerável e uma tempera- tura ambiente muito elevada se oppõe a despeza, a elimi- nação d’estes alimentos, que superabundam, se effectua pelos orgãos moderadores ; é o figado que preenche princi- palmente este papel, secretando maior quantidade de bilis, destinada n’eslas condições a ser lançada para fóra ; quando ella é reabsorvida, outros orgãos de eliminação são solicita- dos ; os rins soffrem esta influencia. O principal elemento de calorificação, a gordura, é rejeitado com a urina ; mas este trabalho anomalo não se effectua sem desordens nas funcções. c< O sangue é elimado com a gordura, sobretudo no come- ço da affecção, donde a hematúria endemica dos paizes quen- tes. Mais tarde o sangue póde desapparecer, mas a eliminação da albumina subsiste sempre com a da gordura : si a moléstia limita-se a eliminação da gordura, ella será antes um acto physiologico, que sa deverá respeitar, einquanto subsistem as causas ; é certo, porem, que a eliminação diaria da albumina é uma funesta complicação, que póde ser a origem de desor- dens ulteriores. » O Dr. Pinheiro Guimarães, analysando, na Gazeta Medica do Rio de Janeiro (2), a discussão sobre urinas leitosas que teve logar na Academia Imperial de Medicina, a 5 de Dezembro de 1862, emittio assim sua opinião : « Supponha-se, diz elle, uma perturbação no organismo, determinando a absorpção de uma quantidade de matérias graxas tal, que não possa ser totalmente combusta toda essa porção absorvida, as matérias graxas superabundarão no (1) «Annuaires de therapeutique, de raatière medicale »— Vide de 1860 a 1863. (2) N. 9, de Io de Maio de 1863, pag. 100 e 101. 49 sangue, e como se acham fóra das proporções normaes, repre- sentarão o papel de corpo estranho. Ora, como é que o san- gue procura conservar a sua composição normal ? Expellindo, especialmente pelos rins, seus principaes emunctorios, os corpos que o vèm alterar, e sendo estes graxos, no caso de que tratamos, nada mais natural do que o apparecimeuto d’esses corpos nas urinas. Assim, as urinas leitosas não seriam mais do que o resultado de um desequilíbrio entre a absorpção e a combustão da gordura. » Vendo-nos, agora, seriamente embaraçados para classifi- car a theoria apresentada pelo Dr. Barão de S. Felix(Felix Mar- tins), e posto que ella não nos pareça filiar-se a chamada theo- ria da hematose, incluimol-a, comtudo, n’este paragrapho, a exemplo do Dr. João Silva, e para não termos de discutil-a isoladameute, tanto mais quanto já foi ella proficientemente aualysada e posta a margem pelo Dr. Pinheiro Guimarães (1). E’ opinião do Sr. Barão de S. Felix, que — « uma atfec- ção mórbida do pancreas poderia concorrer para produzir as urinas leitosas, segregando então elle um sueco alterado, in- capaz de emulsionar os globulos gordurosos, ou de substancia butyracea, ou emulsionando-os, incompletamente, de ma- neira que não ficassem depois aptos a serem assimilados. Como a natureza repelle o que sendo mal elaborado não póde deixar de ser nocivo, ou pelo menos não é recrernenticio, não seria de admirar que os globulos gordurosos ou butyraceos, lançados no sangue, sem receberem a modificação necessária, deixem de ser assimilados e vão sahir nas urinas. » Eis esta doutrina, tal qual acha-se nos Annaes Brazilizn- ses de Medicina ; não acreditamos que o seu illustrado auctor continue a sustental-a, depois da analyse que d’ella fez o Dr. Pinheiro Guimarães. Para o nosso Ulustre mestre, o Dr. Torres Homem, a al- bumino-pyineluria é um vicio de nutrição, vicio de hematose, (1) «Gazuta Medica do Rio de Janeiro», numero citado. 50 inconveniência dos elementos de sanguinificação em relação ao chylo, e excesso dos elementos do chylo. Resta agora expor a opinião que abraçamos. Nós consideramos a albumino-pymeluria como um vicio da nutrição e da hemato-poyése, produzindo atonia organica geral, que consecutivamente determina um excesso de gor- dura no sangue ; e sendo essa gordura eliminada pela secreção urinaria, acarreta comsigo outros productos que normalmente existem no fluido sanguineo. Fundamentaremos esta nossa opinião. E’ facto, por todos conhecido, que a albumino-pymeluria se desenvolve com mais frequência nos paizes tropicaes, es- colhendo, d’entre esses, aquelles que soffrern a influencia do clima quente e húmido. Mas, como todos conhecem, também, a acção do clima quente e húmido sobre o organismo do ho- mem produz, como muito bem diz Eugênio Celle (1), atonia dos orgãosdigestivos; excitação extrema da pelle, pelo calor ; diminuição das secreções e da exhalação pulmonar e cutanea; e, emfim, alteração do sangue que o torna insufficiente para estimular o organismo dentro dos limites normaes. 0 sangue sobrecarregado de princípios estranhos, resultado da deficiên- cia das secreções, etc., tem de ser depurado pelo emunctorio renal ; ha, portanto, augmento de trabalho nos capillares dos rins, para a execução plena da fuucção uro-poyetica. Con- tinuando, porem, a actuar as mesmas causas, e, talvez, algu- mas outras, taes como a habitação; os alimentos excitantes e condimentados, exigidos pela atonia dos orgãos digestivos; a ingestão de grande quantidade d’agoa, para mitigar, a sêde intensa e, as vezes, insaciável produzida sobre a influencia do calor húmido ; a hematose incompleta, pela insufficiencia da troca de gazes pelos pulmões e pela a pelle ; etc. ; traz uma especie de collapso orgânico, de que a funcção da he- mato-poyése deve, naturalmente, resentir-se : — a sanguini- (1) « Ilygiene pratica dos paizes quentes » pelo Dr. Eugene Cetle, traduc- ção portugueza do Dr. D. J. Beniardino de Almeida, pag. 05. Rio de Janei- ro, 1856. 51 ficação, portanto, não será completa, e a nutrição não se póde fazer com a regularidade precisa. A falta de energia funccional dos orgãos hemato-poyeti- cos, e a deficiência da nutrição organica, são elementos bastautes para a producção da gordura. Sob a influencia d’essas duas causas, não só as matérias graxas que entram na composição do chylo, que não são combustas pelo oxigeno, nem aproveitadas pelos tecidos, permanecem no sangue; como também a maior parte das substancias ternarias e a agoa in- gerida, podem transformar-se em gordura, que, não sendo necessária no organismo, tem de ser expulsa com a urina. A producção da gordura, n’essas condições, é um facto, muitas vezes, observado. Nós conhecemos um moço pharmaceutico, bastante gordo, de constituição regular e temperamento lymphatico, filho de um distincto medico d’esta côrte, que foi inopinadamente affectado de albumino-pymeluria, sem que, entretanto, se manifestasse alteração notável em seu estado physico. « Nos casos, pouco numerosos, de urina gordurosa obser- vados pelo Dr. Golding Bird, dil-o elle proprio (1), os pa- cientes apresentavam uma notável propensão para a obesi- dade. » Em 18 casos da clinica do Dr. Silva Lima, diz elle (2), havia dous, 1 homem e 1 mulher, bastante corpulentos, porem não especifica si essa corpulência era devida a grande massa de tecido adiposo, o que nos parece provável. A doente do Dr. Gosset (G. Bird—De Vurine, pag. 441) era excessivamente gorda. A transformação das substancias ternarias e da agoa, em gordura, nos organismos lymphaticos, é um facto fóra de du- vida, lepois das investigações de Dancei, que estabeleceu sobre esta base o seu tratamento da obesidade. Acerca d’este (1) «De 1’urine », citada, pag. 440. (2) « Commentarios a memória de Crevaux », citada, pag. 23. 52 ponto vem a proposito o seguinte caso (1) : « Guilherme, o Conquistador, era um grande bebedor, vindo depois a cahir em um verdadeiro estado de obesidade. Achava-se elle em Ruão nos primeiros vezes do anno de 1087, e como trazia uma antiga pendencia com o rei de França Felippe I, a pro- posito do condado de Vexin, quiz terminal-a quanto antes ; mas, em extremo fatigado pela sua grande gordura, resolveu livrar-se d’ella. Enviou ao rei de França um official incum- bido da reclamação, e, por conselho dos médicos, poz-se de cama, onde observou, por longo tempo, rigorosa dieta ; como porem, para supportal-a, bebesse desmedidamente, nada per- deu de sua obesidade ; pois o uso dos líquidos e a estada na cama a favoreciam. » O Dr. Cypriauo José de Carvalho era um grande bebedor d’agoa, como elle mesmo declara (Observ. I) ; e o moço phar- maceutico, que acima citamos, vio suas urinas alterarem-se, pela primeira vez, em um dia do mez de Janeiro, epocha de grande calor, tendo elle na vespera ingerido grande copia de bebidas geladas. Esta theoria, para a explicação da pathogenese da albu- mino-pymeluria, tem ainda em seu favor as analyses do san- gue feitas por Guibourt, no doente do Dr. Caffe, onde se encontrou excesso de gordura : pelo Dr. Rayer, que em dous casos notou que a constituição do sangue se aproximava muito da do chylo do canal thoraxico (Dr. Silva); pelo Dr. Eggel, que encontrou o sarum do sangue dos alburaino-py- meluricos, mais rico em granulações moleculares, do que o dos indivíduos sãos. Tem contra si — as analyses de Bence Jones, que não encontrou no sangue excesso de gordura, e um caso de Rayer, em que parecia, tainbem, não haver. As analyses do Dr. Crevaux e Silva Lima, assim como as tres que tivemos occasião de fazer, não se podem dizer contrarias, porque não (1) «Tratamento da obesidade» segando o systema do Dr. Dancei, pelo Dr. Marques, pag. 73. Paris, 1861. 53 foram instituídas investigações chimicas, porem sim micros- cópicas, que não podem dar razão da quantidade de gordura existente. E’ um engano suppor-se, que um excesso de gordura no sangue será patente pela simples vista, porque o predomínio da matéria corante dos globulos rubros (hematina) mascarará a presença de qualquer substancia, maximé quando ella existe normalmente n’esse fluido, como succede com a gordura. Para que se verifique a coloração notada pelo Dr. Rayer, será pre- ciso a concomittancia de uma quantidade, pode-se dizer, colossal de gordura, com ausência relativa de globulos hema- ticos. As únicas analyses chimicas que contrariam a existên- cia de um excesso de gordura no sangue dos albumino-pyme- luncos, são as de Bence Jones ; não acreditamos, porem, que ellas possam derrocar as de Guibourt e Eggel, e os factos de Rayer. Appellamos, entretanto, para investigações posteriores, que esperamos sejam emprehendidas pelos nossos chimicos, que não devem deixar a estranhos a gloria de resolver ques- tões queaffectam os nossos interesses. Não queremos terminar esta parte do nosso trabalho sem lembrar os nomes de Claude Bernard e Charles Robin, que comparando o plasma sanguineo dos albumino-pymeluricos, com o dos gansos que se engordam, consideram-no lactes- cente : « esse estado dizem elles, que é normal depois das digestões e passageiro, torna-se constante na chyluria, e d’ahi a moléstia ». (Dr. Silva.) « Si tal fosse a causa do mal, pergunta o Dr. João Silva (1), porque não se observariam as urinas chylosas no estado normal logo após as digestões, quando existe o estado do sangue, de que essas urinas dependem ? » Porque? O Sr. Dr. Silva sabe, muito bem, que atravez das paredes dos capillares dos glumerulos, no estado normal, (1) These citada, pag. 50. 54 não podem passar senão substancias extremamente diluídas no liquido aquoso que constitue a urina ; e que é indispen- sável a relaxação mórbida das paredes d’esses capillares, para que ellas deixem atravessar princípios diversos dos que se encontrara na urina physiologica. Esta impermeabilidade relativa das paredes dos capilla- res é, segundo todas as probabilidades, devida a acção nervosa, porque Claude Bernard (1), seccionando o grande splanchnico, observou notável affluencia de sangue para os rins e produc- çãode urina sanguinolenta. Yulpian (2), repetindo a mesma ex- periencia, não só confirmou o resultado a que tinha chegado C. Bernard, como observou mais que a urina torna-se forte- mente albuminosa, sem, entretanto, encerrar cylindros, epithelio e grânulos. As observações d’esses dous notáveis physiologistas vêm * ainda, em apoio da theoria que sustentamos, porque, sabe-se, que, um sangue alterado em sua constituição intima, ou é in- capaz de excitar o systema nervoso, e n’este caso elle não po- derá exercer suas funcções (teremos um simulacro de secção), ou excita mal, e a ennervação perverter-se-ha. Em qualquer dos casos, deixando de ser effectiva e regular a acção nervosa sobre os capillares dos glumerulos, os princípios constituintes do sangue podem ser encontrados na urina. Porem, continuando a responder a objecção do Dr. Silva, acerescentaremos que desde o tempo de Hailer era conhecida essa impossibilidade de, no estado normal, encontrar-se na urina substancias estranhas : e a frequência d’essas mesmas substancias no estado morbido. Eis como esse antigo physio- logista explica o facto (3) : « O diâmetro dos tubos uriniferos em sua origem, e sua firme resistência, parecem excluir o oleo grosseiro, o chylo e a lympha coagulavel. E’ o que faz com que, quando o movi- (1) « Leçons sur les liquides de 1’organisme », tom. II, pag. 168. (2) « Leçons sur l’appareil vaso-moteur, tom. I, pag. 523. Paris, 1875. (3) Alb. Ilaller. « Primae linae Phvsiologise », pag. 458. 55 mento do sangue é accelerado, a parte vermelha passe facil- mente por esses tubos ; e que, quando depois de alguma mo- léstia grave elles tornam-se fracos, deixem passar a gordura, o leite mesmo, os saes dos alimentos e das bebidas. » «. ípsavero diameter orientis ductus uriniferi, ejusque firma resistentia, crassum oleum, et chylum, et lympham coagulabilem, excludere videtur. Hinc adeo facile aucta celeritas sanguims ipsum cruorem per eas fistulas urget, laxitas vero morbosa adipem verum et lac ipsum, et sales ciborum potusque transmittit. » Yè-se, pois, que não ha fundamento na objecção do Dr. João Silva contra a doutrina sustentada por Claude Bernard e Charles Robin. Conservamos bem fundada esperança, de que o tempo e investigações posteriores, tornarão bem patentes este ponto importantíssimo de pathologia tropical. Tratamento « Tratar, diz Hecker (l), é occasionar ao corpo humano doente, mudanças que possam favorecer o seu restabeleci- mento.» Podem-se determinar essas mudanças por dous mo- dos, ou subtrahindo o organismo ás causas prodnctoras da moléstia (tratamento causal), ou empregando meios que tenham por fim sanar as lesões existentes, ou commuuicar ao corpo enfermo, forças com que se possa libertar do principio mor- bigenico (tratamento curatioo). A prophylaxia, propriamente dieta, é do doininio da hygieue e não da therapeutica. Occu- par-nos-hemos, simplesmente, com o tratamento da albu- mino-pymeluria. indicação causal.—Tratando-se de uma moléstia produzida sob a influencia do clima tropical, a primeira indicação a preencher é a mudança para os climas temperados ou frios. Entre nós, á algumas horas de viagem do Rio de Janeiro, temos logares elevados como Friburgo, Petropolis, etc., onde (1) « Tlierapeutique Ghirurg. gcnérale » par M. A. F. Hccker, traduit par E. H. Roché, pag. 25. Paris, 1804. 56 o clima é temperado,e para onde a remoção de alguns doentes tem sido seguida de cessação da moléstia. Na ilha de Bourbon, segundo diz o Dr. Crevaux (1), as pessoas idosas e as mulheres vão passar alguns mezes em localidade mais alta, e, por isso, menos quente. (Segundo John Harley e Cassien nunca apparece a moléstia nas terras elevadas.) Os adolescentes aproveitam-se d’esta enfermidade para irem completar na Europa os seus estudos. Os banhos frios, o exercício corporeo (gymnastica, equi- tação, passeios a pé), e uma alimentação animal, tendo por fim despertar a vitalidade organica da apathia em que jaz, serão meios muito vantajosos. - Tndicação mórbida.—N’esta parte da historia da albumino- pymeluria, tem, até hoje, dominado o pleno empyrismo, e pela exposição, que vamos fazer, ver-se-ha a multiplicidade de substaucias empregadas com o fim de curar esta moléstia, sendo todas mais ou menos improfícuas. Assim o venerando Dr. Barão de Petropolis aconselhava o deoocto da planta co- nhecida sob o nome de cinco-folhas ou turaman [Iledere quinque folia. Yelloso. Bignoneaceas), e do amor do campo (Zornia, segundo o Dr. Nicolau Moreira, Ilidysarum, segundo o Dr. João Silva. Leguminosa). O illustrado Dr. J. J. da Silva, antigo professor de patho- logia interna da Faculdade de Medicina, empregava (2) o ja- cutupê (Pachyrrhisus angulatus, Benth.), de cuja fécula se servia ora em forma de limonadas, ora em suspensão na agoa fria e sueco de limão (uma colher de sopa para um copo d’agoa), sobretudo para combater os accidentes hematuricos. O Dr. Godoy Botelho diz ter tirado proveito do decocto da sensitiva (Mimosa pudica. Linn. Leguminosas). 0 Dr. João Silva diz ter empregado com feliz resultado o decocto da canna branca do brejo (Alpinia spicata. Amomaceas), da herva (1) Memória citada, pag. 17 e 18. (2) Thesc do l)r. João Silva, pag. 59. 57 pombinha [Phyllantfins mxjcrophillaa. Mart. Euphorbiaceas), e da japecanga {Herreria salsaparrilha. Smilaceas). O nosso illustrado mestre Dr. Torres Homem aconselha o sueco expresso da salsa da horta associado a flores de enxofre. O Dr. F. da Silva Castro, do Pará, segundo informa o Dr. Silva Lima (1), emprega o seguinte tratamento: Pilulas compostas de : Cravagem de centeio em pó bem recente. 10 centigr. Iodureto de ferro 5 « Extracto de Cato q. s. F. s. a. 1 pilula, e como esta mais 35. Para tomar 1 pela manhã, e 1 á noute com infusão da herva caamembéca [Polygala-paraensis). Golding-Bird (2) dá a seguinte noticia : «O Dr. Bouyun, na Guyana Ingleza, acreditando que esta moléstia depende de alguma lesão das funeções assimiladoras, tem colhido bom resultado da administração da casca de mangue {Hhizophora racemosa). Este remedio parece actuar, sobretudo, sobre as funeções da pelle, modificando os caracteres da urina, e resta- belecendo a saude geral. » Watters (3) diz ter obtido resultado satisfatório, adminis- trando o acido gallico em alta dóse. A tintura de cantharidas foi empregada com successo por Chapotin. Os balsâmicos também são aconselhados, fundando-se os que assim pro- cedem, no facto referido por Salesse, de um mancebo, da Ilha de França, que soffrendo de hematúria rebelde, teve uma uretrite, a qual sendo tratada pela copahiba, a hematú- ria desappareceu. Os alcalinos, não em dóses alterantes têm sido, também, empregados. Os diuréticos, antispasmodicos e antiphlogisticos não têm sido esquecidos. (3) « Commentarios a memória de Crevaux », pag. 46. (2) « De 1’urine », citada, pag. 446. (3) Beale — « De l’urine », citada, pag. 326. 58 John Harley aconselha o iodureto de potássio adminis- trado pela boca e em injecções na bexiga, o seu fim é matar os parasitas que elle suppõe causa da moléstia. N’este ponto Harley tem sido acompanhado pela maioria, senão por todos os sectários da theoria helminthologica da albumino-pyme- luria. 0 Dr. João Silva diz que só emprega este meio, quando ha coincidência da moléstia com a infecção syphilitica. Harley mandava alternar as injecções de iodureto de potássio com uma outra em que entrava o oleo essencial de feto ma- cho, na dóse de 0,30 a 1,00 grammas, dizendo que o feto macho tem a propriedade de provocar contracções energicas da bexiga, capazes de favorecer a expulsão dos helminthos. Indicação symptomatica. — Para combater a hematúria lança-se mão das substancias adstringentes, taes como— o tannino, a ratania, a monesia, porem, sobretudo, do per- chlorureto de ferro. Com o fim de impedir a excessiva perda de albumina, o Dr. Torres Homem indica as capsulas de essencia de there- bentina de Clertan, que são fáceis de tomar, e o acido gallico. O estado anémico e a apathia organica, que são conse- quência d’esta moléstia, debella-se com a administração ra- cional dos preparados ferruginosos, dos tonicos vegetaes, associados a uma alimentação reparadora. Pela exposição que acabamos de fazer, torna-se claro, que o tratamento curativo da albumino-pymeluria reclama, ainda, activamente o cuidado e a attenção dos médicos. De- sejamos que este ligeiro estu lo desperte, entre os nossos col- legas, a vontade de resolver este ponto interessante de therapeutica. OBSERVAÇÕES I Observação tomada em si proprio pelo Dr. Cypriano José de Car- valho (*) « Foi no mez de Maio de 1850, depois de longo e aturado trabalho clinico, que me forçava a andar a cavallo todo o dia, sem me deixar tempo de repouso depois da refeição, e quando eu fazia uso quotidiano, por mais de 8 dias, de carne de porco extremamente gorda, que, pela primeira vez, se me apresentou tal perturbação nas urinas. « Sempre fui grande bebedor d’agoa, maximé depois do jantar; e, na época de que trato, começando o meu trabalho, a cavallo e a passo largo, logo depois de concluída a refeição, eu sentia que, no immenso liquido que bebia, oalimentooscil- lava fortemente no estomago, e minhas digestões se pertur- bavam mais ou menos, dando logar, muitas vezes, a um fluxo de ventre abundante, ás vezes repetido e aquoso. « Um dia, com muita surpreza, vi que minhas urinas sahiam mais espessas que de costume e brancas como leite, (*) Esta observação escripta em 1863, quando se discutia a albumino- pymeluria na Academia Imperial de Medicina, parece ter sido destinada a pu- blicação, o que não se effectuou, não só por causa das occupações que acar- reta uma extensa clinica, como pela morte de seu autor, succedida em 1869. Era o Dr. Cypriano José de Carvalho natural da cidade do Rio de Janeiro em cuja Faculdade estudou, doutorando-se em 1845, depois da defesa de uma bem elaborada tliese sobre os «tumores erectis e seu tratamento.» Clinicava elle no «Porto das Caixas», quando foi affectado da moléstia cuja obser- vação nos occupa. Medico distincto e observador consciencioso como era o Dr. Cypriano a sua observação, cujo autographo nos foi communicado por um seu parente, merece toda a consideração dos homens de sciencia. Publicando-a addicionamos-lhe algumas notas necessárias. 60 e, após momentos, voltando ao vaso onde as depositára, notei que ellas se haviam separado em duas partes, uma solida, compacta e branca, outra liquida, citrina, em que sobrena- dava a primeira. Era este o unico phenomeno morbido que em mim notava. Com bom appetite, sem qualquer alteração de boca, sem sêde, digestões silenciosas, sem dôr em qual- quer parte do corpo, evacuações alvinas regulares e bem ela- boradas, somno tranquillo, não me inquietava muito o meu estado. No entanto desde logo me puz em um regimen parco e leve, e só me alimentava de pão sem manteiga com cozi- mento de cevada para almoço e ceia, e frango assado de grelha com arroz ou algumas hervas para jantar. Então tentei diversos medicamentos. « Fiz uso da terebenthina, do ferro sob diversas formas, de diversos decoctos de vegetaes, taes como, a uva-ursiua (1), a chamada cinco-folhas (2), a trapueraba (3), etc., e nada ob- tendo, ia, como tantos outros, resignando-me a viver com semelhante achaque. Começou, porem, a apparecer-me, na occasião da micção, um muco espesso que me obstruia a ure- thra, embargando a sahida da urina, que só depois de longo e aturado esforço podia veucel-o, levando-o adiante de si, como acontece aos que soffrem de cystite ou catarrho da be- xiga. O muco ou antes o coagulo expellido era ora branco, ora de côr sanguínea. 0 incommodo moral que isto me pro- duzia, pela supposição em que estava, de que o contacto d’esse liquido fóra das condições normaes começava a affectar des- agradavelmente a mucosa que elle regava, podendo d’ahi sobrevir-me novos incommodos, novas complicações, levou- me a consultar um dos nossos mais sábios e respeitáveis prá- ticos, que dissipando meus receios, deu-me certeza de prompto restabelecimento com o uso dos banhos frios. « Corri a elles, mas bem depressa vi sua inutilidade para (1) « Arbustus uva-ursi.» (2) «Bignonia depauperata. Hedere quinque folia.» Velloso. Bignoneaceas. (3) « Tradescantia diurética. » Martius. Gommelineas. 61 mim, e até achei n’elles alguma desvantagem porque comecei a sentir dores nos lombos, quando antes apenas se limitavam á região sacra (o que em mim já é antigo); o muco, em vez de desapparecer, tornou-se mais abundante, e a urina mais espessa e um pouco sanguinolenta. Abandonei por isso os banhos e pouco depois, por conselho de um amigo, comecei a usar de uma bebida, entre nós chamada maduro (1), da qual bebia diariamente 2 ou 3 garrafas. « Nova surpreza tive porque desde o segundo dia a urina perdeu sua consistência e côr leitosa, conservando apenas o seu cheiro sacharino, e ficando completamente aquosa, alte- ração que pouco e pouco perdeu, chegando em poucos dias a côr e cheiro normal. Accrescentarei ainda, para completar o quadro que acabo de descrever, que, quando me deitava por longo tempo, o liquido que urinava deixava de ter essa espes- sura e côr leitosa, bem como deixava de haver obstrucção da urethra ; n’estas condições era ella perfeitamente aquosa, chegando mesmo, quando havia passado para mais de 5 horas depois da ultima refeição e que eu não bebia agoa, a ser tão pura, que difRcilmente se distinguia d’esta quando posta em um copo ; e, o que é ainda mais notável, vi apparecer no fundo do vaso, quando tomei umas pilulas de ferro e man- ganez, esses mesmos metaes que eu havia ingerido. (,?) Conti- nuemos, porem, nossa narração. « Tomando as urinas o aspecto normal sob o uso do ma- duro, como disse, o que se deu em Outubro d’esse mesmo auno, voltei para o logar em que residia, e ahi continuei no meu gvro clinico, como antigamente, almieutando-me, como sempre, fazendo mesmo longas e violentas viagens, e a des- peito d’isso, 10 aunos decorreram sem que eu sentisse a menor differença, até vir fixar minha residência na Côrte. (I) 0 « maduro » éo resultado da fermentação do mel da canna (Saccha- rum officinarum », Linnèo. « Arundo saccharifera », Pison. Gramineas) deno- minado «mel do tanque »com agua. Preparem-no, geralmente, em uma pipa, com 1 parte de «mel do tanque » para 2 de agua. 62 « Sabem todos que têm residido fóra das cidades, no Brasil, que a alimentação quotidiana consiste em carnes sal- gadas, havendo maisou menos, raras vezes, a carne verde, e, talvez que por isso, pouco tempo depois que eu havia chegado a esta cidade, comecei a sentir que minhas digestões se per- turbavam, que tinha frequentes fluxos de ventre, e que pas- sava melhor addicionando ao meu jantar alguma carne sal- gada, queijo, etc., mas continuando sempre ora melhor, ora peior, vi, finalmente, manifestar-se-me, de novo, a urina per- turbada, em fins de Maio de 1860. « Já não era, porem, essa urina branca, leitosa, mas sim uma verdadeira hematúria; era, ao aspecto, sangue puro, mas não se coagulava pelo resfriamento; não havia dores ao urinar, nem obstrucção da urethra por muco, mas sim dores, como sempre, sobre o sacro, com sensação de calor urente 11’essa região, maximé quando andava muito ou me conser- vava longo tempo de pé, o que me é habitual desde época remota. Animado pelo anterior resultado que então attribui ao maduro, comecei a usar d’elle agora, mas logo notei que não era elle tão bem recebido pelo estomago, e não produ- zindo alteração alguma nas urinas deixei-o no fim de 8 dias. Poucos dias haviam passado, quando uma ligeira, mas bem sensivel côr ictérica começou a manifestar-se em minha pelle e conjunctivas, e então, comquanto conservasse appetite, sem amargo de boca e sem sêde, submetti-me ao tratamento ade- quado, e, como tinha ligeira dôr na região hepatica, ahi ap- pliquei 2 ou 3 ventosas, bem como sobre os rins ; usei dos calomelanos em dóse purgativa, do tartaro e rhuibarbo, das agoas sulphurosas das Caídas da Rainha, com o que dissipou- se 0 estado ictérico, continuando, porem, as urinas no mesmo estado. a Este tratamento e a dieta a que me submetti (frango, peixe, arroz e pão), que forçava-me a comer pouco, porque a repugnava, mas não por falta de appetite, enfraqueciam-mo consideravelmente e faziam-me sentir uma fadiga interior 63 quando me conservava de pé ; entretanto, andava sempre, e notei que a pé seutia-me muito mais incommodado, e o san- gue que urinava era muito mais espesso e vermelho, do que quando sabia de carro, por longo que fosse o trajecto. « De novo consultei o habil pratico a quem da primeira vez havia pedido conselho, e que de novo indicou-me os ba- nhos frios, o uso de carne de vacca (assada de grelha), e vi- nho ; dizendo-me, porem, que só julgaria a cura duradoura com a mudança de clima. Sendo esse alvitre para mim in- exequível, tentei a alimentação por elle aconselhada, apezar de presentir que ella ser-me-hia inconveniente. « Por 8 dias suportei-a com quanto muito me fizesse soffrer, quer em augmento de dores, que se propagaram até aos rins, quer na urina ; por isso, passei de novo a usar de minha antiga alimentação, que afinal principiou a provocar vomitos seccos logo depois das refeições, os quaes eu fazia cessar bebendo um góle de vinho. Assim fui passando, até que havendo urinado muito sangue, e sentaudo-me logo a jantar, aborrecido d’esse frango assado e peixe, que havia tanto tempo fazia minha alimentação, comi á medo uma fatia de fiambre com pão e bebi um pouco de vinho, e mais tarde notei que a urina que lançava no vaso nenhum sangue con- tinha. Continuaram, porem, ellas depois da mesma sorte e não tendo eu feito ligação desde logo a esses dous pheno- menos, continuei na primeira alimentação, receioso sempre de affastar-me delia. Dias se haviam passado, e comendo de novo fiambre e vinho, e vendo de novo a urina tornar-se nor- mal, occorreu-me então o primeiro facto, e desde esse dia (princípios de Janeiro de 1861) minha alimentação foi feita com fiambre, queijo, pão e vinho, ao que addicionei pouco depois lombo de porco (de Minas) arroz, feijão e outros legu- mes. Desde então a urina não se perturbou mais. « Até Junho de 1862 passei admiravelmente, porem talvez porque o esquecimento do passado me fosse deixando, alargar muito nas comidas, n’essa epocha vi inopinadamente 64 apparecerem-me as urinas leitosas, exactamente como em 1850, acompanhadas do muco que me obstruía a urethra e tanto incommodava-me. « De poucos medicamentos fiz uso, e toda a minha atten ção concentrou-se na qua idade da alimentação. « Restríngi-me desde logo ás carnes salgadas, de fôrno, ao qupijo, pão e vinho, e com quanto a urina fosse leitosa sempre, e pelo resfriamento tomasse, as vezes, o aspecto de gomma cozida, sem que se notasse parte alguma liquida, o muco foi a principio supprimido. Porem, logo depois come- çou elle a manifestar-se e eu voltei de novo a vida de angus- tia e desespero, levando, as vezes, horas sem que pudesse expellil-o, para esvasiar a bexiga. Notei, porem, afinal que, aborrecido de tanto salgado, eu havia deixado de comer ao almoço e a ceia, tomando tão somente pão e chá, e julgando d’áhi provir o apparecimento d’esse incommodo muco, nunca almoçava ou ceiava pão, sem addicionar um pouco de queijo (chamado do reino), e com effeito, a urina, com quanto leitosa e coagulaveI,sahia livremente sem que houvesseobstrucção na urethra. Assim estive até Novembro ou Dezembro, epocha em que inopinadamente cessaram, após uma bòa porção de uma conserva iugleza de que um dia usei ao jantar, e que por dias continuei a usar. Sem dores e com a urina de côr e consis- tência normaes conservei-me até meiado de Fevereiro de 1863, em que de novo ella se perturbou, mas não tanto como das outras vezes, quero dizer, não tão leitosas e nem tão es- pessas e continuas, havendo occasiões em que são franca- mente normaes, ao menos na apparencia, e isto 5 ou 6 horas depois da refeição. « Para finalisar accrescentarei que quando tomo um ba- nho demorado, a urina que depois emitto é tão pura corno a agoa do banho, ainda mesmo quando antes tenha sido leitosa, o que não acontece si, por acaso, estando no banho bebo um copo d’agoa. « Fui sem duvida prolixo e fastidioso na enumeração de 65 todas as phases por que tein passado a perturbação que ha 12 annos se manifestou em minhas urinas, e que a despeito de tão longo tempo parece nada haver influido em minha constituição, pois que conservo sempre (maximé nos últimos periodos, talvez porque não tenho restringido tanto a minha dieta) um corpo bem nutrido, acho-me rosado e com a minha força habitual. Sendo, porem, esta moléstia, apezar de sua frequência entre nós, pouco conhecida quer em sua natureza, quer em sua marcha e syinptomatologia, e encontrando-se raras vezes enfermos que possam minuciosamente relatar aos médicos o quadro de seus soffrimentos, porque muitas cousas lhes passam desapercebidas, creio dever ser desculpado de minha prolixidade. « Accrescentarei que em outros enfermos, que tenho observado, cujo numero já attinge á 6, tenho verificado a maior parte dos phenomenos em mim notados. » II Luiz Antonio da Silva, pardo, de 39 annos de idade, casado, natural do Rio de Janeiro, alfaiate, entrou para o Hospital da Mizericordia no dia 12 de Junho de 1874 e foi occuparo leito n. 28 da 4a enfermaria de Medicina a cargo do Dr. Torres Homem. Anamnése.— Refere eile que, tendo pouco rnais ou menos 14 á 15 annos de idade, appareceram-lhe pela primeira vez urinas lacteas, moléstia que diz ser hereditária em sua familia. Apparecendo e desapparecendo temporariamente, esta affecção nào o inhibia de entregar-se a seus trabalhos usuaes, até que em 1872, tondo-se aggravado muito esse soffrirnento, recolheu-se ao Hospital da Mizericordia, de onde retirou-se curado, depois de 23 dias de tratamento. Não se tendo, porem, mantido em bom regimen, pois seus trabalhos impossibilita- vam-no, continuou a uriua a mostrar-se lactescente. Em Março de 1874, voltou ao mesmo Hospital soffrendo de urinas 66 sanguinolentas (hematúria), e, sendo convenientemente tra- tado, obteve alta etn Abril. Tendo-se, passado algum tempo, exposto a chuva, apa- nhou um resfriamento que occasionou-lhe uma tosse pertinaz e incommoda que ainda persiste. Nào era este o primeiro res- friamento quesoffna, pois, sendo, por algum tempo, archeiro, conservára, por diversas vezes, as véstes humedecidas pelo suor, por mais tempo do que convinha, sen